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              FUNDAMENTO DOS
              DIREITOS HUMANOS
              Fábio
              Konder Comparato**  
              
               
              Na
              “era dos extremos” deste curto século XX, o tema dos direitos
              humanos afirmou-se em todo o mundo sob a marca de profundas
              contradições. De um lado, logrou-se cumprir a promessa,
              anunciada pelos revolucionários franceses de 1789, de
              universalização da idéia do ser humano como sujeito de direitos
              anteriores e superiores a toda organização estatal. De outro
              lado, porém, a humanidade sofreu, com o surgimento dos Estados
              totalitários, de inspiração leiga ou religiosa, o mais formidável
              empreendimento de supressão planejada e sistemática dos direitos
              do homem, de toda a evolução histórica. De um lado, o Estado do
              Bem-Estar Social do segundo pós-guerra pareceu concretizar,
              definitivamente, o ideal socialista de uma igualdade básica de
              contradições de vida para todos os homens. De outro lado, no
              entanto, a vaga neoliberal deste fim de século demonstrou quão
              preccário é o princípio da solidariedade social, base dos
              chamados direitos humanos da Segunda geração, diante do
              ressurgimento universal dos ideais individualistas. 
              Tudo
              isso está a indicar a importância de se retomar, no momento histórico
              atual, a reflexão sobre o fundamento ou razão de ser dos
              direitos humanos. 
              
