CIDADANIA AINDA
RECUSADA:
O PLANO NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS E A LEI
SOBRE
MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS
COIMBRA, CECÍLIA Mª B.
I Introdução
Pensar o Plano Nacional de Direitos
Humanos- anunciado à nação pelo governo federal em 13 de maio
de 1996 - é, antes de mais nada, tentar trazer para o palco da
história a longa e árdua luta que tem sido travada no Brasil
pelo respeito aos mais elementares direitos do ser humano. Não
pretendo aqui fazer uma história dos direitos humanos no Brasil e
no mundo, mas apontar - mesmo que parcial e fragmentariamente - as
lutas que foram travadas nas últimas décadas, e que muito
contribuíram para este plano vir à luz.A seguir, será
assinalada a emergência do Plano no Brasil dos anos 90, quando
serão sucintamente analisados alguns de seus aspectos. A
pretensão aqui não é colocar em pauta uma análise das medidas
de curto, médio e longo prazos propostas pelo Plano Nacional de
Direitos Humanos, mas sim pensar em que momento ele emerge e quais
são os seus alcances e limites mais gerais para e na sociedade
brasileira.Assim, algumas análises sobre sua viabilidade e
limitações serão apresentadas, como também uma rápida
avaliação sobre seu primeiro ano de funcionamento - aspecto já
levantado na 2ª Conferência Nacional de Direitos Humanos,
realizada em maio do corrente ano.O que se pretende aqui,
principalmente, é fazer uma articulação entre o Plano Nacional
de Direitos Humanos e a lei 9.140/95, que trata da questão dos
mortos e desaparecidos políticos. Nela, se tentará apontar os
aspectos limitados e perversos desta lei e a questão dos direitos
humanos e cidadania em nosso país, hoje, que deve estar vinculada
também ao resgate da memória histórica. Este trabalho de
resgate é importante para se tentar superar a história oficial,
conhecida como a ótica dos vencedores, produzida pelas práticas
dominantes, no sentido de apagar os vestígios que as classes
populares e os opositores vão deixando ao longo de suas
experiências de resistência e de luta.
Finalizando, será assinalado que o
movimento pelos direitos humanos em nosso país e a definitiva
implantação de um plano nacional que consolide a cidadania têm
como condições, entre outras questões - que aqui não serão
abordadas - a desconstrução dessa história oficial e a
diminuição do fosso entre incluídos e excluídos, hoje
aprofundado pelo modelo sócio-econômico vigente, um dos pilares
do projeto neoliberal. É como afirma Álvaro Augusto Ribeiro
Costa(1): como pensar em direitos humanos, quando: de Roraima ao
Rio Grande do Sul - até onde a informação possa ser obtida -
desfilam as vítimas da violência no país. Índios, garimpeiros,
camponeses, ribeirinhos, pescadores, remanescentes dos quilombos,
carvoeiros, moradores das periferias das grandes cidades e do
campo, meninos e meninas de rua, sindicalistas, religiosos e
agentes de pastoral, defensores dos direitos humanos etc. assumem
as mais diversas posições no cenário da cidadania recusada e
dos conflitos sociais de abrangência em ascensão?(2)
II A luta Pelos Direitos Humanos no Brasil
Durante anos, e ainda hoje, a luta
pelos direitos humanos na sociedade capitalista tem sido
interpretada, principalmente por muitos intelectuais de esquerda,
como a luta por direitos burgueses, visto que a concessão dos
direitos humanos ao cidadão não implicaria na sua libertação,
mas, ao contrário, em sua submissão aos interesses da classe
dominante. Os ideais da Revolução Francesa - igualdade,
liberdade e fraternidade - foram, em verdade, palavras de ordem da
burguesia, a partir do século XVIII, no sentido de levar às
classes trabalhadoras a ilusão de participação, de
preocupação com o seu bem estar, de humanitarismo dos
dominantes.
Percebe-se, como afirma P. Veyne(3),
como as diferentes práticas sociais, em diferentes momentos
históricos vão produzindo diferentes rostos, diferentes
fisionomias; portanto, diferentes objetos, diferentes
entendimentos do que podem ser os direitos humanos. Estes, ao
longo da história da humanidade, vão aparecer de diferentes
formas; não tendo, portanto, uma evolução, mas emergindo em
certos momentos, de certas maneiras bem peculiares. Devem ser,
assim, entendidos não como um objeto natural e ahistórico, mas
sim produzidos por determinadas práticas e movimentos sociais,
podendo ser utilizados a partir de diferentes produções.
É praxe colocar-se como marco da
história dos direitos humanos a Declaração Universal dos
Direitos do Homem, surgida em 1946 quando, após a Segunda Guerra
Mundial, foi criada a ONU. Outras declarações e convenções,
nas décadas de 50 e 60, deram prosseguimento à colocação de
que os direitos da pessoa humana devem ser estendidos a todos.
Aqueles anos- após a 2ª guerra - marcaram o auge da chamada
guerra-fria, quando o mundo se dividiu em dois blocos que
disputavam a hegemonia: o capitalismo, capitaneado pelos Estados
Unidos e demais grandes potências ocidentais, e o bloco
socialista, liderado pela antiga União Soviética. As políticas
então hegemônicas vão forjar uma dicotomia em relação aos
direitos humanos. De um lado, no bloco capitalista, serão
enfatizados os direitos civis e políticos, aspectos mais formais
dos direitos individuais, em detrimento dos direitos econômicos,
sociais e culturais. Do outro lado, no bloco socialista (junto com
os países do Terceiro Mundo articulados no movimento dos
não-alinhados), ao contrário, os direitos econômicos, sociais,
culturais, coletivos e dos povos terão prioridade sobre os
direitos civis, políticos e individuais.
Em 1968 - ainda em clima de
guerra-fria - , realizou-se em Teerã a 1ª Conferência Mundial
dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Se bem que neste
encontro a realidade bipolar ainda se fazia presente - já que se
vivia fortemente a disparidade entre países desenvolvidos e
países subdesenvolvidos - começou-se a apontar para a
integralidade dos direitos humanos: estes não podem ser vistos de
modo dicotômico, pois todos são fundamentais para o exercício
da cidadania.
