MONITORAMENTO
DO CUMPRIMENTO DE COMPROMISSOS EM DIREITOS
HUMANOS
Breve Relato e Comentário sobre Atuação
junto ao Comitê DESC/ONU
Paulo César
Carbonari
Meus agradecimentos à Comissão de Direitos
Humanos de Passo Fundo, que neste mês completa 19 anos de atuação junto à
comunidade local, e ao Instituto Superior de Filosofia Berthier por esta
oportunidade para tratarmos de um tema de tão relevante importância.
No universo do debate sobre direitos humanos, nos
ocuparemos de tratar de alguns aspectos do monitoramento do cumprimento de
compromissos em direitos humanos, particularmente em matéria de Direitos Humanos
Econômicos, Sociais e Culturais. Situaremos inicialmente os compromissos
brasileiros neste campo e suas implicações; num segundo momento trataremos dos
mecanismos de monitoramento hoje vigentes; para num terceiro momento, relatarmos
a atuação que tivemos junto ao Comitê DESC/ONU e, finalmente, num quarto
momento, comentarmos as Observações Conclusivas sobre o Brasil.
Esperamos ser breves e ao mesmo tempo tratar da
melhor forma um tema que é difícil e ainda de pouco domínio público. Contaremos
com a participação de todas/os as/os presentes para aprimorarmos nossa exposição
inicial.
1. Os compromissos brasileiros em matéria de
DhESC
O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais (PIDESC) constitui-se num dos principais instrumentos em
matéria de proteção dos direitos humanos. Foi adotado pelas Nações Unidas em
1966 e essencialmente reconhece que direito ao desenvolvimento próprio, à
autodeterminação, ao Trabalho, à Saúde, à Educação, à Moradia Adequada, à Terra,
à Água e à Alimentação, à Cultura e ao acesso ao desenvolvimento científico e
tecnológico e ao Meio Ambiente saudável são direitos humanos fundamentais. Não
admite qualquer discriminação por razões de gênero, orientação sexual,
etnia/raça, geração ou de qualquer outra natureza. Prevê que os Estados são os
principais responsáveis pela garantia destes direitos e que eles estão
obrigados, a partir do momento que o adotam, a cumprir suas determinações,
oferecendo concretamente sua realização aos cidadãos de seu País.
Junto com o Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos (PIDCP), também adotado em 1966 pela ONU, o PIDESC constitui a
essência da Carta das Nações Unidas em matéria de Direitos Humanos, que é
complementada por um conjunto de outras Convenções e Declarações. Juntos,
direitos civil e políticos e direitos econômicos, sociais e culturais formam o
conjunto dos direitos humanos que são de acordo com a Declaração e Programa de
Ação da Conferência de Viena (1993), universais, indivisíveis e
interdependentes, devendo estar irmanados com desenvolvimento e democracia.
Neste sentido, constituem-se em direitos exigíveis por qualquer cidadão, sujeito
de direitos, cuja legislação de seu país os tenha ratificado.
O Pacto determina que a cada quatro anos os
países signatários apresentem Informes sobre a situação do cumprimento do Pacto.
Com base nele é que é feito o monitoramento.
O Brasil ratificou o Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais em 1992. Através deste instrumento,
integrado à legislação nacional especialmente pelo artigo 5º, § 1º e 2º da
Constituição Federal, o País fica obrigado a cumprir as determinações do Sistema
Global de Proteção de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU) e oferecer
políticas, programas e ações em vista de garanti-los a todos os seus cidadãos.
2. Mecanismos de Monitoramento do Sistema ONU
Com o objetivo de monitorar o cumprimento dos
compromissos que os Países assumem ao ratificar o PIDESC, a ONU criou o Comitê
de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. O Comitê tem sede junto às Nações
Unidas, em Genebra. É formado por dezoito especialistas oriundos dos mais
diversos países que são nomeados para um mandato de até quatro anos pela
Comissão de Direitos Humanos da ONU. O Comitê se reúne duas vezes por ano. Tem
como principal tarefa analisar os Informes sobre cumprimento do PIDESC e emitir
Comentários Gerais sobre o conteúdo e as estratégias para cumprir o que
determina o Pacto.
