A
tortura continua
Mais
de 15 anos depois da ditadura, o relator da ONU para a questão da
tortura no Brasil, Nigel Rodley. visitou o país em agosto e ouviu
relatos sobre a prática generalizada de sevícias contra suspeitos,
presos e adolescentes da Febem.
Dermi Azevedo
A
tortura é uma prática rotineira no Brasil. Essa afirmação foi
ouvida centenas de vezes, na segunda quinzena de agosto passado, pelo
catedrático britânico Nigel Rodley, da Universidade de Essex, que
visitou o país na qualidade de Relator da ONU para a questão da
tortura no Brasil.
Um
dos primeiros a reconhecer essa evidência e a transmiti-la a Rodley
foi o secretário de Estado dos Direitos Humanos, embaixador Gilberto
niza Sabóya. A confirmação foi-lhe feita, no decorrer de seus contatos com
representantes de ONGs, autoridades governamentais, juizes, promotores
e funcionários do próprio sistema de Justiça e de Segurança Pública.
No
mesmo contexto da violência do Estado contra a cidadania, o relator da
ONU ficou impressionado com a impunidade dos responsáveis pelo massacre
do Carandiru (1992), com as unidades da Febem que visitou e com o
estado geral dos presídios. “As cadeias — disse, em São Paulo, em
28 de agosto, em entrevista coletiva — são um inferno e os presos se
sentem como animais. Os presos sabem que precisam pagar pelo crime, mas
o que os revolta é viver em condições subumanas”.
Algo
crônico - Houve consenso, nos depoimentos prestados a Rodlex, sobre o
caráter crônico e histórico da tortura e de outros tratamentos cruéis
e desumanos no Brasil. É conhecido o genocídio praticado contra os
povos indígenas, que. de aproximadamente 5 milhões na época da invasão
portuguesa, há 500 anos, foram reduzidos a pouco mais de 300 mil.
O
mesmo massacre foi imposto aos povos negros, Comprados e trazidos à
força da África. O Estado brasileiro foi, portanto, organizado sob a
égide da violência dos dominadores contra os dominados. Os movimentos
de resistência indígena, negra. camponesa e, bem mais tarde, proletária,
não conseguiram derrubar essa correlação desigual de forças.
Dos
anos 6o aos 8o, uma ideologia específica – da
chamada “segurança nacional” – foi disseminada em toda a América
Latina e representou, em termos práticos, um salto qualitativo em todas
as formas e métodos de repressão.
A
tortura tornou-se “científica” e foi ensinada, aos agentes das várias
ditaduras latino-americanas, nas salas e laboratórios da Escola das
Américas, mantida pelo governo norte-americano no Panamá (transferida,
mais ou menos recentemente, para Fort Benning, na Geórgia).
Professores
itinerantes (como o agente norte-americano Dan Mitrione) percorreram o
continente, ensinando novas técnicas de sevícias e os melhores
“alunos” atuaram como multiplicadores noutros países, sob o
amparo, por exemplo, da chamada Operação Condor.
Milhares
de opositores foram sequestrados, torturados, exilados, desaparecidos e
mortos, numa crônica de horror ainda não plenamente contada. As vítimas
sobreviventes desse processo guardam consigo, nos corpos e nas mentes,
as sequelas e as marcas desse massacre.
No
Brasil, em que pese o conjunto de avanços do processo de
redemocratinizazação, sintetizado pela Constituição cidadã de 1988 e
traduzido, por exemplo, na legislação tipificadora do crime de
tortura, essa prática está longe de ser erradicada.
Mais
do que isto, a tortura tem apoio de amplos setores da opinião pública,
possuída pelo sentimento de vingança — diante de índices
alarmantes de violência — e anestesiada pela propaganda permanente
contra os direitos humanos, feita pelos malufes e ratinhos da mídia.
Numa
das aulas de um curso de Direitos Humanos que está sendo promovido pelo
Ministério Público paulista, justamente uma aula sobre a dignidade
humana, o professor (juiz de Direito) perguntou aos alunos se
justificariam o uso da tortura caso o Chacal fosse preso na iminência
de detonar um artefato nuclear e não quisesse revelar onde estaria a
bomba.
No
exemplo ultra-casuístico, a informação, obtida sob tortura, salvaria
a vida de toda uma comunidade. Consultada a classe, a maioria (formada
por operadores do Direito) aprovou o uso de sevícias contra o preso.
Medidas
a curto e longo prazos - Nigel Rodley anotou
—
e poderá reforçar em seu relatório – nizasugestões em favor de medidas
a curto e a longo prazos, tendentes a reduzir a prática da tortura e de
outros tratamentos cruéis e desumanos no Brasil.
A
longo prazo, tomou conhecimento de projetos baseados na luta contra as
raízes e as consequências da violência, através de um processo
pedagógico, inspirado na democracia participativa. E o caso, por
exemplo, da experiência do Fórum Permanente contra a Violência, que
se reúne mensalmente e implementa medidas preventivas de segurança pública
na região de Campo Limpo e Capão Redondo.
Outro
exemplo são as experiências de formação de agentes da cidadania e
operadores de Direitos Humanos, desenvolvidas tanto pelo Estado (como,
por exemplo, na Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, por
meio da ADC, CJCs, CRAVI e PROVITA; na Procuradoria Geral do Estado; no
Ministério Público Estadual e na Ouvidoria de Polícia), como pela
sociedade civil, por meio do CDHEP e União de Mulheres, entre outras
entidades de Direitos Humanos.
Estão
voltadas para a construção de uma consciência crítica na cidadania,
traduzida no respeito e na proteção da dignidade humana.
A
curto prazo, ouviu propostas favoráveis à imediata redução do papel
da polícia nos inquéritos, com o consequente nizareforço do papel dos
promotores, na fase inicial da apuração dos delitos.
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