GLOBALIZAÇÃO
E DIREITOS HUMANOS
Identificando desafios
Paulo César
Carbonari
Sumário: O artigo pretende tematizar a questão
dos direitos humanos no seio do processo de globalização em curso e levantar
desafios para seu enfrentamento numa perspectiva alternativa. Traça em linhas
gerais o sentido de direitos humanos carregado pelo processo de globalização
hegemônico. Além disso, localiza na construção de uma nova ordem munidal e no
fortalecimento dos espaços públicos democráticos os grandes desafios à
construção da luta pelos direitos humanos num mundo globalizado.
Palavras Chave: direitos humanos, globalização,
democracia, desenvolvimento
Introdução
O assunto anunciado no título do presente artigo
é demasiadamente amplo e exigiria uma revisão profunda da situação
contemporânea, a fim de localizar os elementos centrais que caracterizam o
contexto atual e de identificar nele os desafios para o avanço da luta pelos
direitos humanos. O tratamento da questão implicaria passar em revista vários
aspectos da realidade. Entre as várias possibilidades, optamos por fazê-la na
ótica dos direitos humanos, com um recorte tangencial nos direitos humanos
econômicos, sociais e culturais.
Defendemos a tese de que a globalização levou a questão dos direitos humanos a
uma situação paradoxal: ao mesmo tempo em que em nenhum outro momento histórico
os direitos humanos foram tão significativamente invocados também se encontram
num momento de crise e de muita dificuldade de afirmação real. A saída desse
paradoxo exige que identifiquemos no processo de globalização em curso qual é a
idéia de direitos humanos que vem sendo gestada e, ao mesmo tempo, em que medida
esta idéia pode não ser completamente capturada por est??e processo e ensejar o
fortalecimento das alternativas a ele.
Para realizar este percurso faremos inicialmente uma breve caracterização da
globalização e de suas implicações em termos de direitos humanos, ocupando-nos
da concepção de direitos humanos que o modelo vigente de globalização defende.
Em seguida, analisaremos as condições e possibilidades para que direitos humanos
possam ser recuperados como componentes fundantes da luta pela emancipação e
libertação. Ao final, apresentaremos algumas ponderações a título de conclusão.
Uma leitura do contexto de globalização
Para compreender o contexto da globalização na
perspectiva dos direitos humanos é necessário primeiro fazermos uma aclaração da
noção de globalização. Neste sentido um primeira leitura da questão indicará que
o conceito de globalização é polissêmico. Vai desde o sentido de universalização
das regras liberalizantes do mercado, passando pela idéia específica do
expansionismo livre das transnacionais e da integração subordinada dos países
pobres, até uma idéia mais aberta que a entende como integração integral (perdão
pela necessária redundância) de povos e culturas. A par dos diversos sentidos
possíveis para a globalização aqui rapidamente mapeados, a idéia hegemônica de
globalização, no entanto, é aquela patrocinada pelo que ficou conhecido como
pensamento único e que consiste, em rápidas palavras, na afirmação da razão do
mercado ou mais precisamente, na afirmação do mercado total como espaço não
somente de trocas econômicas, mas como espaço de socialização e de constituição
da subjetividade .
Em consequência, qualquer outra forma de entendimento do processo fica
prejudicada pois passa a ser encarada como um distorção , que há que ser
corrigida pela própria lógica do mercado. O processo humano em geral, mais do
que o processo econômico propriamente dito, passa a ser entendido na lógica da
competitividade?? sistêmica, valor supremo de organização da vida humana. Neste
contexto, os direitos humanos, mesmo que sejam cada vez mais invocados por
diferentes setores sociais, inclusive pelos agentes econônicos, passam a também
estar subordinados à lógica do mercado, o que, em termos concretos, significa o
mesmo que subordinar os seres humanos reais a uma única lógica, à
irracionalidade da mão invisível do mercado total.
