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As Garantias Institucionais
 dos Direitos Humanos*

Fábio Konder Comparato

A instituição-matriz dos direitos humanos, na História, foi a limitação institucional do poder político.

A experiência histórica, com efeito, tem demonstrado que a proteção da dignidade humana depende, fundamentalmente, da solução de um problema, cuja magnitude representa um perpétuo desafio à argúcia dos governantes de todos os tempos: como pôr o direito acima da vontade dos homens.

A causa primeira da desordem ética é, geralmente, o abuso de poder, individual ou coletivo. Por isso mesmo, a função primordial da ordem jurídica, como sustentaram com inteira razão os defensores da idéia de contrato social, consiste em refrear a liberdade natural, que conduz ao conflito e ao senhorio dos mais fracos pelos mais fortes, a fim de se instaurar a liberdade política, fundada no mútuo respeito da pessoa humana, em todas as suas múltiplas diferenças biológicas e culturais.

O princípio da separação de poderes como garantia institucional

É nessa perspectiva que se deve apreciar a importância da tese de-fendida por Montesquieu.

Na preservação da liberdade humana, dois extremos de desordem ética devem ser cuidadosamente evitados pela estrutura constitucional dos regimes políticos: a instituição de um só poder, absoluto e irresponsável - é a proposta bem conhecida de Hobbes -, ou a supressão de todo poder insti-tucional, com a volta ao hipotético estado da natureza.

A solução, como percebeu Montesquieu, consiste em criar um meca-nismo de equilíbrio gravitacional de poderes, uma espécie de adaptação, para as sociedades humanas, das leis da mecânica celeste expostas por Newton. "Para que se não possa abusar do poder, é preciso que, pela dispo-sição das coisas, o poder refreie o poder"; da mesma forma que os corpos celestes, atraindo-se e contendo-se uns aos outros, impedem a desordem entrópica do universo. Note-se: "pela disposição das coisas", vale dizer, pela organização das instituições políticas, não pela vontade dos homens.

Nesse sentido, pode-se dizer que a proto-história dos direitos huma-nos começa nos séculos VI e V antes de Cristo, com a fundação da demo-cracia ateniense e da república romana. Em ambos os casos, o objetivo maior era o mesmo: a garantia da liberdade dos cidadãos, após a dura experiência do poder arbitrário, que ambos os povos haviam sofrido. Mas os caminhos para a consecução desse resultado foram diversos: em Atenas, a limitação do poder político realizou-se por meio de mecanismos verticais, com a instituição da democracia direta, ao passo que em Roma preferiu-se criar um equilíbrio horizontal, com a separação de poderes.

Na verdade, as duas espécies de instituições devem combinar-se, a fim de que se possa proteger mais eficazmente a pessoa humana contra o arbítrio dos poderosos.

Escrevendo no segundo século antes de Cristo, o historiador grego Políbio não hesitou em atribuir ao refinado mecanismo republicano de checks and balances a grandeza de Roma, que em menos de cinqüenta e três anos logrou estender a sua dominação "à quase totalidade da terra habitada, fato sem precedentes".

Três eram, com efeito, as espécies tradicionais de regimes políticos, citados por Platão e Aristóteles: a monarquia, a aristocracia e a democracia. Para Políbio, o gênio inventivo romano consistiu em combinar esses três regimes numa mesma constituição, de natureza mista: o poder dos cônsules, segundo ele, seria tipicamente monárquico; o do Senado, aristocrático; e o do povo, democrático. Assim é que o processo legislativo ordinário (para a edição das leges latae, também chamadas leges rogatae) era de iniciativa dos cônsules, que redigiam o projeto. Este passava em seguida ao e-xame do Senado, que o aprovava com ou sem emendas, para ser finalmente submetido à votação do povo, reunido nos comícios.

Tanto os cônsules, quanto os tribunos, nunca exerciam isoladamente as suas funções, mas eram sempre nomeadas duas pessoas para o mesmo cargo. Se um desses altos funcionários não concordava com um ato praticado pelo outro, podia vetá-lo (intercessio). O mesmo poder de veto foi atribuído aos tribunos da plebe, em relação às decisões tomadas pelos cônsules.

Foi esse "governo moderado" da república romana, muito mais do que a Constituição (puramente idealizada) da Inglaterra, que inspirou de fato Montesquieu na composição do Livro XI de sua obra famosa.

