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A Violação dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e seu impacto no exercício dos Direitos Civis e Políticos

Dalmo de Abreu Dallari


Meu caro companheiro de Justiça e Paz, Antonio Funari Filho, querida amiga e colega Silvia Pimentel, amigo também, colega, companheiro, Professor Cortella, caros colegas, amigos presentes, queridos estudantes, quero antes de tudo dizer da minha alegria de ter sido convidado para estar presente neste Encontro Brasileiro de Direitos Humanos. Acho que realmente é muito importante que haja este tipo de encontro, que as pessoas se reúnam, recebam informações, externem as suas opiniões, façam as suas críticas, para que haja um amadurecimento da idéia de Direitos Humanos, um amadurecimento de consciência e ao mesmo tempo um estímulo para a busca de efetivação dos Direitos Humanos. E muito rapidamente quero fazer uma observação preliminar dizendo que tenho absoluta convicção de que nós, humanidade, estamos num momento que pode ser definido como uma encruzilhada histórica: estamos diante de uma opção tremenda, fundamental entre duas correntes básicas que estão se digladiando. Uma delas é a corrente que, sem muitos rodeios e sem disfarces também, muito diretamente eu posso chamar de corrente materialisnizata. Essa foi a corrente que conquistou o poder no final do século XVIII, ou através dos séculos XVII e XVIII, através das revoluções burguesas.O que se teve então, sob o pretexto do combate do absolutismo, de garantia da liberdade, foi a afirmação de um padrão de sociedade essencialmente discriminatória, injusta, mas com uma característica terrível, que ajudou sua implantação e duração e que criou a injustiça legalizada. Na verdade foi isso que aconteceu e existe até uma certidão de nascimento dessa nova concepção, que é a primeira Constituição francesa de 1791, que estabeleceu que nenhum direito existe fora da lei e ninguém pode ser proibido de fazer alguma coisa fora da lei e é a lei que garante os direitos fundamentais. Mas não existe direito fora da lei, ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer a não ser com base na lei. A idéia em princípio era benéfica, era generosa, era uma forma de conter o absolutismo, de conter o arbítrio do poder pessoal e se tinha uma afirmação teórica de que o poder exercido por homens é inevitavelmente arbitrário, e o poder exercido pela lei é justo porque a lei é igual para todos. Entretanto, essa mesma Constituição introduziu algumas inovações extremamente importantes, graves e que vêm sustentando essa corrente materialista. Uma das inovações foi precisamente a mudança na idéia de lei. Quando Montesquieu escreveu que o “governo de leis é melhor que o governo de homens” estava se referindo à lei como relação necessária que deriva da natureza das coisas senão como criação arbitrária e puramente racional. Mas a lei que foi prevista na Constituição francesa de 1791 não era esnizasa, tanto que a Constituição disse que quem faz a lei são dos delegados dos cidadãos, e começa aí a fase histórica em que o parlamento passa ser uma fábrica de leis. As leis são fabricadas e fabricadas no legislativo e quem são os fabricantes de leis? A Constituição diz - os fabricantes, ela não usa a expressão os fabricantes, mas ela usa os legisladores – são os delegados dos cidadãos. Isto também parece tranqüilo, a Constituição francesa usou muito a expressão cidadão, como usou cidadania, como usou também, e isto é fundamental que seja lembrado, cidadã – lembram-se do lema da revolução francesa: liberdade, igualdade, fraternidade. Todos são iguais, todos são essencialmente iguais e na prática se divulgou a noção de cidadania como expressão de liberdade e igualdade, não há superioridade de um sobre outros, acabaram-se os privilégios da nobreza e a partir de agora todos são iguais. E um dado que é importante que seja relembrado é que no período final da revolução francesa, quando houve barricadas, quando houve luta armada, era freqüente a presença de mulheres, mulheres inclusive com armas na mão participando das barricadas, eram as cidadãs, que eram iguais aos homens, iguais em direitos, iguais em responsabilidades, iguais na participação nas lutas pelos direitos. E havia também a presença de operários, trabalhadores e assalariados em geral que também eram iguais, eram seres humanos, eram iguais, iguais em direitos, iguais em responsabilidade e iguais na participação pela defesa desses direitos. Entretanto, a Constituição francesa estabeleceu uma diferenciação, dizendo isto: quem elege os legisladores, quem elege onizas delegados que vão fazer as leis são apenas os cidadãos ativos e aqui então começa a discriminação legalizada. Então haveria duas espécies de cidadãos: o cidadão ativo e o cidadão comum ou o cidadão passivo, e a própria Constituição acrescenta que para ser delegado, ou seja, para ser fabricante de leis, era preciso também ser cidadão ativo. Então, só os cidadãos ativos elegem os delegados e estes só podem ser escolhidos entre os cidadãos ativos. Já é uma situação de privilégio, uma situação discriminatória. Mas avancemos um pouco mais: a própria Constituição dizia quem era cidadão ativo e lá vinham expressamente os requisitos: o primeiro deles é que era preciso ser homem e homem aí ao pé da letra, era preciso ser do sexo masculino e foi a exclusão das mulheres feita através da lei, exclusão legalizada, a injustiça legalizada. E a partir daí as mulheres perderam qualquer possibilidade de acesso aos postos públicos, a qualquer posto político, inclusive a magistratura. As mulheres só puderam ser juízas na França neste século e a partir de 1946 – as mulheres foram excluídas de toda posição pública de alguma importância, mas com esta característica que é fundamental: isto era legalizado, injustiça legalizada. E isso foi tão terrível que as próprias mulheres se acostumaram com isso, então o que está na lei é legítimo, é justo, é o direito, então deve ser aceito. E nós tivemos, só para não dar muita volta, a situação terrível, por exemplo no Brasil, que decorria do Código Civil de ser o marido o chefe da sociedade conjugal. Quantos chefes de péssima qualidade nós conhecemos! Quantos chefes que sacrificaram terrivelmente a sua família, mnizaas eles eram chefes, e porque isso é legal e se é legal, é justo, é legítimo e eu não discuto! E isso então se tornou permanente. E assim como aconteceu com as mulheres aconteceu com assalariados, aconteceu com operários, aconteceu com trabalhadores, porque a mesma Constituição dizia: “para ser cidadão ativo é preciso ser homem”, dizia mais: é preciso ser proprietário, é preciso ter uma renda mínima! Então não era qualquer homem, era o homem rico! E vem daí a legislação fabricada pelos homens ricos. E se vocês quiserem, também para não dar muita volta, eu lembro uma situação muito simples: a questão do imposto de renda. Eu me lembro que quando o Delfim Neto era Ministro da Fazenda, numa entrevista, o Delfim é um homem inteligente, às vezes muito cínico e às vezes sincero, não se sabe bem porque, disse isto: “o grande empresário que paga imposto de renda no Brasil ou é trouxa ou tem um péssimo contador”, isso porque a lei facilita tanto que ele paga se quiser. E vejam ainda agora, ontem nos jornais havia uma notícia de uma discussão que se está travando porque está aparecendo agora a idéia de coibir as reservas técnicas, as reservas estratégicas feitas pelas empresas. O que é isto? É que a lei diz isto, a lei feita por eles é claro, a empresa pode fazer uma reserva para os devedores duvidosos, então eu não sei se aquele que comprou a minha mercadoria vai pagar, então eu faço uma reserva para o caso dele não pagar. Mas é claro que esse dinheiro retirado do livro daquela empresa é como se não tivesse sido recebido, tá lá reservadinho, é só para uma emergência, mas como aquilo é uma reserva, ela não paga imposto sobre anizaquilo, aquilo é diminuído do lucro. E é claro que a empresa investe aquele dinheiro – ela vai ganhar! Mas além disso, outro escândalo legalizado é a possibilidade de extrair, de tirar do lucro, aquilo que é legalmente chamado de despesas operacionais. Eu conheço muitos assim, vocês conhecerão também, grandes empresários que têm um salário reduzidíssimo, a gente fica até com pena, às vezes querendo ajudar, coitadinho, tem um salário muito baixo, e mora numa mansão! E a gente não sabe muito bem que mágica ele faz porque o salário dele é pequeno, é baixo. Ele mora numa mansão, ele tem uma porção de empregados, vários automóveis, a família vai para a Disneylândia todo ano, ele freqüenta restaurantes de luxo. Qual é o segredo disto? É que os seus empregados são registrados como empregados da sua empresa e as viagens que ele faz são despesas operacionais da empresa, o carro que ele troca todo ano pertence à empresa – ele coitadinho não tem nada! E como tudo é despesa da empresa, aquilo é deduzido do lucro também! E então outra vez ele deixa de pagar imposto de renda também. E agora eu pergunto: qual é o empregado, o assalariado que pode usar qualquer artifício desses? Nenhum! O assala-riado que ganha um pouquinho tem de pagar e não tem como não pagar, ele já é descontado na fonte! Mas como que é isso? Não é possível! Mas isso tudo é legalizado, dentro da lei. É porque são eles que fazem a lei. Este é o direito com que nós temos vivido há 200 anos e esse é o direito criado, estabelecido, para favorecer os que têm dinheiro, os que têm si-tuação econômica privilegiada, aqueles que se preocupam de serem ricos e se tornarem canizada vez mais ricos. Os que hoje se escondem atrás de alguns rótulos como globalização, que é uma grande farsa, se se disser não agora é global, porque o comércio agora se faz em nível mundial. Eu não dou muita volta. Eu lembraria que em 1500 Portugal já fazia negócios na China, os famosos negócios da China são muito antigos. Existe uma famosa obra de um grande autor holandês, chamado Hugo Grocio, sobre a liberdade dos mares; é do século XVII, porque houve um conflito entre Portugal e Holanda sobre o comércio da China exatamente – eu é que tenho prioridade, eu é que tenho, mas ambos faziam o comércio de porcelana, de seda, de especiarias; Veneza já era um grande entreposto comer-cial do mundo; havia já as rotas terrestres que passavam pelo centro da Europa e aí é que aparecem os famosos tapetes persas, as jóias de Samarcanda. O que é isto? É globalização; então globalização é uma novidade muito antiga, tem pelo menos 500 anos e é apresentada agora como novidade – é pura farsa, é pretexto. E assim também é farsa o neoliberalismo, as leis de mercado. Vejam, ainda agora também os jornais estão noticiando que há uma série de dificuldades numa reunião da Organização Mundial de Comércio por quê? Porque os países mais ricos praticam o protecionismo. Um dos países que mais praticam protecionismo no mundo são os Estados Unidos e foram eles que criaram essa idéia que agora é globalização, agora o sistema é neoliberal, o que importa agora são as leis do mercado, não há mais fronteiras, não há mais soberania, é conversa fiada! O aço brasileiro tem extrema dificuldade para ser vendido nos Estados Unidos porque existe sobretaxa, o sapato niza brasileiro também tem dificuldade para ser vendido porque há taxas muito pesadas para entrar nos Estados Unidos. Mas agora não é globalizado, o mundo não é um só? E lembre-se também da questão dos trabalhadores: a imigração de trabalhadores é fortemente coibida, os trabalhadores imigrantes são tremendamente discriminados nos Estados Unidos, na França, na Alemanha, na Inglaterra, em todos os países mais desenvolvidos. E ainda recentemente nós tivemos mais um caso, têm sido muitos, de um grupo de jovens brasileiros que chegou aos Estados Unidos tendo visto, visto de entrada nos Estados Unidos, e apesar disso foram obrigados a retornar ao Brasil. Porque as autoridades alfandegárias desconfiaram que aqueles jovens poderiam querer trabalhar