No Brasil, a luta pelos direitos humanos começou efetivamente a
ser vivida no movimento contra a ditadura militar que se implantou
em 1964(4). Em especial, vem no bojo dos novos movimentos sociais
que emergiram ainda no período repressivo, na segunda metade dos
anos 70. Vieram nas práticas que começaram a rechaçar os
movimentos tradicionalmente instituídos, e que politizaram o
cotidiano dos locais de trabalho e moradia, inventando novas
formas de fazer política. Vieram quando novos personagens
entraram em cena(5), quando emergiram novos sujeitos políticos
que, no cotidiano, lutavam por melhores condições de vida,
trabalho, salário, moradia, alimentação, educação, saúde e
pela democratização da sociedade. Estes movimentos começaram a
existir com os próprios estilhaços(6) que resultaram das
derrotas impostas aos movimentos sociais com o golpe de 1964 e com
o AI-5, em 1968. Seus sobreviventes, ao resgatarem criticamente as
várias experiências de oposição nos anos 60 e 70, fizeram
emergir nos bairros e, logo a seguir, nas fábricas, novas
políticas que substituíram as tradicionalmente utilizadas até
então. Em cima, principalmente, das crises da Igreja, das
esquerdas e do sindicalismo - que a ditadura acirrou e aprofundou
- surgiu uma série de movimentos sociais produzindo novos
caminhos. Estes, por sua vez, forjaram práticas, ligadas à
teologia da libertação, repensaram certas leituras do marxismo,
a oposição armada à ditadura e o movimento sindical. Emergiram,
desses novos movimentos sociais, dessas novas políticas, outros
rostos, outras fisionomias dos direitos humanos. Vários grupos
surgiram como importantes trincheiras de luta e denúncia contra
as violências cometidas e a impunidade vigente: o CIME (1972), a
CPT (1975), as comissões de Justiça e Paz ligadas às
arquidioceses de diferentes estados (início dos anos 70), as
pastorais operárias (início dos anos 70), o Movimento Feminino
pela Anistia (1975), os Comitês Brasileiros pela Anistia (1976) e
muitos outros que, ainda hoje, persistem na disposição de
resistir, apontando para as lutas em prol dos direitos humanos em
cima das condições concretas de existência daqueles que
continuam sendo marginalizados.
Um segundo marco nesta luta,
apontado por muitos, foi a Constituição de 1988, apesar da
fragilização de muitos movimentos sociais à época. Estes,
tiveram (...) enfrentamentos decisivos quando ainda mal se haviam
constituído como sujeitos políticos. O ritmo de suas histórias
não era o mesmo que o da política instituída, e foi esta que
fixou as datas. Levados precocemente aos embates políticos,
expressaram sua imaturidade enquanto alternativa de poder no plano
da representação política.(7)
Entretanto, o Congresso
Constituinte instalado desde 1987 sofreu, apesar de tudo isto,
pressões populares(8). É Hélio Bicudo quem afirma: Convocou-se
um Congresso constituinte que todos sabemos como foi e para que
foi eleito. Optou-se por um Congresso Constituinte porque é mais
fácil de manobrar, e não por um Assembléia Nacional
Constituinte ampla e democrática (...). Mais adiante, informa: As
propostas de fundo popular na verdade foram sendo reduzidas, na
medida em que as decisões se faziam não só nas comissões
temáticas, mas depois no plenário do Congresso, redução que
afinal produziu um texto constitucional predominantemente
conservador no seu conjunto. Daquilo que se pretendia de
participação popular, no texto constitucional restou muito
pouco(9).
Assim, a Constituição de 1988
apresentou alguns avanços referentes aos direitos individuais e
sociais como, por exemplo, na questão da prisão (só efetuada em
flagrante), dentre outras. É, ainda, Hélio Bicudo quem afirma
que, pelo atual texto constitucional, são mantidas a hegemonia
das Forças Armadas sobre a Sociedade Civil, visto que suas
funções consistem em preservar a lei, a ordem e a segurança. E
aqui se coloca uma discussão que hoje é fundamental: as Forças
Armadas, segundo a Constituição, continuam - como no período da
ditadura militar - a zelar pela segurança interna e externa,
quando a primeira é um problema de polícia, de justiça, de
organização penitenciária, afirma Bicudo. Ainda dentro deste
quadro, a Constituição de 1988 manteve as polícias militares
estaduais como força de reserva do Exército, como foi
estabelecido em 1967, durante a ditadura militar. Estas são
questões candentes que hoje estão na ordem do dia. É o próprio
Hélio Bicudo que conclui: o aparato repressivo continua o mesmo
de antes da atual constituição(10). Apesar dos poucos avanços
na Carta Constitucional, da fragilização de muitos movimentos
sociais, continuou-se a lutar por direitos básicos de cidadania.
Até porque os anos 90 têm início com a questão da violência
estampada nas grandes manchetes dos jornais: chacinas,
extermínios, linchamentos dos segmentos mais pauperizados passam
a ser aplaudidos, apoiados e mesmo incentivados por grandes
parcelas da população brasileira.
III Os anos 90 e o Plano Nacional
de Direitos Humanos
Neste final de século, torna-se
imprescindível pensar a questão do respeito à vida, da luta
contra a impunidade, tendo em vista a produção massiva
contrária que vem sendo fabricada nos corações e mentes da
população. Esta construção competente traz como efeitos não
só os aplausos à pena de morte, mas o fato de que direitos
humanos são percebidos como movimentos de apoio aos bandidos, aos
marginais. Até mesmo os partidos políticos de oposição não
integram em suas bandeiras esta luta; poucos são os parlamentares
preocupados com esta questão. Tais formas de pensar, perceber e
agir neste mundo são produções competentes de diferentes
equipamentos sociais. Hoje, por exemplo, vem sendo forjada uma
outra Doutrina de Segurança Nacional, não mais relativa aos
opositores políticos, chamados terroristas, como nos anos 60 e
70. Hoje, dentro da nova ordem mundial, dos projetos neoliberais
vigentes em escala planetária, os inimigos internos do regime
passam a ser os segmentos mais pauperizados: todos aqueles que os
mantenedores da ordem consideram suspeitos e que devem ser
eliminados, se não for possível controlá-los(11).
Sob novas maquiagens, algumas das
estratégias utilizadas pelo aparato repressivo contra os
opositores políticos durante a ditadura militar continuam a ser
implementadas hoje, contra os segmentos pobres, percebidos como
perigosos e ameaçadores.
Diante desse crescente quadro de violência, ocorreram pressões,
não só de movimentos nacionais como internacionais ligados à
luta pelos direitos humanos. Foi a partir do governo Itamar
(1992-1994) que, principalmente por pressões externas, algumas
áreas federais se sensibilizaram. Aquele foi o momento de um
forte apelo internacional, com a 2ª Conferência Mundial de
Direitos Humanos da ONU, ocorrida em Viena, em junho de 1993, 25
anos depois de Teerã, Aquele evento, além de reafirmar a
integralidade e a internacionalização dos direitos humanos
(enfatizando que eles não são apenas os direitos civis e
políticos, mas os direitos econômicos, sociais e culturais; não
apenas os direitos individuais, mas também os direitos coletivos,
que ultrapassam os estados e são responsabilidade internacional),
trouxe uma novidade: o reconhecimento da importância da sociedade
organizada, pois mais de 800 ONGs fizeram-se representar no Fórum
Mundial das ONGs. Ao todo, foram cerca de 10 mil
participantes.(12) Além do compromisso com a
internacionalização(13) dos direitos humanos, houve, na
conferência de Viena, a recomendação de que os governos ali
presentes formulassem planos nacionais para proteção e
promoção dos direitos humanos(14).