A partir das três grandes revoluções que instituíram o mundo político moderno - a inglesa de 1688, a americana de 1776 e a francesa de 1789 -, o sistema de proteção da dignidade humana contra o poder arbitrário fundou-se, concomitantemente, na declaração de direitos subjetivos e na organização de instituições estatais, como a supremacia do Parlamento, ou a distribuição equilibrada dos poderes políticos, segundo a proposta de Montesquieu. O art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Assembléia Nacional Francesa no início da Revolução, sin-tetizou a grande mudança, em forma lapidar: "Toda sociedade, em que a garantia dos direitos não é assegurada nem a separação dos poderes determinada, não têm constituição".

Acontece que, durante todo o século XIX, a doutrina jurídica, sobre-tudo nos países do sistema romano-germânico (ou seja, grosso modo, na Europa continental e na América Latina), preocupou-se muito mais em analisar os direitos humanos sob o aspecto subjetivo, do que em teorizar sobre as instituições de organização estatal, destinadas a garantir o respeito a es-ses direitos. Foi somente após o grande abalo sísmico provocado pela guerra de 1914 a 1918 e pela revolução bolchevique no antigo império russo, que a separação de poderes passou a ser considerada, não como simples forma de organização do governo, mas como garantia institucional dos direitos fundamentais da pessoa humana, declarados na Constituição.

Essa nova construção teórica foi obra da doutrina publicista germânica, durante a República de Weimar. Para tanto, muito contribuiu a experiência negativa vivida pelos alemães, com a monarquia Hohenzollern. Com efeito, durante todo o período bismarckiano do império alemão, fundado em 1871, os poderes do monarca foram contrabalançados pelos do chanceler do Reich. Com a subida ao trono do novo Kaiser em 1888 e o afastamento de Bismarck da chancelaria, instaurou-se na Alemanha um re-gime de monarquia absoluta, que acabou levando o país à desastrosa guerra de 1914. Aos constituintes de Weimar, em 1919, pareceu, pois, indispensável estabelecer mecanismos de limitação dos poderes governamentais, na República a ser criada.

Eles o fizeram pela instituição de um sistema, que poderia ser deno-minado, indiferentemente, semipresidencial ou semiparlamentar de governo. É, de fato, na Constituição de Weimar que se encontra o modelo original da organização política que o General de Gaulle deu à França, em 1958, e que foi depois adotado em Portugal. O Presidente da República é eleito diretamente pelo povo, para um mandato de sete anos. Ele nomeia os Ministros que compõem o gabinete governamental, responsável perante o Parlamento, o qual pode ser por ele dissolvido a qualquer tempo. Mas, sobre-tudo, a Constituição alemã de 1919 atribuiu ao Presidente da República a competência excepcional para editar medidas necessárias de cunho legislativo (nötige Massnahmen), em caso de perturbação ou de riscos de perturbação da segurança coletiva e da ordem pública, medidas essas que entravam imediatamente em vigor, embora pudessem ser revogadas pelo Parlamento. Aí está, em sua essência, o instituto dos "provimentos provisórios com força de lei", adotado pela Constituição italiana de 1947, e que os nossos constituintes de 1988 copiaram sob a denominação de medida provisória.

O fato é que, não obstante a sua inegável orientação no sentido da separação de poderes, a Constituição de Weimar, seja pelo extremo fracionamento partidário, criado pelo sistema eleitoral, seja pelo excesso de poderes atribuídos ao Presidente da República, permitiu ou, pelo menos, não impediu o suicídio da república e o assassínio coletivo das liberdades, com a ascensão de Adolfo Hitler à chancelaria em 1933.

À doutrina publicista alemã da época, não passou despercebida a im-portância do estabelecimento de mecanismos objetivos de organização do Estado, para a garantia dos direitos humanos, pois do funcionamento desses mecanismos depende, afinal, a aplicação das próprias garantias judiciais. Esse esforço doutrinário foi retomado com a reconstitucionalização do país, após a derrocada do regime nazista, embora ainda careça, a meu ver, de maior aprofundamento e precisão de conceitos.