               
              1. A noção
              filosófica de fundamento e sua importância em matéria de
              direitos humanos. 
              Na
              linguagem filosófica clássica, não se falava em fundamento
              e sim em princípio.
              Em conhecida passagem de sua Metafísica,
              Aristóteles, exercitando o gênio analítico e classificatório
              que o celebrou, atribui a “arquê”
              várias acepções. Em primeiro lugar, o sentido de começo de uma
              linha ou de uma estrada, ou então, do ponto de partida de um
              movimento físico ou intelectual (o3 ponto de partida de uma ciência,
              por exemplo). É também considerado princípio, segundo Aristóteles,
              o elemento primeiro e imanente do futuro, ou de 
              algo que evolui ou se desenvolve (as fundações de uma
              casa, o coração ou a cabeça dos animais). O filósofo lembra,
              igualmente, que se fala de princípio para designar a causa
              primitiva e não imanente dca geração, ou de uma ação (os pais
              em relação aos filhos, o insulto em relação ao combate).
              Assinala, ainda, que a palavra pode ser usada para indicar a
              pessoa, cuja vontade racional é causa de movimento ou de
              transformação, como, por exemplo, os governantes no Estado, ou o
              regime político de modo geral. Ademais, considerou princípio,
              numa demonstração lógica, as premissas em relação à conclusão.
              Arrematando, unificou todas essas acepções da palavra afirmando
              que princípio é sempre “a fonte de onde derivam o ser, a geração,
              ou o conhecimento”; ou seja, a condição primeira da existência
              de algo. 
              Como
              se vê, a noção de arquê, no pensamento aristotélico, pouco
              tinha a ver com a ética. É a partir de K8ant que ela co3meça a
              ser empregada também nesse campo, sob a acepção de razão
              justificativa de nossas ações. 
              O
              desenvolvimento da noção de princípio para fundamento, no
              pensamento kantiano tem origem num raciocínio tipicamente jurídico,
              apresentado na Crítica e
              Razão Pura, em torno da noção de dedução transcendental (tranzendent
              Deduktion). Lembra Kant que os juristas, quando tratam de autorizações
              ou pretensões de agir, distinguem, em cada caso, entre a questão
              jurídica (quid iuris) e a questão de fato (quid facti),
              denominando a demonstração da quaestio iuris uma dedução.
              Assim, enquanto em questões de fato o profissional do direito
              procura provas, em matéria de direito ele cuida de cencontrar e
              demonstrar as razões justificativas, que formam a legitimidade (Rechtsmässigkeit)
              da conclusão. 
              Em
              sua introdução geral3 à filosofia ética, significativamente
              denominada Fundamentos para uma Metafísica dos Costumes, a dedução
              transcendental no campo ético tinha claramente a acepção de razão
              justificativa, e visa a encontrar, em última instância, o
              “supremo princípio da moralidade” (das oberrste Prinzip der
              Moralität), o qual não é outro senão o que Kant denominou imperativo
              categórico, isto é, uma “lei prática incondicional” ou
              absoluta, que serve de fundamento último para todas as ações
              humanas. 
              Ora,
              enquanto a “dedução transcendental”, no campo da razão
              sensitiva pura, diz respeito à possibilidade de um conhecimento a
              priori de objetos, em matéria de razão prática ela visa a
              encontrar a justificativa (Rechtfertigung) da validade objetiva e
              geral de um fundamento determinante (Bestimmungsgrund) da vontade,
              ou, em outras palavras, uma razão justificativa para a lei moral,
              semelhante a causalidade do campo da natureza. Esse fundamento último
              da moralidade só pode ser a liberdade. 
              Ao
              concluir sua reconstrução da filosofia ética, com A Religião
              nos Limites da Simples Razão, a noção de princípio ético, no
              sentido de razão justificativa, foi inteiramente substituída
              cpela de fundamento (Grund). Interrogando-se, assim, sobre a
              bondade ou a maldade da natureza humana, Kant afirma que a
              resposta a essa indagação só pode ser encontrada num
              “primeiro fundamento” da aceitação pelo homem do bem ou do
              mal, sob a forma de máximas (subjetivas) de comportamento. Esse
              primeiro fundamento, não podendo ser um fato apreciável pela
              experiência, deve ser tido como inato, no sentido de ser posto
              como algo que antecede a todo o uso da liberdade. 
              Temos,
              pois, que enquanto em Aristóteles princípio ou fundamento
              significa essencialmente a fonte ou origem de algo, na filosofia
              ética de Kant passa a significar razão justificativa. 
              Pois
              bem, se analisarmos, ainda que superficialmente, o direito
              positivo brasileiro, verificaremos que o termo fundamento é
              empregado sempre com o sentido nuclear de razão justificativa ou
              de fonte legitimadora. 
              A
              Constituição Federal de 1988, por exemplo, abre-se com a declaração
              de que “a República Federativa do Brasil, (...), tem como
              fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a
              dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho
              e da livre iniciativa; V – o pluralismo político” (art. 1º).
              Indicam-se nessa norma, indubitavelmente, as fontes legitimadoras
              de nossa organização política, isto é, a razão de ser de toda
              a organização estatal. Essas razões justificativasc da República
              brasileira são explicitadas, no art. 3º, sob a forma de
              “objetivos fundamentais”: “I – construir uma sociedade
              livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento
              nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e
              reduzir 3as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o
              bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade
              e quaisquer outras formas de discriminação”. 
              Já
              no campo da teoria gera2l do direito, a noção de fundamento diz
              respeito à validade dos normas jurídicas e à fonte da irradiação
              dos efeitos delas decorrentes. Em outras palavras: - Por que a
              norma vale e deve ser cumprida? 
              É
              unanimemente aceita, hoje, a idéia de que o ordenamento jurídico
              interno fora um sistema hierarquizado de normas, tendo por
              fundamento a Constituição, a qual se funda, por sua vez, na
              chamado poder constituinte. 
              Mas,
              levando a indagação até o fim, qual o fundamento último do
              poder constituinte? Ainda estaremos, aí, no campo do direito? 
              Não
              parece haver dúvida de3 que o poder constituinte encontra seu
              fundamento último, ou num fato – isto é, a força dominadora
              de um indivíduo, de uma família, de um estamento, de um partido
              político, ou de uma classe social -, ou então num princípio ético,
       c       isto é, numa razão justificativa de conduta, que transcende a
              autoridade dos constituintes. Ora, como bem observaram os
              pensadores políticos, a organização social baseada
              exclusivamente na força não tem condições de subsistir, pois
              carece de uma justificativa ética, que tranquilize a consciência
              social. Na frase lapidar de Rousseau, “o forte não é nunca
              bastante forte para ser sempre o senhor, se não faz da sua força
              um direito e da obediência um dever”. Resta, portant3o, o princípio
              ético. 
              Até
              a Idade Moderna, a justificativa ética que servia de fundamento
              ao direito vigente apresentava-se sempre como transcendente: a
              divindade, segundo uns, ou a natureza, entendida como princípio
              fundamental de todos os seres, segundo outros. 
              Na
              filosofia grega clássica, a grande explicação teista do homem e
              do mundo se encontra na última fase do pensamento de Platão. 
              No
              diálogo As Leis (715 b
              – 716 b), por exemplo, figurou ele o momento decisivo da fundação
              da nova cidade pelo diálogo seguinte: 
              “O
              ESTRANGEIRO ATENIENSE: Depois disso, que diremos então? Não
              devemos supor nossos colonos reunindo-se em nossa presença? E não
              seria o caso de eles prosseguirem nesse propósito até o fim? 
            c  CLÍNIAS:
              Por que não, com efeito? 
              ATEN:
              ‘Cidadãos’ (eis o que deveríamos dizer-lhes), ‘a
              Divindade, que, segundo antiga tradição, tem em suas mãos o
              começo, o meio e o fim de tudo o que existe, realiza, pela via
              reta da natureza, a completa revolução. Ela é sempre seguida de
              perto pela Justiça, que vinga a lei divina ao castigar os que
              dela se separam: a Justiça, cujos passos segue humildemente,
