Ricardo Kotscho - Do que você sente falta – da
Igreja como instituição – agora que você está fora?
Ou não sente falta de nada?
Leonardo Boff - Vou dizer de forma bem rudimentar:
Sinto falta do caráter simbólico, das celebrações, do
canto gregoriano. Por exemplo, em Petrópolis, durante
vinte anos, às 10 horas eu celebrava a missa dos
Canarinhos, em latim, com aquele coro extraordinário, que
é um dos melhores do país, com a melódica fantástica,
as grandes peças da música sacra, e eu sempre celebrava
essa missa que era irradiada. Sinto falta disso.
Roberto Freire - Do rito, não é?
Leonardo Boff - Do rito, desse lado mais
sacramental. Se bem que deixei a igreja instituição, a
paróquia, a diocese, mas não a igreja da base. E hoje o
que mais faço é batizar, enterrar mortos, fazer
casamentos.
Carlos Moraes - Mas pode?
Leonardo Boff - Na igreja da base eu faço. E até
com apoio de padres e bispos, porque a igreja da base é a
igreja das comunidades, e há uma carência fantástica de
ministros, de padres. E, depois, há todo um grupo de
cristãos, que chamo de "cristãos novos" ou
"cristãos imigrados", que são pessoas como vocês,
intelectuais, jornalistas, artistas etc., que podem
transfundir a doutrina cristã mas não se identificam com
a rituália oficial. E me pedem então para enterrar uma
pessoa, batizar uma criança...
Frei Betto - Conta a experiência com o Darcy.
Leonardo Boff - O Darcy Ribeiro deixou no
testamento que eu deveria fazer a encomendação do cadáver
dele, e eu fiz. Também o que faço muito é atender
pessoas que têm uma crise espiritual, estão em busca de
alguma coisa, e pedem uma conversa. O Darcy pediu:
"Eu quero a minha grande conversa com o frei Betto e
o frei Boff". O Betto estava na África, tentei chamá-lo,
não encontrei, e fui sozinho. Digamos que foi a última
grande conversa entre tantas que tive com o Darcy. Ele
disse: "Boff, quero ter uma conversa metafísica.
Quero abordar a questão da morte, o que vem depois da
morte, e não tem nenhum interlocutor, entre os meus
amigos, que possa sustentar o discurso que eu quero".
Fui lá uns quinze dias antes de ele morrer, e ele se
abriu: "Quero discutir com você o tema da morte,
porque estou enfrentando a morte, o meu último grande
desafio". Então me fez ler o prefácio do inédito
Confissões (livro lançado posteriormente), em que faz
uma leitura de sua vida, não uma autobiografia, mas fatos
relevantes, luminosos da vida dele. E terminava o prefácio
dizendo: "Pena que a vida, tão carregada de lutas e
fracassos, e vitórias, e vontade de trabalhar, seja
marcada por uma profunda desesperança, porque nós
voltamos, através da morte, ao pó cósmico, ao
esquecimento, e ficamos na memória, que é curta e só de
algumas pessoas, e voltamos à diluição cósmica".
Então eu disse, ao terminar a leitura: "Darcy, acho
que é uma interpretação de quem vê de fora. É como
você ver a borboleta, e ver o casulo. Você pode chorar
pelo casulo que foi deixado para trás e ver que ele
morreu. Mas você pode olhar a borboleta e dizer: "Não,
ele libertou a borboleta, e ela é a esperança de vida
que está dentro do casulo".
Leo Gilson - Embora seja muito efêmera?
Leonardo Boff - É. Mas, de toda maneira, é vida, não
é? Então eu disse: "Darcy, no pensamento mais
originário, contemporâneo, da biologia molecular, no
estilo Elya Prigogine, o caos é uma invenção da orbi, a
morte é uma invenção da vida, pra vida ser mais
complexa, mais alta, e a tendência da vida é buscar a
sua perpetuação, a sua imortalidade. Darcy, deixa te
dizer como imagino a tua chegada, o teu grande encontro. Não
vai ser com Deus Pai, porque pra você Deus tem de ser Mãe,
tem de ser mulher... (risos) Então tem de ser Deusa.
Imagino assim: que Deus, quando você chega lá em cima,
vai dizer com os braços abertos: ‘Darcy, como você
custou pra chegar, eu estava com uma saudade louca de você,
finalmente você veio, você não queria vir, você teve
de vir e agora chegou’. E te abraça e te afaga em seu
seio, e te leva de abraço em abraço, de festa em
festa...". E ele emendou: "De farra em
farra...". (risos) Eu digo: "Darcy, isso será
pela eternidade afora". Aí ele parou e me olhou de
lado, assim como que interrogando, e disse: "Como
gostaria que fosse verdade! Minha mãe morreu cheia de fé
e morreu tranqüila, eu invejo você, que é um homem
inteligente e de fé. Eu não tenho fé. Como gostaria que
fosse verdade". E aí lhe correu uma lágrima e ele
ficou silencioso, estremeceu e teve um acesso de diabetes,
uma queda muito grande de pressão e tiveram de levá-lo.
E terminou assim a conversa. Eu ainda disse antes de ele
sair: "Darcy, não se preocupe com a fé, porque Deus
não se incomoda com a fé. Pelos critérios de Jesus,
quem tem amor tem tudo. Então, quando a gente chega na
tarde da vida como você, quem atendeu os famintos como
você; crianças abandonadas como você; índios
marginalizados como você; negros que você defendeu; as
mulheres oprimidas, desde o neolítico ninguém louvou
tanto a mulher quanto você – quem fez isso ganha tudo,
porque optou pelos últimos, por aqueles que estavam em
necessidade. Quem fez isso tem o reino, tem a eternidade,
tem Deus. E você só fez isso". Ele respirou e
disse: "Puxa, mas tem de ser verdade". Mas não
conseguia dar o passo, acho que não importa dar o passo,
acho que ele teve a coerência de vida, que foi carregada
de um grande sentido, de uma grande luta generosa.