Entre as medidas de monitoramento, a principal,
como disse, é a análise dos Informes para que a ONU possa saber se o País vem
cumprindo o que determina o Pacto. No Informe o governo do País deve relatar ao
Comitê sobre o estágio do cumprimento dos direitos em termos legislativos,
judiciários e de políticas públicas, bem como apresentar o que entende serem os
principais passos que ainda precisariam ser dados na perspectiva da garantia
universal e indivisível de todos os direitos humanos dos seus cidadãos.
E de praxe que o Comitê, depois de receber o
relatório oficial do governo, receba um Contra Informe elaborado por
organizações representativas da sociedade civil. Com base nesses documentos, o
Comitê procede à análise e emite seu parecer em forma de Observações
Conclusivas. Neste parecer geralmente o Comitê aponta aspectos positivos, indica
fatores e dificuldades que a seu ver impedem a implementação do Pacto, descreve
os aspectos que lhe chamaram mais à atenção e, finalmente, emite recomendações
de ações e medidas que acha devem ser adotadas pelo País para que avance no
cumprimento do Pacto.
A posição do Comitê não obriga, em termos legais,
o governo do País a cumpri-las. Elas se transformam em recomendações com força
política e moral que, em geral, convertem-se em instrumento de negociação para
que sejam dados passos significativos na perspectiva de que os direitos humanos
sejam efetivamente garantidos naquele País.
O Brasil, como signatário do Pacto desde 1992,
apresentou seu primeiro Informe em agosto de 2001, com atraso de quase dez anos.
Isto foi impulsionado por uma série de iniciativas da sociedade civil que, em
2000 havia apresentado, de maneira inédita um Informe ao Comitê. Foi pioneira na
apresentação deste tipo de documento, já que isto nunca havia acontecido antes.
Este ato serviu para pressionar o governo brasileiro a apresentar o Informe
Oficial.
3. Breve relato da Atuação da Sociedade Civil
junto ao Comitê DESC/ONU
O Comitê DESC/ONU, em seu trigésimo período de
Sessões (de 05 a 23 de maio de 2003) analisou o Informe apresentado pelo governo
brasileiro sobre o cumprimento do que determina o Pacto. O Brasil esteve na
pauta do Comitê nos dias 08 e 09 de maio. No dia 05 de maio, representantes de
organizações da sociedade civil brasileira apresentaram o Contra Informe ao
Informe do governo.
Na sua apresentação ao Comitê, os representantes
da Sociedade Civil fizeram uma exposição que ressaltou a gravidade da situação
de desigualdade que marca a sociedade brasileira e a necessidade de sua
superação como condição para garantir a efetivação dos direitos humanos
econômicos, sociais e culturais no Brasil. Ressaltou ainda a diversidade que
marca a sociedade brasileira e a necessidade de superação da discriminação de
gênero e etnia. Manifestou que a sociedade brasileira tem uma grande expectativa
em relação ao posicionamento do Comitê, especialmente, aguarda as conclusões e
recomendações – sendo que ofereceu ao Comitê uma lista de propostas com mais de
50 itens – com o compromisso de realizar amplo processo de debate e de
concertação em vista de comprometer o novo governo com a efetiva garantia dos
DhESC.
Os membros do Comitê fizeram vários
questionamentos aos representantes da sociedade civil e manifestaram seu
contentamento com o fato de o Brasil apresentar o Informe e também o Contra
Informe e declararam que suas sugestões serão feitas no sentido de colaborar
para que o País possa das passos significativos na garantia dos DhESC.
Nos dias 08 e 09 de maio coube ao governo brasileiro defender seu Informe
perante o Comitê. A delegação foi chefiada pelo Embaixador Antônio Pedro, chefe
do Departamento de Direitos Humanos do Itamaraty. Como o governo brasileiro não
respondera previamente aos 52 questionamentos do Comitê (publicados em junho de
2002) a sessão resumiu-se à apresentação verbal das respostas e ao
esclarecimento de questionamentos adicionais dos membros do Comitê. O
representante do governo brasileiro reconheceu que o Brasil precisa dar passos
significativos no sentido do cumprimento do Pacto e que o governo está empenhado
para tal, ressaltando que esta é uma prioridade assumida pelo Presidente da
República. Na resposta aos questionamentos específicos a delegação não satisfez
aos membros do Comitê que manifestaram em vários momentos seu descontentamento.