              ajuizadamente, aquele que quer levar uma vida feliz, enquanto o
              outro, exaltado pelo orgulho, excitado pelas riquezas ou pelas
              honrarias, ou ainda pela beleza de suas formas ao mesmo tempo que
              pela inexperiência de sua juventude e pelo desatino, inflama sua
              alma com o fogo da desmedida (hubris), convencido de que não
              precisa de um chefe, de um guia, e que ele possui tudo o que é
              necessário para conduzir seus semelhantes; um homem desses é
              abandonado pela Divindade, ele fica só consigo mesmo. Mas, nesse
              abandono, ele convoca outros homens, ele avança insensatamente,
              semeia em todo lugar a desordem e a confusão, e, enquanto muitos
              imaginam e ele é alguém importante, ao cabo no entanto de um
              tempo não muito longo ele sofre, sob a força do braço vingador
              da Justiça, uma pena irrecorrivel: ele se arruina completamente
              e, juntamente com ele, sua própria casa e a Cidade a que
              pertence. Ora, diante de uma situação dessas, que deve, ou não,
              fazer ou pensar o homem sábio? 
              “CLIN.:
              Ao menos isto fica claro: é que todo homem deve se dizer em
              pensamento que lhe cerrará fileiras com aqueles que cortejam a
              Divindade!”. 
              Sem
              dúvida, o grande exemplo clássico de justificação ética da
              conduta humana, sem o recurso à divindade, encon3tra-se na
              filosofia estóica. A moral dos estóicos, que muito influenciou
              os juristas roman3os, tinha como princípio supremo, “viver
              segundo a natureza” (Zenão). Na Idade Médi2a, o colossal esforço
              tomista de conciliação da razão humana com a revelação
              divina, da sabedoria clássica com a iluminação cristã, deu à
              lei natural uma posição eminente. Ela seria “a participação
              da lei eterna pela criatura racional” (patet quod lex naturalis
              nihil aliud est quam participatio legis aeternae in rationali
              creatura). 
              A
              Idade Moderna, que irrompe no campo ético-religioso com a
              “crise da consciência européia” do séc. XVII, assistiu ao
              esfacelamento dos fundamentos divinos da ética, na cultura
              ocidental, de formação judaico-cristã. É certo que a atual
              ascensão das tendências fndamentalistas representa uma reação
              importante contra o laicismo moral. Mas, ao mesmo tempo, a criação
              de uma rede universal de informações, graças ao progresso das
              telecomunicações, ao oferecer o espetáculo de uma
              impressionante variedade de costumes, crenças e religiões, torna
              difícil a aceitação de uma única revelação divina como
              fundamento absoluto da ética. 
         c     Seja
              como for, já no séc. XVII, sem dúvida como reação ao escândalo
              das guerras de religião (católicos v. protestantes), iniciou-se
              na Europa Ocidental a pesquisa de um fundamento exclusivamente
              terreno para a validade do direito,. Essa pesquisa orientou-se em
              dois sentidos: de um lado, a ressurreição da moral naturalista
              estóica e a construção do chamado jusnaturalismo (as leis
              positivas, em todos os países, têm a sua validade fundada no
              direito natural, sempre igual a si mesmo); de outro lado, o
              antinaturalismo ou voluntarismo de Hobbes, Locke e Rousseau,
              segundo o qual a sociedade política funda-se na necessidade de
              proteção do homem contra os riscos de uma vida segundo o
              “estado da natureza”, onde prevalece a insegurança máxima. 
              Esse
              antinaturalismo é a matriz do positivismo jurídico, que se
              tornou concepção predominante a partir do séc. XIX. Segundo a
              teoria positivista, o fundamento do direito não é transcendental
              ao homem e à sociedade, mas se encontra no pressuposto lógico )
              o “contrato social”, ou a norma fundamental) de que as leis são
              válidas e devem ser obedecidas, quando forem editadas segundo um
              processo regular (isto é, organizado por regras aceitas pela
              comunidade) e 3pela autoridade competente, legitimada de acordo
              com princípios também anteriormente estabelecidos e aceitos. É
              a explicação formal da validade do direito. 
              A
           c   grande falha teórica do positivismo, porém, como as experiências
              totalitárias do século XX cruamente demonstraram, é a sua
              incapacidade (ou formal recusa) em encontrar um fundamento ou razão
              justificativa para o direito, sem recair em mera tautologia. O
              fundamento ou princípio de algo existe sempre fora dele, com sua
              causa transcendente, não podendo pois nunca, sob aspecto lógico
              e ontológico, ser confundido com um de seus elementos
              componentes? Assim, o fundamento do poder constituinte, ou a
              legitimidade da criação de um novo Estado, sobretudo após uma
              revolução vitoriosa, não se encontram em si mesmos, mas numa
              causa que os transcende. Analogicamente, na ausência de uma razão
              justificativa exterior e superior ao sistema jurídico, um regime
              de terror, imposto por autoridades estatais investidas segundo as
              regras constitucionais vigentes, e que exercem seus poderes dentro
              da esfera formal de sua competência, não encontra outra razão
              justificativa ética senão a sua própria subsistência. 
              Ora,
              é justamente aí que se põe, de forma aguda, a questão do
              fundamento dos direitos humanos, pois a sua validade deve
              assentar-se em algo mais profundo e permanente que a ordenação
              estata3l, ainda que esta se baseie numa Constituição quanto mais
              louco ou acelerado o Estado. 
              Tudo
              isso significa, a rigor, que a afirmação de autênticos direitos
              humanos é incompatível com a concepção positivista do direito.
              O positivismo contenta-se com a validade formacl das normas jurídicas,
              quando todo o problema situa-se numa esfera mais profunda,
              correspondente ao valor ético
              do direito. 
              Em
              conferência pronunciada em 1967, por ocasião de um congresso
              sobre o fundamento dos direitos humanos, Norberto Bobbio sustenta que toda pesquisa sobre um fundamento
              absoluto dos direitos humanos é, enquanto tal, infundada. Para
              corroborar essa opinião, apresenta três argumentos principais:
              em primeiro lugar, a expressão “direitos humanos” é muito
              vaga e mesmo indefinível; em segundo lugar, trata-se de uma
              categoria variável conforme as épocas históricas, ademais, além
              de indefinível e variável, os direitos humanos formam uma
              categoria heterogênea. 
              A
              argumentação é, em seu conjunto, muito fraca e não honra a
              celebrada argúcia lógica do seu autor. 
              Sem
              dúvida, a ciência jurídica ainda não logrou encontrar uma
              definição rigorosa do conceito de direito humano. Mas porventura
              já se chegou a apresentar uma definição precisa e indisputável
              do que seja direito? Para Bobbio,
              não se pode fundar os direitos humanos nos valores supremos da
              convivência humana, porque tais valores não se justificam,
              assumem-se. Ora, a razão justificativa última dos valores
              supremos encontram-se no ser que cocnstitui, em si mesmo, o
              fundamento de todos os valores: próprio homem. 
              Dizer
              que não se pode dar fundamento absoluto a direitos historicamente
              relativos é laborar em sofisma. O próprio autor reconhece que há
              direitos que valem “em qualquer situação e para todos os
              homens indistintamente: são os direitos que se exige não sejam
              limitados nem na ocorrência de casos excepcionais nem com relação
              a esta ou aquela categoria, ainda que restrita, de pertencentes ao
              gênero humano, como, por exemplo, o direito de não ser
              escravizado e de não ser torturado”. Estes são, portanto,
              direitos absolutos. E de qualquer maneira, se a identificação
              dos diferentes direitos humanos varia na História, a sua
              reflexibilidade em c3onjunto ao homem todo e a todos os homens tem
              sido incontestavelmente invariável. Na verdade, todos os
              direitos, e não apenas os fundamentais, são historicamente
              relativos porque a sua fonte primária – a pessoa humana – é
              um ser essencialmente histórico, como se dirá mais abaixo. 
              Por
              último, nenhuma surpresa pode suscitar o fato de que a categoria
              geral dos direitos humanos compreende direitos específicos de
              diversa natureza. Porventura a categoria geral dos direitos
              subjetivos não é reconhecidamente heterogênea? Por causa disso,
              haveremos de negar a existência de direitos subjetivos, ou
              rejeitar como logicamente imprestável esse conceito? 
              