nos Estados Unidos , então mandaram de volta. E a globalização, onde é que fica? Agora não há mais fronteiras, é tudo aberto. Isto é conversa fiada, isto é farsa, quer dizer, isto é farsa para acabar com as fronteiras dos lugares onde eles querem investir, onde eles vão tirar proveito, e as fronteiras continuam existindo quando há interesse deles. E tudo isso dentro dessa linha, dentro desta concepção que põe em primeiro lugar, e sobretudo, resultados econômicos se o que interessa é o desenvolvimento econômico. Não importa se isso se faz com justiça ou sem justiça, não importa se isso cria desemprego; não importa se isso significa discriminação, humilhações, marginalização, redução de povos à miséria – o que importa é ganhar dinheiro! E o que é isso, senão o materialismo? Isso está registrado numa das mais importantes encíclicas do Papa João Paulo II, uma encíclica que acabou de fazer 20 anosniza, a encíclica Labore exerses, que é sobre o trabalho: “Há no mundo de hoje dois materialismos que é preciso evitar”; um deles, diz o Papa, “é o materialismo teórico”, que é o materialismo do marxismo, e diz ele “o outro é o mate-rialismo prático”, que é aquele que não se diz materialista, mas que é essencialmente materialista, que é o do capitalismo, é aquele que põe o capital, dinheiro, a busca de resultados econômicos acima da pessoa humana, que na verdade ignora a pessoa humana – essa é uma das correntes do mundo contemporâneo. E a outra corrente é a corrente humanista, é a corrente dos Direitos Humanos, é a corrente que põe a pessoa humana em primeiro lugar, a dignidade humana e, em conseqüência, o tratamento justo à pessoa humana, a todas as pessoas humanas, é a busca da justiça social no trabalho pela eliminação das discriminações e marginalizações. Então este é o meu ponto de partida, eu acho isso muito importante, essencial, que a gente perceba que são as duas grandes opções: se eu optar por desenvolvimento econômico, leis do mercado, neoliberalismo, eu estou tomando a vertente materialista, essencialmente materialista, que colocará a pessoa humana em plano inferior, que eliminará a pessoa humana se isso for necessário para ganhar mais dinheiro, para enriquecer mais; e eu posso e devo na minha concepção seguir a linha humanista, que é uma linha de resistência, uma linha de luta, é uma linha de avanço, de avanço necessário constante para barrar a tentativa de avanço da linha capitalista. Bom, colocada esta questão preliminar, eu vou entrar diretamente na questão que é o tema desta mesa, deste painel, que é a nizaquestão dos direitos econômicos, sociais e culturais. Se na verdade há algumas coisas relativas as esses direitos que se deve deixar claro são as questões preliminares muito importantes. A ONU publicou, como sabem, a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, mas era uma declaração que não obriga juridicamente. Hoje até há uma discussão e alguns entendem que a adesão à Declaração implica obrigação jurídica, mas essa discussão já surgira no fim da década de 40 e início da década de 50, e para dar mais eficácia às normas de direitos humanos, a própria ONU começou a preparar um documento fundamental que seria um grande pacto de Direitos Humanos, este já com a natureza de documento jurídico eficaz, com o respeito obrigatório, com a possibilidade de coerção para que os signatá-rios do pacto respeitassem e aplicassem-no. Entretanto, logo no início da discussão para preparação desse pacto surgiu uma diferenciação, e essa diferenciação tem muito a ver com aquela que eu mencionei entre a linha capitalista e a linha humanista, mas no caso o que se teve foi isto, uma linha, e aí então estavam os grandes países capitalistas dizendo o seguinte: os direitos civis e políticos, sim, estes devem ser reconhecidos, mas a concepção deles era que direitos civis e políticos são direitos que implicam a presença do Estado apenas para garantir os direitos, o Estado não interfere nas decisões, não interfere nas relações sociais, é um mero garantidor. Então, a concepção é que em relação a esses direitos o que se deseja é a abstenção do Estado. O Estado vai garantir os direitos mas não interfere de maneira alguma nas relações pessoais e isto niza então foi pregado, aceito, geralmente aceito, não houve restrições. Mas quando se tratou dos direitos, houve uma séria resistência dos países capitalistas e naquele momento – fim da década de 40 – se estabeleceu uma diferenciação de comportamento. Os países capitalistas inteiramente a favor dos direitos civis e políticos e os países socialistas também, e em relação aos direitos econômicos, sociais e culturais uma fortíssima restrição dos países capitalistas. E para superar o impasse que surgiu então foi que se decidiu que deveriam ser feitos dois documentos: um pacto de direitos civis e políticos e outro pacto de direitos econômicos, sociais e culturais. Essa discussão foi longa, se arrastou por vários anos e, afinal, os dois pactos foram aprovados em 1966. É um momento extremamente importante porque os pactos já têm natureza de acordo jurídico, são obrigações jurídicas, então não há mais aquela discussão de se as normas da Declaração são obrigatórias ou não, porque havendo o pacto, quem for signatário está assumindo uma obrigação jurídica e pode ser cobrado para o cumprimento dessa obrigação. E a partir daí surge o problema da eficácia da Declaração e, dentro do âmbito dessas discussões, com a existência dos dois documentos, é que aparecem várias corrente teóricas, na verdade algumas bem intencionadas, outras nem tanto, especialmente estas últimas resistindo ao reconhecimentos dos direitos econômicos, sociais e culturais como verdadeiros direitos. E é dentro do âmbito dessa discussão que vão aparecer algumas colocações teóricas – aí volto a dizer – em alguns casos de boa-fé, em outros casos de absoluta má-fé, mas se faz a nizadiferenciação entre esses direitos e se fala em direito de diferentes gerações. Não existem diferentes gerações, essa idéia das gerações foi maliciosa e tem atrapalhado enormemente a efetivação dos Direitos Humanos, quer dizer, é como se o ser humano tivesse evoluído até um certo ponto e, então, vêm os direitos da primeira geração, os direitos civis e políticos. Depois a humanidade evolui um pouco mais e aí ela descobre os direitos econômicos, sociais e culturais como se esses direitos tivessem nascido depois – vejam que a idéia de geração implica isto, não nascem ao mesmo tempo, uma geração vem antes da outra. Então, se há direitos de primeira, segunda, terceira, quarta geração são direitos nascidos depois – e isto é absolutamente falso! – se são direitos inerentes à condição humana todos eles, e isso hoje já é objeto de uma ampla teorização, já há inclusive obras dedicadas a isso e eu vou fazer breve referência a algumas destas colocações. Lembrando isso, em 1996 foi realizado um seminário exclusivamente sobre direitos econômicos, sociais e culturais em Bogotá, na Colômbia, e ali foram produzidos trabalhos extraordinários, ressaltando que as características básicas dos Direitos Humanos são as mesmas para todos os Direitos Humanos, e inclusive um dos grandes defensores dos Direitos Humanos, que até recentemente atuou na Comissão Internacional de Juristas, o grande jurista uruguaio Alejandro Artucio, apresentou um trabalho demonstrando que todos os Direitos Humanos têm universalidade, indivisibilidade e interdependência. E nessa mesma oportunidade, um eminente jurista francês, Philipe Dexsieu, que também tem trabalhado muito sobreniza o assunto, desenvolveu essa idéia, fez uma demonstração dessa unidade inseparável, dessa interdependência dos Direitos Humanos, de todos os Direitos Humanos, e às tantas, no seu trabalho, diz isso: “a velha discussão sobre se os direitos econômicos, sociais e culturais por seu caráter de aplicação progressiva constituem obrigações de meio ou obrigações de resultado já é obsoleta”. O Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais constitui para os Estados-partes um compromisso categórico, de garantir o nível básico de exercício dos direitos nele compreendidos. Além disso, a obrigação de garantir o desenvolvimento progressivo dos direitos compreende claramente a proibição de retrocessos com respeito ao grau de consecução desses direitos. Então, afirma isso, são direitos exatamente iguais os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais. Então vocês estão a se perguntar: “então se são direitos iguais, por que foram feitos dois pactos?” Por causa daquela resistência inicial, porque os países capitalistas não queriam assumir a responsabilidade de garantir esses direitos e, exatamente, porque a sua visão era materialista, era economicista, “quer dizer então que eu vou gastar dinheiro para resolver problema de gente pobre? Isso não produz mais dinheiro, isso não dá lucro! Eu vou gastar dinheiro para ter um bom sistema de saúde, um bom sistema educacional, isso atrapalha os negócios!” Por isso a resistência deles e por isso a existência dos dois pactos. Mas desde então e a partir da produção teórica, e já de muitas decisões jurisprudenciais, o que tem ficado muito claro é que há de fato esta nizainterdependência, esta universalidade, esta unidade inseparável. E ainda com relação a isso eu vou mencionar aqui mais uma opinião de um autor extremamente importante – Professor Cançado Trindade – na apresentação de um livro de outro autor brasileiro importante – Lindgren Alves, que é um diplomata de grande valor. Na introdução ao livro Direitos humanos como tema global de Lindgren Alves, escreve o Professor Cançado Trindade: “Até mesmo o mais fundamental dos Direitos Humanos, o direito à vida, compreende o direito de todo ser humano de não ser privado arbitrariamente de sua vida, assim como o direito de todo ser humano de dispor dos meios apropriados de subsistência e de um padrão de vida decente, pertence pois a um tempo ao domínio dos direitos civis e políticos e dos direitos econômicos, sociais e culturais, ilustrando assim a indivisibilidade de todos os Direitos Humanos”, quer dizer, na verdade, não é difícil de se verificar que há uma relação necessária entre os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais. A este respeito eu lembro uma colocação muito interessante, até muito sugestiva, feita por um eminente cientista político inglês, Harold Laskin, que com elegante ironia, disse: “Na Inglaterra todos são livres e iguais. A prova disto é que tanto o Príncipe de Gales quanto qualquer mendigo britânico têm o mesmo direito de dormir debaixo de uma ponte”, então são todos livres e iguais; e eu diria que no Brasil também são todos livres e iguais, só não mora numa mansão no Morumbi quem não quer, porque a lei não proíbe! Todos têm a liberdade! Quer dizer, só não escolhe a melhor escola nizapara os seus filhos quem não quer porque todos são livres para escolher o que quiserem! Quer dizer, só não tem o automóvel último tipo mais confortável, só não come as melhores comidas e bebe as melhores vinhos quem não quer porque são todos livres e iguais, a lei diz isto! Quer dizer que na verdade esta maneira de conceber os direitos é fundamentalmente, essencialmente hipócrita, e é uma forma de não assumir responsabilidade. E então o que eu vejo é isto, que há uma relação necessária, se eu disser que todos têm liberdade para escolher onde querem morar, isto implica dar a possibilidade de escolha, quer dizer, se não houver a mesma possibilidade de escolha, esta afirmação de igualdade, de liberdade, é na realidade uma farsa. Então isto é também um aspecto fundamental para nós entendermos que esses direitos chamados econômicos, sociais e culturais não são inferiores aos outros, não vêm depois dos outros, não são independentes dos outros. Na verdade todos estão necessariamente interligados, e se eu não assegurar esses direitos os outros também não estarão assegurados, este é também um aspecto fundamental. Além disso eu avanço um pouco mais lendo o que consta do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Eu vejo com a mais absoluta clareza que são obrigações jurídicas, que não são sugestões, não são conselhos, são obrigações jurídicas que os Estados assumem. E no caso é sempre oportuno lembrar que o Brasil assinou este pacto, o Brasil o ratificou, o Brasil se impôs ao respeito e à obrigação desses pactos. E para vocês verificarem um aspecto importante, houve muita resistência no Brasil à aceitação desse pactos, niza aliás dos dois, os pactos são de 66, a Constituição da época já dispunha que era necessário que o Congresso Nacional homologasse, que o Congresso Nacional desse o seu consentimento para que o Brasil se obrigasse. E esses pactos ficaram 20 anos na gaveta dos Presidentes da República esperando serem enviados ao Parlamento para terem a confirmação. Só 20 anos depois, em 1986, foram enviados e aí, no final das contas, acabaram sendo aprovados e hoje são leis no Brasil, são obrigações jurídicas que o Brasil assumiu. Eu leio o artigo 2° do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, “Cada Estado-parte”, e o Brasil é um deles, “Cada Estado-parte no presente pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem assegurar progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos do presente Pacto, in-cluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas”. Quer dizer na verdade que o Brasil assumiu o compromisso de respeitar e fazer aplicar o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, como também