Sérgio Pinto - Lendo nos arquivos um pouco da sua
trajetória, salta aos olhos a pressão, as sucessivas
convocações ao Vaticano, os sucessivos esclarecimentos,
questionamentos etc. Como foi esse processo de inquisição
do qual você é vítima?
Leonardo Boff - É um processo que talvez o Roberto
Freire tenha mais condições de descrever. Porque é um
processo que atinge a tua identidade mais profunda, não
é só um processo doutrinário, é um processo de
desmontagem da tua figura de teólogo, o efeito é que
alguém que está sob interrogatório do Vaticano não
pode ser convidado pela Igreja, pelas comunidades, pelos
bispos, para dar palestras no retiro espiritual. É
tolerado que ele dê aula, mas com grande vigilância
sobre o que ele ensina. E ele recebe uma vigilância
direta sobre as homilias que profere, porque já está sob
suspeita. Como padre, tem o direito de celebrar missa e
fazer a homilia, mas porque está em processo de
ajuizamento ele perde toda a confiabilidade.
Sérgio Pinto - Não é uma desqualificação?
Leonardo Boff - Desqualificação. Isso vinha desde
1972, cada livro que eu publicava era objeto de análise
do Santo Ofício. E você sente a vontade deles de
condenar. Eu via isso como um paralelo dos nossos
organismos de segurança. Se você vai nas malhas desses
organismos, está perdido, porque sistematicamente, de
forma burocrática, você é acompanhado. Começou em 1972
com o livro Jesus Cristo Libertador, e culminou em 1984
com Igreja, Carisma e Poder. Há toda uma longa história
com cartas, idas e vindas, um diálogo extremamente penoso
com o Vaticano, com o secretário do Santo Ofício, que
depois também foi o grande inquisidor do processo.
Chico Vasconcellos - Como é o nome desse secretário?
Leonardo Boff - Ele morreu em 1996, era o cardeal
Hamer, Jerome Hamer.
Sérgio de Souza - Você pode reproduzir esse diáologo?
Leonardo Boff - Foi dramático, só nós dois, eu e
o cardeal Hamer, é difícil reproduzir com objetividade,
porque foi uma vivência da coisa. Foi no grande salão do
Santo Ofício, que deve ter pelo menos 150 metros de
comprimento. Imenso salão, com tapetes enormes. Lá no
fundo, num canto, uma cadeirinha, uma pequena mesa e eu
sentado lá, esperando quarenta minutos pelo cardeal. Toda
hora me diziam: "Está chegando". Vejo ele
chegando de longe, todo paramentado de cardeal, com toda a
pompa vermelha. Fiquei realmente amedrontado. Primeiro,
quarenta minutos de espera, você sozinho, abandonado. Ele
vem, senta e diz: "A tua igreja pediu um diálogo.
Quem fala aqui é o responsável pela doutrina, não quero
dialogar, só quero testar se a tua fé é verdadeira ou não.
Primeiro, como referência: o que você acha do Vaticano
II?" Eu disse: "O Vaticano II foi um extraordinário
concílio pastoral". E ele: "Erro, não é
pastoral, é doutrinário. Esse é o teu erro, considerar
que esse concílio adaptou a Igreja ao mundo moderno, não
adaptou nada! Ele tem de ser lido na óptica do Vaticano
I, como doutrina, e você não faz isso". Aí puxa
uma pasta com todas as minhas cartas. "Na carta tal,
você diz isto, pior, você subscreve" – porque eu
sempre subscrevi, com um certo humor franciscano, frater
teologus minor et pecator (irmão, teólogo menor e
pecador). "Você escreve isto, você é pecador
mesmo?" Eu respondo: "Está escrito, admiro que
o senhor não se considere um pecador". E ele:
"Eu sou autoridade, não cabe a mim apresentar-me
como um pecador". Digo: "O senhor é um cristão".
Lembrei o famoso sonho de São Jerônimo, em que ele
aparece no Céu e Deus lhe pergunta: "Quem é você?"
Jerônimo diz: "Teologus sum traductor sum" –
sou teólogo, sou tradutor da Bíblia. E Deus: "Não,
não conheço". Até que Jerônimo acerta: "Cristianus
sum". Então, Deus lhe diz: "Sim, cristianus sum
pecator sum". E aí Deus o acolhe. Perguntei ao
cardeal: "O senhor esqueceu o sonho de São Jerônimo?"
Pois ele respondeu dizendo: "Eu estive no Brasil,
conheço o teu país, e vocês cometem um erro fundamental
que é pensar a partir da prática. Isso não existe, isso
fazem os marxistas, não os cristãos. Os cristãos pensam
a partir da tradição, a partir do magistério da Igreja,
a partir dos documentos oficiais. E vocês tentam dialogar
com a ciência a partir da realidade. Então, vocês não
fazem teologia, vocês são menores, não têm seriedade
no discurso". Eu: "Bom, se não tenho seriedade,
por que o senhor me chama aqui, por que questiona os meus
textos?" Até o ponto em que ele diz: "Eu conheço
o Brasil, aquilo que vocês fazem nas comunidades
eclesiais de base não é verdade, o Brasil não tem a
pobreza que vocês imaginam, isso é a construção da
leitura sociológica, ideológica, que a vertente marxista
faz. Vocês estão transformando as comunidades eclesiais
de base em células marxistas, que, mais do que rezar e
militar a palavra de Deus, aprendem a guerrilha. Por isso,
vocês, quando começam a conversar, dizem: ‘Como vai a
luta?’ Está vendo? A luta. E, para nós, isso quer
dizer como vai a vida, não é?"