               
              2.
              A dignidade do homem como fundamento dos direitos humanos.
              
               
              Uma
              das tendências marcantes do pensamento moderno é a convicção
              generalizada de que o verdadeiro fundamento de validade – do
              direito em geral e dos direitos humanos em particular – já não
              se deve ser procurado na esfera sobrenatural da revelação
              religiosa, nem tampouco numa abstração metafísica – a
              natureza – como essência imutável de todos os entes no mundo.
              Se o direito é uma criação humana, o seu valor deriva,
              juntamente, daquele que o criou. O que significa que esse
              fundamento não é outro, senão o próprio homem, considerado em
              sua dignidade substancial de pessoa, diante da qual as especificações
              individuais e grupais são sempre secundárias. 
              Os
              grandes textos normativos, posteriores à 2ª Guerra Mundial,
              consagram essa idéia. A Declaração Universal dos Direitos do
              Homem, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em
              1948, abre-se com a afirmação de que “todos os seres humanos
              nascem livres e iguais, em dignidad3e e direitos” (art. 1º). A
              Constituição da República Italiana, de 27 de dezembro de 1947,
              declara que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social”
              (art. 3º). A Constituição da República Federal Alemã, de
              1949, proclama solenemente em seu art. 1º: “A dignida3de do
              homem é inviolável. Respeitá-la e cprotegê-la é dever de todos
              os Poderes do Estado”. Analogamente, a Constituição Portuguesa
              de 1976 abre-se com a proclamação de que “Portugal é uma República
              soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade
              popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa
              e solidária”. Para a Constituição Espanhola de 1978, “a
              dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são
              inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito à
              lei e aos direitos alheios são o fundamento da ordem política e
              da paz social” (art. 10). A nossa Constituição de 1988 por sua
              vez, põe como um dos fundamentos da República “a dignidade da
              pessoa humana” (art. 1º - III). Na verdade, este deveria ser
              apresentado como o fundamento do Estado brasileiro e não apenas
              como um dos seus fundamentos. 
              Dignus,
              na língua latina, é adjetivo ligado ao verbo defectivo decet (é
              conveniente, é apropriado) e ao substantivo decor (decência,
              decoro). No sentido qualificativo do que é conveniente ou
              apropriado, foi usado tanto para louvar quanto para depreciar:
              dignus laude, dignus suplicio. O substantivo dignitas, ao contrário,
              tinha sempre conotação positiva: significava mérito e indicava
              também cargo honorífico no Estado. 
              Mas
              em que consiste, ao certo, a dignidade humana? 
              Para
              responder a essa pergunta é preciso tomar posição sobrce a essência
              do ser humano. A teoria fundamental dos direitos do homem
              funda-se, necessariamente, numa antropologia filosófica, ela própria
              desenvolvida a partir da crítica aos conhecimentos científicos
              acumulados em torno de três pólos epistemológicos fundamentais:
              o pólo das formas simbólicas, no campo das ciências da cultura;
              o do sujeito, no campo das ciências do indivíduo e da ética; e
              o da natureza, no campo das ciências biológicas. 
              A
              respeito da dignidade humana, o pensamento ocidental é herdeiro
              de duas tradições parcialmente antagônicas: a judaica e a
              grega. 
              A
              grande (e única) invenção do povo da Bíblia, uma das maiores,
              aliás, de toda a história humana, foi a idéia da criação do
              mundo por Deus único e transcendente. Os deuses antigos, de certa
              forma, faziam parte do mundo, como super-homens. Iahweh, muito ao
              contrário, como criador de tudo o que existe, é anterior e
              superior ao mundo. Diane dele, os dias do homem, como disse o
              salmista, “são como a relva: ele floresce como a flor do campo;
              roça-lhe um vento e já desaparece, e ninguém mais reconhece o
              seu lugar” (Salmo 103). Em resposta aos queixumes de Jó, que
              procurava julgar os atos divinos segundo os critérios da justiça
              humana, Iahweh interpela, implacável e soberbo: “Onde estavas,
              quando lancei os fundamentos da terra? Quem lhe fixou as dimensões?
              – se o sabes -, ou quem estendeu sobre ela a régua? Onde se
              encaixam suas bases, ou quem assentou sua pedra angular, centre as3
              aclamações dos astros da manhã e o aplauso de todos os filhos
              de Deus? (...) Entraste pelas fontes do mar, ou passeaste pelo
              fundo do abismo? Foram-te indicadas as portas da Morte, ou viste
              os porteiros da terra da Sobra? Examinaste a extensão da terra?
              Conta-me, se sabes tudo isso” (38, 4-18). 
              A
              idéia de uma certa participação do homem na essência divina
              – e que relativisa porisso mesmo a transcendência de De3us –
              tal como se pode ver o relato da criação do mundo que se
              encontra no chamado Documento Sacerdotal do Gênese (1, 26:
              “Deus disse: _ Façamos o homem à nossa imagem, como nossa
              semelhança”) – parece o resultado da influência dos mitos
              mesopotâmicos, durante os anos de exílio do povo eleito em Babilônia. 
              Na
              tradição grega, diferentemente, o homem tem uma dignidade própria
              e independente, acima de todas as criaturas. Sófocles expressou
              com emoção essa idéia, na declamação do Coro, em Antígona
              (332 e segs.): 
              “Há
              muitas maravilhas no mundo, mas a maior é o homem. 
              Ele
              é o ser que, sabendo atravessar o mar cinzento na hora em que
              sopram o vento do sul e suas tempestades, segue seu caminho por
              sobre os abismos 
              que
              lhe abrem as ondas levantadas. Ele é co ser que trabalha a deusa
              augusta entre todas,a Terra. 
              A
              terra eterna e incansável, com suas charruas que a sulcam ano a
              ano sem cessar; e a lavra pelas crias de suas éguas. 
              Os
              pássaros aturdidos são apreendidos e capturados, assim como a caça
              dos campos e os peixes que povoam os mares, nas malhas de
              suasredes,pelo homem de espírito engenhoso. Graças às suas
              habilidades, assenhoreia-sedo animal selvagem que percorre as
              serranias, e no momento azado subjuga tanto o cavalo de crina
              espessa quanto o infatigável touro das montanhas. 
              Palavra,
              pensamento rápido como o vento, aspirações donde nascem as
              cidades, tudo isto ele aprendeu sozinho, assim como soube, ao
              construir um abrigo,evitar os ataques do gelo e da chuva, cruéis
              para quem não possui outro teto senão o céu. 
              Prevenido
              contra tudo, não se acha desarmado contra nada que lhe possa
              reservar o futuro. Contra a morte, apenas, não poderá escapar
              por nenhum sortilégio, ainda que já tenha sabido, contra as doenças
              mais renitentes, encontrar vários remédios. 
              Mas,
              ao se tornar assim senhor de um saber cujos engenhosos recursos
              ultrapassam toda esperança, ele pode em seguida tomar o caminho