assumiu igual obrigação em relação aos direitos civis e políticos. E além do Brasil ter assumido essas obrigações através da adesão ao Pacto,
grande parte, e eu diria a quase totalidade dos dispositivos desses
Pactos, em 1988 foram colocados dentro da Constituição Brasileira. Se nós lermos os artigos 5°, 6° e 7° da Constituição, nós vamos ver lá claramente refletidos os pactos de Direitos Humannizaos, então são obrigações internacionais mas também obrigações nacionais, obrigações constitucionais do Brasil , que os Governos brasileiros são obrigados a respeitar e aplicar, e aí como diz o Pacto “destinando o máximo dos recursos disponíveis”. E aqui surge o problema destes recursos disponíveis: será que o Brasil não está cumprindo estas obrigações porque não há recursos disponíveis?” Eu vou lembrar do que é muito expressivo: nas estatísticas econômicas, e o nosso Governo tem usado e abusado disto, e especialmente nos encontros internacionais, tem-se afirmado sempre através do chamado produto interno bruto que o Brasil está entre os países mais ricos do mundo – há até uma discussão muito interessante para saber se é o 8° mais rico ou o 10° mais rico, mas é um dos países mais ricos do mundo – então, sem dúvida um dos 10 mais ricos e nesta consideração da riqueza está toda a riqueza que já está circulando já aplicada, está a riqueza potencial, estão as reservas minerais, reservas florestais, toda a riqueza de que o Brasil é dono, é proprietário. Então o Brasil é efetivamente um dos países mais ricos do mundo, segundo o PIB. Pois muito bem, a ONU tem outro índice, é o Índice de Desenvolvimento Humano, e há dois meses mais ou menos a ONU publicou os índices deste ano. Esses índices de desenvolvimento humano levam em conta uma série de fatores, como por exemplo a mortalidade infantil. E o que é mortalidade infantil? É a porcentagem de crianças que morrem antes de completar um ano de idade. E o Brasil tem um índice altíssimo de mortalidade infantil, há regiões no Brasil em que se chega perto de 200 crianças mortas por ano antes de conizampletar um ano de idade, então é um índice altíssimo de mortalidade infantil. Além disso, as epidemias e endemias, a situação de saúde do povo em geral, a situação educacional, é outro elemento que é incluído, é outro fator para a verificação dos Índices de Desenvolvimento Humano; e um fator que também é importante, é considerado, e neste momento é importantíssimo, é o nível de desemprego. Por quê? Porque se sabe que o desemprego, e nas sociedades capitalistas sobretudo, é uma verdadeira tragédia, e num país como o Brasil é evidentemente uma tragédia! O Brasil não tem fundos de desemprego, não tem um sistema de apoio ao desempregado e nós vemos nas ruas de São Paulo o efeito disto. O trabalhador desempregado se transforma em mendigo e como é que fica a sua família? Como é, que fica a sua dignidade de pessoa humana? Quantos de nós já demos esmola para ex-trabalhadores que foram transformados em mendigos pelo desemprego? Pois bem, este mesmo Brasil, que nos índices econômicos está entre os 10 mais ricos do mundo, no Índice de Desenvolvimento Humano está em 79° lugar! Há 78 países em situação melhor do que o Brasil em termos de desenvolvimento humano. Isto demonstra que nós temos recursos, que nós não estamos aplicando os recurso como nós deveríamos aplicar, quer dizer quando se diz: “bom, seria interessante fazer alguma coisa para que não houvesse tanta mortalidade infantil, melhorar as condições de saúde, de educação, moradia, é pena que não haja recursos...”. Isto é mentira, os recursos existem sim e o que nós temos visto, sabido, e os jornais têm publicado muitos dados a respeito disto, é que não há recursos para unizama política social, quer dizer o nosso Governo não tem política social. E há um aspecto a mais que eu quero ressaltar, que é muito importante que percebam – isso faz parte de um cinismo monumental – o nosso Governo costuma preparar projetos de lei, projetos de lei orçamentária prevendo verbas para objetivos sociais e ele utiliza este elemento fora do Brasil para dizer: “olha aí como o meu Governo se preocupa com objetivos sociais, tanto que ele colocou na verba do orçamento verbas para objetivos sociais”, tanto que depois o Parlamento aprova estas verbas e estas verbas não são utilizadas. Por quê? Porque o Governo diz que a lei orçamentária é uma autorização para gastar, não é obrigação de gastar. E então qual é a conseqüência disso? Eu trouxe aqui uma publicação muito recente, do dia 23 de novembro, da Folha de São Paulo, com esta manchete: “Cortes atingem 25 de 31 Programas Sociais”. São cortes tremendos feitos no orçamento e aqui existe uma enumeração, que é espantosa, mostrando que além de se preverem verbas pequenas, baixas, essas verbas vêm sendo reduzidas, vêm sendo cortadas substancialmente. Assim, numa comparação entre os anos de 1998 e 1999, e aqui o título “Cortes nos Programas Sociais do Governo”; o apoio à criança carente de 1998 para 1999 diminuiu 19,8%; apoio à pessoa idosa diminuiu 22%; reforma agrária diminuiu 42%; dinheiro para a escola diminuiu 66%; ação social em saneamento diminuiu 73%; assistência integral às crianças e adolescentes diminuiu 73%, e esses são dados retirados de documentos oficiais, quer dizer que nós não estamos destinando dinheiro a objetivos sociais. E paralelamente, este é fato, nós niza não deixamos de cumprir nossas obrigações com os agiotas internacionais, quer dizer, a prioridade do nosso Governo é pagar a dívida externa, pagar os juros altíssimos, a agiotagem internacional e a desculpa do Governo sob um falso moralismo é que é preciso cumprir estas obrigações ou, segundo a expressão que se gosta de usar, honrar os compromissos. Ora, o primeiro compromisso que se deve honrar é com o povo brasileiro e há um compromisso com a Constituição brasileira, há um compromisso com a justiça e o Governo não se preocupa em honrar estes compromissos, que são prioritários, que são além de tudo obrigações constitucionais. E, não fora tudo isso, há ainda um aspecto que é jurídico, que é fundamental, essa dívida externa não tem validade jurídica. Por que razão? Porque a Constituição diz expressamente que qualquer acordo internacional que o Brasil participe tem que ser homologado pelo Congresso Nacional e diz a Constituição que “compete ao Congresso decidir definitivamente sobre acordos internacionais”. Ainda bem recentemente esteve no Brasil uma missão do FMI que refez acordos, que discutiu novas cláusulas, e o Governo então assinou, se enquadrou. E quem é que sabe que acordos são esses? Será que o Congresso Nacional sabe? Sabe nada! Nós sabemos? Não sabemos! Vejam, isto fica nos subter-
râneos, fica nas gavetas dos grandes burocratas e dos ministros e do Presidente da República. E são acordos internacionais, quer dizer, acordos internacionais que não têm validade jurídica porque não foram aprovados pelo Congresso Nacional. E, no entanto, para satisfazer estes acordos o Governo tira dinheiro, que deveria ser destinanizado a objetivos sociais, a programas sociais, e pior do que isto, enquadrando-se nesses acordos
o Governo faz com que aumente cada vez mais o desemprego, aumen-
te a miséria, caia a qualidade de ensino, sejam cada vez mais
precários os serviços públicos de saúde. Então, na verdade, para não me encompridar demais – eu já falei mais do que devia – agradeço aqui a tolerância do nosso presidente, eu gostaria de dizer isso: o Brasil é obrigado a respeitar, fazer aplicar, dar eficácia aos direitos econômicos, sociais e culturais que constam do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e também da Constituição Brasileira. O que resta afinal é tomar alguma atitude, fazer alguma coisa para que esses direitos sejam respeitados, para que os nossos Governos, porque há também obrigações para o Governo Estadual e obrigações para o Governo Municipal, respeitem assim os direitos da criança previstos nos pactos internacionais, que estão também previstos na Constituição Brasileira como prioritários. Os direitos da criança serão atendidos prioritariamente e se nós examinarmos os orçamentos públicos, nós não vamos perceber a prioridade, porque não se tem dado prioridade. É um elemento fácil, muito claro, é ver os números do orçamento; o que se tem destinado à solução dos problemas da criança, da criança marginalizada, da criança doente, é pouquíssimo, é quase nada, o que significa que não estão sendo cumpridos os artigos do pacto como não estão sendo também cumpridos os artigos da Constituição que obrigam a promover estes direitos. Então, primeiro ponto: se se disser que não são verdadeiros direitos, não cabe mais este tipo de discnizaussão, são tão direitos quanto os demais direitos e direitos que hoje constam de acordo internacio-nais assinados pelo Brasil e constam da própria Constituição Brasileira; segundo argumento: não há recursos para a satisfação desses direitos, é mentira, é uma farsa! Um país que está entre os 10 mais ricos do mundo, certamente tem recursos, o problema é de prioridade, o problema é destinação de recursos . E, por último, não há como exigir esses direitos e aí vem uma palavrinha que agora entrou no vocabulário jurídico que é justiciabilidade, não são verdadeiros os direitos porque não são justiciáveis, quer dizer, eu não posso ir ao Judiciário, por exemplo, exigir que o Governo dê uma casa para um pobre – e é muito interessante e até pitoresca a discussão em torno disso – porque diz que não são verdadeiros os direitos porque não são justiciáveis, e não são justiciáveis porque não são verdadeiros direitos. Bom, se criou um círculo fechado, o círculo fechado da hipocrisia e do cinismo, são verdadeiros direitos sim! São justiciáveis! A começar por aí, pela fiscalização, pela cobrança, que a meu ver se deve fazer, inclusive judicialmente, para que o Governo tenha programa para atender a essas necessidades judiciais, que são direitos do povo, são direitos dos brasileiros, e promovendo-se a responsabilidade e inclusive enquadrando-se como crime de responsabilidade o desrespeito a esses direitos, que tem conseqüências trágicas sobre grande parte da população brasileira. Então, basicamente era isto que eu queria dizer numa primeira apresentação e, naturalmente, depois de ouvir os colegas, que terão coisas importantes a dizer, nnizaós iremos à nossa troca de idéias, e eu com prazer responderei as questões que forem propostas. Muito obrigado”. (Texto não revisado pelo autor).