Sérgio Pinto - Em que ano foi isso?
Leonardo Boff - Foi em 1989. Chegou a um ponto que
comecei a chorar de tanta raiva. E ele disse: "E
mostra a tua fragilidade! Porque você chora como uma
criança!" Fiquei com tanta raiva que fechei o punho:
"Vou matar o cardeal". E comecei a mirar onde ia
acertar... "Vou matá-lo." Fiquei lutando contra
mim mesmo, por uns cinco minutos, fechado, pensando:
"Quero matar esse homem, porque é isso que ele
merece". Então lhe disse: "Olha, padre, acho
que o senhor é pior que um ateu, porque um ateu pelo
menos crê no ser humano, o senhor não crê no ser
humano. O senhor é cínico, o senhor ri das lágrimas de
uma pessoa. Então não quero mais falar com o senhor,
porque eu falo com cristãos, não com ateus". Aí
ele parou e disse: "Então vamos falar de outras
coisas. Sou cardeal aqui dentro, e o cardeal mais odiado
do mundo, lido com os que entram, com os que devem sair,
nomeio os teólogos, todos os bispos que vêm aqui
defendem os teólogos, tenho de me explicar. Aos domingos
vou comer com os dominicanos" – ele era dominicano
–, "ninguém conversa comigo". Morreu de câncer.
E teve uma surpresa imensa, porque ele estava morrendo, eu
estava de passagem por Roma e telefonei: "Aqui é o
Boff, aquele que o senhor condenou". E ele:
"Ninguém me telefona... foi preciso você me
telefonar! Me sinto isolado. Queria ser um grande teólogo
e não consegui. Me fizeram logo bispo, me chamaram pra cá,
não tenho comunidade, celebro sozinho de manhã e me
sinto desprezado pelos meus irmãos dominicanos". Aí
começou a chorar. Não perdoei: "Quem é o fraco
agora? Mas não quero fazer o que fez comigo! Quero
enxugar as suas lágrimas". E ele: "Boff, vamos
ficar amigos, conheço umas pizzarias aqui perto do
Vaticano...". (risos)
Chico Vasconcellos - Lá também acaba em pizza.
Leonardo Boff - "... Quando você vier pra cá,
me telefone, vamos tirar essas roupas, vamos conversar,
tomar um vinho." Chorava como uma criança.
Ricardo Kotscho - Qual é o papel de dom Eugênio Sales
nesse processo? Porque esse Hamer não tinha tanto
conhecimento do que acontecia no Brasil pra dizer se havia
muito pobre ou pouco pobre. Alguém daqui informava o
Vaticano...
Leonardo Boff - Deixa eu dizer antes qual foi o
efeito do Hamer em mim: nunca tinha desejado a morte a
ninguém, nunca tinha imaginado matar alguém. Voltei para
o Brasil totalmente desestruturado em termos psicológicos.
Me senti um criminoso, "eu matei" em termos
afetivos. Fui me curar passando dois meses na floresta
amazônica, me enfiei no Acre, visitando comunidades, para
recuperar a minha sanidade psicológica. E tal foi a
densidade, que descobri a minha sombra: "Sou capaz de
matar, gente!" Mas o grande capítulo foi em 1984,
com o livro Igreja, Carisma e Poder. Era uma coletânea de
estudos sobre a questão do poder na Igreja e o carisma, e
a questão central era se a Igreja como instituição pode
se converter ou não. Eu dizia que não, enquanto ela é
poder não se converte. Ela é vítima do seu próprio
sistema, de sua própria dogmática. Dei o livro para o
meu irmão ler, o frei Clodovis, que é teólogo, e ele me
disse: "Esse livro vai ser condenado. E, se o
Vaticano não reagir, é sinal de que está moribundo, não
vale nada. Agora, se tem um mínimo de vida, vai
reagir". E reagiu – me convocaram. E a irritação
do cardeal Hamer começou porque me convocou para o dia 28
de agosto de 1984, o dia do Encontro Nacional das
Prostitutas, e eu era assessor delas. Então escrevi:
"Segundo o Evangelho, as prostitutas são primeiras
no Reino de Deus, não vou nesse dia, prefiro ir ao
encontro delas do que ao Santo Ofício. Só aceito ir se
for no dia 7 de setembro, dia nacional da pátria".
Ele mandou telegrama dizendo que só poderia ser no dia 28
de agosto e respondi que iria em 7 de setembro. De fato,
fui nesse dia, que foi o dia do julgamento. Agora, o que
estava por trás era o sentido político da questão –
fui vítima de um processo mais amplo que o Vaticano
montou contra a CNBB. Eles pegaram a mim, que era assessor
da CNBB, que ajudava a fazer os documentos etc., para
atingir a CNBB, especialmente a Teologia da Libertação,
esse diálogo da Igreja com a sociedade, com a pobreza, e
atingir as comunidades eclesiais de base, que este papa não
aceita, porque ele acha que é um desvio fundamental na
unidade, porque não tem a eucaristia, não tem a
hierarquia, que são estruturas fundamentais da Igreja
institucional. Como um lobo não come outro lobo, um
cardeal não ataca outro cardeal. Pega o teólogo. Quem
montou o processo foi dom Eugênio Sales. Criou uma
pequena "comissão de doutrina", um pequeno
"santo ofício" no Rio de Janeiro. Convocou teólogos
de lá, de Porto Alegre, o bispo auxiliar dele – que é
um suíço muito reacionário –, montaram o processo,
aliás muito mal montado, com frases erradas, argumentos
totalmente equivocados, e dom Eugênio o levou para Roma.