              do mal como o do bem. 
     c         Que
              ele inclua pois, nesse saber, as leis do seu Estado e a justiça
              dos deuses, à qual jurou fidelidade! 
              Ascenderá
              então às mais elevadas posições em seu Estado, ao passo que
              dele pode ser banido no dia em que deixar o crime contaminá-lo
              por bravata”. 
              Sófocles
              realçou, no entanto, aí apenas a poiesis, isto é, a aptidão a fazer ou fabricar, do ser humano,
              segundo o valor da utilidade. Deixou de lado outras propriedades
              únicas do homem, como por exemplo a sua inesgotável capacidade
              de criação artística, sob a inspiração do belo. De qualquer
              modo, o elogio do homem já é feito aí diretamente,
              dispensando-se a intermediação do mito do Dom prometeano, como
              se vê em seu antecessor Ésquilo. A reivindicação de autonomia
              em relação à divindade já não precisa de intermediários no
              Olimpo. 
              É
              interessante, no entanto, observar que em Ésquilo o elogio
              indireto à humanidade, na pessoa do titã Prometeu, e mais
              completo que em Sófocles: 
              “Ouça
              agora as misérias dos mortais e perceba como, de crianças que
              eram, eu os fiz seres de razão, dotados de pensamento. Quero dizê-lo
              aqui, não para denegrir os homens, mas para lhe mostrar minha
           c   bondade para com eles. No início eles enxergavam sem ver, ouviam
              sem compreender, e, semelhantes às formas oníricas, viviam sua
              longa existência na desordem e na confusão. Eles desconheciam as
              casas de tijolo ensolaradas, ignoravam os trabalhos de
              carpintaria; viviam debaixo da terra, como ágeis formigas, no
              fundo de grotas sem sol. Para eles, não havia sinais seguros nem
              de inverno nem de primavera florida nem de verão fértil; faziam
              tudo sem recorrer à razão, é o momento em que eu lhes ensinei a
              árdua ciênc3ia do nascente e do poente dos astros. Depois, foi a
              vez da ciência dos números, a primeira de todas, que inventei
              para eles, assim como a das letras combinadas, memória de todas
              as coisas, labor que engendra as artes. Fui assim o primeiro a
              subjugar os animais, submetendo-os aos arreios ou a uma cavaleiro,
              de modo a substituir os homens nos grandes trabalhos agrícolas, e
              conduzi às carruagens os cavalos dóceis às rédeas, com que se
              ornamenta o fasto opulento. Fui o único a inventar os veículos
              com asas de tecido, os quais permitem aos marinheiros correr os
              mares”. 
              Ao
              se formular a indagação central de toda a filosofia – que é o
              homem? – já se está postulando a singularidade eminente deste
              ser, capaz de tomar a si mesmo como objeto da própria reflexão.
              A característica da racionalidade, que a tradição ocidental
              sempre considerou como atributo essencial do homem, deve ser
              entendida sobretudo nesse sentido reflexivo, a partir do qual, de
              resto, Descartes deu início a toda a filosofia moderna. 
              É
              claro que a racionalidade propriamente humana reside na capacidade
              de inventar e não pode ser reduzida ao simples comportamento
              intuitivo e mimético dos animais. Os pássaros constróem seus
              ninhos, desde a primeira fase de sua evolução como espécie, com
              uma técnica basicamente sempre igual a si mesma. Na espécie
              humana, ao contrário, não há técnicas imutáveis nem tampouco
              limitadas em numerus
              clausus: a evolução é constantemente dirigida pela aptidão
              inventiva do ser humano, que põe livremente os fins e inventa os
              meios mais puros a abraça-los. o chimpanzé serve-se
              habitualmente de seixos como instrumento ou ferramenta; mas nunca
              viu esse primata fabricar um instrumento por ele especialmente
              inventado, a fim de conseguir certo resultado, na vida pacífica
              ou em combate com outros animais. 
              Mas,
              sobretudo, a capacidade inventiva do homem acabou por levá-lo a
              intervir em seu próprio processo genérico, transformando-o em
              deux ex machina de si mesmo. A descoberta do chamado código genético,
              nos anos 50 do século XX, foi o ponto de partida para a mais
              radical revolução técnica de todos os tempos: a era da
              bio-engenharia. Com isto, Prometeu realizou o seu último 9e mais
              audacioso desafio ao Olimpo: entregou ao homem o domínio sobre o
              processo criador da própria vida. 
              Importa,
              aliás, ressaltar que a razão humana está essenccialmente ligada
              à sua capacidade expressional. O logos do homem é sempre uma
              expressão de racionalidade. Como o é, também, de emotividade ou
              sensibilidade. 
              É
              que a razão humana não se limita, apenas, à racionalidade lógica
              ou geométrica, por mais extraordinário que ela apareça quando
              comparamos o homem com os primatas. Foi dito, mais acima, que o
              ser humano tem a faculdade de escolher livremente os seus próprios
              fins, ou os objetivos a alcançar pela sua atividade. Ora, isso só
              se realiza em virtude de outra característica essencial do homem,
              que é a razão axiológica, ou 
              capacidade de apreciação de valores – éticos, utilitários,
              estéticos, religiosos – e de livre escolha entre eles. 
              Foi
              justamente a partir do realce posto no mundo dos valores, que a idéia
              atual de racionalidade humana passou a se distinguir nitidamente
              do racionalismo triunfante do século das luzes. Os valores, com
              efeito, não são objeto de uma percepção lógica, mas emotiva.
              Por isso mesmo, já não é possível fundar a ética em princípios
              puramente formais, mas em preferências axiológicas muito
              concretas, ditadas também pela emoção e pelo sentimento. O
              homem não é apenas um ser que pensa e raciocina, mas que chora e
              ri, que é capaz de amor e ódio, de indignação e
              enternecimento. Aliando, como advertiu Pascal, o esprit de géometrie
              ao esprit de finesse, ele é tanto um animal affectivus, quanto um
              animal rationalec. O que mais nos diferencia dos outros animais,
              como chegou a sugerir provocativamente Unamuno, é o sentimento e
              não a racionalidade. Ou então, como disse Chesterton em paradoxo
              famoso, “louco não é o homem que perdeu a razão; louco é o
              homem que perdeu tudo, menos a razão”. 
              Para
              os racionalistas, não há negar, a animalidade do homem sempre
              foi uma fonte de escândalo; de onde a sua preocupação em
              separar, cuidadosamente, o universo ético de todo contato impuro
              com o mundo material. Descartes levantou seu edifício filosófico
              sobre a separação radical entre a res cogitans e a res extensa.
              A inteligência, como enfatizou Kant na conclusão da Crítica da
              Razão Prática, é o valor próprio do homem, um ser em que a lei
              moral manifesta uma vida independente da animalidade e mesmo de
              todo mundo físico. Segundo ele, a ética deve proceder como a química,
              separando, no julgamento moral, os elementos racionais dosa
              elementos empíricos aos quais porventura estejam ligados, a fim
              de torná-los essencialmente puros. 
              A
              concepção dualista do homem, como ser composto de alma em estado