É interessante assinalar, dentro
de uma visão de história instituída a nível internacional, o
que nos esclarece o Professor Trindade Cançado: À época da
proclamação de Teerã, ainda não operavam os mecanismos e
órgãos de supervisão internacionais de direitos humanos como
hoje os conhecemos. Passaram a funcionar regularmente a partir dos
anos setenta, à medida em que entravam em vigor sucessivos
tratados de direitos humanos, e se multiplicavam com a adoção
também de procedimentos adicionais baseados em resoluções de
organismos internacionais. Assim, em nada surpreende que a
declaração de Viena de 1993 se afigure mais densa (...) do que a
equivalente de Teerã de 1968, marcada pelo reconhecimento da
necessidade de melhor coordenação de tantos instrumentos
internacionais que passaram a coexistir ao longo das últimas duas
décadas e meia. A Proclamação de Teerã corresponde à fase
legislativa, a Declaração de Viena à fase de implementação
desses instrumentos múltiplos. Cada uma é fruto, e dá
testemunho, de seu tempo.(15)
É, ainda, Trindade Cançado que
aborda alguns limites desta Conferência de Viena, ao lamentar que
não tenha havido maior precisão quanto aos recursos adicionais,
pois os recursos do orçamento regular das Nações Unidas
destinados aos direitos humanos são hoje insignificantes - menos
de 1%. É importante, ainda, enfatizar que haja uma efetiva
incorporação da dimensão dos direitos humanos em todos os
programas, atividades (e áreas de atuação) das Nações Unidas
(...) em que precisamente têm os direitos humanos sido
negligenciados, senão por vezes ignorados.(16)
Tais pressões nacionais e, em
especial, internacionais também se fizeram sentir no Congresso
Nacional brasileiro quando, no período de 1992 a 1994, foram
instaladas quatro comissões parlamentares de inquérito para
investigar violações no campo dos direitos humanos: duas sobre a
violência rural, uma sobre a violência contra a mulher e outra
sobre a exploração infanto-juvenil. CPIs importantes pois, de um
modo geral, tiveram suas recomendações não somente no papel,
mas influenciaram o clima institucional no combate à violência.
Em 1992, como efeito de todas essas lutas, foi criada a Comissão
Extraordinária Sobre o Desaparecido Político, sob a presidência
do deputado federal Nilmário Miranda, que levou para o Congresso
Nacional as questões, ainda mantidas sob o manto do silêncio e
do esquecimento, relativas aos opositores políticos assassinados
durante os anos 60 e 70 no Brasil. Esta Comissão, ao se extinguir
em 1994, fez com que nascesse no Congresso uma outra, mais ampla e
permanente para tratar da questão dos direitos humanos: a
Comissão de Direitos Humanos, instalada em março de 1995.(!7)
Paradoxalmente a esses primeiros
passos institucionais no combate à violência, assistimos
perplexos e indignados a uma série de chacinas: Carandiru (SP),
Candelária, Vigário Geral e Nova Brasília (RJ), extermínios
promovidos por esquadrões da morte (AL e ES), Corumbiara, além
daqueles que, quase semanalmente, ocorrem nos grandes centros
urbanos e nas áreas rurais: assassinatos de crianças e
adolescentes, em sua grande maioria pobres; de homossexuais; de
pessoas humildes suspeitas da prática de crimes; de trabalhadores
e líderes sindicais rurais, dentre muitos outros. Vão sendo
produzidos contra as parcelas mais miseráveis da população os
rótulos de suspeitos, perigosos, enfermos; aqueles que são
marcados e identificados como vilões, bandidos, marginais.
As pressões e denúncias
internacionais se fizeram cada vez mais fortes e, já no atual
governo, o Ministério da Justiça ficou encarregado de elaborar
um Plano Nacional de Direitos Humanos, cuja intenção foi
anunciada espetacularmente, pelo presidente, no dia 7 de setembro
de 1995, dia da Independência do Brasil! Utilizando-se
massivamente da mídia, como resposta às pressões internacionais
pelas sistemáticas violações de direitos humanos, o governo
federal proclamou que direitos humanos é o novo nome da liberdade
e da democracia.(18) O Ministério da Justiça foi assessorado
pelo Núcleo de Estudos da Violência/USP na elaboração do
programa. Sob a coordenação do Professor Paulo Sérgio Pinheiro,
fizeram-se consultas a centenas de entidades civis, através de
work-shops realizados em várias regiões do país (São Paulo,
Rio de Janeiro, Recife, Belém, Porto Alegre, Natal). Após os
três últimos encontros (Belém, Porto Alegre e Natal), o NEV/USP
reelaborou um segundo pré-projeto do Plano Nacional de Direitos
Humanos entregue ao governo federal, que enviou uma versão
sintetizada a diversos de seus ministros para que se manifestassem
sobre as propostas ali contidas.
Por iniciativa da Comissão de
Direitos Humanos da Câmara Federal e do Fórum das Comissões
Legislativas de Direitos Humanos, realizou-se a 1ª Conferência
Nacional de Direitos Humanos, em abril de 1996, que discutiu e deu
novos subsídios ao plano. Sob o impacto do assassinato de
dezenove trabalhadores rurais sem terra em Eldorado dos Carajás,
dez dias antes, esta 1ª Conferência - além de apoiar a
iniciativa governamental - assinalou algumas limitações, como:
ser mais uma carta de compromissos do que um plano. (faltar)
diagnósticos dos tremas tratados, (faltar) avaliação de
recursos humanos e financeiros necessários, (não ter) uma
articulação com o Plano Plurianual e com o Orçamento Geral da
União, além de carecer de definição mais precisa dos órgãos
responsáveis pela implementação e execução de cada programa,
com os respectivos compromissos e prazos.(19)
Uma série de propostas foi
encaminhada, como: para cada uma das metas, definição precisa
dos prazos, das autoridades responsáveis pela execução e pela
supervisão geral do Plano (...); que os meios e instrumentos
necessários à implementação das propostas sejam
especificamente definidos, bem como a origem dos recursos(20),
dentre outras questões que, infelizmente, não foram incorporadas
ao Plano. Isto ficou claro quando da 2ª Conferência Nacional de
Direitos Humanos, realizada em maio deste ano - também por
iniciativa da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal -
para avaliar o primeiro ano de funcionamento do Programa, após
várias reuniões prévias em 13 estados do Brasil.