E Roma disse: "Não fomos nós que avocamos, veio do
Brasil". O segundo ponto é que junto comigo foram
dom Paulo Evaristo e dom Ivo Lorscheiter, que era
presidente da CNBB. Dom Paulo havia sido meu professor e
era cardeal. Chegamos os três juntos no Vaticano, o
cardeal Ratzinger ficou sumamente irado e disse: "O
fato de convocarmos um teólogo aqui já é uma condenação
implícita. E esse teólogo, para escândalo dos cristãos,
vem acompanhado de Castor e Pólux, as duas divindades pagãs,
como anjos da guarda que o acompanham". Eu disse:
"Cardeal, com licença, nós somos cristãos, venho
acompanhado de São Cosme e São Damião e não de Castor
e Pólux" – que sãos os equivalentes pagãos de
Cosme e Damião. (risos)
Ricardo Kotscho - No frigir dos ovos, essa briga vocês
realmente perderam. A CNBB, hoje, é muito mais dom Eugênio
do que dom Ivo e dom Paulo. Uma semana antes de morrer, o
Antônio Callado deu uma longa entrevista e disse que, nos
últimos cinqüenta anos, tinha participado de todas as
lutas sociais e políticas do Brasil, sempre do lado
certo. E aí, fazendo um balanço da vida: "Perdi
todas". Você não se sente um pouco assim também?
Leonardo Boff - Acho que não. Porque mexemos com o
aparelho central da Igreja... Mexemos, porque uma
teologia, até chegar ao corpo central do Vaticano, demora
três, quatro gerações. Nós, na metade de uma geração,
já estávamos dentro do Vaticano, quer dizer, mobilizamos
o papa, os altos organismos tiveram de reagir em face da
Teologia da Libertação.
Sérgio de Souza - Você poderia descrever esse
tribunal, como ele funciona?
Leonardo Boff - O tribunal é dramático. Me senti
literalmente seqüestrado. O convento dos frades fica logo
atrás do Vaticano. Eles vieram com um carro, eu estava me
despedindo do superior, dos cardeais, dois oficiais do
Santo Ofício me agarraram, me empurraram carro adentro,
porque haviam dito que eu deveria chegar às 9 horas em
ponto. Três para as 9 estavam ali, me agarraram e me
empurraram carro adentro...
Marina Amaral - A guarda suíça?
Leonardo Boff - Dois guardas suíços e mais um
oficial do Santo Ofício, que vinha junto pra dizer:
"É aquele!" Então, o carro foi pela rua e num
ponto foi pela contramão, com a sirene aberta. Peguei no
chofer e disse: "Olha, posso ser herege, mas é
melhor um herege vivo do que um herege morto, e eu quero
viver". (risos) O repórter Lucas Mendes, que estava
cobrindo o episódio, vinha num carro logo atrás, tanto
que, quando o nosso entrou no jardim do Palácio do
Vaticano, ele entrou junto e foi preso. Ficou umas cinco
horas lá dentro. Ele considera uma das suas glórias,
ele, como jornalista, preso pelo Vaticano. Passamos por um
enorme portal de ferro, com uns pregos imensos espetados
para fora, o carro parou para que aquilo se abrisse e eu
disse: "Aqui é que é o local da tortura?" E
aquele oficial me deu uma cotovelada, com toda a violência...
Aí atravessamos os jardins, chegamos até uma entrada,
desci do carro e dois guardas suíços já estavam ali na
porta do elevador, abriram, subi dois andares e lá estava
o cardeal todo paramentado, com outros dois guardas. Assim
que abriu a porta do elevador, ele me recebeu. Como é bávaro
e eu aprendi bávaro porque estudei em Munique, eu disse
no dialeto: "Gricia nargo per cardinala" – pra
desfazer aquele ar pesado...
Frei Betto - Em português, o que foi que você disse?
Leonardo Boff - "Salve, senhor cardeal",
"Deus te proteja, senhor cardeal", que é uma
saudação que o povo faz na rua. Aí ele me pegou pelo
braço e me levou...
Sérgio de Souza - Aí você está sozinho?
Leonardo Boff - Sozinho. Me levou até o fundo,
onde tem uma saleta, lugar onde eram julgados todos os
inquiridos. E lá está a cadeirinha, a mesma em que
sentou Galileu Galilei, sentou Giordano Bruno... e fiz uma
saudação a ela, o que irritou o cardeal. Tem uma mesinha
no meio, a cadeirinha aqui, o inquisidor lá, e o notário
aqui ao lado, que vai anotando tudo. E atrás tem um
pequeno anfiteatro, porque antigamente eram muitos os
inquisidores, e embaixo ficava a sala de torturas, que
existe ainda.
Marina Amaral - O processo de inquisição, a maneira
como a Igreja se comporta ao inquirir uma pessoa ainda é
a mesma, não houve uma atualização?
Leonardo Boff - Fundamentalmente não houve
atualização.
Frei Betto - Até piorou, porque atualmente, depois do
estabelecimento da infalibilidade do papa, nenhum réu
pode ter direito a defesa, porque não se pode partir do
princípio de que a autoridade eclesiástica esteja
equivocada. Então, não existe direito à defesa, é o único
tribunal do mundo onde isso acontece.
Leonardo Boff - É onde a mesma instância acusa, a
mesma instância julga, a mesma instância pune.