A delegação da sociedade civil, que acompanhou
todos os trabalhos do Comitê ao longo da semana, lançou nota pública ao final
dos trabalhos do dia 09 na qual manifestou seu descontentamento com a forma de
intervenção do governo brasileiro e sua preocupação com a anunciada prioridade
ao tema, já que entendeu que não foi dada suficiente prioridade ao debate e ao
momento histórico junto ao Comitê.
No final do período da Sessão, no dia 23 de maio,
o Comitê, subsidiado pela proposta da Relatora para o Brasil, Sra. Virgínia
Bonoan Dandan (Presidente do Comitê), divulgou suas Observações Conclusivas
sobre o Cumprimento do PIDESC pelo Brasil.
A apresentação do Contra Informe foi coordenada
pela Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais
(Plataforma DhESC Brasil), cuja elaboração coordenou com a participação de
organizações sociais que atuam nos temas específicos previstos no Pacto. As
exposições ao Comitê foram feitas por: Márcio Alexandre Gualberto, da FASE
(Federação dos Órgãos de Assistência Social e Educacional), que fez uma
apresentação geral do processo e dos objetivos do Contra Informe; Luiz Peixoto,
da FIAN Brasil (Rede de Informação e Ação pelo Direito a se Alimentar), que
abordou o direito humano à alimentação, à terra e à água; Flávia Piovesan e
Sílvia Pimentel, do CLADEM Brasil (Comitê Latino Americano de Defesa dos
Direitos das Mulheres), que apresentaram uma leitura com o recorte de gênero,
etnia e regionalidade; Letícia Osório, do COHRE Brasil (Centro Internacional
pelo Direito à Moradia), que apresentou a situação do direito à moradia; Daniel
Rech, do CERIS, que apresentou um panorama do direito à educação e à
participação popular; e Paulo César Carbonari, do MNDH (Movimento Nacional de
Direitos Humanos) e da Plataforma DhESC, que apresentou sugestões de
recomendações gerais. Além dessas entidades, também esteve representada a
Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, a Organização Mundial de Combate à
Tortura, a FIAN Internacional, a Franciscans Internacional, a Misereor e a EED
(estas duas últimas, agências de cooperação da Alemanha).
4. Breve comentário sobre as Observações
Conclusivas do Comitê
No dia 23 de maio, o Comitê DESC/ONU divulgou
suas conclusões resultantes da análise do Informe do Governo Brasileiro sobre o
cumprimento do PIDESC. Entre as principais aspectos, o documento reconhece
avanços importantes no campo da proteção dos direitos humanos no Brasil, mas
também aponta vários problemas que, em seu entendimento, constituem-se em
empecilhos para a garantia efetiva dos direitos, especialmente para as
populações em situação de maior vulnerabilidade. O documento apresenta uma longa
lista de recomendações (26 ao todo) para que o País possa dar passos no sentido
do cumprimento do PIDESC.
O Comitê ressalta que o Brasil deu passos
significativos na proteção dos direitos humanos. Cita como avanços: a
instituição do Programa Nacional de Direitos Humanos, a criação da Secretaria
Especial de Direitos Humanos, a incorporação dos direitos humanos à legislação
interna especialmente a partir da Constituição Federal de 1988, a mudança do
Código Civil que promove maior igualdade entre homens e mulheres, os programas
de ação afirmativa para promoção da população afro-descendente, o programa Fome
Zero, que pretende erradicar a fome que atinge um porção substancial da
população, os esforços pela redução da mortalidade em conseqüência do HIV/AIDS e
a participação pró-ativa da sociedade civil no monitoramento da implementação do
PIDESC.