Constataram-se muitos dos limites
já levantados na 1ª Conferência, de 1996, como: as 233(21)
ações apresentadas a curto, médio e longo prazos não definem
as instituições executoras, o cronograma e magnitude das
realizações, previsão de articulação com o processo
orçamentário.(22) Afirma ainda o deputado Pedro Wilson que uma
característica fundamental do programa é seu caráter
retórico(23) e que as novas leis votadas ou em tramitação no
Congresso (transferência do julgamento de policiais militares da
justiça militar para a comum(24), eliminação do porte de armas,
competência da justiça federal para julgar crimes contra os
direitos humanos, tipificação do crime de tortura, dentre
outros) resultaram muito mais da reação, comoção e
indignação da opinião pública e de pressões internacionais,
após práticas de violência estampadas na grande imprensa, do
que pelo fato de figurarem no Plano Nacional de Direitos Humanos.
Essas reações e pressões foram as principais responsáveis por
alçarem os projetos das gavetas para a ordem do dia do Congresso
Nacional.(25)
Ainda, dentro da mesma linha que
acompanhou as propostas apresentadas na 1ª Conferência, muitos
participantes desta 2ª Conferência apontavam para a
compartimentalização das atribuições das metas referentes aos
diversos órgãos governamentais, não havendo conexão entre
essas metas e a Lei de Execução Orçamentária e o Orçamento da
União referente a 1997. Da mesma forma, a fiscalização e o
monitoramento do plano, preocupação já apresentada durante a
1ª Conferência, não foram colocados em prática. Somente deu-se
a criação da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, órgão
responsável pela coordenação e implementação do plano, que
tem sido constantemente desqualificada pelo atual ministro da
justiça. Somente um órgão dotado de ampla participação da
sociedade civil, com disponibilização de recursos humanos e
financeiros suficientes ao cumprimento de suas atribuições terá
alguma condição de fiscalizar e monitorar a execução do Plano
que, sem isto, não passará de um documento com efeitos meramente
declaratórios(26), como já afirmava anteriormente, na 1ª
Conferência, o deputado Hélio Bicudo.
Também com relação aos programas
estaduais de direitos humanos(27), não se pode - como faz o Plano
- simplesmente recomendar a adoção desses programas(28). São
fundamentais, por parte do governo, articulação e vontade
política, pois sem isto, o Programa, que se pretende nacional,
fica restrito ao Ministério da Justiça.
Uma outra questão diz respeito aos tratados e convenções
internacionais de que o Brasil é signatário. Muitos desses
compromissos assumidos não estão definidos ou relacionados no
Plano, como a 1ª Conferência já assinalava; por exemplo, com
relação à adesão do Brasil ao efeito coercitivo das sentenças
emanadas pela Corte Internacional de Direitos Humanos da OEA, não
reconhecidos por nosso país e que só depende de assinatura do
Presidente(29) .
Muitas outras questões relativas
ao Plano poderiam aqui ser abordadas. Entretanto, tenho como
prioridade fazer uma articulação deste Programa - transformado
no Decreto 1.904/96 - com a lei 9.140/95, que trata da questão
das mortes e desaparecimentos políticos ocorridos nos anos 60 e
70 em nosso país.
IV - A lei 9.140/95, seus limites e
o Plano Nacional de Direitos Humanos.
A articulação entre a lei 9.140/95 e o Plano Nacional de
Direitos Humanos - embora a primeira tenha ocorrido quase seis
meses antes do segundo - dá-se porque, sem dúvida, a questão
dos mortos e desaparecidos faz parte, mundialmente, da luta pelos
direitos humanos. Faz parte da luta pelo esclarecimento das
circunstâncias em que se deram tais assassinatos, do
reconhecimento de onde estão os restos mortais de centenas de
opositores e dos crimes que foram cometidos em nome da Segurança
Nacional. Faz parte da luta não só para resgatar parte recente
da nossa história e levá-la ao conhecimento de toda a sociedade,
como também, para apontar que muitas violências e
arbitrariedades cometidas pelo Estado terrorista continuam hoje de
outras formas e sob novas maquiagens ocorrendo com as parcelas
mais miseráveis de nossa população.
A lei 9.140, de dezembro de 1995,
veio no bojo dos vários movimentos sociais já anteriormente
citados que eclodiram em nosso país a partir da 2ª metade dos
anos 70. Durante toda a década seguinte, várias entidades de
direitos humanos e de familiares de mortos e desaparecidos
continuaram cobrando dos diferentes governos esclarecimentos sobre
os crimes perpetrados durante a ditadura militar. Diversos grupos
organizados em diferentes estados brasileiros fizeram pesquisas,
levantamentos em vários órgãos estaduais - apesar das enormes
dificuldades encontradas - e obtiveram uma série de informações
sobre as circunstâncias das mortes e desaparecimentos de alguns
militantes políticos. No início dos anos 90, foram descobertas
valas clandestinas, contendo os restos mortais de opositores
enterrados como indigentes, nas cidades de São Paulo, Rio de
Janeiro e Recife(30).
A produção massiva da indigência
que, dentre outras coisas, massacrou e continua massacrando a
cidadania, retirando a identidade dos opositores, políticos ou
não, está comprovada pelo número levantado nessas diferentes
pesquisas realizadas no final dos anos 80 e início dos 90.
Se é a história dos vencedores que, em geral, nos é dada a
conhecer, esses trabalhos e pesquisas mostraram uma outra
história: a história das violências cometidas com o carimbo
oficial do Estado que, ainda, estão escondidas sob algumas pás
de terra ou impregnadas de teias de aranha. Segredos que estão
longe de serem revelados e trazidos à luz pois, apesar da lei
9.140/95, os arquivos dos diferentes aparatos militares (CISA,
CENIMAR, CIE, SNI, DOI-CODI, etc.) ainda estão guardados a sete
chaves, ainda são matérias consideradas confidenciais e
sigilosas.
Com tais trabalhos e descobertas,
as pressões internacionais recrudesceram; e como falar de
direitos humanos, se parte recente da história das violências
cometidas contra opositores políticos pelo Estado continua sendo
ocultada, silenciada?
