Cecília Coimbra
Ela não usa meias palavras: A
política oficial é incompleta e perversa, não formulou um
verdadeiro programa de direitos humanos que ajude a resgatar a
memória histórica brasileira e até hoje insiste em manter a
cidadania recusada na questão dos mortos e desaparecidos
políticos.
Cecília é professora de
Psicologia na UFF, preside o
Grupo Tortura Nunca Mais e a Comissão Nacional de
Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia.
INDIGNAÇÃO
"A lei que indenizou as famílias dos mortos e desaparecidos
não trouxe justiça, foi uma tentativa de calar a boca dos
parentes. É limitada, porque restringe o prazo de 1961 a 1979.
Só que a ditadura terminou em 1985 e há vários casos de mortos
e desaparecidos não atendidos. O governo fez isso para mostrar
que não estava questionando a lei da Anistia.
"É também uma lei perversa,
pois coloca a prova como ônus das famílias. O Estado brasileiro
até hoje só assumiu em parte essa responsabilidade, em nenhum
momento apresentou desculpas pelo que fez. Matou, seqüestrou,
ocultou cadáveres e o familiar é que tem que provar isso. Isso
não é dito, só se fala na indenização. A indenização teria
que ser efeito de um processo de esclarecimento, e não uma forma
de ocultar as circunstâncias.
Essa é a lei que o governo coloca internacionalmente como tendo
resolvido a questão.
SECRETARIA
"Quando a Secretaria Nacional dos Direitos Humanos foi
criada, gostamos muito e a apoiamos, mas não funciona até hoje.
Ela foi criada para monitorar e implementar o plano nacional de
direitos humanos que, para nós, não foi implementado nem se
transformou em programa. A mídia foi utilizada, o plano foi
anunciado num 7 de Setembro e lançado num 13 de Maio e continua
no papel, para dizer no exterior que o governo tem compromissos
com direitos humanos. É lamentável que o Dr. José Gregori
esteja nisso.
FORMAÇÃO
"A formação do psicólogo se considera apolítica, neutra,
objetiva, onde as questões sociais são extremamente
psicologizadas, ou seja, reduzidas ao plano psíquico,
psicológico. As relações de poder e exploração são sempre
escamoteadas.
"Esta formação tem três características fortes que eu
combato. Essa psicologização do cotidiano, a questão do
familiarismo, em que toda e qualquer problemática é reduzida à
questão familiar e por último a questão do intimismo, muito
ligada às outras duas e na qual essa psicologia fortalece e
produz um sujeito voltado para dentro de si mesmo, onde os
espaços públicos são inferiorizados e desqualificados e o que
passa a ser importante é só o espaço do privado. Minha prática
tem sido pensar uma psicologia mais voltada para a questão
social, mais implicada politicamente com a realidade do país.
AMEAÇAS
"Em 1997, fizemos uma série de denúncias contra militares
que participaram direta ou indiretamente de torturas e estavam
sendo alçados à categoria de general pelo governo federal. Nossa
denúncia foi divulgada pelo Jornal do Brasil e Correio
Braziliense. No dia seguinte começamos a ser ameaçados por
cartas e telefonemas anônimos dizendo que eu tomasse cuidado, que
eles sabiam de todos os meus passos e que iriam explodir uma
bomba. Ameaçaram também a sede do Tortura Nunca Mais. Portanto,
até hoje há militares saudosistas da ditadura.
VIOLÊNCIA
"As violações ocorridas nos anos 60 e 70 estão ligadas às
violações de hoje. A tortura institucionalizada oficialmente
naquela época faz parte de uma história de violência de um
país que, não é à toa, teve 300 anos de escravidão. Nossas
subjetividades estão produzidas para achar que negro e
descendente de negro não vale nada, não é humano como os
demais. Nesse momento alguém está sendo torturado em alguma
delegacia policial, hospital ou local que guarda criança,
adolescente.
"Discutir a questão da
violência hoje é fundamental, porque o tempo todo se acaba
naturalizando a questão. O ser humano se acostuma facilmente com
as coisas, até com as piores violações aos direitos humanos,
acaba achando natural. Isso é uma produção dos meios de
comunicação de massa, que não resgatam a história e mostram o
pobre como um criminoso e a criança pobre como criminosa em
potencial.
O que está se produzindo com a
Alessandra Gorda, essa menina que foi presa por matar a Michele,
em Niterói, é pintá-la como um monstro. E um monstro tem que
ser exterminado. Prega-se abertamente a pena de morte e o
psicólogo embarca nessa.
MANICÔMIOS
"A Comissão Nacional de
Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia levanta
questões da prática cotidiana do psicólogo que ferem os
direitos humanos. Estamos levando um questionamento aos
profissionais que trabalham com o poder judiciário, em especial
os manicômios, cuja situação consideramos pior que a prisão ou
o hospital psiquiátrico. O psicólogo trabalha lá e pode não
perceber que seu laudo pode estar patologizando a pobreza. Quando
uma pessoa que cometeu crimes recebe o suposto benefício de ser
diagnosticada como "louca", na prática fica em um
tratamento que se converte em pena onde é abandonada à prisão
perpétua, na medida em que seu caso nunca é revisto. O
psicólogo tem que parar e pensar."
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