Silvia Pimentel
I - A construção dos Direitos Humanos das Mulheres
e a necessária reconstrução dos Direitos Humanos
Enquanto estudiosa da área dos direitos da mulher e militante feminista, vou buscar tecer algumas considerações sobre os direitos humanos das mulheres.
O Tribunal de Nüremberg em 1945, a Carta das Nações Unidas de 1945 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 são marcos históricos da construção moderna dos direitos humanos
Desde então, foram criados pela ONU inúmeros instrumentos jurídicos de proteção aos direitos humanos, sendo alguns voltados especificamente às mulheres. Entretanto é só nesta última década que se passou a construir uma efetiva integração entre os direitos humanos universais, comuns a homens e mulheres, e os direitos das mulheres.
Elementos fundamentais de princípio dos direitos humanos são: o seu caráter de universalidade, indivisibilidade e interdependência. Mas lamentavelmente, há uma grande discrepância entre o princípio e a
realidade, sendo árduo e longo o caminho a ser percorrido. Em uma perspectiva de gênero, só a partir desta última década é que se tem reconhecido que o movimento internacional em prol dos direitos humanos tem beneficiado mais os homens do que as mulheres. Esta constatação crítica tem levado estudiosas, ativistas e organizações, principalmente ONG’s, a buscar redefinir o conceito de direitos humanos a fim de que esnizate venha a refletir as experiências específicas de mulheres em todas as etapas de suas vidas. Com a noção de patriarcado, coloca-se ênfase na situação histórica de subordinação da mulher. Com a noção de gênero, aborda-se a construção cultural e social desta subordinação. Há também uma reformulação da noção de sujeito, passando-se da idéia de um sujeito universal abstrato à idéia da diversidade dos sujeitos concretos de direitos humanos. Bobbio refere-se a um “processo de especificação dos sujeitos”. As mulheres reposicionam os direitos humanos centralizando-os no plano de uma experiência plural, enfocando não apenas o espaço público de vida, mas também o espaço privado (íntimo). Assim, não só o Estado mas também indivíduos e grupos são considerados como possíveis violadores dos direitos humanos.
Para nós mulheres, a Conferência Mundial de Direitos Humanos da ONU, em junho de 1993, representou avanço significativo de nossa luta ao ampliar substancialmente o temário internacional de direitos humanos, com o fim de incluir violações que afetam especificamente as mulheres.
Em dezembro de 1993, como fruto dessa conferência, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou a Declaração sobre a Violência contra a Mulher. Amplia-se a definição de violência contra a mulher baseada em gênero, definindo-a como questão crítica de direitos humanos. Estes avanços representaram o começo de uma reconceituação mais integrada dos direitos humanos, invertendo a tradicional tendência de descuido dos direitos humanos da mulher por parte da comunidade internacional.
Mas, hoje, ainda, a maioria das mulheres e meninas do mundo niza continuam excluídas dos princípios de direitos humanos geralmente aceitos. Conforme entendimento da própria UNIFEM, há para isto razões
complexas que operam tanto na escala internacional e regional como nos próprios países considerados individualmente.
A UNIFEM menciona três obstáculos principais à falta de suficiente energia e coerência para corrigir as desvantagens e injustiças que sofrem as mulheres por razões de gênero. Em primeiro lugar, os direitos humanos universais não necessariamente abarcam todas as experiências femininas e assim as violações sofridas pelas mulheres. Os instrumentos de direitos humanos pretendem ser neutros do ponto de vista de gênero mas refletem a experiência masculina em um mundo de homens, desconsiderando que homens e mulheres têm vidas muito diferentes. Em segundo lugar, os direitos humanos não abordam adequadamente a negação generalizada estrutural e sistêmica de direitos que afeta mulheres e meninas em todo o mundo. Por último, as instituições e agências dedicadas a questões fundamentais de interesse para a mulher, recebem recursos substancialmente menores e estão pior equipadas do que outros organismos de direitos
humanos.
Ainda no entendimento dessa agência da ONU, para a maioria das mulheres o regime pertinente de direitos humanos não apenas garantiria a igualdade com os homens nas esferas da vida comuns a ambos os sexos, mas também promoveria a justiça social na vida privada.
No discurso dos direitos humanos, afirma-se que todos os direitos, os civis e políticos – liberdade, segurança, integridade física e moral, participação políticaniza etc. – os econômicos, sociais e culturais – educação, saúde, moradia etc. – bem como os direitos coletivos – desenvolvimento sustentável, meio ambiente, paz etc. – são universais, indivisíveis e interdependentes. Ressalta-se que a promoção e o desfrute de certas liberdades fundamentais não podem justificar a denegação de outros direitos fundamentais.
De origem liberal burguesa, os direitos civis e políticos dos cidadãos foram criados a partir do estabelecimento de limites ao poder do Estado, buscando impedir abusos de seus dirigentes e funcionários. É evidente que a realização universal dos direitos civis e políticos tem importância crucial. Mas, a importância conferida a estes direitos tem sido maior do que aquela conferida aos direitos econômicos, sociais e culturais. Estes últimos, de inspiração precipuamente socialista, têm sido construídos com grande dificuldade a partir de tensões e embates entre a força do capital e a do trabalho; entre os interesses do primeiro mundo e as necessidades do terceiro mundo; entre a hegemonia política do hemisfério norte e os esforços de algumas nações do hemisfério sul no sentido de sua autonomia; entre a opulência, o esbanjamento de poucos e a fome e miséria de muitos.
Como disse o Professor Dallari, os direitos econômicos envolvem o bolso de alguns.
Vale insistir, algumas das mais urgentes preocupações na vida coti-diana da mulher derivam da denegação de seus direitos econômicos, so-ciais e culturais. São calamitosos, no terceiro mundo, os efeitos das políticas de ajuste estrutural sobre a capacidade das mulheres para manterem-se a si mesmas e suas nizafamílias; os efeitos devastadores da deterioração do meio ambiente sobre a qualidade de suas vidas cotidianas; a falta de serviços de saúde, muito especial na área da saúde reprodutiva, impedindo a muitas mulheres uma gravidez e um parto saudável ou mesmo a interrupção da gravidez nos casos previstos em lei; a falta de escolas e de creches para seus filhos; a discriminação social que dificulta igualdade de acesso ao emprego e mesmo igualdade salarial; os estereótipos sociais reproduzidos inclusive por agentes do Estado, dos três poderes constituídos – Executivo, Legislativo e Judiciário – que fazem com que a mulher muitas vezes tenha seus direitos desrespeitados.
A grande maioria das mulheres, em todo o mundo, vive sob violência ou ameaça de violência. A socióloga Heleieth Saffioti denomina este fenômeno por violência de gênero. Em seu entender, o gênero, assim como a classe social e a raça/etnia, condiciona a percepção do mundo circundante. Funciona como um crivo através do qual o mundo é apreendido pelo
sujeito. Socialmente construído, o gênero corporifica a sexualidade, que é exercida como uma forma de poder. No entender dessa estudiosa, a violência de gênero, somada às de classe e raça/etnia, é um fenômeno que estrutura as relações sociais.
A maior parte da violência contra as mulheres e meninas se produz na esfera privada da vida, e é cometida por familiares. Embora estes atos não possam ser atribuídos diretamente ao Estado, este tem responsabilidade na medida em que muitas vezes mantém e mesmo colabora para a reprodução de um sistema cultural, social ou jurídico que tolera essas vio-lações, omitindnizao-se de adotar políticas públicas e medidas positivas para preveni-las e puni-las. Em vários Estados, existem contextos culturais que legitimam a subalternidade das mulheres, e dessa forma reforçam a violência contra elas.
A singeleza do fragmento literário do poema Miquita, de Cora Coralina, em Estórias da casa velha da ponte serve bem para ilustrar a violência de gênero.
“(...) De vez em quando, Miquita suspirava (...) Tinha saudade calada do beco triste, do quarto sujo e dos homens brutais que a espancavam.”
II - Violência e Direitos Humanos
Na segunda parte de minha apresentação quero valer-me de texto sobre violência e direitos humanos elaborado pelo CLADEM Brasil, por solicitação da Articulação de Mulheres Brasileiras, enquanto para o Relatório Sombra, a ser apresentado na Conferência Internacional Beijing–5, em Nova York, 2000, intitulado “Balanço Nacional – Políticas Públicas para as Mulheres no Brasil – 5 anos após Beijing”.1
A Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993 expressamente afirmou que os direitos das mulheres são parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais. Não há, assim, como conceber os direitos humanos, sem que os direitos das mulheres sejam respeitados. Acrescentou a Declaração de Viena que a violência contra a mulher constitui violação aos direitos humanos, que atenta contra a dignidade humana.
A Conferência Mundial de Viena impulsionou a elaboração pela ONU da Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, em 1993. Essa Declaração define a violência contra a mulher como um panizadrão específico de violência, baseado no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, seja na esfera pública, seja na esfera privada.
Em 1994, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (“Convenção de Belém do Pará”) é aprovada como o primeiro tratado internacional voltado à temática da violência contra a mulher. Ao adotar a definição de violência contra a mulher prevista na Declaração da ONU de 1993, a Convenção reitera ser a violência contra a mulher uma grave violação de direitos humanos, a ser prevenida e coibida. A Convenção estabelece um catálogo de direitos, a fim de que as mulheres tenham assegurado o direito a uma vida livre de violência (tanto no domínio público, como no privado), como também enumera os deveres a serem implementados pelos Estados-partes. Desde 1995, o Brasil é parte da Convenção de Belém do Pará, assumindo, portanto, o dever de cumprir as obrigações jurídicas dela decorrentes.
No âmbito nacional, ineditamente a Constituição Brasileira de 1988, em seu artigo 226, parágrafo 8º, consagra que o Estado assegurará assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
Constata-se, deste modo, que a Carta de 1988 está em absoluta sintonia com a normatividade internacional sobre a matéria.