De modo geral, pode-se conceituar as garantias institucionais como formas de organização do Estado, ou institutos da vida social, cuja função é assegurar o respeito aos direitos subjetivos fundamentais, declarados na Constituição; não apenas das liberdades individuais (Freiheitsrechte), como pareceu aos autores alemães, mas de todas as demais espécies de direitos humanos. Na primeira classe de garantias institucionais, situa-se, por exemplo, a separação de poderes. Na segunda, também exemplificativamente, os institutos componentes da seguridade social, ou o sistema público de ensino. Em qualquer das hipóteses, trata-se de instituições que, pela sua própria natureza, fazem parte das disposições constitucionais insuprimíveis, não só pela lei, mas até mesmo pela via do processo de emenda à Constituição.

De minha parte, penso que as garantias institucionais podem e de-vem, hoje, ser analisadas como princípios fundamentais do ordenamento constitucional. Nessa condição, apresentam elas as três características essenciais de todo princípio jurídico: 1) supremacia normativa; 2) ilimitado âmbito de aplicação e 3) ilimitado grau de aplicação.

Vejamos como essas características essenciais se encontram no instituto da separação de poderes.

Em razão de sua supremacia normativa, o princípio da separação de poderes situa-se no ápice do ordenamento jurídico nacional, sobrelevando todas as regras, até mesmo de natureza constitucional, que não tenham o valor de princípios. Na hipótese de uma eventual colisão da separação de poderes com outro princípio fundamental, em determinado caso concreto, o intérprete deve escolher a solução que melhor assegure a proteção dos direitos fundamentais, segundo a técnica de sopesamento, que os alemães denominam Güterabwägung, e os anglo-saxônicos balancing.

Quanto à segunda característica da separação de poderes enquanto princípio jurídico - a ilimitação do seu âmbito de aplicação -, temos que os centros de poder político abrangidos não são apenas os três ramos clássicos do Estado: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Entra, também, no âmbito de aplicação do princípio, o Ministério Público, na medida em que este é um poder orgânico de defesa judicial do interesse público, em seu sentido próprio, isto é, o interesse do povo, titular da soberania.

A ilimitação do grau de aplicabilidade de um princípio significa que ele nunca pode ser tido como integralmente cumprido, mas conduz sempre à ampliação continuada de seus efeitos. Uma norma ordinária - por exemplo, a de que o devedor deve cumprir a obrigação no lugar, tempo e modo convencionados (Código Civil, art. 955) - não só pode como deve ser integralmente cumprida. Não assim, quando se trata de um princípio, na medida em que este se vincula a um valor humano, que é por definição inexaurível. Nunca se poderá dizer que a dignidade de uma pessoa já foi integralmente respeitada, ou que uma sociedade é totalmente democrática.

Ora, sob o aspecto da ilimitação do seu grau de aplicabilidade, en-quanto princípio jurídico, a separação de poderes não se reduz a determinados efeitos, taxativamente declarados ou não no texto constitucional. Na Constituição de 1946, bem como na do regime militar, por exemplo, vedava-se a qualquer dos poderes delegar atribuições, determinando-se que o cidadão investido na função de um deles não poderia exercer a de outro. A Constituição de 1988 não reproduziu essas proibições. Mas é evidente que elas continuam em vigor, como corolários do princípio, a par de vários outros de vigência implícita, e que a experiência histórica vai revelando, dian-te de novas modalidades de concentração abusiva de poder.

A supremacia incontrastável do poder governamental na experiência política brasileira

Desde que iniciamos a nossa vida de nação independente, há um da-do que permanece constante na realidade política, indiferente às sucessivas formas de organização constitucional que adotamos no correr dos tempos: todo poder estatal tende a concentrar-se no cargo de chefe do Estado. Raymundo Faoro, em estudo já clássico, enxerga nas origens do reino de Portugal, forjado que fora pelo rei, muito mais um chefe político do que um senhor feudal, a raiz primeira desse traço típico de nosso ethos político.

No império, a centralização e personalização do mando encontrava uma certa justificativa no chamado Poder Moderador, que a Constituição de 1824 instituiu, sob a inspiração de Benjamin Constant. Mas os redatores daquela Carta Política, assim como os seus mais insignes comentadores e intérpretes, não reproduziram com fidelidade a idéia original do pensador franco-suíço. Enquanto este sustentava que a chave de toda organização política é a distinção entre o poder ministerial e o poder do rei, a nossa Constituição imperial preferiu declarar, sintomaticamente, que "o Poder Moderador é a chave de toda a organização Política", sem acentuar a sua necessária separação do Poder Executivo dos ministros de Estado. Para Benjamin Constant, o poder do chefe de Estado é neutro, isto é, simplesmente arbitral ou mediador, enquanto o dos ministros é ativo, no sentido de que estes não atuam como meros agentes delegados do chefe de Estado. Daí a diferença fundamental e essencial, como ele frisou, entre a responsabilidade ministerial e a inviolabilidade do rei.

