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Cecília Coimbra - Entrevista Completa

Como a senhora situa a prática da psicologia?
Meu trabalho de doutorado, que terminei em 1992 pela USP, chama-se "Os guardiães da ordem, uma viagem pelas práticas psi no Brasil do milagre", onde eu mostro a psicologia aliada com a ditadura, uma determinada prática hegemônica da psicologia aliada às praticas então dominantes naquele período, que interessavam ao regime militar. Minha prática tem sido pensar uma psicologia mais voltada para a questão social, mais implicada politicamente com a realidade do país.

Até que ponto a formação determina essas práticas?
Por ter feito História antes da Psicologia e militado politicamente quando estudante, no período barra pesada dos anos 70, tornei-me professora do Departamento de Psicologia, em 1979, já pensando em fazer alguma intervenção na formação do psicólogo. Essa formação se considera apolítica, muito voltada para uma posição de neutralidade, objetividade, onde as questões sociais são extremamente psicologizadas, ou seja, reduzidas ao plano psíquico, psicológico. As relações de poder, de exploração, são escamoteadas o tempo todo.

A formação do psicólogo tem três características fortes que eu combato mesmo. Uma delas é o que eu chamo de psicologização do cotidiano, ou seja, as relações de poder são transformadas em simples relações psicológicas existenciais; outra é a questão do familiarismo: toda e qualquer problemática é reduzida à questão familiar, ou seja, a família e as relações familiares são altamente enfatizadas; e por último a questão do intimismo, muito ligada às outras duas e na qual essa psicologia fortalece e produz um sujeito voltado para dentro de si mesmo, onde os espaços públicos são inferiorizados e desqualificados e o que passa a ser importante é só o espaço do privado.

Como a psicologia pode atuar em prol dos direitos humanos?
A Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia levanta questões da prática cotidiana do psicólogo que ferem os direitos humanos. Um exemplo é a campanha lançada este ano sobre a questão dos manicômios judiciários, com apoio dos 15 conselhos regionais. Estamos levando um questionamento aos profissionais que trabalham com o poder judiciário, em especial desses manicômios, cuja situação consideramos pior que a da prisão ou do hospital psiquiátrico. Isso tem muito a ver com as práticas do psicólogo que trabalha lá e pode não perceber que seu laudo, por exemplo, pode estar patologizando a pobreza. Essa é uma discussão da comissão de direitos humanos e também do curso de psicologia. Quando uma pessoa que cometeu crime recebe o suposto benefício de ser diagnosticada como "louca", na prática fica em um tratamento que se converte em pena onde é abandonada à prisão perpétua, na medida em que seu caso nunca é revisto. Devemos tentar pensar como no cotidiano do psicólogo está sempre presente uma prática que exclui, que produz estigma, que produz rótulo e que, com isso, fortalece a exclusão social como coisa natural e, achando que é possível uma atuação objetiva e neutra, viola os direitos humanos. O psicólogo tem que parar e pensar.

Sabemos que o Grupo Tortura Nunca Mais tem uma posição crítica quanto à indenização às famílias dos mortos e desaparecidos políticos no Brasil. A questão não está resolvida?
Não, esta indenização foi uma tentativa de calar a boca dos parentes. A lei 9.140/95 vem em cima de pressões feitas por várias entidades, desde o governo Sarney. Quando Fernando Henrique Cardoso se candidatou, assim como outros candidatos assinou uma carta-compromisso de não colocar quem participou da repressão em postos de confiança e de resolver a questão dos mortos e desaparecidos políticos, num objetivo pedagógico de resgatar nossa história.

Ao assumir, ele chamou o José Gregori para a nova Secretaria de Direitos Humanos, o que nos animou. Mas temos estranhado muito a postura que o Dr. Gregori tomou e tem tomado ao longo desse governo, justamente por todo o respeito a sua trajetória política e a sua história ligada à questão dos direitos humanos desde o período da ditadura militar.

Então a Secretaria não tem servido a seus propósitos?
Quando a Secretaria Nacional foi criada, gostamos muito e a apoiamos, mas não funciona até hoje. Ela foi criada para monitorar e implementar o plano nacional de direitos humanos que, para nós, não foi implementado nem se transformou em programa. A mídia foi utilizada, o plano foi anunciado num Sete de Setembro e lançado num Treze de Maio, datas de grande apelo, mas continua no papel, não passou de uma mise-en-scène para dizer no exterior que o governo tem compromissos com direitos humanos. Esperávamos mais da secretaria como instrumento, mas até hoje ela depende do Ministério da Justiça. É lamentável que o Dr. José Gregori esteja nisso.

Voltando à questão anterior: quais são os defeitos da lei dos desaparecidos?
Foi feita uma lei que nós questionamos. Apresentamos uma série de emendas, porém a lei foi encaminhada em regime de "urgência urgentíssima" ao Congresso Nacional. Queríamos tempo para que a sociedade discutisse e propusesse mais emendas, mas a lei passou como o governo quis, num rolo compressor. Tentamos falar com o presidente, não fomos recebidos. O Dr. José Gregori falou muitas vezes conosco, até apontando as dificuldades de setores militares aceitarem uma lei mais ampla.