Como emerge a Lei 9.140/95
Após a criação da Comissão Extraordinária sobre Desaparecidos
Políticos na Câmara Federal (1992), logo no ano seguinte ocorreu
reunião nacional de entidades de direitos humanos e familiares
que propôs ao então Ministro da Justiça, Maurício Corrêa, um
projeto para a criação, pelo poder executivo, de uma Comissão
Especial(31). Esta estudaria caso a caso as mortes e os
desaparecimentos políticos ocorridos no período de 1964 a 1985,
levantando as circunstâncias (como, onde e por que) ocorreram
esses crimes e quem foram os responsáveis. A proposta, aceita
pelo Ministro da Justiça, não obteve resposta do Presidente
Itamar Franco: total silêncio do executivo.
Ainda em 1993, por solicitação do
deputado Nilmário Miranda, as Forças Armadas, via Ministério da
Justiça, entregaram precários e mentirosos relatórios sobre os
mortos e desaparecidos políticos(32). Em um dos relatórios, o da
Marinha, assumiam a morte de 43 militantes desaparecidos na
Guerrilha do Araguaia e a prisão de 1. Apesar de incompleto, este
documento, pela primeira vez, reconhecia oficialmente a
existência da Guerrilha do Araguaia, negada sistematicamente
pelos governos militares e civis.
Somente em março de 1995, quando
da visita do Secretário-Geral da Anistia Internacional, Pierre
Sané, ao Brasil, novamente apareceu na mídia a questão dos
mortos e desaparecidos políticos, apesar das entidades e
familiares continuarem com suas pressões sobre o novo governo
eleito. Pierre Sané cobrou publicamente do executivo a
resolução dessa questão. Isto já havia sido feito pelas
entidades e familiares durante a campanha presidencial de
1994(33). Mesmo após a cobrança pública da Anistia
Internacional, o governo federal manteve o silêncio. Este só foi
quebrado quando da visita do presidente a Washington em maio de
1995, no momento em que, numa entrevista coletiva à imprensa
norte-americana, a irmã de um desaparecido no Araguaia cobrou
publicamente do presidente a resolução de tal questão.
Ainda no mesmo mês, foi realizada
reunião nacional das entidades e familiares, chamada pela
recém-criada Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal,
com o então Ministro da Justiça, Nelson Jobim e seu assessor,
José Gregori, que receberam a proposta já entregue anteriormente
ao governo Itamar.
Em julho de 19945, através do programa Globo Repórter, da Rede
Globo, foi apresentada a proposta do governo(34) que seria enviada
em agosto ao Congresso Nacional. Anunciavam-se três pontos:
reconhecimento de que os 152 militantes políticos foram mortos;
registro de suas mortes em cartório; pagamento de indenização
às famílias desses 152 desaparecidos.
Tentava-se convencer a opinião
pública. através da Rede Globo, de que o governo federal estava
prestes a resolver o caso dos mortos e desaparecidos políticos.
Em notas e documentos indignados, as entidades de direitos humanos
e familiares enfatizavam para o Brasil e para o exterior os pontos
de sua proposta entregue ao governo(35).
Após reunião com o assessor do Ministro da Justiça, José
Gregori, conseguiu-se a inclusão dos mortos políticos que
houvessem falecido, por causas não naturais, em dependências
políticas ou assemelhadas(36). Em agosto de 1995, o Projeto de
Lei foi encaminhado pelo Presidente, em regime de urgência, para
a Câmara e o Senado, manobra que impossibilitou qualquer emenda
no Congresso Nacional. Este projeto transformou-se, em dezembro do
mesmo ano, no decreto-lei 9.140/95. Em janeiro de 1996, foi
instalada a Comissão de sete membros escolhidos pelo Presidente
da República, sob a presidência de Miguel Reale Júnior(37).
Esta lei, a Lei 9.140/95 e suas
limitações - passo importante e resultado da pressão nacional e
internacional - é bastante tímida; chega a ser mesmo perversa,
pois não contempla questões de princípio que há vinte e cinco
anos são a razão da luta de várias entidades e de familiares de
mortos e desaparecidos políticos.
Em primeiro lugar, a lei deixou de fora os mortos e desaparecidos
após 1979 - seu período de abrangência vai de 02 setembro de
1961 a 15 de agosto de 1979, idêntico ao da Lei da Anistia.
Em segundo lugar, o ônus das
provas coube às famílias e não ao Estado. Os casos foram
estudados pela Comissão a partir das provas documentais trazidas
pelos familiares. Assim, em muitos casos, não se conseguiu
comprovar - apesar das inúmeras pesquisas feitas - que o Estado
foi o responsável pelas mortes. Isto porque até hoje não foram
abertos os chamados arquivos secretos, que estão sob a
jurisdição do governo federal e nenhuma informação oficial foi
até agora fornecida. Todos os documentos e dados conseguidos -
que têm respaldado o reconhecimento por parte da Comissão de que
o Estado foi responsável por essas mortes - foram obtidos
através de longas e dolorosas pesquisas feitas por entidades de
direitos humanos e familiares(38).
Em terceiro lugar, ficaram de fora
da Lei todos aqueles mortos em tiroteios e emboscadas(39), como se
não tivessem sido assassinados por agentes do Estado.
Um outro aspecto que aponta a limitação da Lei refere-se ao fato
de que não houve, por parte do Estado, um reconhecimento público
e inequívoco de sua responsabilidade em relação a esses crimes
de lesa-humanidade cometidos.
Finalmente, há uma questão importante: a das indenizações.
Círculos militares e a própria mídia têm tentado reduzir a
luta pelo reconhecimento do que ocorreu nos anos 60 e 70 a uma
simples indenização. Produção competente pois, muitas vezes,
tem conseguido desviar a atenção da sociedade brasileira das
questões que dizem respeito ao resgate de nossa história. Tal
produção, embutida na própria Lei 9.140/95, já se anunciava
quando as próprias fontes governamentais priorizaram as
indenizações, em detrimento do esclarecimento das
circunstâncias em que se deram essas mortes e desaparecimentos.
Nesses últimos vinte e cinco anos
de lutas, os familiares e entidades em momento algum solicitaram
aos diferentes governos indenizações pelas perdas,
perseguições e humilhações sofridas. Ao contrário, sempre
exigiram o total esclarecimento dos crimes cometidos pelos agentes
do Estado. Entendemos que a indenização é um direito - visto
que no capitalismo é através dela que o Estado reconhece sua
responsabilidade - mas, fundamentalmente, é um efeito. Antes de
qualquer indenização, cabe ao Estado dizer onde, quando e como
ocorreram esses crimes e quais os seus responsáveis.