              de perpétua tensão, resulta da confluência, no pensamento
              ocidental, da filosofia grega clássica e do judaismo. 
              Na
              Grécia clássica, a dissociação do ser humano no antagonismo
              entre alma e corpo atingiu o seu ápice, como sabido, em Platão,
              e a partir dele confluiu com a vecrtente religiosa do cristianismo
              nascente, através dos primeiros Doutores da Igreja, notadamente
              Santo Agostinho. A crítica contemporânea, porém, parece
              temperar a compreensão tradicionalmente radical do platonismo,
              neste particular. 
              Já
              quanto ao dualismo da concepção do homem, no pensamento judaico,
              ele manifesta-se tardiamente, sem dúvida por influência do
              zoroastrismo. No cristianismo primitivo, a concepção dualista do
              homem foi muito evidente entre gnósticos e maniqueus. No
              maniqueismo, sobretudo, a oposição metafísica entre o bem e o
              mal traduziu-se na idéia de perpétua tensão conflitiva entre
              corpo e alma, matéria e espírito; sendo o corpo, evidentemente,
              a fonte de todo o mal. O apóstolo Paulo, na Epístola aos Romanos
              (7, 14-25), acentuou o dualismo agônico entre carne e espírito,
              como figuração simbólica da oposição entre a lei mosaica e a
              graça divina difundida através de Jesus Cristo. Da mesma forma,
              no Evangelho de João, sublinha-se a separação entre o mundo da
              carne, considerado o reino do Maligno, e a vida do Espírito, para
              a qual o discípulo deve renascer (3, 5-6; 15, 18-27). 
              Esse
              inveterado repúdio à nossa condição animal, porém, acabou
              indo longe demais e suscitou a inevitável reação dos modernos,
              a culminar com o furor da crítica nietzscheana. Quão estranha é,
              realmente esse animal, capaz de inverter a “má consciência”
              e de introduzir no mundo a maior e mais inquietante de todas as
              moléstias: a doença emc relação a si mesmo! 
              A
              diatribe de Nietzsche prenunciou uma mudança sensível na
              antropologia filosófica contemporânea, com o amplo
              reconhecimento de que a condição corporal é parte integrante da
              subjetividade humana. Os últimos avanços da ciência, de resto,
              têm demonstrado a inconsistência de uma separação absoluta
              entre corpo e mente. Para a neurobiologia de nossos dias, o
              conjunto do organismo humano, e não apenas o cérebro, é a sede
              conjunta, assim do pensamento e da memória, como dos sentimentos
              e das emoções. 
              Ademais,
              é justamente em razão de nossa condição corporal que a morte
              está sempre presente, como condição iminente da existência, em
              contínua e suprema interrogação sobre o sentido da vida. 
              Na
              Bíblia, a morte se apresenta como a separação radical entre o
              homem e Deus, que é a fonte de toda vida (Salmo 36, 10). A vida
              é considerada como um efeito do espírito de Deus, e a morte
              sobrevém quando Deus retira seu espírito do homem (Jó 34, 14;
              Eclesiastes 12, 7). De onde o fato de que todo contato com o cadáver
              provoca a impureza litúrgica (Levítico 21, I e ss). 
              No
              mundo contemporâneo, não é por acaso que a reflexão sobre a
              morte situa-se no cerne da filosofia existencialista. Como
              observou Wilthey, seu grande precursor, “ca relação que
              caracteriza de modo mais profundo e geral o sentido de nosso ser
              é a da vida com a morte, porque a limitação da nossa existência
              através da morte é decisiva para a compreensão e a avaliação
              da vida”. 
              Aprofundando
              esse pensamento, Heidegger sublinhou o caráter existencialmente
              único da morte, para o homem. “Na medida em que a morte é, ela
              é essencialmente a minha morte”. “Ninguém pode assumir a
              morte de outrem”. Podemos morrer por causa, ou em lugar de uma
              pessoa; mas é impossível viver, por assim dizer, a morte de
              outrem”. D acordo com a sua idéia de que a essência do ser
              humano é um autêntico “poder-ser”, ou seja, a partir de sua
              concepção do homem como ente em estado de permanente
              inacabamento (ständige Unabgeschlosenheit), Heidegger enxerga na
              morte, justamente, um duplo acabamento, temporal e ontológico. O
              homem deixa de ser, quando cessa de existir temporalmente e,
              portanto, já não é mais um ente em estado de poder-ser. “A
              morte não é uma presença ainda não realizada, não é uma
              ultimidade reduzida ao mínimo (nicht der auf ein Minimum
              reduzierte letzte Ausstand), mas, antes, uma iminência
              (em Bevorstand). O homem é, pois, essencialmente um “ser para a
              morte” (Sein zum Tode). 
              Somos
              o único ser que sabe que vai morrer e que, almejando
              incansavelmente a imortalidade, não cessa de se dar explicações
              sobre esse seu destino inexorável. O horizonte da morte alimenta,
c
              sem descontinuar, o impulso religioso – outra característica
              essencial do ser humano! – como esperança de superação do
              absurdo existencial. Ésquilo registrou-o, em diálogo célebre: 
              “O
              CORIFEU – Foste, sem dúvida, ainda mais longe? 
              PROMETEU
              – Sim, livrei os homens da obsessão da morte. 
              O
              CORIFEU – Que Remédio descobriste para esse mal? 
              PROMETEU
              – Instalei neles cegas esperanças”. 
              Seja
              como for, a animalidade da natureza humana não nos pode fazer
              esquecer o fato, não menos evidente, de que o homem é um ser
              essencialmente moral, ou seja, que todo o seu comportamento
              consciente e racional é sempre sujeito a um juízo sobre o bem e
              o mal. E este é mais um elemento componente da dignidade humana,
              tomando-se agora a palavra no seu sentido ambíguo, tanto de
              louvor quanto de reprovação, por ela apresentado na língua
              latina, como assinalado acima. Nenhum outro ser, no mundo, pode
              ser apreciado em termos de dever ser, de bondade ou de maldade. Há
              mesmo, na história da antropologia filosófica, correntes de
              opinião que sustentam ora o caráter radicalmente mau, ora a índole
              essencialmente boa do ser humano. Assim é que, aos elogios antes
           c   citados do homem, nos grandes poetas trágicos gregos, podemos
              opor a visão pessimista de uma certa parte do cristianismo
              moderno. Para Kant, por exemplo, se o homem tem uma predisposição
              originária para o bem, ela se vê totalmente anulada pela sua
              natural inclinação para o mal. O filósofo não tem dúvida em
              sustentar que a natureza humana é radicalmente má. Somente
              mediante um constante esforço de auto-reforma, completado por uma
              merecida intervenção divina, pode o homem esperar restabelecer a
              sua originária predisposição ao bem. 
              De
              qualquer modo, para definir a especificidade ontológica do ser
              humano, sobre a qual fundar a sua dignidade no mundo, a
              antropologia filosófica hodierna vai aos poucos estabelecendo um
              largo consenso sobre algumas características próprias do homem,
              a saber, a liberdade como fonte da vida ética, a autoconsciência,
              a sociabilidade, a historicidade e a unicidade existencial do ser
              humano. 
              