A lei é limitada, porque restringe o prazo de 1961 a 1979. Só que a ditadura terminou em 1985 e há varios casos de mortos e desaparecidos não atendidos. O governo fez isso para mostrar que não estava questionando a Lei da Anistia, quis reeditar uma lei sobre a questão dos mortos e desaparecidos que corroborasse aquela lei, tentando manter a impunidade dos torturadores.

É também uma lei perversa, pois coloca a prova como ônus das famílias, ou seja, não é, como na Argentina, Chile ou Uruguai, em que o próprio Estado resolveu dizer o que aconteceu. Na época, o deputado federal Nilmário Miranda tentou apresentar emendas no modelo chileno, modelo que para nós era até insuficiente. Mas nem mesmo essas emendas passaram. Essa é a pior lei das existentes em toda a América Latina em países que passaram por realidade semelhante, muitos até utilizando know how de tortura exportado pelo Brasil. Isso só veio reforçar a crença na impunidade, coisa muito forte nesse país.

O Estado brasileiro até hoje só assumiu em parte essa responsabilidade, em nenhum momento apresentou desculpas pelo que fez. Matou, sequestrou, ocultou cadáveres, e o familiar é que tem que provar isso. Isso não é dito, só se fala na indenização. Para nós, isso não é indenização, é reparação. Toda e qualquer reparação é fundamental, porque é através da reparação financeira ao dano causado que o Estado capitalista assume sua responsabilidade. Nesse caso, eles colocam a indenização na frente, para depois fazer a derivação se o familiar apresentar indícios. Então, até hoje o Estado não disse quem matou essas pessoas, como elas morreram, onde estão jogados seus restos mortais. A indenização teria que ser efeito de um processo de esclarecimento, e não uma forma de ocultar as circunstâncias. Essa é a lei que o governo coloca internacionalmente como tendo resolvido a questão. Isso nos deixa indignados.

Como combater essa impunidade?
Em 1997, fizemos uma série de denúncias contra militares que participaram direta ou indiretamente de torturas e estavam sendo alçados à categoria de generais pelo governo federal. Nossa denúncia foi divulgada pelo Jornal do Brasil e Correio Braziliense. No dia seguinte começamos a ser ameaçados por cartas e telefonemas anônimos dizendo que eu tomasse cuidado, que eles sabiam de todos os meus passos e que iriam explodir uma bomba. Ameaçaram também a sede do Tortura Nunca Mais. Portanto, até hoje há militares saudosistas da ditadura.

Os arquivos daquele período estão guardados a sete chaves até hoje. O único aberto no Rio e em São Paulo, por pressão nossa, foi o do Dops. Quando as oposições ganharam as eleições, no Rio com Leonel Brizola e em São Paulo com Franco Montoro, no início dos anos 80, esses arquivos, que são estaduais, foram entregues à Polícia Federal. Depois de mexidos, voltaram aos governos dos Estados nos anos 90. Praticamente não existe ficha de nenhum desaparecido. Entramos com um processo contra o Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, sobre a guerrilha do Araguaia. A Justiça determinou que esses arquivos fossem abertos e até hoje o governo não fez nada. O governo Fernando Henrique Cardoso, que se diz preocupado com a questão dos direitos humanos, é o governo que mais tem negado anistia, e pessoas que tinham conseguido anistia têm sido desanistiadas. O próprio presidente, ele também uma pessoa anistiada, tem se colocado contra o estatuto da anistia.

Esta violação ocorrida nos anos 60 e 70 está ligada às violações de hoje. A tortura institucionalizada oficialmente naquela época faz parte de uma história de violência de um país que, não é à toa, teve 300 anos de escravidão. Nossas subjetividades estão produzidas para achar que negro e descendente de negro são coisa, não valem nada, não são humanos como os demais. Nesse momento alguém está sendo torturado em alguma delegacia policial, hospital ou local que guarda criança, adolescente. Não falo só da tortura física, mas da violência como a praticada nos manicômios judiciários, contra a criança e o adolescente nas Febem da vida, a questão da mulher, uma série de violências não caracterizadas como violência doméstica e que conformam uma questão pública que não pode ser desqualificada e virar briga em que ninguém mete a colher.

Discutir a questão da violência hoje é fundamental. Existe uma tendência de se naturalizar a questão, enquanto produção de subjetividade mesmo. O ser humano é de uma plasticidade muito grande e se acostuma facilmente com as coisas, até com as piores violações aos seus direitos, que acaba achando natural. Isso não é da natureza do ser humano, é uma produção competente dos meios de comunicação de massa, que não resgatam a história e mostram o pobre como um criminoso em potencial.

O psicólogo precisa estar consciente dessa manipulação, a exemplo do que está se produzindo com essa menina que foi presa por matar a Michele, em Niterói. Ela está sendo pintada como monstro. A fala dos especialistas é que os infratores são monstros que precisam ficar presos e, como monstros, têm que ser exterminados. Prega-se abertamente a pena de morte e o psicólogo embarca nessa.

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