Com relação aos desaparecidos
políticos, 136 foram elencados no anexo da Lei, tendo alguns
ficado de fora, como os brasileiros desaparecidos em outras
ditaduras latino-americanas(40) e opositores argentinos
desaparecidos no Brasil após 1979. Sabemos que os serviços de
informação das ditaduras latino-americanas, nos anos 70,
trabalharam em conjunto. Inclusive, há informações de
sobreviventes que estiveram presos no Chile, Argentina e Uruguai
à época e que afirmam que, em seus interrogatórios, houve a
participação direta de policiais e/ou oficiais brasileiros(41).
Alguns brasileiros presos nesses países foram entregues
clandestinamente aos serviços de informação do Brasil, e aqui
foram presos e torturados.
Os próprios atestados de óbito
fornecidos aos familiares de desaparecidos políticos são, na
realidade, um não-reconhecimento, pois não contêm informações
que caracterizam as mortes, como as causas, as datas e o local em
que elas se deram. Os dados foram fornecidos pelos próprios
familiares, e esses atestados em nada esclarecem como esses
militantes foram mortos, nem os locais onde foram enterrados.
Até o presente momento, dois artigos da lei - que dizem respeito
à localização dos corpos dos desaparecidos, à colaboração de
testemunhas e intermediação do Ministério das Relações
Exteriores para obtenção de informações junto a governos e
entidades estrangeiras - não foram efetivados(42), apesar de
terem sido elencados nas solicitações feitas pelos familiares à
Comissão. Em muitos casos, como nos dos mortos já aprovados,
testemunhas - inclusive pessoas ligadas ao aparato de repressão
à época, com seus nomes, cargos, local onde exerciam suas
atividades e as datas - foram listadas e, até o momento, sequer
foram chamadas ou ouvidas pela Comissão.
Apesar de todas essas limitações,
em muitos casos as versões oficiais da repressão estão sendo
desmascaradas oficialmente - já o haviam sido nas pesquisas
realizadas. As histórias que anunciavam as mortes por tiroteio
(como ocorre hoje com os autos de resistência)(43), atropelamento
ou suicídio estão sendo recontadas e se começa a revelar uma
outra história: a das atrocidades cometidas sob a proteção do
Estado
Histórias que muito se assemelham com as que ainda hoje ocorrem
cotidianamente nos grandes centros urbanos e nas áreas rurais.
Portanto, como falar de direitos humanos hoje se muitos daqueles
que foram perseguidos e exterminados por suas idéias em um
passado tão recente continuam a ter suas histórias ocultadas e
suas mortes não reconhecias oficialmente? Como falar de direitos
humanos hoje, de transparência, se essas histórias continuam
sendo segredo de Estado? Assumindo tais crimes, não estaria o
governo brasileiro fortalecendo a luta contra as violações de
direitos humanos que hoje ocorrem em nosso país? Não estaria
conclamando, com isto, toda a sociedade brasileira a não mais
tolerar esses crimes contra a vida e a denunciá-los?
Não foi por acaso que, ao anunciar
o Plano Nacional de Direitos Humanos, em 13 de maio de 1996, o
Presidente da República fez uma grande mis-en-scéne, produziu um
grande espetáculo: anunciou o Plano, dando a primeira
indenização à mãe de um desaparecido político(44). Isto, com
potente cobertura da mídia e na presença de representantes
internacionais!
V- Finalizando
Após trinta e três anos do golpe militar, dezenove da
aprovação da lei da anistia - que não foi ampla, geral e
irrestrita - e oito anos da primeira eleição direta para
Presidente da República, se não existe mais em nosso país o
terror que impedia as denúncias públicas das violências
cometidas pelo Estado e seus agentes, vigora um outro regime de
silenciamento. Este, embora não proíba dizer, continua a calar
alguns familiares de mortos e desaparecidos políticos, algumas
lideranças rurais e, sobretudo, as populações pobres. Os
primeiros, considerados como pessoas mórbidas e revanchistas que
se negam a esquecer um passado, supostamente tão distante(45). As
populações pobres, percebidas como moralmente baixas,
intelectualmente inferiores e potencialmente perigosas, não
possuem credibilidade para denunciar as violências diariamente
cometidas contra elas. Produz-se, ainda hoje, um profundo temor,
onde aqueles que poderiam denunciar e/ou testemunhar são
desqualificados, ameaçados e mesmo mortos.
Como já afirmado no corpo deste
trabalho, entendemos que este Plano Nacional de Direitos Humanos -
que é um primeiro passo importante, sem dúvida - só poderá
funcionar efetivamente em nosso país se, além das sugestões já
colocadas pela 1ª e 2ª Conferências Nacionais de Direitos
Humanos, duas condições forem seriamente pensadas e executadas.
A primeira, como já colocado, refere-se ao efetivo resgate da
nossa história recente. Um resgate que deve produzir o
desmascaramento e denunciar as tentativas que se tem feito para
aniquilar com o que foi gestado e vencido no bojo dos confrontos.
Um resgate que deve apontar como a história dos vencedores buscou
e continua buscando liquidar não somente os seus adversários na
luta política, mas sobretudo apagar a lembrança de suas
propostas, de seus projetos(46).
A segunda condição, também já
colocada, refere-se ao paradoxo de se falar em direitos humanos
quando temos em funcionamento a lógica excludente de um modelo
econômico que marginaliza cada vez mais imensas parcelas de nossa
população, aumentando a legião dos miseráveis. Não há como
negar que a implantação de políticas neoliberais - o que
efetivamente vem acontecendo no Brasil - produz efeitos funestos
que se traduzem no desemprego programado e na efetiva restrição
do pleno acesso aos bens mínimos necessários à dignidade humana
(alimentação, saúde, educação, moradia, entre outros). Em que
pesem os esforços objetivos de várias autoridades para a
adoção, no Brasil, de uma política baseada nos direitos humanos
e na cidadania, esse quadro de violação estrutural dos direitos
humanos constitui um verdadeiro paradoxo (...). Pensemos, por
exemplo, à luz dos direitos humanos, na política de
privatização de empresas estatais. Alegam os governantes que o
dinheiro obtido com essa política será utilizado em favor da
saúde, educação, moradia, trabalho e segurança para os
brasileiros. Não é isso, porém, o que se constata, pelo
contrário(47).
Da mesma forma, sabemos que algumas
propostas contidas no Plano exigem a aprovação pelo Congresso e
que conflitam com os interesses dos segmentos mais conservadores
que apoiam o governo. Fará este o esforço de mobilizá-los para
essas questões como tem feito para a aprovação das reformas
constitucionais e da chamada reforma do Estado?
Entendemos que só a força dos movimentos sociais organizados
poderá mudar este quadro. É no nível das práticas cotidianas,
micropolíticas, que podem estar as respostas para tais impasses.