Entre nós, no entanto, José Antonio Pimenta Bueno (Marquês de São Vicente) não hesitou em afirmar que a prerrogativa conferida pelo art. 98 da Constituição de 1824 ao Imperador era "a mais elevada força social, o órgão político mais ativo, o mais influente, de todas as instituições fundamentais da nação". No mesmo diapasão, o Visconde de Uruguai, o primeiro grande cultor do direito administrativo entre nós, sustentou que "o Imperador não é o Poder Executivo, não constitui por si só o Poder Executivo. É simplesmente (sic) o Chefe do Poder Executivo." Analogamente, o Poder Judicial "é uma mola da máquina administrativa, mas não é a máquina" (tal seria!). Em conclusão, "a máxima - o Rei reina e não governa - é completamente vazia de sentido para nós, pela nossa Constituição." Ao que o Marquês de Itaboraí (Rodrigues Torres) arrematou: "o Imperador reina, governa e administra."

Com isto, estava aberto o caminho à inevitável absorção das funções governamentais pelo monarca, declarado constitucionalmente imune de toda responsabilidade, com a inevitável conseqüência do avassalamento permanente dos demais órgãos constitucionais.

O parlamentarismo no império, como todos reconhecem, sempre foi uma ficção retórica. O velho Nabuco de Araújo em famoso discurso pronunciado no Senado em 17 de julho de 1868, logo após o Imperador despedir inopinadamente o Gabinete Zacarias de Góis, desnudou-a sob a forma de um sorites, ou silogismo encadeado:

"O Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar mi-nistérios; esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis aí está o sistema representativo do nosso país!"

Instituído o regime republicano, essa concentração abusiva de pode-res, de direito e de fato, na pessoa do chefe de Estado não recrudesceu; pelo contrário.

Os primeiros governos presidenciais não passaram de ditaduras mili-tares, sob a justificativa teórica da ideologia positivista. Imaginava-se que o sistema federativo viesse quebrar, de algum modo, a onipotência do Presidente da República. Mas a solerte "política dos Governadores", instituída por Campos Sales, afastou desde logo qualquer ilusão a esse respeito. Os Governadores - na verdade, apenas dois, de São Paulo e Minas Gerais - fazem o Presidente, e este os apóia em retorno, na reprodução, em plano federal, do esquema coronelista instituído em cada Estado.

Discursando no Instituto dos Advogados, ao tomar posse no cargo de Presidente desse sodalício em 19 de novembro de 1914, Rui Barbosa não usou meias palavras para qualificar o sistema de governo instaurado com o regime republicano. "O presidencialismo brasileiro", disse ele, "não é senão a ditadura em estado crônico, a irresponsabilidade geral, a irresponsabilidade consolidada, a irresponsabilidade sistemática do Poder Executivo". Vinte anos depois, um diplomata inglês, que aqui vivera durante um quarto de século, corroborou essa análise sem concessões do nosso sistema de governo, ao publicar um opúsculo com título sugestivo: "Sua Majestade o Presidente do Brasil". A ousadia valeu-lhe a imediata expulsão do território nacional.

O fato é que, após os dois períodos de governo de exceção, chefiados por Getúlio Vargas - antes e depois da Constituição de 1934 - e após os vinte anos de regime militar, tínhamos ingenuamente a esperança de que, com a reconstitucionalização do País, o nosso sistema político se encaminhasse, afinal, para um estado de maior equilíbrio de poderes.

Pura ilusão! Já em fins da década de 80 faziam-se sentir por aqui as pressões internacionais para o nosso ingresso forçado no sistema de capitalismo globalizado. E este, como se viu em toda a América Latina, exige cada vez maior concentração de poderes na chefia do Executivo, com o avassalamento de todos os demais órgãos estatais. A análise dos "custos de transação", como dizem os economistas, tem aconselhado os centros de poder econômico e financeiro - as empresas transnacionais e as organizações internacionais de caráter econômico - a simplificar, ao máximo, os canais de interlocução com os países periféricos.