Gutiérrez localiza em quatro fatos a leitura da globalização na perspectiva dos
direitos humanos: primeiro, o agravamento das tendências destrutivas da vida
social e natural; segundo, a constituição de gigantescas burocracias privadas
transnacionais que funcionam como espécies de “estados privados mundiais” e
estão dispostas a submeter os estados nacionais; terceiro, a conformação de uma
única potência hegemônica mundial que se arvora o direito de impôr sua própria
compreensão e prática política, econômica, social e cultural a todo o mundo;
quarto, o surgimento de um fenômeno cultural que legitima a lógica do sistema,
na perspectiva da afirmação do pensamento único, o “pensamento cínico do
sistema”.
Os fatos referidos por Gutiérrez nos levam a entender que a compreensão de
direitos humanos, vigente como hegemônica, esforça-se em romper o lugar da
subjetividade centrado na pessoa e o joga para o espaço das corporações
econômicas transnacionais. Em decorrência, rompe-se com a idéia de cidadania
como elemento constitutivo dos direitos humanos e converte-se cidadãos em
clientes . Ora, cidadania, historicamente, implica reconhecimento de sujeitos de
direitos demandantes e institucionalidades públicas responsáveis por sua
satisfação, notadamente circunscritas e dependentes de tradições culturais e de
arranjos políticos centrados nos Estados nacionais e em organismos
internacionais por estes patrocinados. Clientes, no entanto, não consideram
sujeitos, implicam em consumidores que buscam bens para a satisfação de
necessidades – via de regra, criadas pel??os próprios agentes econômicos como
sobreposição ilusória das necessidades humanas básicas – atendidas por agentes
privados em relações de troca mediadas pelo valor monetário. Cidadania implica
universalidade, consumo implica poder de compra. A lógica do mercado rompe com o
princípio fundante da cidadania e os direitos humanos deixam de ser direitos de
cidadania. Chega-se a confundi-los com o direito à livre iniciativa dos agentes
econômicos.
Centralmente, na lógica do mercado, direitos humanos são os direitos dos
proprietários , daqueles que têm condições de ser potencialmente consumidores,
clientes do sistema. Em tese, as melhores posições liberais diriam que todos os
seres humanos teriam lugar nesta lógica. No entanto, a história e os fatos
insistem em demonstrar o contrário, já que a maioria absoluta da humanidade se
encontra excluida do acesso à satisfação de suas necessidades elementares pela
lógica do mercado.
O domúínio de burocracias privadas, reforçadas pelas burocracias públicas, leva
à diluição dos espaços de vigência dos direitos humanos e à sua relegação a
elementos de ação compensatória ou até de legitimação do próprio poderio
econômico das grandes potências hegemônicas. Em detrimento de comporem bases
para a orientação das políticas públicas estruturais, o que ocorre é um
crescente descompromisso dos Estados com a promoção de políticas na lógica de
satisfação universal dos direitos e o crescimento de propostas de atendimento
emergencial, por demanda focalizada, associada à mobilização da caridade difusa
dos cidadãos individuais, envoltos no fortalecimento do voluntariado.
O processo de globalização, compreendendo dessa forma os direitos humanos, leva
a uma “crise dos direitos humanos”. Segundo Gutiérrez, esta crise pode ser
entendida de várias maneiras:
“Primero, de ausencia de derechos para la mayoría
de la población mundial; segundo, de los movimientos de derechos humanos que se
enfrentam?? hoy en día, en su lucha por el derecho a la vida, a un poder de
exclusión total, invisibilizado (ley del valor) y protegido por la legislación;
crisis de la institución llamada derechos humanos por eso mismo, por haberse
convertido en institución, y ser vaciada de contenido por el uso del poder
mundial que legitima políticas imperiales de muerte e intervención en su nombre;
y finalmente crisis de la institución llamada derechos humanos por la emergencia
del pensamiento cínico para el cual el derecho a la vida no es universal y por
ende ningún otro derecho humano” .
O primeiro aspecto da crise apontada por
Gutiérrez é o da ausência de direitos para a maioria da população mundial.