               
              a
              - liberdade
              
               
              O
              homem é o único ser dotado de vontade, isto é, da capacidade de agir livremente, sem ser
              conduzido pela inelutabilidade dos instintos. 
              “Conheço
c              bem o homem, diz Deus, 
              Fui
              eu quem o fez. É um ser curioso. 
              Porque
              nele atua a liberdade, que é o mistério dos mistérios”. 
              É
              sobre o fundamento último da liberdade que se assenta todo o
              universo axiológico, isto é, o mundo das preferências valorativas, bem como toda a ética do modo geral, ou
              seja, o mundo das normas,
              as quais, contrariamente ao que sucede com as eis naturais,
              apresentam-se sempre como preceitos suscetíveis de consciente
              violação. É a liberdade que faz do homem um ser dotado de
              autonomia, vale dizer, de capacidade para ditar suas próprias
              normas de conduta. 
              A
              liberdade é a fonte da consciência moral, da faculdade de julgar
              as ações humanas segundo a polaridade entre bem e mal. Vem a
              propósito assinalar que no mito bíblico do paraíso terrestre (Gênesis
              3, 5) a verdadeira vida humana – na alegria e na dor, no amor e
              no ódio – só principiou no momento em que o primeiro casal
              provou do fruto proibido da árvore da ciência do bem e do mal. A
              partir de então, como disse o tentador, os homens passaram a ser
              “como deuses”, isto é, a viver em plano superior ao de todas
              as demais criaturas. 
              Sem
              dúvida, a liberdade de juízo ético opõe-se à idéia de que o
              comportamento humano seja determinado, necessariamente, por
              fatores genéticos ou hereditários. Ningué9m nasce criminoso ou
              santo. Mas a liberdade tampouco significa que a vontade opera com
              total independência, em relação a tendência ou disposições
              caracteriais. Não é sem importância lembrar, a esse respeito,
              que ethos significa
              justamente caráter ou temperamento, e que os antigos sempre
              distinguiram as pessoas segundo a sua disposição caracterial. 
              A
              verdade é que a natureza humana é sempre ambivalente, sob o
              aspecto ético. Sem precisar aceitar o velho maniqueismo da oposição
              moral entre alma e corpo, acima referido, não podemos deixar de
              reconhecer que nossa consciência ética é sempre trabal9hada por
              tendências antagônicas. Essa ambivalência ética essencial tem
              sido reconhecida pelos espíritos mais argutos, em todas as épocas.
              “O lugar do homem”, observou Plotino, “é entre os deuses e
              as feras; ele tende a se aproximar, ora daqueles, ora destas;
              alguns homens assemelham-se a deuses, outros a feras, mas a
              maioria mantêm-se no centro”. O tema, retomado por Montaigne em
              pleno Renascimento, foi tragicamente ilustrado nos romances de
              Dostoiewski e constitui, de certo modo, a base da teoria psicanalítica
              de Freud, no princípio do século XX. 
              
               
              b –
              autoconsciência
   c           Contrariamente
              aos outros animais, o homem não tem apenas memória de fatos
              exteriores, incorporada ao mecanismo de seus instintos, mas possui
              a consciência de sua própria subjetivida8de, no tempo e no espaço;
              sobretudo, consciência de ser vivente e mortal. A evolução
              vital e a acumulação da memória histórica não apagam nunca,
              em cada um de nós, a permanência consciente na identidade do
              ser. O homem é, portanto, essencialmente, um animal reflexivo,
              capaz de se enxergar como sujeito do mundo – o “eu e sua
              circunstância”, segundo a fórmula célebre de Ortega y Gasset. 
              A
              autoconsciência opõe-se ao estado de alienação, que é a
              negativa da especificidade humana, como enfatizou Feuerbach.
              Alienado diz-se do homem que é incapaz de exercer sua liberdade e
              que vive, portanto, em situação de permanente heteronomia. Marx
              aplicou tal conceito, como sabido, à sociedade de classes e à
              classe operária em particular. Entendeu que, a partir do momento
              em que a classe operária lograsse adquirir autoconsciência e
              superar dialeticamente seu estado de objetiva alienação, toda a
              sociedade seria enfim humanizada. 
              
               
              c - sociabilidade
              
               
              O
              caráter essencialmente sociável do ser humano foi enfatizado por
              Aristóteles em sua Política,
              mas a argumentação do grande estagirita nos parece, hoje,
              demasiadamente formalista. Partindo da premissa lógico-metafísica
              de que o todo precede sempre as partes que compõem, afirma ele
              que a pólis é, por natureza, anterior ao indivíduo. “Pois se
              cada indivíduo, uma vez isolado, não é autosuficiente, ele há
              de se relacionar com a pólis como um todo, assim como as partes
              devem sê-lo em relação ao todo; enquanto o homem incapaz de
              viver em sociedade, ou aquele que é tão auto-suficiente a ponto
              de não ter necessidade disto, não é parte da pólis, e deve
              portanto ser uma besta ou um deus”. 
              O
              pensamento moderno rejeita, porém, essa concepção mecanicista
              do homem, como parte do todo social, pois ela conduz,
              necessariamente, à conclusão da supremacia ética da sociedade
              em relação ao indivíduo, razão justificativa dos mais bestiais
              totalitarismos. O que se deve reconhecer é que o indivíduo
              humano somente desenvolve as suas virtualidades de pessoa, isto é,
              de homem capaz de cultura e auto-aperfeiçoamento, quando vive em
              sociedade. É preciso não esquecer que as qualidades eminentes e
              próprias do ser humano – a razão, a capacidade de criação
              estética, o amor – são essencialmente comunicativas. 
              
               
              d –
              historicidade
              A substância
              da natureza humana é histórica, isto é, vive em perpétua
              transformação, pela memória do passado e o projeto do futuro. 
              Tal
              significa dizer que o ser próprio do homem é um incessante
              devir. Mas um devir que se desenvolve e transforma deixando sempre
              rastros de sua trajetória, numa incessante acumulação de invenções
              culturais de todo gênero. A especificidade da condição humana,
              não se esgota na mera transformação do mundo circunstancial,
              com a acumulação da “cultura objetiva”, mas compreende também
              uma alteração essencial do próprio sujeito histórico. O homem
              aparece, portanto, como um ente cujo ser não se completa nem se
              consuma jamais (o permanente inacabamento de que falou Heidegger),
              mas que vai, ao longo da história, modificando-se pela experiência
              acumulada e o projeto de novos ensaios de vida. Daí poder-se
              dizer que o homem contemporâneo é em sua essência – e não
              apenas em sua condição ou circunstância existencial – diverso
              do homem da Idade Média, do Renascimento ou do Século das Luzes. 
              