Marina Amaral - Não pode pedir perdão...
Leonardo Boff - Não, não.
Frei Betto - Não pode se defender; não pode
constituir advogado.
Leonardo Boff - Não pode ter advogado, aliás,
existe advogado, mas você não conhece. Você tem um
advogado chamado advocatus proautore, que você não
conhece, que junto aos cardeais faz o advogado do diabo,
toma a minha defesa, mas não pode conversar comigo, nem
sei quem é.
Sérgio Pinto - Você pode falar ali?
Leonardo Boff - Não. Só responder. E você não
tem acesso às atas, não sabe quem são os acusadores. Só
conhece algumas perguntas, o cardeal é que tem todo o
material, extenso, que é o documentário dele.
Sérgio de Souza - Continuando a história, você senta
na cadeirinha...
Leonardo Boff - Antes eu faço aquela homenagem...
João Noro - Você respondia às perguntas em latim ou
italiano?
Leonardo Boff - O cardeal perguntou: "Você
quer em alemão, espanhol ou italiano?" Respondi:
"Olha, cardeal, em alemão o senhor é forte porque o
senhor é alemão, então vou pedir em espanhol porque o
senhor é mais fraco". (risos) Tudo era guerra ali,
tudo era jogo limpo. Então falamos em espanhol, embora
ele tivesse o texto em alemão, italiano, espanhol e
português. Ele disse: "Se você quiser fazer um
debate livre, o notário anota tudo, para não ficarmos três
dias aqui. Você pode deixar que eu pergunto, então você
responde. Ou você pode pegar o teu escrito e
segui-lo". "Prefiro seguir o meu escrito."
"Não, é muito comprido." Eram sessenta páginas.
"Vamos selecionar algumas questões, o resto os
cardeais vão julgar o texto como um todo." E logo
acrescentou: "A minha função aqui não é julgar
você, nem interrogá-lo, é escutar o que você diz e ver
se está conforme a fé cristã ou não." "Mas
na base de qual critério?" "A minha função é
esta, de ter os critérios." Ele é que decide, você
está entregue ao arbítrio.
Leo Gilson - Isso me lembra Alice no País das
Maravilhas, em que a rainha diz: "Primeiro cortem-lhe
a cabeça, depois vamos julgar".
Leonardo Boff - A verdade é que você sente que não
tem nenhuma proteção, nem jurídica, nem humana, e que
está entregue ao arbítrio. Que na Igreja não funciona
nem a lei divina – que eles interpretam como querem –,
nem a lei humana, que eles não aceitam. É o arbítrio do
príncipe, que é o papa que quer assim, do cardeal que
quer assim.
Sérgio Pinto - Quanto tempo durou a sessão?
Leonardo Boff - Os nossos dois cardeais do Brasil
quiseram participar de todo jeito, e o cardeal Ratzinger
negou: "Absolutamente". Então eles foram ao
papa e o papa fez o jogo salomônico: "O tribunal terá
duas partes, na primeira só o Ratzinger com o Boff e na
segunda só os cardeais". Então me submeti àquele
diálogo de uma hora e meia e houve uma pausa para o café.
E o curioso é que foi naquela sala enorme, o cafezinho lá
no canto e os funcionários correndo pra me pedir autógrafo
e o cardeal furioso: "Ele é condenado, ele é
condenado!" (risos) Bom, depois da pausa para o café,
vieram os cardeais. E aí dom Paulo foi terrível, porque
quase não deixava o Ratzinger falar: descobriram que
foram colegas de estudo quando eram estudantes de
doutorado em Munique, trocaram idéias sobre os
professores que morreram ou não. Três dias antes havia
saído um documento condenando a Teologia da Libertação,
então, no momento apropriado, dom Paulo disse para o
cardeal: "Cardeal Ratzinger, lemos o documento e ele
é muito ruim. Não o aceitamos porque não vemos os
nossos teólogos dizendo e pensando o que o senhor diz da
Teologia da Libertação. Inclusive, queremos sugerir que
o senhor os chame para elaborar um documento e depois vocês
o completam. Se quero construir uma ponte, chamo um
engenheiro, e o senhor, para construir a ponte, chamou um
gramático, que não entende nada de engenharia. Então, não
aceitamos este, queremos um segundo documento". E
acrescentou: "Boff, você está aí com o seu irmão,
o Gustavo Gutierrez, amanhã vocês já sentam juntos e
fazem um esquema". De fato, fizemos o esquema e
levamos ao Santo Ofício.
Leo Gilson - Você poderia definir claramente para o
leigo o que é a Teologia da Libertação?
Leonardo Boff - E aí então a discussão foi sobre
a Teologia da Libertação, não mais sobre mim. A crítica
do cardeal se baseava no seguinte: "O teu livro é
protestante, quem fala assim são os protestantes, eles não
são como os católicos". Eu digo:
"Absolutamente, é o lado evangélico do
protestantismo, e temos muito o que aprender com Lutero.
Então, não aceito que seja o lado protestante, é o lado
são da teologia, que percebe o excesso, o abuso de poder
da Igreja, a soberba, e pertence à teologia ter uma
palavra crítica sobre isso. E há uma tradição profética.
A gente, quando é batizado, é batizado para ser profeta,
além de sacerdote. Ninguém lembra de ser profeta na
Igreja. Os profetas se confrontam com o poder". E se
discutiu Teologia da Libertação. A insistência dos
nossos dois cardeais era que se fizesse um documento nas
igrejas onde se vive uma prática de Teologia da Libertação
com pobres e comunidades. Dom Paulo disse ao Ratzinger:
"Se o senhor quiser, preparo tudo em São Paulo, o
senhor vai conhecer as periferias, vai com os agentes da
pastoral e, depois de ver tudo isso, vamos sentar e falar
sobre a Teologia da Libertação, porque, se o senhor não
vir isso, não vai entender os teólogos". O cardeal
respondeu: "Temos obrigações com a Igreja
universal, não podemos fazer partido na Igreja local.