O Comitê observa uma sério de aspectos que lista
entre suas principais preocupações. Começa com uma observação sobre a
persistência da desigualdade em diversos aspectos: regional, de gênero, étnica,
econômica e a prevalência da injustiça social. Além disso, também observa outros
aspectos: o desequilíbrio na distribuição dos recursos e da renda e no acesso
aos serviços básicos; a falta de formação em direitos humanos, especialmente dos
agentes públicos; a discriminação difundida e profundamente enraizada contra
afro-brasileiros, povos indígenas e minorias como ciganos e comunidades
quilombolas; a discriminação das mulheres; o presença de trabalho forçado e
escravo; a insuficiência do salário mínimo nacional para assegurar padrão de
vida adequado ao trabalhador e sua família; a morte de sem terras e a impunidade
dos crimes cometidos contra eles; a elevada taxa de mortalidade materna devido a
abortos ilegais; a violência sexual e doméstica difundida; a incidência elevada
de tráfico de mulheres para exploração sexual comercial; a insuficiente proteção
aos povos indígenas, que continuam forçados a sair de suas terras ou a ver suas
terras ocupadas; as condições de vida dos prisioneiros e sobre a elevada
concentração da terra nas mão de uma minoria e seus efeitos na distribuição
igualitária da riqueza.
O Comitê recomenda ao Brasil, entre outras
coisas, que providencie imediatamente ações corretivas no sentido de reduzir as
desigualdades e os desequilíbrios extremos na distribuição da riqueza e da
renda. Além disso, que qualifique a formação e educação em direitos humanos;
tome todas as medidas necessárias a coibir a discriminação de raça, cor, origem
étnica, de sexo, em todos os campos da vida econômica, social e cultural; tome
medidas urgentes para assegurar igualdade de oportunidades para
afro-brasileiros, povos indígenas e grupos minoritários; adote medidas concretas
para que pessoas portadoras de necessidades especiais possam gozar de todos os
direitos garantidos no PIDESC; adote todas as medidas necessárias e eficazes
para assegurar a igualdade entre homens e mulheres; implemente urgentemente um
Plano Nacional de erradicação do trabalho escravo com as medidas necessárias
para tal; assegure que o salário mínimo permita a trabalhadores e suas famílias
o gozo de um padrão adequado de vida; promova ações legais para responsabilizar
e dar fim à impunidade de assassinos de camponeses sem terra; tome medida
eficazes para eliminar todas as formas de violência contra a mulher; modifique o
Código Penal retirando todas as previsões discriminatórias nele contidas; torne
efetivas as medidas para combater a pobreza e; leve a efeito a um Programa
Nacional de garantia de acesso à moradia.
O Comitê ressalta dois aspectos que, a seu ver,
dificultam, afetando negativamente a implementação do PIDESC no Brasil: 1. A
extrema desigualdade e a injustiça social; 2. A recessão econômica associada a
determinados aspectos dos programas de ajuste estrutural e das políticas
econômicas do liberalização. Para o Comitê estes dois aspectos produzem efeitos
negativos na efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais,
especialmente para os grupos mais marginalizados e em situação de maior
vulnerabilidade social.
Importante registrar que o Comitê levou em conta
a maioria das sugestões de recomendações oferecidas pela Sociedade Civil
transformando-as em observações suas.
O trabalho que se segue agora é de discussão, pressão
e ação no sentido de desenvolver políticas,
programas e ações para que o Brasil
dê passos significativos na proteção
dos direitos humanos econômicos, sociais
e culturais. Para isso é fundamental
acompanhar os desdobramentos da recente
VIII Conferência Nacional de Direitos
Humanos (11 a 13 de junho), que aprovou
a criação do Sistema Nacional de Proteção
de Direitos Humanos, e o processo de
discussão e elaboração do Plano Plurianual
2004-2007 que está em curso através
da realização de Fóruns de Participação
em todos os Estados brasileiros, estando
previsto para o Rio Grande do Sul no
próximo dia 24 de junho, em Porto Alegre.
Passo Fundo, 18 de junho de 2003.
<
Voltar