Maio
de 68, após 40 anos, e Constituição
de 1988, após 20 anos:
um balanço no cruzamento de conquistas
históricas
Eduardo C. B. Bittar*
Quando
se trata de refletir a respeito dos fenômenos
históricos e de suas conseqüências,
no final do século passado, o ano de 68
aparece como uma data de ampla significação
social e que, exatamente por isso, não
pode ser olvidada. Geralmente desprezada na avaliação
da cultura jurídica, tem-se em maio de
68 grandes transformações se processando,
que haverão de influenciar profundamente
no âmbito do direito. A partir de então,
o debate sobre a crise da modernidade se acirra
especialmente através do pensamento crítico
de Herbert Marcuse e da sociologia de Jean-François
Lyotard.
Nesse contexto, uma grande força teve papel
de protagonista da história: o movimento
estudantil. Em maio de 68, em Paris, ao longo
de todo o mês, mobilizando a princípio
cerca de 10 a 15 mil estudantes, para envolver
ao final cerca de 80 mil estudantes, o movimento,
que, a princípio era estudantil, e, em
seu decorrer, se torna um movimento social, havia
a motivar o seu estopim um romantismo utópico
suspenso no ar, e uma profunda sensação
de responsabilidade histórica pela mudança
do status quo, baseada na insatisfação
com o stablishment.
Este é um evento histórico de alto
simbolismo; trata-se da eclosão de reivindicações
informadas por altos ideais de transformação
social, e profundamente influenciadas pelos referenciais
marxiano e frankfurtiano, com destaque para Herbert
Marcuse, mas que hoje representam o selo de uma
mudança radical de concepção
de mundo. Este episódio pode ser considerado
a grande revolução do final do século
XX, pois movimenta forças eróticas
(vitais) contra forças tanatológicas
(mortais), alavancando mudanças radicais
nos modos de vida e na conformação
social desde então. Ali estava nascendo
a pós-modernidade, que será alguns
anos mais tarde lida e dissecada por Jean-François
Lyotard. É do pensamento político
de Agnes Heller que se pode ouvir a seguinte frase:
“Como teoria social, o pós-modernismo
nasceu em 1968”.
Uma profusão de eventos marca a distinção
de uma época de tensões, que envolvem
diversos temas: a guerra, a fome, a injustiça,
a ditadura, o conservadorismo, o machismo, a sexualidade,
a liberdade estética, entre outros. Por
isso, o ano de 68 será marcado por significativos
eventos: em 28 de março de 68, o estudante
Édson Luis de Lima Solto é morto
pela ditadura, revelando o caráter sádico
do poder, sendo um estopim para revoltas crescentes
em torno da idéia da liberdade política;
em 04 de abril de 68, o pastor Martin Luther King
é assassinado, em sua luta pela contra
a discriminação; o movimento estudantil,
de 2 a 30 de maio de 68, na França, sob
a liderança de Daniel Cohn-Bendit, provoca
uma série de eventos de mobilização
que geram mobilização civil generalizada,
envolvendo operários, mulheres, minorias,
em favor de diversas causas, entre elas a de reforma
universitária; em prol das causas e discussões
a respeito do feminismo, Robin Morgan queima sutiãs
em praça pública em Nova York, em
setembro de 68, declarando guerra ostensiva à
lógica de repressão à liberdade
sexual e comportamental femininas; diversas manifestações,
especialmente com o movimento hippie e suas filosofias
de vida, dão nascimento à lógica
da contracultura, que tem no movimento tropicalismo
brasileiro (Gilberto Gil; Caetano Veloso; Nara
Leão) um símbolo vigoroso de resistência
(recorde-se das canções de Chico
Buarque) ao imperialismo consumista e à
lógica da indústria cultural mercadurizada.
O maior legado do período, não tendo
sido uma revolução política,
foi ao menos uma profunda revolução
cultural.
Trata-se, desde então, de compreender o
nascimento de novas mentalidades formadas pela
busca de novos paradigmas de ação.
Maio de 68, por isso, pode ser tomado como o momento
histórico de quebra de padrões comportamentais,
de padrões sexuais, de emergência
da liberdade sexual, da liberdade política,
dos direitos de minorias, de redefinição
do papel político da estética, de
redefinição do papel da moral em
direção ao pluralismo ético,
de luta por redemocratização e pelo
reconhecimento da diferença, de redefinição
da hipocrisia social, questões que, em
muitos de seus significados, redundaram em frutos
muito concretos no plano da cultura e das relações
humanas.
Ademais, não se pode omitir o fato de que
a atual redação da democrática
Constituição Federal de 1988 deve
muito a estas lutas. A Constituição
Cidadã, que também incorpora o legado
da dignidade da pessoa humana, vindo da Declaração
Universal de Direitos Humanos de 1948, representa
um bastião de lutas pela garantia ampla
da liberdade, e, por isso, reflete os aquisitivos
dos 20 anos que antecederam sua promulgação.
Hoje, as mulheres têm lugar no mundo do
trabalho, os jovens têm opinião válida,
as minorias reivindicam crescentemente lugar na
consagração de seus direitos, o
pluripartidarismo vige no país, a hipocrisia
cedeu em muitos temas, a expressão é
aberta a todas as tendências, a liberdade
amplia suas fronteiras, a força dos movimentos
sociais tem demonstrado positivas conquistas sociais.
Por isso, as cicatrizes históricas deixadas
por esse período são incontornáveis
para o pensamento crítico contemporâneo,
que está tentando lidar com a questão
até hoje, discutindo-a através do
temário pós-moderno, não
se podendo deixar de considerar que deste período
se legam inesquecíveis conquistas de direitos
que não podem ser desprezadas.
*Advogado.
Livre-Docente e Doutor, Professor Associado do
Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito
da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, nos cursos de graduação e
pós-graduação em Direito,
e em Direitos Humanos; Membro do Grupo de Conjuntura
Internacional da USP; Professor do Instituto de
Relações Internacionais da USP.
Pesquisador-Sênior do Núcleo de Estudos
da Violência da USP. Presidente da Associação
Nacional de Direitos Humanos (ANDHEP/ NEV-USP).
Professor e pesquisador do Mestrado em Direitos
Humanos do UniFIEO. Autor do livro “O direito
na pós-modernidade”, publicado pela
Editora Forense Universitária, 2005.
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