Além do mencionado dispositivo constitucional, cabe ressaltar que o Programa Nacional de Direitos Humanos, adotado em 1996, destaca,
dentre as metas a serem cumpridas pelo Governo Brasileiro, as seguintes: a) apoiar o Programa Nacionizanal de Combate à Violência contra a Mulher, do Governo Federal; b) incentivar a criação de centros integrados de assistência a mulheres sob risco de violência doméstica e sexual; c) apoiar as políticas dos Governos estaduais e municipais para prevenção da violência doméstica e sexual contra as mulheres; d) incentivar a pesquisa e divulgação de informações sobre a violência contra a mulher e sobre formas de proteção e promoção dos direitos da mulher e e) reformular as normas de combate à violência e discriminação contra as mulheres, em particular apoio ao projeto do Governo que trata o estupro como crime contra a pessoa e não mais como crime contra os costumes.
No que se refere particularmente à normatividade internacional voltada ao combate da violência contra a mulher, o Programa Nacional de Direitos Humanos apresenta como metas: a) implementar as decisões da Conferência Mundial dos Direitos Humanos de Viena, de 1993, que define a violência contra as mulheres como violência contra os direitos humanos; b) implementar a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; c) implementar as decisões da IV Conferência Mundial da Mulher, de Pequim, de 1995.
Portanto, seja por força da normatividade internacional, seja por força do próprio Direito interno, o Estado Brasileiro tem o dever jurídico de prevenir, punir e erradicar todas as formas de violência contra as mulheres. A este dever corresponde o direito fundamental a uma vida livre de violência, seja na esfera pública, seja na esfera privada.
Inúmeros e complexos são os pontos de obstaculização à efetiva nizaimplementação, em nosso país, dos instrumentos internacionais de direitos humanos e, especificamente, daqueles voltados à proteção dos direitos das meninas e mulheres.
No que diz respeito a uma avaliação do que efetivamente ocorreu no Brasil, após Beijing, quanto à violência contra mulheres e meninas, em primeiro lugar há que se destacar a inexistência de instrumentos de monitoramento e avaliação construídos para esse fim. Assim sendo, o que se segue é, seguramente, bastante limitado. De toda forma, buscou-se sistematizar o maior número possível de informações disponíveis em várias fontes, governamentais e, precipuamente, não-governamentais.
Buscaremos organizar essas informações, estruturando-as a partir da análise crítica da atuação dos três poderes: Poder Legislativo, Poder Judiciário, Poder Executivo, ressaltando desde já que cabe a este, principalmente, o estabelecimento e a implementação das políticas públicas.
Ainda, no que se refere a este exame, levaremos em consideração os três objetivos estratégicos da Plataforma de Ação de Beijing de 1995, no que tange à violência contra a mulher2, utilizando-os como pontos referenciais à análise crítica da atuação do governo brasileiro.
Poder Legislativo
Rol de medidas legislativas federais, referentes à violência contra a mulher no Brasil, aprovadas após a Conferência de Beijing:
• Decreto Legislativo n. 107 (1995), que aprovou o texto da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, assinada em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994.
• Lei n. 9.099 de 26 de setembro de 199niza5, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, regulando o artigo 98, I da Constituição Federal. Esta lei alterou o rito dos crimes cuja pena máxima não supera 1 ano, dentre eles a lesão corporal leve e a ameaça, os dois crimes de maior ocorrência no âmbito familiar.
• Lei n. 9.318 de 5 de dezembro de 1996, que acrescentou à alínea “h” do inciso II do artigo 61 do Código Penal (circunstâncias agravantes) a expressão “mulher grávida” .
• Lei n. 9.455 de 7 de abril de 1997, que define os crimes de tortura, dispondo no inciso II do artigo 1º que constitui crime de tortura “submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”. A pena é aumentada quando o crime é cometido contra gestante (art. 1º, § 4º, II ). Cabe ressaltar que esta Lei não foi criada com a intenção de proteger a mulher vítima de violência doméstica, porém pode vir a ser utilizada neste sentido.
• Lei n. 9.520 de 27 de novembro de 1997, que revogou o artigo 35 e seu parágrafo único do Decreto-lei n. 3.689/41 (Código de Processo Penal) referente ao exercício de queixa da mulher. Tal artigo dispunha que a mulher casada não poderia exercer o direito de queixa sem o consentimento do marido, salvo quando estivesse dele separada ou quando a queixa fosse contra ele.
• Lei n. 9.807 de 13 de julho de 1999, que dispõe sobre proteção e auxílio às vítimas da violência e testemunhas ameaçadas. É importante, porém, ressaltar que tal Lei não foi promulgada visando a proteçãnizao específica da mulher, mas é instrumento que nos parece valioso e que deverá ser melhor estudado e analisado visando sua aplicabilidade para a problemática em questão.
• Norma Técnica do Ministério da Saúde de 1998 para Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes.
Observações adicionais:
Alguns Estados e Municípios brasileiros dispõem de normas que tratam alguns aspectos da violência contra a mulher, dentro dos seus respectivos âmbitos de competência. Entretanto, esses textos legislativos não serão aqui elencados.

Análise crítica:
A principal conquista jurídica das mulheres no Brasil em relação à violência, está consignada na Constituição Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988, que, em seu artigo 226, parágrafo 8º dispõe: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”. Praticamente todas as Constituições dos 26 Estados da Federação – promulgadas após 1988 – também fazem referência à coibição da violência no âmbito doméstico e familiar, com exceção de apenas três (Pernambuco, Roraima e Alagoas).
Entretanto, a legislação infraconstitucional brasileira não tem acompanhado essa conquista. Até hoje, não existe uma lei específica para prevenir, punir e erradicar a violência contra as mulheres.
Nas duas últimas legislaturas, deputadas ligadas ao movimento de mulheres apresentaram projetos de lei referentes à violência doméstica, a partir de proposta elaborada pelo CLADEM/Brasil. Houve, no niza entanto, resistência a uma legislação específica, sob a alegação de que a lei penal existente basta, pois já prevê a agravante, quando o crime é efetuado por familiares. Além disso, não foram consideradas cabíveis as inovações dos projetos acima referidos que, transcendendo a área penal punitiva, estabeleciam preceitos na área civil, administrativa e trabalhista, com objetivos preventivos e assistenciais.
Essa rejeição é e seria inaceitável, mesmo se os referidos projetos se restringissem à área criminal, pois o Código Penal atual é insuficiente para abarcar os avanços da Constituição de 88, no que diz respeito à igualdade de mulheres e homens, e, inclusive, ao alargamento do conceito de entidade familiar.
O Código Penal brasileiro (1940), bem como o Código Civil (1917), reproduzem princípios anacrônicos e discriminatórios, valendo-se, in-clusive, de termos como “honestidade” e “virgindade” da mulher.
Anteprojeto de reformulação deste código está no momento sendo revisado pelo Ministério da Justiça. Importa ressaltar que contempla vá-rias reivindicações do movimento de mulheres, assim, representando um avanço. Projeto de reformulação do Código Civil há vários anos tramita no Congresso Nacional. Este também incorporou as principais reivindicações encaminhadas pelo movimento de mulheres, no que diz respeito a igualdade de direitos de homens e mulheres.
Cabe também observar que há uma lacuna no ordenamento jurídico brasileiro quanto à prostituição infantil, turismo sexual infantil e abuso de crianças, pois nem o Código Penal nem o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente – 1990) fazem prevnizaisão desses delitos.
Do rol de normas mencionadas, metade (3) não foi elaborada visando a proteção dos direitos da mulher, no que diz respeito à violência. Mas, destas três, duas – as Leis ns. 9.455 e 9.807 – podem vir a ser aplicadas com resultados positivos. Contudo, a Lei n. 9.099, em nosso entender, não está respondendo de forma satisfatória à problemática da violência doméstica.
A Lei n. 9.099/95, aplicada aos casos de prática de delitos de pequena e média gravidade, apenados, no máximo, com um ano de pena privativa de liberdade, cobre a maioria dos crimes de violência doméstica. Como essa lei privilegia a conciliação e a transação, e suspende com freqüência o processo, ficou ainda mais banalizada essa forma específica de violência perante a Justiça Criminal. Sendo assim, com a finalidade de acabar com a morosidade da Justiça brasileira, esta lei acabou por beneficiar o autor de crimes de violência doméstica que, no mais das vezes, paga uma ínfima pena de multa como punição a seu delito, ficando livre de antecedentes criminais.
É importante observar que, apesar da existência dessas leis, nenhuma delas faz menção à violência psicológica, prevista na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará – 1994). Essa forma mais sutil e
menos comprovável de violência é muito freqüente e, por vezes, ainda mais nociva do que a física. Tal fato reforça a idéia de necessidade de elaborar-se lei específica sobre a violência contra as mulheres que se dá principalmente no âmbito doméstico.
Reivindicações:
• Nnizaão basta o Brasil ter assinado e ratificado todos os instrumentos internacionais de proteção aos direitos da mulher, inclusive aqueles relacionados à área da violência. Impõe-se o cumprimento de todas as medidas legislativas previstas nos vários objetivos estratégicos da Plataforma de Ação, referentes à violência contra a mulher.
• Elaboração de uma legislação voltada à violência doméstica que contemple aspectos civis, penais, trabalhistas e administrativos.
• Reformulação de toda a legislação infraconstitucional discriminatória, especialmente o Código Penal e o Código Civil.
• Aprovar e garantir no Plano Plurianual dotação financeira e orçamentária que vise garantir a execução de programas de prevenção e erradicação da violência doméstica/familiar.
• Aprovar e garantir os recursos previstos na Lei de Diretrizes Orçamentárias e no Orçamento da União para ações e programas com o mesmo fim.
Poder Executivo
Rol de políticas públicas federais frente à violência de gênero e sua implementação:
O governo brasileiro, nas suas três esferas – federal, estadual e municipal – estabeleceu algumas políticas públicas com o objetivo de eliminar a violência perpetrada contra as mulheres.
Tais políticas têm sido implementadas principalmente em virtude da crescente mobilização da sociedade civil – particularmente grupos e
organizações de mulheres – e das entidades internacionais que, além de pressionarem e exigirem ações, ajudam em grande parte com o financiamento das mesmas.
Contudo, a precária implementação dos planos de ação existentes deve-se, em nizanosso entender, à fragilidade de vontade política, que se traduz, por exemplo, na ínfima alocação de verbas e recursos para tal.
• O governo federal possui organismos ligados diretamente à defesa dos direitos humanos das mulheres, dentre os quais destacam-se o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), a Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, a Comissão Nacional de População e Desenvolvimento e a Comissão Intersetorial de Saúde da Mulher.
• O CNDM, vinculado ao Ministério da Justiça, tem atuado no estabelecimento de convênios com os governos estaduais, municipais, instituições não-governamentais e empresas para a implementação do Programa Nacional de Direitos Humanos, elaborado e aprovado em 1996, o qual dedica exclusivamente um capítulo às mulheres, destacando a importância da prevenção da violência de gênero.
• Em 1998, o CNDM, associado ao CLADEM (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa da Mulher) e a outras entidades, lançou a campanha “Sem as mulheres os direitos não são humanos”.
• A Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, órgão do Ministério da Justiça, associada a agências das Nações Unidas e a organizações e entidades de mulheres, por sua vez lançou em 1998 a campanha “Uma vida sem violência é um direito nosso”, para a prevenção da violência intrafamiliar, que afeta especialmente mulheres e crianças. Essa atividade culminou com a assinatura, pelo governo e por organizações da sociedade civil, do Pacto contra a Violência Familiar.