O Presidente da República já detém, em suas mãos, não só o poder legislativo, pela via da proliferação de medidas provisórias, como, até mesmo, o poder de reforma constitucional. Até meados de 2001, ou seja, em menos de treze anos de vigência, a Constituição de 1988 foi remendada 37 (trinta e sete) vezes, sempre por iniciativa direta, ou com o consentimento expresso do chefe do Poder Executivo.

A par disso, permanece a mesma subserviência do Congresso Nacional às determinações do chefe do Executivo. A eleição dos Presidentes das duas Casas Legislativas é rigorosamente controlada por ele. Demais, continuamos a assistir, impotentes, à mesma negociação indecorosa de liberação de verbas orçamentárias, quando não ao suborno puro e simples de parlamentares, no interesse privado do governo ou do próprio Presidente da República, como se viu recentemente, ao se impedir a instalação de comissão parlamentar de inquérito sobre atos de corrupção.

O que assusta, porém, nesse processo de subordinação de todos os órgãos estatais à Presidência da República, é a facilidade com que o Judiciário e o Ministério Público deixam-se aniquilar sem resistência. O Executivo vem criando múltiplos embaraços à judiciabilidade dos seus próprios atos, por meio de medidas provisórias, na consolidação de uma irresponsabilidade da qual Rui Barbosa nem chegara a cogitar, em suas mais ferinas objurgatórias. O chefe de Estado, de um só golpe, legisla em sustentação de suas políticas, ou mesmo em proveito próprio, e impede a censura de seus atos pelo Judiciário.

Este, na verdade, em nome da previsão e certeza das decisões em matéria econômica, como exigem os centros de dominação capitalista internacional, notadamente o Banco Mundial em seu anteprojeto-padrão de reforma do Judiciário na América Latina, vai se concentrando sempre mais nos tribunais superiores, de forma a coarctar, sem maiores escrúpulos, a jurisdição dos juízes de primeira instância e dos tribunais de segundo grau.

É nesse quadro de completo aviltamento da Justiça que se insere o despautério da chamada ação declaratória de constitucionalidade, criada pela emenda nº 3, de 1993. Longe de ser uma defesa da cidadania contra o abuso governamental, segundo a boa tradição do judicial review que herdamos dos norte-americanos, aquela ação judicial foi criada como medida de proteção antecipada do governo contra as demandas que os cidadãos possam ajuizar contra ele, em defesa de seus direitos fundamentais. Trata-se de um verdadeiro bill de indenidade que o Supremo Tribunal outorga ao governo, habilitando-o a espezinhar impunemente a Constituição, com a imediata suspensão da jurisdição de todos os demais órgãos judicantes. Foi o que se acabou de ver, vergonhosamente, com a recente decisão do Supremo Tribunal, ao julgar compatível com a Constituição a medida provisória instituidora do racionamento de energia elétrica. Como previsível, o Procurador-Geral da República pronunciou-se pela sua constitucionalidade.

Na verdade, se essa desmoralização toda se abate sobre os órgãos encarregados de dizer o direito e fazer justiça em última instância, não é melhor a sorte reservada ao Ministério Público, nesta fase de recrudescimento da macrocefalia presidencialista.

A Constituição de 1988 deu ensejo, em matéria de nomeação do che-fe do Ministério Público Federal, a uma situação de permanente desvio de poder. O Presidente da República, com a simples observância das formalidades extrínsecas, nomeia e renomeia, para aquele alto cargo, não um guardião do interesse público, mas um indisfarçável defensor do governo, quando não dele próprio, Presidente. E o Senado - fato inédito nos anais de nossa história republicana - decide abrir mão de seu poder de controle constitucional sobre o ato de nomeação, para se transformar em lobby do candidato oficial.

Perante essa situação de completa ruína das instituições republicanas, pondo ao desamparo todo o sistema de direitos fundamentais arquitetado na Constituição, parece óbvia a urgente necessidade de se elaborar um programa de regeneração institucional, com base nos veneráveis modelos que nos legaram a Atenas democrática e a Roma republicana. Para lutar com êxito contra o abuso de poder, é indispensável combinar as instituições da democracia participativa com o mecanismo da separação de poderes.