               
              e –
              unidade existencial
              Finalmente,
              outra característica essencial da condição humana é o fato de
              que cada um de nós se apresenta como um ente único e
              rigorosamente insubstituível do mundo. 
              A
              idéia dessa unicidade da pessoa humana, cuja concepção original
              parece ser do cristianismo – com a substituição do pacto entre
              Iahweh e o povo eleito, pela oferta da salvação divina,
              individualmente, a cada criatura – sempre fora, de resto, icntuída
              pela sensibilidade poética. O belo verso de Lamartine exprime o
              sentimento que acode a todos os amantes, desde que o mundo é
              mundo, quando separados no tempo ou no espaço: “un
              seul être vous manque et tout est dépeuplé”. A ciência
              biológica contemporânea acabou confirmando o fundamento natural
              dessa grande verdade. A combinação de genes que cada um de nós
              recebe de nossos pais, em razão dos rearranjos complexos e aleatórios
              de cromossomas durante a meios e, é única, invariável e
              irreprodutível. 
              
               
              Esse
              conjunto de características diferenciais do ser humano demonstra,
              como assinalou Kant, que todo homem tem dignidade, e não um preço,
              como as coisas. O homem como espécie, e cada homem em sua
              individualidade, é propriamente insubstituível, não tem
              equivalente, não pode ser trocado por coisa alguma. Mais ainda: o
              homem e não só o único ser capaz de orientar suas ações em
              função de finalidades racionalmente percebidas e livremente
              desejadas, como é, sobretudo, o único ser cuja existência, em
              si mesma, constitui um valor absoluto, isto é, um fim em si e
              nunca um meio para a consecução de outros fins. É nisto que
              reside, em última análise, a dignidade humana. 
              Vista
              ainda sob outro ângulo, a dignidade do homem consiste em sua autonomia,
              isto é, na aptidão para formular as próprias regras de vida.
              Todos os demais sceres, no mundo, são heterônimos, porque destituídos
              de liberdade. É por isto que o homem não encontra no mundo
              nenhum ser que lhe seja equivalente, isto é, nenhum ser de valor
              igual. Todos os demais seres valem como meios para a plena realização
              humana. Ou, reformulando a expressão famosa de Protágoras, o
              homem é a medida de valor de todas as coisas. 
              A
              frase completa de Protágoras, que se encontra em seu tratado A
              Verdade, é: “o homem é medida de todas as coisas: para as que
              são, medida de seu ser; para as que não são, medidas de seu não-ser”.
              A idéia do grande sofista é a de um relativismo individual
              absoluto, tanto no campo do saber, quanto no do agir.
              Desapareceria, com isto, toda possibilidade lógica de Platão,
              fundado no mundo das idéias ou arquétipos, ou com o realismo
              aristotélico. Daí por que Platão dedicou todo um diálogo (Teeteta) para refutar essa perigosíssima idéia de tábua rasa,
              segundo a expressão de uma grande helenista contemporânea. Ainda
              em sua velhice, ao escrever As
              Leis, não deixou de voltar ao assunto: “É Deus que seria
              para nós, no mais alto grau, a medida de todas as coisas. Ele,
              antes que, segundo entendo, este ou aquele homem, como pretendem
              alguns” (IV, 716 c). 
              A
              dignidade transcendente é um atributo essencial do homem enquanto
              pessoa, isto é, do homem em sua essência, independentemente das
              qualificações específicas de sexo, raça, religião,
              nacionalidade, posiçcão social, ou qualquer outra. Daí decorre a
              lei universal de comportamento humano, em todos os tempos, que
              Kant denomina imperativo
              categórico: “age de modo a tratar a humanidade não só em
              tua pessoa, mas na de todos os outros homens, como um fim e jamais
              como um meio”. 
              
               
              3. O conceito de direito humano ou direito
              do homem.
              
               
              Como se
              acaba de ver, a dignidade de cada homem consiste em ser,
              essencialmente, uma pessoa, isto é, um ser cujo valor ético é
              superior a todos os demais no mundo. 
              O
              pleonasmo da expressão direitos humanos, ou direitos do homem, é
              assim justificado, porque se trata de exigências de comportamento
              fundadas essencialmente na participação de todos os indivíduos
              do gênero humano, sem atenção às diferenças concretas de
              ordem individual ou social, inerentes a cada homem. A Declaração
              Universal de 1948, das Nações Unidas, sublinha esse caráter de
              igualdade fundamental dos direitos humanos, ao dispor, em seu
              artigo 2º, que “cada qual pode se prevalecer de todos os
              direitos e todas as liberdades proclamadas na presente Declaração,
              sem distinção de espécie alguma, notadamente de raça, de cor,
              de sexo, de língua, de religião, de opinião pública ou de
              qualquer outra opinião, de origem nacional ou social, de fortuna,
              de nascimento ou de qualquer outra situação”. 
         c     Percebe-se,
              pois, que o fato sobre o qual se funda a titularidade dos direitos
              humanos é, pura e simplesmente, a existência do homem, sem
              necessidade alguma de qualquer outra precisão ou concretização.
              É que os direitos humanos são direitos próprios de todos os
              homens, enquanto homens, à diferença dos demais direitos, que só
              existem e são reconhecidos, em função de particularidades
              individuais ou sociais do sujeito. Trata-se, em suma, pela sua própria
              natureza, de direitos universais e não localizados, ou
              diferenciais. 
              Assim
              como o Estado moderno, qualquer e um produto histórico, não
              criou o Direito e geral e muito menos os direitos humanos em
              particular, da mesma forma a eventual supressão dos Estado-nação
              contemporâneo não impedirá o reconhecimento universal da
              dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais dela
              decorrentes, que representam o sentido axial de toda a História. 
              Estudos
              Avançados
              
              
              Coleção Documentos 
              **
              Professor Titular da Faculdade de Direito de São Paulo , Membro
              do Conselho da Cátedra UNESCO-USP de Educação para a Paz, Os
              Direitos Humanos , a Democracia e ca Tolerância 
               
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