• O documento Estratégias da Igualdade (1997) estabelece as ações para implementar os compromissos assumidos pelo Brasil na nizaQuarta Conferência Mundial da Mulher (1995). Consolida as metas estabelecidas no Programa Nacional de Direitos Humanos e sugere, como indica sua própria Introdução, um conjunto integrado de políticas públicas e iniciativas da sociedade civil, voltadas para a eliminação da discriminação de gênero e para a consolidação de uma plena cidadania das mulheres. Foi elaborado através de um amplo processo de consulta, sob a coordenação do CNDM e a presidência do Ministro da Justiça. Dele participaram Conselhos Estaduais e Municipais de defesa dos direitos das mulheres, representantes do setor privado empresarial e organizações da sociedade civil, tendo sido patrocinado pela Secretaria dos Direitos da Cidadania.
• O Programa Nacional de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e Sexual foi elaborado pelo CNDM, em 1996, e é parte integrante do Programa Nacional de Direitos Humanos e do Documento Estratégias da Igualdade. Possui como principal objetivo a articulação de ações interministeriais de combate à violência doméstica e sexual, observando as competências das instâncias federal, estadual e municipal e estabelecendo os termos de cooperação e convênios, quando necessário. Para isso, o Programa propõe a coordenação de ações interministeriais, a alteração de dispositivos do Código Penal, o fortalecimento do aparelho jurídico-policial e campanhas de sensibilização da opinião pública.
• O Disque-denúncia foi criado, pelo Ministério da Justiça, no contexto do Programa Nacional dos Direitos Humanos (1996). Consiste num serviço telefônico para registro de casos de prostituição infanto-juvenil e porno-turismo. A partir deleniza foram articuladas ações de fechamento de algumas casas noturnas, onde ocorria esse tipo de exploração sexual.
• No contexto do PNDH, a TV Escola, do Ministério da Educação, tem divulgado procedimentos de defesa contra a violência doméstica e sexual.
• A Comissão de Direitos Humanos, a partir de proposta do CNDM e da organização não-governamental CFEMEA (Centro Feminista de Estudos e Assessoria), requereu a inclusão no Orçamento da União, referente ao ano de 1999, de emenda para a construção e manutenção de
15 Casas de Abrigo para mulheres vítimas de violência, no valor de
US$ 10.500.000,00, aproximadamente.
• O Ministério da Saúde elaborou, em 1998, a Norma Técnica “Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes”, regulamentando o artigo 128 do Código Penal Brasileiro, especificamente seu inciso II, permissivo legal quanto ao abortamento nos casos de gravidez resultante de estupro.
Observações adicionais:
No que tange às políticas públicas, há também ações dos governos estaduais e municipais na luta contra a violência de gênero. Entre estas, a criação de Conselhos de Direitos da Mulher, órgãos de orientação jurídica e encaminhamento, e serviços de atendimento psicossocial especializados em vítimas de violência familiar e sexual.
A mais importante política pública referente à violência contra a mulher, implementada pelo Poder Executivo estadual, foram as Delega-cias de Defesa da Mulher, desde 1985. Isto, pois, ao pretender fornecer atendimento especializado e específico a mulnizaheres e meninas vítimas, incentivou-as a denunciarem a violência sofrida, e deu maior visibilidade ao fenômeno da violência de gênero, e em especial o da violência doméstica.
Análise crítica:
Sem dúvida essas medidas governamentais são relevantes, mas representam apenas passos iniciais no sentido da efetivação dos compromissos assumidos em Beijing. Grande parte ainda representa somente uma manifestação formal de intenções e propósitos, muito distante de sua efetivação nas diversas regiões brasileiras, marcadas pela desigualdade de condições de vida, no que diz respeito aos seus aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais. O interior do Brasil, principalmente em suas áreas rurais, permanece praticamente esquecido no que tange à implementação dessas políticas. Desconhecemos, por exemplo, uma
política pública direcionada à violência perpetrada contra as mulheres
indígenas.
Há no país falta de informações a respeito da violência contra mulheres e meninas, bem como uma lacuna nos dados sistemáticos desagregados por sexo, impedindo uma visão concreta desse fenômeno. Tal falha, além de contribuir para a continuidade do fenômeno, reflete a subordinação feminina em nossa sociedade, da qual a violência é fruto. O Brasil, até hoje, não apresentou nenhum relatório oficial ao CEDAW.
As áreas da educação e da cultura não têm definido política especialmente dirigida a eliminar os preconceitos e as práticas consuetudinárias discriminatórias, baseadas em idéias estereotipadas da inferioridade
feminina.
A maior parte dos serviços de saúde ainda não está preparada niza para atender as mulheres vítimas de violência e, particularmente, os casos de estupro e, assim sendo, é ínfimo o número de hospitais da rede pública que oferecem o serviço de interrupção da gravidez prevista por lei.
Os recursos previstos para a construção das Casas de Abrigo são importantes, sem dúvida, mas representam uma gota d’água num oceano de necessidades. Eles ilustram a fragilidade da vontade política governamental, como já mencionado.
Não há política pública consistente no sentido de eliminar o tráfico de mulheres e meninas, bem como no de prestar assistência às vítimas de violência derivada da prostituição e do tráfico. No que se refere à prostituição infanto-juvenil, há estudos recentes revelando que esta se configura de forma diferente entre e intra-região. No Norte e Centro-Oeste, o tráfico de escravas na área do garimpo é uma tônica; o turismo sexual destaca-se no Nordeste; no Sudeste, a discussão sobre meninas que vivem na rua surge junto com a discussão da prostituição infanto-juvenil; e no Sul, a base da exploração está no aliciamento das crianças e adolescentes do interior, a partir do uso de informações falsas e do abuso da ingenuidade dos pais.3
A criação de Delegacias de Defesa da Mulher no âmbito estadual, apesar de ser a principal política pública de defesa da mulher contra a violência, não atende a maioria das brasileiras, uma vez que ainda existem pouquíssimas no Brasil (não chegam a 250, sendo que metade delas estão em São Paulo). Além disso, várias lacunas, no serviço prestado pelas poucas DDMs existentes, demonstram a precariedade da implementação dessa política. Tida niza no meio policial como a “cozinha da polícia”, é sempre a última das delegacias a receber recursos; serve de mecanismo de punição a policiais que, como castigo, são removidos para essas unidades; não são mais ambientes exclusivamente femininos como se pretendeu inicialmente, contando algumas com policiais do sexo masculino; demonstram em seu quadro de funcionários extrema falta de preparo em gênero, já que estes, no mais das vezes, reproduzem preconceitos e técnicas discriminatórias no atendimento às vítimas.
Reivindicações:
• Maior comprometimento do Governo Federal, através da articulação de seus vários Ministérios, no sentido da efetiva implementação da Plataforma de Beijing, salientando-se os pontos referidos na análise
crítica.
• Promoção de cursos e seminários, para sensibilização e capacitação de funcionários do governo, em especial do pessoal dos quadros policiais de todos os níveis (civil e militar), dos serviços públicos de saúde, e das escolas.
• Realização de campanhas educativas através da mídia.
• Realização de campanhas de conscientização no campo da educação formal e informal.
• Criação de Centros de Atendimento Integrado às mulheres em si-tuação de violência doméstica.
• Financiamento e promoção de serviços especializados nas áreas da saúde física e mental e assistência social (atendimento clínico e psicológico das vítimas e perpetradores da violência doméstica/familiar, pelo SUS).
• Assegurar recursos adequados na Lei de Diretrizes Orçamentárias, no orçamento da União e sua execução para o fim específico de programas visando a nizaproblemática da violência contra as mulheres.
• Inserir no Plano Plurianual dotação financeira e orçamentária que vise garantir a execução de programas de prevenção e erradicação da violência contra a mulher.
• Desenvolvimento de estudos e pesquisas para o conhecimento das causas e conseqüências da violência de gênero, bem como a elaboração de instrumentos de avaliação e monitoramento dos avanços, conforme os objetivos estratégicos da Plataforma de Beijing.
• Criação de um sistema de dados sobre a violência perpetrada contra a mulher.
• Criação de incentivos para instituições e empresas públicas e privadas que desenvolvam trabalho de prevenção e erradicação da violência doméstica/familiar.
Poder Judiciário
O Poder Judiciário no Brasil não está estruturado de forma a poder atender à demanda da grande maioria da população brasileira. O acesso a este poder praticamente não existe para as camadas populares.
Assim sendo, pouquísssimas mulheres vítimas da violência têm acesso ao sistema judicial.
A morosidade da Justiça brasileira é também um fator que contribui para o distanciamento que existe entre o Poder Judiciário e a população. Alguns processos referentes a estupro, estudados em pesquisa realizada em 19984, ultrapassaram o período de oito anos, entre a data de instauração do inquérito policial e o trânsito em julgado da última decisão. Entretanto, vale assinalar que a maioria dos processos pesquisados não ultrapassou o período de três anos de duração.
Com a Lei n. 9.099/95, que criou os Juizados Especiais Criminais, a difnizaiculdade de acesso à Justiça, bem como a sua morosidade, foram superadas para os crimes de menor potencial ofensivo. Vale ressaltar que a maioria dos crimes perpetrados no âmbito familiar e doméstico são cobertos por essa lei. Entretanto, como já analisado, tem ocorrido grave distorção, na medida em que esse tipo de violência tem sido trivializado.
Nos crimes de violência sexual contra mulheres, principalmente quando estas são adultas, há, por vezes, uma verdadeira “inversão”. Vale dizer, através dos discursos proferidos pelos operadores do direito ao longo do processo, vítimas transformam-se em réus e vice-versa. A mensagem veiculada por esses agentes muitas vezes reforça a idéia de que o estupro é crime em que a vítima tem que provar que não é culpada e, que portanto, não concorreu para a ocorrência do delito.
Pesquisa realizada em São Paulo, em 19935, analisando processos judiciais na área de família, revelou que há predominância de uma concepção conservadora e patriarcal, nas decisões estudadas. Para tal concepção, permanece intacta a posição prevalente do homem como chefe da sociedade conjugal, e a posição da mulher como mera colaboradora.
Consagra-se a idéia da fragilidade e subordinação da mulher, que tem seus comportamentos vigiados, controlados e qualificados (ex: “conduta desregrada”, “comportamento extravagante”); institucionaliza-se, desse modo, a desequiparação de direitos, legitimando-se tratamentos jurídicos diferenciados atribuídos ao homem e à mulher.
Com frequência, a atuação do Poder Judiciário continua reproduzindo, acriticamente, estereótipos e preconceitos sociais, niza inclusive de gênero, impedindo, assim, a efetivação da igualdade, calcada em princípios de solidariedade.
A tese da legítima defesa da honra ainda é, por vezes, defendida para absolver acusados de agressões e assassinatos de mulheres.
Em breve estudo realizado por nós nas principais revistas de jurisprudência de todo o país, constatou-se que estas apresentavam, em junho de 1999, apenas 15 acórdãos referentes ao tema. Destas decisões, 11 não acolhiam, no caso concreto, a tese da legítima defesa da honra.