Alguns dados, de todos conhecidos, demonstram melhor a questão. Por exemplo, a
partir do processo de aplicação dos chamados ajustes estruturais no mundo, mais
precisamente entre 1985 e 1995, o PIB (Produto Interno Bruto) per capita dos dez
países mais ricos do mundo dobrou, enquanto o mesmo índice no caso dos dez
países mais pobres caiu 30%, resultando no aumento de 70 para 430 vezes a
distância do PIB per capita entre o país mais rico e o país mais pobre do
planeta . Esta questão levou o próprio Conselho Econômico e Social (ECOSOC) das
Nações Unidas a reconhecer que:
“El ajuste estructural va más allá de la
imposición sencilla de un conjunto de políticas macroeconómicas a nivel interno
(...), es una estratégia consciente de transformación social en el plano
mundial, em primer lugar, para hacer el mundo más seguro para las empresas
transnacionales” .
Ora, sendo isso verdade – e não há motivos para
que não seja – fica confirmado o argumento de que o que interessa aos agentes da
globalização é a criação das melhores condições para a reprodução dos mecanismos
de mercado e, de nenhuma forma, o desenvolvimento de condições para garantir a
vigência dos dir??eitos humanos para milhões de seres humanos cada vez mais
excluídos do acesso a eles e sem qualquer esperança de encontrar no mercado
condições para sua satisfação.
O segundo aspecto da crise apontado por Gutiérrez redunda na contradição cada
vez mais presente que se traduz no fato de que os mesmos Estados que assinam
pactos e protocolos em vista de garantir a vigência dos direitos humanos,
assinam acordos comerciais que põem em tela de violação os direitos humanos .
Neste contexto, é estranho que os mesmos 171 Estados que assinaram a Declaração
e o Programa de Ação de Viena, em 1993, sejam aqueles que, mesmo
comprometendo-se a serem os primeiros a respeitá-la, acabem sendo os primeiros a
não cumpri-la e a permitir que os agentes econômicos privados os levem a deixar
de fazê-lo.
Ante tamanha volatilidade já que os estados se desobrigam, na prática, em favor
das burocracias privadas não responsabilizáveis, a luta pelos direitos humanos,
fica no vazio, sem um alvo concreto a quem responsabilizar efetivamente. Até
porque, mesmo quando os Estados entendem fundamental promover políticas de
direitos humanos, acabam desenvolvendo ações compensatórias das distorções do
mercado. Este mecanismo é utilizado, inclusive, para que as populações incidam
de maneira menos significativa como elemento de distorção do mercado, fazendo
com que ele possa seguir intacto seu percurso.
O terceiro aspecto da crise consiste exatamente no fato de os direitos humanos,
ao terem se tornado componentes do discurso oficial e institucional, tanto de
estados quanto de agentes econômicos, acabam esvaziados em seu conteúdo de
componente fundamentador de ações emancipatórias. O mais grave desse processo
está no que Hinkelammert aponta como processo de institucionalização dos
direitos humanos que se traduz exatamente em entender não mais os direitos
humanos como direitos das pessoas humanas concretas e sim como direitos de
corporações e instituições .
Contraditoriamente, no entanto,?? mecanismos internacionais de proteção como o
Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU, organismo que insite em
manter uma idéia de direitos humanos que não sucumbe ao mercado, num documento
conhecido como Viena+5, declara que:
“Aun reconociendo que la democracia, el
desarrollo y el respeto de los derechos humanos y de las libertades
fundamentales son conceptos interdependientes que se refuerzan mutuamente (Parte
I, párr. 8), la Conferencia reafirmó también el derecho al desarrollo, según se
proclama en la Declaración sobre el Derecho al Desarrollo, como derecho
universal e inalienable y como parte integrante de los derechos humanos
fundamentales, y que la persona humana es el sujeto central del desarrollo
(Parte I, párr. 10). Al hacer esta declaración, la Conferencia Mundial
estableció el fundamento de un planteamiento integrado y global de los derechos
humanos, no sólo para el mecanismo de derechos humanos sino también para todo el
sistema de las Naciones Unidas. A fin de aplicar las recomendaciones de la
Conferencia a este respecto, el Alto Comisionado ha hecho del derecho al
desarrollo uno de los principios básicos de sus actividades y está elaborando
una estrategia que debería fomentar su aplicación (E/CN.4/1998/122) .