É através da reinvenção de novas maneiras de ser, de estar, de
sentir e de viver neste mundo que, cotidianamente, poderemos
produzir novas práticas, novos movimentos para contra-atacar as
políticas tradicionais, afirmando os direitos humanos como
direitos de todos, em especial dos excluídos e tentando que sejam
recolocadas as questões sociais e a questão da democracia
política como prioridades nacionais efetivas(48).
NOTAS
1 Sub-Procurador Geral da
República e Procurador Federal dos Direitos do Cidadão até
1995, tendo sido agraciado com o Prêmio de Direitos Humanos, em
1994, pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos.
2 Costa, A. A. R. - Direitos
Humanos no Brasil, palestra proferida no Seminário Sobre a
Proteção Nacional e Internacional dos Direitos Humanos,
Brasília, dezembro de 1994, mimeógrafo (grifos meus).
3 Veyne, Paul - Foucault
Revoluciona a História in Como Se Escreve a História - Cadernos
da Universidade de Brasília, 1982.
4 Isto não quer dizer que este foi
o marco das violações de direitos humanos em nosso país. Estas,
desde o descobrimento e passando pela colonização, pelo Império
e a República, sempre existiram de forma alarmante. Ver, por
exemplo, as várias e diferentes formas de torturas utilizadas
contra os escravos que, posteriormente, passaram a ser aplicadas
nos catalogados desviantes, marginais, bandidos, e que no Estado
Novo e na ditadura militar também foram utilizadas contra os
opositores políticos.
5 Sader, Eder - Quando Novos
Personagens Entram em Cena - RJ, Paz e Terra, 1988.
6 Termo utilizado por Telles, Vera
Sílvia - Anos 70: Experiências e Práticas Cotidianas in
Krischke, P. J. e Mainwaring, S. (orgs.) - A Igreja nas Bases em
Tempo de Transição - PoA, L± CEDEC, 1986, 47-69. Sobre o
assunto, consultar também Coimbra, C. M. B. - Guardiães da
Ordem: Uma Viagem Pelas Práticas Psi no Brasil do Milagre - RJ,
Oficina do Autor, 1995.
7 Sader, Eder - Op. cit. - p. 315.
8 As emendas populares alcançaram
o expressivo número de 12 . 265. 854 assinaturas. In Herkenhoff,
João Baptista - ABC da Cidadania - Vitória, Secretaria Municipal
de Cidadania, 1996, p. 21.
9 Bicudo, Hélio - Direitos Humanos
e a Nova Constituição in Direito Insurgente II - Anais da IIª
Reunião - RJ, Instituto Apoio Jurídico Popular, 1988/1989, pp.
30, 31.
10 Bicudo, H. - Op. cit. - pp. 31 e
32.
11 Sobre o assunto, consultar
Coimbra, C. M. B. - Discursos Sobre Segurança Pública e
Produção de Subjetividades: Violência Urbana e Alguns de seus
Efeitos - Projeto de Pós-Doutorado - NEU/USP, 1997, mimeógr.
12 Trindade Cançado, A. A. - A
IIª Conferência Mundial Sobre os Direitos Humanos, in Correio
Brasiliense Brasília, 02/08/93.
13 Não é por outro motivo que se
busca a jurisdição de cortes internacionais diante da omissão
das justiças locais. Sobre o assunto, consultar Bicudo, H. -
Pronunciamento de abertura da 1ª Conferência Nacional de
Direitos Humanos in Relatório da 1ª Conferência Nacional de
Direitos Humanos, - Brasília, 1996, mimeogr.
14 Após a Conferência,
elaborou-se no Brasil uma Agenda Nacional de Direitos Humanos que
resultou num Programa Nacional de Cidadania e Combate à
Violência, anunciado na Universidade de São Paulo, em dezembro
de 1993. Sobre o assunto, consultar: Centro Santo Dias de Direitos
Humanos/Arquidiocese de São Paulo - Agenda Nacional de Direitos
Humanos: Realidade e Perspectivas, Caderno 1, SP, Nuestra America
Editora e Vídeo, 1993.
15 Trindade Cançado, A.A. - A
Proteção Internacional dos Direitos Humanos ao Final do Século
XX in Seminário Sobre a Proteção Nacional e Internacional dos
Direitos Humanos, Brasília, Ministério da Justiça, dezembro/94,
p. 106.
16 Trindade Cançado, A. A. - Op.
cit., p.110.
17 Apesar de já existirem
comissões de direitos humanos nas assembléias legislativas de
alguns estados, como RJ, RS e outros, na Câmara Federal esta foi
a primeira comissão criada e incentivou o surgimento de outras no
plano dos estados e dos municípios. Consultar: IIº Fórum
Nacional de Comissões Legislativas de Direitos Humanos Brasília,
Câmara dos Deputados, julho/1995.
18 Consultar: Direitos Humanos:
Novo Nome da Liberdade e da Democracia - Brasília, Presidência
da República, Secretaria de Comunicação Social, Ministério da
Justiça, Ministério das Relações Exteriores, 1995.
19 Relatório da Iª Conferência
Nacional de Direitos Humanos - Op. cit., pp. 4 e 5.
20 Idem, p.5
21 O PNDH contém um elenco de 154
medidas de curto prazo, 58 de médio prazo, 14 de longo prazo e 7
de implementação e monitoramento. Está estruturado em 5 eixos:
proteção `a vida; proteção do direito à liberdade; proteção
do direito a tratamento igualitário perante a lei; educação e
cidadania; ações internacionais para proteção dos direitos
humanos.
22 Wilson, Pedro - O Programa
Nacional de Direitos Humanos - Brasília, Câmara dos Deputados,
Comissão de Direitos Humanos, p.2.
23 Idem, p.1.
24 O foro especial da justiça das
polícias militares para crimes comuns foi instituído em 1977, ao
apagar das luzes do regime autoritário. Em 1996, sob o comando do
líder do governo, o Senado reduziu o Projeto Hélio Bicudo à
transferência para a justiça comum apenas dos homicídios
dolosos praticados por policiais militares. Após os lamentáveis
episódios da Favela Naval (SP) e da Cidade de Deus (RJ), a
Câmara retomou o projeto inicial e aprovou a inclusão dos crimes
de tortura e lesão corporal in Pronunciamento do Deputado Federal
Nilmário Miranda, na IIª Conferência Nacional de Direitos
Humanos, 1997.
25 Idem, pp.2 e 3.
26 Idem, p.4.
27 Até a presente data, somente
São Paulo tem o seu Programa Estadual de Direitos Humanos e Minas
Gerais está em vista de organizar o seu.
28 O artigo 5º do decreto 1904/96
(Plano Nacional de Direitos Humanos) dispõe que: Os Estados e
Municípios e municípios e as entidades privadas poderão
manifestar adesão ao Plano (grifo meu).