Esse número é pequeno, mas a ausência de pesquisa empírica sobre a atuação do Tribunal do Júri (tribunal popular) não nos permite maiores conclusões acerca da dimensão da aceitação dessa tese, em primeira instância, nos diversos Estados do país.
Embora prevalecente, a concepção conservadora da Magistratura brasileira não é unânime em todas as decisões. Há uma heterogeneidade que não pode ser desprezada.
Por fim, importa ressaltar a incipiente utilização das normas internacionais de proteção aos direitos humanos, como fonte de direito nas decisões judiciais, apesar de, formalmente, por preceito constitucional, fazerem parte do ordenamento jurídico, a partir da sua incorporação.
Reivindicações:
• Promoção de cursos e seminários de sensibilização e capacitação dos operadores do direito em geral, e dos juízes em especial, na
problemática de gênero, incluindo o treinamento referente aos instrumentos e mecanismos internacionais de proteção aos direitos humanos das mulheres.
• Incorporação, nos currículos dos cursos das Escolas de Magistratura, do tema “Dirnizaeitos Humanos”, com especial atenção à violência contra a mulher.


Mario Sérgio Cortella*
O Brasil vive hoje uma situação peculiar. Sem despontar como uma vítima ingênua do capital financeiro internacional e sem, ao mesmo tempo, deixar de ser conduzido pelas nossas históricas elites predatórias, o país encontra-se em um impasse extremamente forte: a submissão dos nossos direitos e deveres a esse mesmo capital financeiro, daqui ou de fora. Isso vem nos colocando, inclusive, em uma situação contínua de “pânico”, a partir da qual precisamos, o tempo todo, acompanhar as Bolsas de Valores, pois, na prática, é nelas e em função delas que se decide a qualidade de existência que se tem ou se terá.
Tal condição nos obriga, ao pensarmos no tipo de sociedade que desejamos – e, mais ainda, se queremos continuar reféns dessa espécie de “seqüestro relâmpago” que a exclusivista opção política pelo capital financeiro produz todos os dias – revigorar uma antiga exclamação: a Bolsa ou a Vida! Esse é o principal impasse: ou a Vida Humana em suas múltiplas manifestações ou a Bolsa de Valores em suas variadas expressões. A escolha dos dirigentes políticos e das elites vem sendo claríssima: a opção pela Bolsa, em detrimento da Vida. É por isso que, em grande parte, vivemos no momento, de forma não disfarçada, uma mescla de estelionato estatal marcado profundamente por um caráter de delinqüência privada; mais do que discutir hoje a privatização do Estado (tão ao gosto do neoliberalismo), temos de encaminhar nossos esforços para exigir a desprivatização do Público.
niza O que isso significa? Não cair na armadilha de ficar somente pensando formas adequadas de privatizar o Estado, pois ele sempre o foi. A privatização de estatais, por exemplo, apenas dá seqüência agora, de uma outra maneira, ao que sem interrupções aconteceu na nossa história: nunca o Estado brasileiro foi público! Portanto, o que estamos vivenciando é apenas uma retransferência de parcela do setor privado presente no Estado (por ela sempre ocupado) para ele mesmo, na sua dimensão não-
estatal.
Desse ponto de vista, a questão séria quando se fala em Direitos precisa ser a desprivatização do Público, isto é, tirar o setor público do controle contundente de uma parte do Privado, exatamente aquela composta pelas elites predatórias; esse controle se corporifica e se dissemina pela ação dos três poderes, especialmente do Executivo e do Legislativo. Isso aponta para a necessidade de lidarmos com uma articulação difícil na nossa nação: uma repactuação entre as classes sociais, dado que às elites pouco solidárias somam-se camadas médias acovardadas e narcísicas, em confronto com um proletariado intensamente acuado pela busca da sobrevivência no cotidiano (procurando garantir minimamente aquilo que é intenção de todo ser vivo: manter-se vivo).
Nesta direção, quando nós pensamos em Direitos que impactam a Cidadania, eu queria entrar em alguns elementos que são fortes, principalmente o direito à Educação, que é a minha área mais específica.
Fala-se muito em Educação no Brasil hoje, fala-se em demasia, principalmente as elites que publicam artigos, escrevem nos jornais, dão entrevistas. Pessoanizas que, historicamente, inclusive nos períodos mais recentes, sempre estiveram à margem do processo do fortalecimento da Educação como um direito de cidadania, agora escrevem e defendem este direito. Haja vista que vários líderes do PFL, por exemplo, partido político atrelado à ditadura (com outra denominação) e neste momento base de sustentação do Governo Federal, têm-se esmerado na elaboração de discursos em defesa da Educação, criticando os níveis de qualidade nos quais ela se encontra.
Ora, a Educação nas últimas décadas esteve sob a direção e controle exatamente desses mesmos que, agora, apontam o descaso. Basta lembrarmos alguns nomes de ministros da Educação nos últimos quinze anos: Marco Maciel (PFL/PE), Hugo Napoleão (PFL/PI), Jorge Bornhausen (PFL/SC), Carlos Chiarelli (PFL/RS) . Às vezes, como aponta bem o escritor Ivan Lessa, de 15 em 15 anos, os brasileiros esquecem tudo que aconteceu nos últimos 15 anos...
Ademais, tenho uma certa suspeita em relação aos que vêm gerindo a Educação brasileira, independentemente daquele que hoje ocupa o Ministério. A suspeita não se refere à capacidade técnica mas, isso sim, ao fato de que, antes de ser Ministro era exatamente assessor do Banco Mundial, em Washington; sem ressuscitar aqui qualquer temor ao imperialismo ianque que a gente vislumbrou nos anos de 1960, existe um dado real: não é casual este tipo de articulação com uma instituição conservadora e parcializante no campo educacional.
Muitos dos que falam contra a miséria educacional e na defesa dos direitos sociais, o fazem apoiados na razão cínica, pois não assumem a responsabilidade pelo passado renizacente e, quando muito, sustentam um discurso triunfalista quanto às conquistas do presente, beirando, assim, a pirotecnia. Falam sobre vários direitos como se eles já estivessem garantidos; porém, a garantia é apenas formal. E, como é o real?
O Brasil é, no final do século XX, a décima economia capitalista mais rica do planeta, entre 194 países. Contudo, nós somos o sétimo
maior país do mundo em número absoluto de analfabetos. Nós temos, de acordo com dados oficiais, um total de 18 milhões de analfabetos totais e 25 milhões de analfabetos funcionais; significa que acima de 15 anos de idade o Brasil tem um total de 43 milhões de pessoas analfabetas, dado que analfabeto total é aquele que não teve escolarização alguma e o
analfabeto funcional é aquele que passou por alguma tintura de escolarização, mas se analfabetizou. Tudo isso se nós contarmos o analfabetismo a partir dos 15 anos de idade, pois, se usarmos o parâmetro do UNICEF, que é a partir dos 10 anos de idade (em tese é a idade em que uma criança deveria estar alfabetizada), o Brasil chega a 62 milhões de analfabetos!
Com todo esse quadro desalentador, alguém tem ouvido falar em algum projeto nacional de alfabetização? Pode-se argumentar: existe o projeto de Alfabetização Solidária ligado à Comunidade Solidária, mas isso é um disparate! Colocar o direito de Educação dentro da atividade de filantropia é não compreender o que é Educação. Durante décadas no nosso país a atividade de alfabetização de adultos esteve ligada à área do Serviço Social, como se isto fosse uma questão de assistência social. Não é uma questão de assistência nizasocial, é uma questão de Educação!
Não existe uma área no Ministério da Educação que cuide da alfabetização de adultos porque isto está na Comunidade Solidária, como se a educação de adultos fosse uma questão de solidariedade, quando ela é um direito! Claro que a solidariedade é importante, porém, nos quatro primeiros anos, foram alfabetizadas somente 200 mil pessoas e só agora chega-se à marca de mais de um milhão. É pouco para um país como o nosso. Faltam ainda, tomando só os analfabetos totais, 17 milhões... No entanto, o anúncio que se enxerga nas tevês, nas rádios, é que nós estamos com o problema do analfabetismo sendo rapidamente resolvido! Isto é uma armadilha e esta armadilha é violenta porque produz a idéia de que as questões já estão colocadas e equacionadas – não estão!
Outro exemplo: o Governo brasileiro implantou a partir de 1997 o FUNDEF (Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental), apelidado de Fundão, cuja destinação dos recursos é exclusivamente o Ensino Fundamental Regular, isto é, vedado para Ensino Supletivo e Educação de Jovens e Adultos. Agora vamos ao fatos: o Governo Federal não tem projeto educacional nesta área, os Governos Estaduais não lidam com a alfabetização de jovens e adultos porque isto é uma questão municipal, e os municípios não podem utilizar os recursos que recebem do Fundão (que é o que compõe a maioria do seu orçamento na área de Educação) para essa tarefa. É um estado de abandono.
Alguns argumentam que o país é pobre (décima economia do planeta!) e não há recursos suficientes. Vamos, então, pegar um caso concreto: só no primeiro bimestre de 199niza9, com a súbita desvalorização da nossa moeda, dois bancos de investimentos (sem envolvimento na produção e voltados para a especulação financeira) receberam um auxílio do governo federal da ordem de R$ 1,5 bilhão! Esse recurso público desapareceu, sem retorno, em uma só tacada.
Vamos fazer uma conta simples para saber se tem dinheiro no país ou não. É assim: uma escola de ensino fundamental com 10 salas de aula custa, em média, um milhão de reais; se colocada para funcionar em três turnos, teríamos o equivalente a 30 turmas, e, com uma média com 35 alunos em cada classe, seriam aproximadamente 1.000 alunos só em uma escola. Portanto, com um bilhão e meio de reais se construiriam 1.500 escolas de ensino fundamental e se colocariam um milhão e meio de alunos para estudar, que aliás é o número de crianças fora da Escola, segundo contas do governo, embora o número seja bem maior.
Outra conta: o Fundão que, segundo o governo destina anualmente a cada município a quantia de R$ 314,00 por criança matriculada. Nesse caso, bastaria eu pegar este um bilhão e meio de reais que foi embora, neste novo escândalo do Banco Central e dividi-lo, segundo as contas do governo por estes R$ 314,00. Daria para sustentar 5 milhões de crianças por ano. Cinco milhões de alunos! Se usasse este cálculo para a educação de adultos, com estes reais que desapareceram, em um ano seriam alfabetizados 5 milhões de pessoas!
Por que não há projetos nacionais de educação de adultos no Brasil? Por que não interessa mais às elites! Eles existiram até 1988 (MOBRAL em idos tempos, depois a Fundação Educar etc.). A partir de 1988,niza os Governos não se interessaram mais pela alfabetização de adultos, pois pela primeira vez na nossa História a Constituição Brasileira admitiu,
felizmente, o voto ao analfabeto. Até 1988 as elites precisavam formar eleitores, perfilá-los, e, portanto, eram necessários projetos de educação de adultos para os quase-analfabetos poderem minimamente serem inscritos como eleitores. Como a partir de 1988 não há mais esta necessidade, um dos primeiros atos do Governo Collor e depois sustentado pelo Governo Itamar e Governo Fernando Henrique foi extinguir os projetos nacionais de alfabetização, até colocá-los na mão da Comunidade Solidária, como antes analisei, indicado como uma parceria com o setor privado.