Neste sentido, no contexto da crise apontada por
Gutiérrez, a afirmação do Alto Comissariado soa como um programa de difícil
viabilidade, já que a maioria dos Estados insiste em ignorar esta questão e em
entender o desenvolvimento muito mais como resultante das variáveis do mercado
do que como investimento público. A faceta mais perversa da questão, no entanto,
está exatamente no fato de as potências hegemônicas não raras vezes utilizarem
os direitos humanos como componente de manutenção de seu status e de condenação
à subordinação dos países pobres, sem que eles próprios assumam internamente a
vigência dos mesmos mecanismos de proteção in??ternacional dos direitos humanos .
O quarto aspecto da crise é caracterizado por Gutiérrez como a crise da própria
idéia de direitos humanos ante a hegemonia do pensamento único cínico. De alguma
forma, já tocamos esta questão quando dissemos que, para os agentes da
globalização, os direitos humanos são direitos de instituições, de corporações
proprietárias. O que está em questão aqui é exatamente a concepção de direitos
humanos que é carregada pelo processo de globalização. As palavras de
Hinkelammert ilustram a questão:
“La transformación de la economía en guerra
económica y la seguiente transformación de la competitividad en valor único y
superior está destruyendo y eliminando todos los derechos humanos en nombre de
los derechos del mercado, que son derechos vigentes en el mercado y solamente en
él” .
O pensamento único é cínico porque mesmo não
ignorando as graves consequências que produz, insiste em encará-las como alheias
ao que implementa . Além disso, defende que os direitos humanos, quando
entendidos como direitos de pessoas concretas, não passam de distorções do
mercado, ignorando portanto os seres humanos reais. Recorremos novamente a
Hinkelammert para aclarar a questão:
“No todas las distorsiones del mercado son
producto del reconocimiento de los derechos humanos, pero tendencialmente toda
defensa de los derechos humanos como derechos de los seres humanos corporales
aparece como distorsión del mercado. Por eso, la eliminación indiscriminada de
las distorsiones del mercado desemboca con una lógica implícita en la distorción
de los própios derechos humanos. Eso vale en el grado en el cual la eliminación
de estas distorsiones, se lleva a cabo en nombre de um princípio general, como
es el caso del proceso de globalización. Sin embargo, la política de la
eliminación de las distorsiones se presenta como simple aplica??ción de una
técnica” .
Entendemos que os elementos que aportamos,
seguindo de perto o raciocínio de Gutiérrez e completando com outros aspectos,
são aclaradores da questão da globalização, lida na perspectiva dos direitos
humanos e mesmo da concepção de direitos humanos que é propugnada pelos agentes
desse processo. A partir desses elementos, daremos o passo seguinte, que
consiste em procurar, a partir de uma outra idéia de direitos humanos que
brevemente apresentaremos, indicar os desafios fundamentais para pensar e agir
alternativamente em diretos humanos num tempo de globalização.
Desafios à luta pelos direitos humanos
A identificação de desafios no contexto da
leitura de realidade que fizemos implica que inicialmente esclareçamos nossa
compreensão de direitos humanos que deu ensejo tanto àquela leitura quanto a que
indicará os desafios.
A noção de direitos humanos possui uma unidade normativa interna que se funda na
dignidade igual de cada um e de todos os seres humanos como sujeitos morais,
como sujeitos jurídicos, como sujeitos políticos e como sujeitos sociais. O
reconhecimento desta unidade normativa encontra eco reflexivamente no fato de
que a construção de qualquer ordenamento, seja ele jurídico, político ou social
teria que contar em sua base sempre com a garantia de condições para que o ser
humano tenha lugar central e intransponível. Esta unidade normativa cria
condições tanto para orientar a construção dos arranjos históricos de sua
efetivação, quanto, reversamente, para a crítica daqueles arranjos que não
caminham concretamente na perspectiva dos direitos.