Somos responsáveis por todas as igrejas, nossa sede de
pensamento é aqui". Aí me levantei e disse:
"Cardeal, por favor, olhe esta janela, toda de ferro
quadriculado. Atrás dessa janela de ferro quadriculado não
se faz Teologia da Libertação, porque o mundo já vem
traduzido nessa quadratura. Tem de sentir na pele uma
experiência de pobreza, porque daí nasce a teologia como
o grito dos pobres". A Teologia da Libertação é um
grande esforço de uma parte dos cristãos de fazer do
Evangelho e da fé cristã um fator de mobilização
social.
Carlos Moraes - Começou quando?
Leonardo Boff - Começou com o pessoal do frei Betto,
nos anos 60, com a JUC, com a AP, com aqueles cristãos
que militavam... Pra mim, a chave da Teologia da Libertação
é o seu método, que a maioria esquece nessa discussão,
que é o de arrancar, não de uma encíclica, de uma página
da Bíblia, de um credo qualquer da tradição, mas partir
dos desafios da realidade, quais são as questões que os
pobres levantam, que o Brasil suscita hoje. As comunidades
de base com seus movimentos sociais por casa, por terra,
por saúde, por alfabetização, arrancar disso e, junto
com a organização do povo, com a consciência que ele
vai desenvolvendo, dizer como os cristãos podem dar um
primeiro impulso nisso, o cristianismo como força que dá
clareza, que dá motivação pra gente se empenhar pela
justiça, pela transformação, porque a gente é herdeiro
de alguém que foi prisioneiro político, que morreu na
cruz e não velho na cama, que é Jesus. Então, é
resgatar essa dimensão, essa densidade histórica, um
sentido público, político. A Teologia da Libertação se
articula com quem já está dando uma caminhada e tenta
pensar a partir da prática. Por exemplo, o pessoal está
lutando por terra, eu digo: "Vai ocupar uma terra aí".
Então, os cristãos se reúnem e começam primeiro a ler
o Êxodo, o povo que está no exílio sem terra, e quer a
Terra Prometida. E eles dizem: "Não está em nenhum
lugar da Bíblia que Deus deu a terra e a escritura para
alguém, a terra é de todos, e Deus, o Senhor disso
tudo". Então, quando vão conquistar a terra, o que
significa? Que queremos trabalhar a terra para ter saúde,
comida, a nossa casa. O sem-terra começa a pensar essa
realidade e vê que o que temos é o contrário. A terra
está na mão de alguns, impede a vida, impede a justiça,
traz doença. Então temos de conquistar isso.
Sérgio Pinto - Não existia nada semelhante no mundo?
Leonardo Boff - Existia na Colômbia, no México,
uma coisa até filosoficamente interessante, porque, de
repente, em toda a América Latina emergiu esse pensamento
libertário, com Paulo Freire, Fernando Henrique Cardoso,
com Camilo Torres, na medicina, na pedagogia, na
sociologia e na teologia.
Sérgio Pinto - Uma coisa simultânea, vai brotando...
Leonardo Boff - Simultânea. É aquilo que Hegel
fala, do velho geist, o espírito do mundo, que de repente
emerge em todas as instâncias e não há quem detenha. E
a gente, que participou do nascimento disso, a gente
sentia que era envolvido por uma força que nos
transcendia. E percebemos que o discurso que está aí tem
de mudar, tem de ser outro, porque a realidade mudou. A
libertação tem de ser articulada de uma maneira mais holística,
mais ampla, tem de envolver a terra, tem de envolver
ecologia, todo mundo está empobrecido, somos vítimas do
paradigma ocidental, que está destruindo os povos, as
classes, a natureza e a qualidade de vida, e a libertação
hoje tem de ter uma dimensão planetária, não só dos
pobres.
Leo Gilson - Estamos voltando a uma concepção de
Hobbes, da humanidade.
Leonardo Boff - É que descobrimos que as famosas
forças produtivas são forças altamente destrutivas. É
aquilo que Marx diz na quarta parte do primeiro livro O
Capital, uma coisa profética, a que estamos assistindo
hoje: que a lógica do capital leva-o a destruir as duas
pilastras sobre as quais ele se constrói, que é a força
de trabalho, dispensando-a pela automação, e a natureza,
com seus recursos se exaurindo.
Carlos Moraes - Como você vê o futuro da Igreja nessa
dobrada do milênio? Comunidades de base contra
Ratzinger-Santo Ofício? Pode haver uma absorção difícil
ou pode haver dissidência, uma nova Igreja?