29 Em 1996, após a implantação
do PNDH, campanha iniciada em São Paulo, pela Procuradoria do
estado, e com apoio de várias entidades de direitos humanos,
colheu milhares de assinaturas encaminhadas ao Presidente da
República, em novembro, solicitando que o Brasil reconhecesse a
Corte Internacional de Direitos Humanos. Até o momento, nenhuma
resposta foi dada pelo Executivo.
30 Em São Paulo, ficou tristemente
famosa a vala do Cemitério Dom Bosco, em Perus, contendo 1049
ossadas, onde pelo menos 6 presos políticos foram enterrados. No
Rio de Janeiro, a vala do cemitério de Ricardo de Albuquerque
continha cerca de 2.100 indigentes, sendo que, pelo menos, 14
presos políticos foram ali enterrados. No Recife, no Cemitério
de Santo Amaro, pelo menos 6 militantes assassinados na conhecida
Chacina da Chácara São Bento (1973), estão enterrados como
indigentes. Para maiores informações, consultar: Dossiê dos
Mortos e Desaparecidos Políticos a Partir de 1964 - PE, Imprensa
do estado, 1995.
31 Esta Comissão seria composta
por membros dos poderes legislativo e judiciário e representantes
da sociedade civil, incluindo familiares e entidades de direitos
humanos e coordenada pelo Ministro da Justiça.
32 No artigo As Informações
Secretas das Forças Armadas: a Quem Servem? in Boletim do Grupo
Tortura Nunca Mais-RJ, nº 16, março/1994, são analisadas as
contradições dos três relatórios e as versões mentirosas ali
presentes.
33 Em agosto de 1994, o
representante do PSDB, Dr. Miguel Reale Júnior, assinou, em nome
do candidato de seu partido, uma Carta Compromisso, em evento
organizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos
Políticos, em São Paulo. Esta carta aos candidatos à
presidência continha a mesma proposta feita um ano antes ao
governo Itamar.
34 Neste programa, foi utilizado um
documentário realizado em 1990 por Caco Barcelos, sobre a
abertura da vala de Perus (São Paulo) e impedido de ir ao ar à
época. Sobre o assunto, consultar a matéria Rede Globo Apresenta
Proposta do Governo in Boletim do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ,
nº20, julho/1995
35 Sobre o assunto, consultar os
boletins do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ números 20 e 21, de
julho/1995 e dezembro/1995.
36 Lei 9.140 de 05/12/95 in Dossiê
dos Mortos e Desaparecidos Políticos a Partir de 1964 - SP,
Imprensa do Estado, 1996, pp.439-448.
37 Esta Comissão, que vem
funcionando até hoje, é formada por Nilmário Miranda
(representante da Comissão de Direitos Humanos da Câmara
Federal); Suzana K. Lisboa (representante das entidades e
familiares); João Grandino (do Itamaraty); Paulo Gonet (do
Ministério Público); General Osvaldo Pereira Gomes
(representante das Forças Armadas) e Luís Francisco Carvalho
Filho (que substituiu Eunice Paiva).
38 Até o momento, final de agosto
de 1997, foram aprovados pela Comissão 275 casos de mortos sob a
responsabilidade do Estado, incluindo-se aí alguns casos de
desaparecidos políticos, cujos nomes não se encontravam nas
listas das entidades e familiares.
39 Até o momento, a Comissão
rejeitou 74 casos, sendo que aí estão incluídos os mortos em
tiroteios (na rua, em passeatas e emboscadas) e novos casos onde
não se pôde comprovar participação política.
40 Excluindo-se os casos novos de
desaparecidos políticos apresentados à Comissão, as listas das
entidades e de familiares apresentam 152 desaparecimentos, sendo
que 139 ocorreram no Brasil, 7 na Argentina, 5 no Chile e 1 na
Bolívia.
41 Ver a chamada Operação Condor,
nome dado às operações conjuntas dos serviços de informação
do Brasil e países do Cone Sul.
42 Trata-se dos artigos 4º e 9º.
O primeiro afirma, em seu item II, que a Comissão, dentre outras
atribuições, deve: envidar esforços para a localização dos
corpos das pessoas desaparecidas no caso de existência de
indícios quanto ao local onde podem estar depositados. O segundo,
artigo 9º, afirma que a Comissão Especial poderá solicitar: I-
documentos de qualquer órgão público; II- realização de
perícias; III- a colaboração de testemunhas; IV- a
intermediação do Ministério das Relações Exterirores para a
obtenção de informações junto a governos e entidades
estrangeiras. In Dossiê dos Mortos e Deasaparecidos Políticos a
Partir de 1964 - Op. cit., pp.439,440.
43 Casos de mortes que são
registradas nas delegacias por policiais civis ou militares como
tendo sido decorrentes de resistência à prisão. Tal estratégia
para encobrir os homicídios praticados por agentes do Estado foi
criada em 1963, pelo então secretário de Segurança Pública do
Rio de Janeiro, Gustavo Borges e foram abundantemente utilizados
contra os opositores políticos nos anos 60 e 70. Sobre o assunto,
consultar: Verani, Sérgio - Assassinatos em Nome da Lei - RJ,
Aldebarã, 1996
44 Por coincidência, a familiar
viva de idade mais avançada.
45 Sobre o assunto, consultar, da
Equipe Clínico-Grupal Tortura Nunca Mais, os artigos Herança de
Violência, RJ, 1995; Ficções e intervenções I - BA, 1996;
Ficções e intervenções II, RJ, 1996, dentre outros.
46 Sobre o assunto, consultar
Chauí, M. - Prefácio in De Decca - O Silêncio dos Vencidos -
SP, Brasiliense, 1984.
47 Azevedo, D. - Reflexão
Conjuntural Sobre a Luta pelos Direitos Humanos no Brasil, à Luz
do Programa nacional de Direitos Humanos - Contribuição à 2ª
Conferência Nacional de Direitos Humanos - SP, Secretaria de
Justiça e da Defesa da Cidadania/Conselho Estadual de Defesa dos
Direitos da Pessoa Humana, 1997, pp. 1 e 2, mimeogr.
48 Sobre o assunto, consultar o
artigo de Emir Sader Brasil 1997: Mais ou Menos Democrático? in
Folha de São Paulo - 17/07/97, p. 1-3.
Cecília Mª B. Coimbra
Psicóloga, Professora Adjunta na Universidade Federal Fluminense
Pós-doutoranda no Núcleo de Estudos da Violência da USP
Presidente e uma das fundadoras do Grupo Tortura Nunca Mais-Rio de
Janeiro.
XXI Encontro Anual da ANPOCS
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