Discordando das teses liberais ou liberalizantes, afirmamos que os direitos
humanos econômicos, sociais e culturais não estão hierarquicamente em posição
inferior os direitos humanos civis e políticos. Eles estão em posição de
equivalência. Não conc??ordamos em suportar situações nas quais sucessivos
governos justificam ditaduras dizendo que em sociedades profundamente
assimétricas é plausível a redução das liberdades fundamentais em nome da
garantia do progresso sócio-econômico. Ou então, em situações precariamente
democráticas afirmando que, mesmo pobres, é melhor vivermos em um tempo de
garantia da liberdades básicas, o que nos dá a chance de entrar no campo
competitivo do liberalismo e quiçá galgar postos de satisfação mais aprimorada
das demandas humanas, sempre individualmente. Contra estes argumentos redutivos
afirmamos que tratar de direitos humanos é tratar de todos os direitos humanos,
dos direitos humanos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.
Esta posição implica reconhecer que não há liberdade que possa ser exercida sem
um espaço social de solidariedade. Até porque, como confirma Fraling: “Seres
humanos são seres materiais e necessitam de bens materiais para sobreviver. Sem
a satisfação de necessidades econômicas básicas não se torna possível a
existência da pessoa em liberdade, moldando a sua existência” . Ou seja, a
garantia de satisfação dos direitos humanos implica seu tratamento integral, o
que também está em jogo quando falamos de seu reconhecimento como direitos
universais. Ou seja, todos os direitos humanos têm a pretensão de ser
universais. Evidentemente que o modo de realização histórica de uns e outros
direitos ganha contornos diversos. No entanto, privilegiar uns ou outros
significaria abrir mão do princípio básico da dignidade humana, comum a todos os
humanos.
A Conferência de Viena parece ter chegado, contraditoriamente, a uma formulação
bastante satisfatória sobre o assunto. Segundo ela:
“Todos os direitos humanos são universais,
indivisíveis e interdependentes e estão relacionados entre si. A comunidade
internacional deve tratar os direitos humanos de forma global e de maneira justa
e eqüitativa, em pé de igualdade, d??ando a todos o mesmo peso. Deve-se ter em
conta a importância das particularidades nacionais e regionais, assim como
aquelas dos diversos patrimônios históricos, culturais e religiosos, porém, os
Estados têm o dever, sejam quais forem seus sistemas políticos, econômicos e
culturais, de promover e proteger todos os direitos humanos e as liberdades
fundamentais” .
Avançando na nossa análise passaremos agora a nos
ocupar dos desafios fundamentais à vigência dos direitos humanos num mundo
globalizado, sempre na perspectiva de tê-los como suporte de um pensamento e
ação alternativos ao processo em curso.
O jurista brasileiro, Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos,
Dr. Antônio Augusto Cançado Trindade, em sua palestra na IV Conferência Nacional
de Direitos Humanos, realizada em 1999, em Brasília, dizia, neste contexto, que
o grande desafio encontra-se em “situar a pessoa humana no centro de todo o
processo de desenvolvimento, o que requer um espírito de maior solidariedade em
cada sociedade nacional e a consciência de que a sorte de cada um está
inexoravelmente ligada a sorte de todos” . Em outras palavras, consiste em
articular a idéia de cidadania em sentido amplo e que leve em conta a
diversidade das dimensões da vida humana, tendo como pano de fundo a dignidade
humana. Trata-se, portanto, da recuperação do sujeito humano, pessoa real,
sujeito de direitos.
Seguindo esta lógica, entendemos que os direitos humanos exigem, além dessa base
fundacional, centrada na dignidade humana, uma base histórica para sua
realização, em processo, em espaços sociais e políticos. Neste sentido, entram
dois aspectos fundamentais: o primeiro, a idéia de um novo ordenamento econômico
mundial, centrado na idéia de desenvolvimento como direito humano e baseado nos
direitos humanos; o segundo, a necessidade de conformar arranjos
jurídico-políticos que façam frente às burocracias privadas e ampliem o espaço
público de açã??o e de controle social.