Leonardo Boff - A Igreja hoje é uma Igreja
partida, dividida, e há dois modelos em conflito, que é
o da Igreja-instituição, da Igreja-hierarquia, da
Igreja-poder, que se estrutura em papa, cardeais, bispos,
dioceses, paróquias e se reproduz com muita dificuldade,
porque há cada vez menos padres para manter a reprodução
dessa Igreja. Junto dela está surgindo um novo tipo de
Igreja, que eu chamaria Igreja-rede-de-comunidades, que
está assentada não no poder, mas na vida. Isto é, o diálogo
fé/vida. Nas comunidades, nas associações de moradores,
grupos que vivem a fé nos seus encontros e que têm sua
força no arquétipo cristão, não na instituição, nas
suas tradições, mas o cristianismo como uma instância
de esperança, tendo como referência comum a Bíblia, e
aberta para a sociedade. Mas não a sociedade portadora de
poder de decisão, o pacto velho, quer dizer, a Igreja
poder religioso se associa com o poder civil. Não, é a
Igreja com as classes emergentes, com os destituídos,
pobres, marginalizados, excluídos, que são a grande
maioria. Então, pra mim, está se dando aí um novo pacto
do cristianismo, no sentido dos primórdios, que era feito
de escravos, de portuários, de destituídos, de soldados,
e estamos vivendo esse tipo de cristianismo, que tem hoje
uma dimensão mundial. Muito forte na África, na Ásia,
muito forte no Primeiro Mundo: você vai à Alemanha, Itália,
Estados Unidos, está cheio de grupos e comunidades do
Terceiro Mundo que têm como referência a perspectiva
libertária do cristianismo. A outra é o cristianismo da
reprodução e é ocidental. É produto da cultura
ocidental, de tal forma que não dá pra fazer a história
do poder do Ocidente, reis e príncipes, sem fazer
simultaneamente a história da Igreja.
Sérgio Pinto - Queria voltar ao julgamento do Vaticano
e perguntar o seguinte: se você já sabia previamente da
opressão daquela cena, já sabia que não teria advogado,
direito a voz, a nada, já sabia da condenação, pra que
fazer? Pra continuar dentro no sentido de registrar,
marcar presença?
Leonardo Boff - Fiz um juízo político, não
pessoal. Uma coisa é você defender a sua biografia,
romper e seguir seu caminho. Como todo o nosso grupo, o
Betto inclusive, era de intelectuais orgânicos das CEBs,
e tínhamos naquela época hegemonia na Igreja – quem
dava o discurso tinha grande articulação, se movimentava
na sociedade, era essa Igreja da base, que era uma coligação
de uma série de bispos e cardeais que apoiavam as CEBs, e
as CEBs acolhiam esses tipo de Igreja. Então, a minha
preocupação era: o fundamental é preservar esse ensaio
da Igreja da base e não a minha biografia.
Sérgio Pinto - Quer dizer, era uma militância
mesmo...
Leonardo Boff - Militância. Uma coisa bem pensada,
em termos até de "até onde eu agüento sem perder a
minha dignidade" e trazer um ganho pra essa Igreja da
base. Então seria ruim eu romper com o Vaticano, e o
Vaticano queria isso, porque seria fácil condenar e
excluir, excomungar, e o povo diz: "Olha, assassino,
ladrão, tudo bem, mas excomungado não. Porque a pior
coisa que existe é ser entregue a Satanás direto, sabe?
Então, a excomunhão é uma sombra terrível, um estigma
fantástico. E, como senti o apoio explícito da CNBB e da
própria ordem franciscana, fui ao diálogo com o
Ratzinger levando duas maletas contendo 100.000 subscrições,
do mundo inteiro, desde a Sibéria, Coréia, bispos,
milhares de cristãos. E, quando comecei, disse:
"Cardeal, não estou sozinho aqui, estou com estes
100.000". "Vocês é que manipularam
assinaturas!" "Como, manipularam? Um bispo que
é lá da cidade de Zagorsky, na Rússia, como é que vai
ter contato comigo?" Quer dizer, a Teologia da
Libertação não era causa minha, é a causa de uma geração,
é um movimento. E saí convencido, devido à influência
dos dois cardeais que me acompanharam, que o problema
terminaria ali. E qual não foi a minha surpresa quando,
no dia 1¼ de maio, todo paramentado para entrar na missa
dos trabalhadores em Petrópolis, toca o telefone, era do
Vaticano. Atendo e dizem: "Você se considere
imediatamente demitido da cátedra de teologia, deposto da
Revista Eclesiástica Brasileira, da coordenação
editorial da Vozes, não pode mais falar, viajar, nem dar
aula. Esta é a punição". Eu disse: "Então
apelo ao direito canônico. Só entro na punição quando
tiver os documentos na mão, porque oral não vale".
"Então, os documentos seguirão." E desligaram.
Aí vieram os documentos.
Chico Vasconcellos - Nesses momentos todos, na sua cabeça
não voltam as palavras do velho Mansueto, que dizia que o
clero só era bom enforcado?
Leonardo Boff - Vou dizer com muita sinceridade:
minha grande decepção não foi a luta ideológica, de
teologias, argumentos e contra-argumentos. A minha decepção
profunda, que me amadureceu de certa maneira, foi ver que
eles mentem. Por exemplo, chego em Roma, o cardeal
Ratzinger dá uma entrevista e diz: "Boff não veio
para cá convocado. Veio porque solicitou
julgamento". Aí telefonei pra ele: "Ou o senhor
desmente isso ou pego o avião amanhã e volto para o
Brasil, porque discutimos a data, a carta, o senhor mandou
a passagem – que eu não viria se vocês não pagassem a
passagem –, tudo isso foi feito. Agora, o senhor diz que
me apresentei, solicitei um julgamento". Então, ele
escreve lá: "Pontualizacione sur por causa est".
Não diz "desmentido", diz pontualizacione. Ele
diz: "De fato, em dia tal seguiu carta, acertamos dia
tal...". E aí, antes de começar o diálogo, andando
com ele, eu disse: "Cardeal, quero que o senhor diga
pra mim aqui, não na imprensa, se o senhor deu aquela
declaração". "Não, a imprensa inventa."
Saiu no Osservatore Romano!
Frei Betto - O "diário oficial".