Outro exemplo disso? A Constituição Federal de 1988 estabeleceu no artigo 60 das Disposições Transitórias que o país teria um prazo de 10 anos, a partir da promulgação da lei, para universalizar o ensino fundamental (colocar todas as crianças de 7 a 14 anos na escola) e eliminar o analfabetismo adulto. Quando fez 10 anos nossa Constituição? Em 1998. E qual foi a providência tomada pelo Governo Federal e pelas elites do Brasil? Em 1997 foi votada no Congresso uma emenda constitucional que prorrogou o prazo por mais 10 anos. Em vez de levantarem a ponte, abaixaram o rio. A saída foi, em vez de fazerem a alfabetização, esticarem o prazo.
A ausência radical de recursos financeiros é, desta forma, um mito a ser combatido. Só no ano em curso o país pagará mais de 40 bilhões de dólares de juros à agiotagem internacional; isso é quase o investimento anual do Brasil na área de Educação como um todo! Àsniza vezes empresários me perguntam como podem fazer para ajudar a Educação? Eu costumo dizer que o primeiro passo é facílimo: pagar impostos corretamente. Como o dinheiro da Educação, pela Constituição Federal, é atrelado à arrecadação tributária própria ou transferida, se não houver evasão ou corrupção fiscal já se tem um recurso altíssimo...
Isso vale para o cidadão também. Cada vez que um de nós ou uma de nós não pede nota fiscal quando compra algo está deixando o dinheiro da Educação a menor. No Estado de São Paulo, que é o Estado onde boa parte de nós reside, 30% da arrecadação tributária tem que ir para a área de Educação – um dos impostos que mais colabora para isso é justamente o ICMS e esse ICMS é cobrado a partir da nota fiscal. Cada vez que não se pede nota fiscal em qualquer coisa que se adquire está-se lesando a área educacional. Tem gente que não pede porque tem vergonha, mas o comerciante não tem nenhuma vergonha de fazer você esperar 10 minutos para pedir seu CIC, RG, seu endereço etc. Por isso, fica muito cínico reclamar da ausência de recursos públicos na área de Educação e não pedir nota fiscal no cotidiano...
A esse mito da insuficiência radical de recursos financeiros, agrega-se o outro mito, o mito da quantidade versus qualidade, que atinge a área de Saúde, a área de Educação, a área de Saneamento, a área de Habitação etc.
Numa democracia, o conceito de qualidade tem que ser o conceito de qualidade social e não existe qualidade social se não houver quantidade total atendida, isto é, numa democracia se não se atende a quantidade total de cidadãos e cidadãs, não se pode falar em qualidadnizae e sim em privilégio.
Para exemplificar, vejamos duas situações na cidade de São Paulo, a mais populosa, rica e pobre do país.
No chamado espigão da Avenida Paulista, que compreende a própria avenida e as ruas transversais e paralelas, há inúmeros hospitais públicos e privados, clínicas médicas, laboratórios e centros de diagnósticos. Só nessa área há mais aparelhos de tomografia do que em todo o Canadá, país que ocupa o 1º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano medido pela ONU. Pode-se dizer a partir daí que a cidade dispõe de um sistema de saúde de qualidade? Claro que não, pois a concentração de benesses exclui uma grande maioria.
Outra armadilha desse mito quantidade x qualidade está presente na seguinte situação: os que moramos em São Paulo costumamos dizer que aqui é o lugar “onde se come melhor no Brasil”. Cabe perguntar: quem come? Quem come o quê? Uma parte come bem e muito, outra come mal e pouco, outra come lixo. Só é possível falar em qualidade se ela for so-cial, ou seja, extensiva ao conjunto das pessoas.
Voltamos com isso ao papel do Estado como gerador de qualidade social, principalmente a partir, como dissemos no início, da desprivatização do Público. Quem é o proprietário do Público? O adequado seria afirmar: o Povo, mormente o “povão”, que, por ser absoluta maioria, é o grande contribuinte. Ora, o “povão” não se coloca nessa condição porque acha que não paga impostos, aliás ele se humilha no equipamento público porque ele não sabe que financia aquele lugar; chama de a escola do “governo”, o hospital do “governo” e, portanto, de graça ou graciosamente.
niza O “povão” acha que não paga imposto, porque pensa que imposto é só imposto direto, que é o imposto sobre renda e propriedade, o que ele não tem. Os principais impostos diretos, como o Imposto de Renda, o Imposto Predial Territorial Urbano, o Imposto Territorial Rural, o “povão” não paga mesmo. Aliás, desses não são muitos os justamente pagantes, dado que o IR grava especial e quase exclusivamente os assalariados, o IPTU não é progressivo e há grandes isenções nas metrópoles, e o ITR ainda não chegou próximo à justiça tributária em um país de latifúndios.
A questão é muito mais complexa; o “povão” acha que não paga imposto, mas paga impostos indiretos que são os impostos sobre o consumo, como o IPI e o ICMS. Como a parcela extensamente majoritária dos orçamentos públicos vem dos impostos indiretos, quem financia os orçamentos? Quem consome. E, quem consome? Todos. Onde estão os impostos indiretos? No leite, no pão, no sapato, na água, na luz etc. Vamos a um exemplo concreto: um litro de leite ao lado da minha casa aqui em São Paulo custa R$ 1,10 e, neste preço, R$ 0,25 são impostos. Se eu ganhar

R$ 1 mil de salário por mês eu pago R$ 0,25 de imposto, se eu ganhar
R$ 10 mil de salário por mês eu pago R$ 0,25 de imposto, se eu ganhar
R$ 100 mil de salário por mês eu pago R$ 0,25 de imposto, se eu ganhar R$ 151,00 por mês eu pago R$ 0,25 de imposto. Como isto está no leite, no pão etc., etc., a conclusão é óbvia: como a maioria do País é pobre, é esta que sustenta os orçamentos que a ela não retornam em forma de serviços públicos adequados, connizafigurando uma espécie de estelionato.
E ele acha – o “povão” – que não paga imposto. Tanto que vai à escola pública e é muitas vezes desprezado na fila; vai ao hospital público e fica deitado na maca no corredor. O “povão” está pagando aquilo, aquilo está mais do que pago. A criança reclama da merenda na escola e um colega nosso fala assim: “mas esse povinho... come de graça e ainda está reclamando!”, ou no hospital “esse povinho recebe atendimento de saúde gratuito e ainda está reclamando, quer leito bom, quer remédio de graça”... De graça? Aquilo está pago! E muito bem pago!
Por último, a violência mais forte é a não compreensão de todas essas coisas, o não esclarecimento de que se o cidadão paga imposto ele tem esse direito e, mais do que tudo, é seu direito ser proprietário do Público.
Sobre essa violência e violação de direitos fundamentais, vale um exemplo real: em 1992, eu era Secretário Municipal da Educação em São Paulo e tive a oportunidade de um dia fazer uma reunião com os moradores da área central para discutir orçamento participativo. Essa reunião deveria ser onde coubesse bastante gente e, no centro da cidade, só o Teatro Municipal tinha condição de abrigar os cidadãos residentes, quase todos encortiçados. Agora imagine-se a cena, porque ela é inesquecível para mim. O “povão” dos cortiços foi chegando ao Teatro Municipal de São Paulo, que é um dos Teatros mais bonitos do planeta, grande obra do Ramos de Azevedo, uma coisa maravilhosa, lustres e mármores que vieram da Europa, aquelas poltronas todas de veludo importado; aquilo é maravilhoso e qualquer um de nós se orgulha. E, aí, o povo foiniza chegando, chegando e entrando, e abrindo a boca assim e olhando e olhando e então eles entraram todos na platéia e foram passando as mãos nas poltronas para sentir aquele veludo, e olhando os lustres e olhando aquilo, boquiabertos. Eu, lá no palco, esperava para começar a reunião e comecei a observar que ninguém se sentava. E eu disse: “gente vamos sentar, para começarmos a nossa reunião”, e, ninguém sentava. Repeti: “vocês não querem começar? Por que não sentam?”. Uma pessoa criou coragem e, lá do fundo gritou: “a gente não quer sujar”...
Pensei que era brincadeira, num primeiro momento, e falei: “Mas como sujar? Isso é vosso, vocês são donos disso!” Foi a maior gargalhada que eu já ouvi num teatro! E eu falava: “isso é de vocês, sentem-se...” e eles riram, mas riram com tudo. E eu dizendo, “é seu, você paga isso; esse Teatro é seu, ele é da cidade de São Paulo e você é alguém que está na cidade de São Paulo pagando para isto, senta que é seu!” Nossa, mas eles riam e aí uma gritava no fundo “o moço está mangando com a gente”. Eu tive que, com eles em pé, explicar esta questão dos impostos que falei antes e, aí sim, eles se sentaram, não sem antes colocarem a bolsa, um jornal ou um folheto sobre o assento das poltronas. Para não sujar...
Para concluir, uma outra história tristemente verdadeira, acontecida com o nosso grande mestre Paulo Freire, quando, em 1989, era o Secretário Municipal de Educação de São Paulo. Em dezembro daquele ano aconteceu o 1º Congresso Municipal de Alfabetizandos; note-se que era de alfabetizandos e não de alfabetização ou alfabetizadores, comumente voltados para especialistas. Essnizae congresso reuniu mais de 1500 homens e mulheres em processo de alfabetização de adultos e, dois meses antes, era preciso fazer um cartaz de divulgação do evento; o Secretário decidiu que o cartaz seria a partir da própria idéia de um futuro “congressista” . Um dia, visitando um núcleo do Mova (Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos) na periferia de Itaquera, na zona leste da cidade, nos deparamos com um senhor de 60 anos de idade que, após 3 meses de curso, estava escrevendo na lousa a sua primeira frase em toda a vida; essa frase, com deslizes de gramática e sintaxe (indiferentes, no caso) foi por nós fotografada e serviu como material de divulgação. A frase, que vale para esta Cidade, para este Estado e para este País, e é a expressão da maior ofensa ao Direito e à Justiça, era: “Nós construímos esta cidade, e nela somos envergonhados”.
Nós construímos esta cidade, e nela somos envergonhados! A maior violência contra a cidadania é envergonhar cotidianamente o seu cidadão, fazendo-o imaginar que aquilo que é um direito dele é algo que está sendo oferecido como dádiva; é aceitar que o estelionato ao qual ele é submetido no dia-a-dia, no setor público e privado, é algo que faz parte da organização da vida e nada podemos fazer. É imaginar que a Bolsa seja maior que a Vida...
É preciso continuar debatendo, discutindo, rejeitando e recusando a aceitação desse envergonhamento.
Por isso, quando nós nos reunimos para pensar na questão do im-pacto nos direitos civis e políticos em função da ausência real de efetivação e eficácia dos direitos econômicos, sociais e políticos, nós estamos desavergonhando nizaum pouco a Cidadania.

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