A construção de uma nova ordem econômica mundial exatamente quer se opor ao caos
da irracionalidade do mercado. Construir uma ordem implica reconhecer os
parceiros do diálogo para sua construção como autônomos, superando-se, portanto,
posturas hegemonistas. Este conserto, no entanto, não pode ser apenas um ajuste
de interesses, como sói ocorrer, em geral, nos acordos comerciais acertados
atualmente. Exige muito mais. Exige reconhecer a diversidade histórica e
cultural, as necessárias compensações e reparações dos grupos vulneráveis
historicamente excluídos, além de construir um processo sustentável. Não haverá
meios de fazê-lo sem que questões como, entre muitas outras, a dívida externa e
a proteção do meio ambiente sejam pautas fundamentais. Sem reconhecer que a
dívida dos países pobres é injusta e impagável e que a preservação do meio
ambiente é condição fundamental para encetar qualquer processo de
desenvolvimento, dificilmente se poderá caminhar no sentido de uma ordem mundial
que entenda o desenvolvimento como direito humano e que, além disso, tenha nos
direitos humanos o parâmetro básico inarredável para sua construção.
A construção de um novo ordenamento mundial com espaço para a diversidade e para
a autodeterminação requer a superação de standars redutivos na garantia dos
direitos. Implica que os sujeitos de sua construção também sejam amplamente
contemplados. A possibilidade de um outro mundo, passa pelo reconhecimento de
que sua necessidade se radica na centralidade do humano como sujeito de direitos
em diálogo com todos os demais seres da terra.
Desenvolver uma ética do cuidado , do compromisso e da solidariedade é
componente substantivo do processo de construção dessa nova ordem. A construção
dessa nova ética passa pelo reconhecimento de que a racionalidade instrumental,
vigente e hegemônica no processo pautado pelo binômio ciência-tecnologia, haverá
que ser superada por uma racionalidade dialógica e que respeita a?? alteridade
como ponto de partida para a construção de novos ordenamentos sociais. O
compromisso solidário com o outro – excluído – é ponto de partida para a
efetivação desse modelo dialógico. Neste sentido, processos de ordenamento do
desenvolvimento humano com sustentabilidade implica articular espaços solidários
pautados pelo reconhecimento das alteridades como parceiros autônomos e diversos
no processo de contrução de um presente e de um futuro cumuns.
Consequência da primeira idéia está o desafio do fortalecimento dos espaços
públicos de interlocução e de conserto de acordos. Para isso, é preciso
reconhecer que a democracia é muito mais do que um mecanismo de legitimação,
pelo voto, dos representantes encarregados de compor a burocracia pública.
Implica entendê-la amplamente, como mediação histórica de criação de condições
para a efetivação da dignidade humana, com a participação física dos envolvidos,
todos os envolvidos. Implica portanto, recuperar o espaço público como o melhor
lugar para deliberação sobre as questões humanas pela reconstrução do ágora como
espaço da diversidade que tem nas mãos o comum. Este processo implica, portanto,
o fortalecimento das organizações da sociedade civil como agentes coletivos de
construção de demandas sociais; o reconhecimento do indivíduo como sujeito que
não se esgota na possessividade de seu particularismo; e a recomposição do rol
de tarefas do Estado, como ator público de satisfação de direitos.
Ampliar as condições de controle público das demandas de satisfação de direitos
é o mecanismo central para que as burocracias privadas seja enfrentadas e
subordinadas aos interesses das pessoas humanas concretas, como sujeitos de
direitos humanos. Seguindo o raciocínio de Bielefield, democracia e direitos
humanos andam abraçados da seguinte forma:
“Com a metáfora do recíproco abraço queremos
estabelecer a unidade normativa entre direitos humanos e democracia, na qual,
conc??omitantemente e sem hierarquização, pode surgir uma diferenciação que não se
constitui em diferença de princípios, mas que representa, isto sim, uma
diferença de modo de realização do mesmo e inalienável princípio da mesma
liberdade solidária. No momento em que se dissolver essa unidade de princípio de
direitos humanos e democracia ou passar a haver relação de subordinação de um em
relação ao outro, ambos perdem” .