A instituição de um regime de efetivo governo do povo pelo povo compreende, antes de mais nada, a necessária participação popular na ela-boração e reforma da Constituição, bem como a colaboração do povo, quando convocado, no desempenho da tarefa legislativa. Ela compreende, também, como é óbvio, a indispensável decisão popular para a aprovação de tratados internacionais, ou de políticas públicas, que determinem o futuro da nação. Ela deve se estender, da mesma forma, ao processo de votação dos orçamentos, por meio da aprovação popular das leis de diretrizes orça-mentárias.

Não só isso, na verdade. Se os governantes, a começar pelos princi-pais deles - os chefes do Executivo - devem ser sempre tidos como manda-tários ou delegados do povo soberano, nada mais lógico do que permitir a revogação popular de seus mandatos - o recall -, por iniciativa de uma minoria qualificada de parlamentares, ou do próprio povo.

Já no tocante ao equilíbrio autônomo dos poderes estatais, a futura Constituição republicana deverá incorporar, explicitamente, várias regras específicas, de modo a evitar que esse princípio fundamental não degenere em mero enunciado decorativo.

Assim é que a autonomia de funcionamento do Congresso Nacional seria singularmente favorecida por uma disposição muito simples: somente as bancadas partidárias teriam competência para oferecer emendas ao projeto de lei orçamentária, e tais só poderiam contemplar rubricas globais do orçamento.

No que tange à autonomia do Judiciário e do Ministério Público, a renovação institucional deve ser ampla e profunda.

Importa, em primeiro lugar, eliminar o poder dos chefes de Executi-vo para nomear os integrantes desses órgãos. Se, na lógica do regime presi-dencial de governo, não pode haver interferência do Legislativo na compo-sição do Executivo, e vice-versa, com que fundamento a composição do Judiciário e do Ministério Público - tal como nas monarquias do ancien régime - há de depender de uma decisão do chefe de governo?

É preciso ir além, todavia. Cabe dar ao Judiciário e ao Ministério Pú-blico uma organização coesa, a fim de que eles possam realmente atuar, unitariamente, como poderes estatais, autônomos e independentes. Tal co-mo presentemente organizados, eles não dispõem de condições estruturais de manifestação de uma vontade coletiva, contraposta à dos demais órgãos do Estado.

O Executivo atua unitariamente, com base no critério hierárquico. O Legislativo manifesta a sua vontade, a partir de decisões coletivas. Não assim com o Judiciário e o Ministério Público, cujo funcionamento não obe-dece a nenhum desses critérios. A independência funcional dos magistrados e membros do Ministério Público impede que entre eles exista, mesmo de uma instância para outra, uma relação, mínima que seja, de hierarquia. Em sua atuação funcional, ninguém, nesses órgãos, pode dar ou receber ordens. Por outro lado, nenhum deles é estruturado, globalmente, para tomar decisões coletivas, que manifestem uma vontade comum. Com isto, tanto o Judiciário, quanto o Ministério Público vêem-se singularmente enfraquecidos, em seu relacionamento com os demais poderes do Estado. Não se entende, assim, por que razão a proposta de lei complementar sobre o estatuto da magistratura, ou sobre o estatuto do Ministério Público, deva ser da iniciativa exclusiva, respectivamente, do Supremo Tribunal Fe-deral e dos Procuradores-Gerais, na União e nos Estados (arts. 93 e 128, § 5º da Constituição), sem refletir a opinião comum entre todos os magistrados. Tampouco se entende por que razão a propostas mencionadas no art. 96 - II devam competir ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Su-periores e aos Tribunais de Justiça nos Estados (art. 96 - II). Essas disposi-ções constitucionais acentuam a fratura interna do Judiciário e do Ministério Público, tornando-os órgãos menos aptos à vigorosa defesa de sua independência, como garantia institucional dos direitos humanos.

Também não se compreende como as emendas constitucionais, ou as leis - sem falar na aberração das medidas provisórias -, que alterem a ju-risdição e a competência de juízes e tribunais, possam ser aprovadas sem a concordância do Poder Judiciário respectivo, como um todo, nele englobados juízes e tribunais.

Como se vê, a solução para os nossos males crônicos não está na mudança, pura e simples, de governos. Ela exige muito mais. O dever pú-blico que nos cabe, neste momento crucial de nossa história, no qual se decide, efetivamente, o futuro do Brasil como nação independente, é a re-constitucionalização substancial do país, com o objetivo de substituir a regime oligárquico e o sistema capitalista, pela democracia radical e a economia humanista, no respeito integral da dignidade do povo brasileiro.

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