Com isso queremos dizer que a unidade normativa
dos direitos humanos e da democracia alcançam fundamento ético na dignidade
humana, como construção histórica das condições de sua efetivação no seio de uma
comunidade real, condicionada, que não perde de vista e exercita sua capacidade
de auto-superação em vista de uma comunidade melhor. As condições históricas de
realização humana não esgotam a capacidade de construção de horizontes utópicos
e de atuar em vista de sua realização histórica num longo processo de construção
coletiva do humano. O conteúdo específico dos direitos humanos é construção
histórica fundada na dignidade humana, que também tem uma dimensão histórica.
Esta condição associada ao componente utópico, também essencialmente humano,
constitui-se no intransponível na construção de qualquer conteúdo possível que
possa ser agregado ao que se quer entender como direitos humanos.
Por fim, entendemos que todo este processo implica em fazer frente ao pensamento
único, reafirmando a proposta do Fórum Social Mundial de que “um outro mundo é
possível”, idéia que sintetiza a possibilidade de alternativas ao modelo
hegemônico vigente. Mas, este não é um caminho fácil e passa, como bem lembra
Hinkelammert, pelo fato de que:
...“Una acción alternativa puede consistir
solamente en una acción asociativa. De este modo se pueden disolver estas
fuerzas compulsivas, que resultan precisamente de la supresión de cualquier
acción associativa. Eso implica, por sup??uesto, acción solidária. Sin embargo,
tal acción solidária hoy desemboca también en dimensiones globales sin las
cuales no puede ser efectiva” .
A superação do paradoxo no qual o modelo atual de
globalização em curso encerrou os direitos humanos exige, portanto, o
compromisso concreto de todos quantos entendemos que o humano não se esgota na
troca mercantil e que ainda é possível construir novos arranjos históricos nos
quais o ser humano tenha centralidade. Por tudo isso, mais do que opor-se à
globalização, os que defendemos alternativas ao modelo em curso, em razão dos
direitos humanos, somos levados a defender um processo alternativo, também já em
curso de globalização da solidariedade como característica essencialmente
humana.
A modo de conclusão
Ao longo do texto, procuramos defender que o
processo de globalização em curso põe em situação paradoxal a questão dos
direitos humanos. Fizemos um esforço para demonstrar que a globalização encerra
uma idéia de direitos humanos contraditória e que nega os direitos humanos como
sendo da pessoa humana. Em outro movimento, procuramos, sustentados numa idéia
diferente de direitos humanos, identificar os desafios para o prosseguimento da
luta por direitos numa época de globalização que também exige uma globalização
alternativa dos direitos e da solidariedade humana.
Entendemos que, com estes dois movimentos, mostramos a exigência teórico-prática
fundamental para todos aqueles e aquelas que nos filiamos à idéia de que somente
a reconstrução de condições históricas que ensejem espaço e tempo oportunos para
a dignidade humana é que permitirão o avanço real da garantia dos direitos e,
por consequência, uma globalização da solidariedade e da cidadania, alimentando
a dimensão utópica que implica reconhecer que o processo humano não é mais do
que simplesmente um processo, em construção, cujos sujeit??os alcançam espaço e
autonomia pelo exercício histórico e participativo.
Enfim, mais do que constatar, somos convocados a construir, solidariamente.
Escrito originalmente para a
Revista do DH Internacional do Regional Nordeste do MNDH
Publicado por:
DESConceptualizando –
Espacio Electónico de Reflexión y Debate de la PIDHDD –
Número 11 – 22/10/2001.
Enviado para publicação para:
Revista SER SOCIAL, da Pós-Graduação em Ciências Sociais
Universidade de Brasília
Ac. Prof. Nair Bicalho
E-mail: nbicalho@nutecnet.com.br
Em 27/10/2001.
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