Leonardo Boff - Então foi uma profunda decepção,
ver que eles manipulam. Depois, um grande vaticanólogo, o
Santini (na ocasião, me articulei com os jornalistas que
cobrem o Vaticano e são chamados vaticanólogos e que,
pelo menos, são bons teólogos, sabem tudo do Vaticano),
me disse: "Olhe, nós temos..." – deu uma
cifra altíssima, acho que 300 milhões de liras –
"para comprar documentos do Vaticano, documentos
secretos, pra gente dar o furo". E eu, numa dessas
disputas com aquele cardeal, o Jerome Hamer, tinha dito:
"Vocês são corruptos, vocês vendem
documentos". "Tem de provar, isso é uma injúria,
você tem de provar!" E eu: "Então chamo o
Santini aqui, ele tem 300 milhões de liras...". Ele
disse: "Infelizmente temos funcionários que só
fazem isso...".
Chico Vasconcelos - Você fala que a Igreja mente, que
ela é corrupta...
Leonardo Boff - Ela mente, é corrupta, é cruel e sem
piedade. Ela pega alguém e vai até o fim. Antes de eu
receber aquela condenação no 1¼ de maio, uns quinze
dias antes, veio o representante do núncio a Petrópolis,
junto com o bispo de Petrópolis, paramentados
oficialmente, e me entregaram um livreto publicado pela
Poliglota Vaticano Livrino, onde era feito o juízo do meu
livro. Me entregaram oficialmente, me deram meia hora pra
ler e dar a resposta e foram para a igreja ao lado, rezar.
Fiquei lendo. Meia hora depois, eles vieram, eu disse:
"Li, concordo porque também rejeito todas essas
teorias". "Mas são suas!"
"Absolutamente, isso não é meu, eu concordo, tudo
bem." O núncio diz: "Graças a Deus, com um teólogo
assim podemos trabalhar". Eu digo: "Por quê?"
"Se você tivesse feito como o Küng, dizendo não,
ligaria daqui mesmo para o Vaticano e você receberia
todas as punições canônicas." Aceitei o texto,
tudo bem, o texto vai ser publicado e termina ali. Daí a
surpresa quando quinze dias depois vêm as punições
todas. Quer dizer, não bastou eu me submeter ao processo,
acolher a condenação do livro de uma forma oficial – e
com a promessa de que nas próximas edições iria fazer
rodapés corrigindo, moderando a linguagem –, e eles
ainda vêm e aplicam outras punições, quer dizer, é
abuso, é excesso de rigor. Me submeteram, ganharam e,
ainda por cima, me espezinham. E aí me submeti àquele
silêncio, que provocou uma grande crise em Roma porque o
dom Ivo, que era presidente da CNBB, recebeu uma
infinidade de telegramas do mundo inteiro, de protesto, e
o argumento era: "O Vaticano fez aquilo que os
militares faziam, isso é um escândalo!"
Frei Betto - No programa Roda Viva, da TV Cultura, ouvi
um jornalista dizer: "Mas porque agora você não está
mais na Igreja..." Na verdade, você continua na
Igreja.
Leonardo Boff - Tem de ser mais formal aí. A
Igreja fundamentalmente é essa comunidade de fiéis,
comunidade organizada, portanto tem o seu governo, sua
hierarquia. E eu pertencia, nessa comunidade, ao lado hierárquico,
era padre. Padre e teólogo. Então renunciei a uma função
hierárquica na Igreja, deixei de ser padre...
Frei Betto - Deixou de ser franciscano, da ordem...
Leonardo Boff - É. Deixei de ser franciscano
porque está ligado aos dois, se deixei de ser padre,
deixei de ser franciscano. E voltei ao mundo de Jesus
Cristo, porque Jesus foi leigo, não foi padre.
Carlos Moraes - Você formalizou esse desligamento?
Leonardo Boff - Engraçado, encaminhei os papéis e
o Vaticano até hoje não me respondeu. Então,
oficialmente, posso entrar em qualquer igreja, celebrar,
pregar, casar, quer dizer, foi um desligamento unilateral.
Em 1992, durante a Eco, veio o geral da ordem, instruído
pelo Vaticano, dizendo: "Até agora, a ordem ajudou
você, agora você tem de ajudar a ordem. Então, tem de
deixar de dar aula, de escrever, de viajar, de dar
entrevistas, de publicar". Eu: "Como? Já fiz
isso antes, não faço mais. Antes podia ser humildade,
aqui é humilhação, não aceito isso". "Você
pode escolher qualquer lugar da ordem, qualquer convento,
que a ordem está no mundo inteiro..." "Isso não
aceito." Então, durante toda a tarde, elaboramos
alternativas para eu poder continuar fazendo alguma coisa.
Disse a ele: "Teólogo tem só a palavra como
comunicação, falada e escrita. Se você tira dele a
palavra, ele é uma pessoa nula. Os direitos humanos, a
luta do Brasil para conquistar uma democracia, a Igreja
ajudou a resgatar essa liberdade e vocês querem impô-la,
não aceito". Então, ele se comunicou com alguém e
me disse: "Não tem alternativa, você pode escolher
qualquer lugar". "Se eu for para a Coréia, para
as Filipinas, naquela lonjura, outras línguas, posso
ensinar, escrever?" "Não, não pode, tem de se
submeter totalmente." Então eu disse: "Eu mudo
pra continuar o mesmo. Não aceito e vou sair, como
protesto". E aí discutimos "como vamos
fazer". A gente ia esperar – era julho, durante a
Eco 92 – para avisar os amigos, bispos etc., e não
produzir um impacto assim na Igreja. Mas, nisso, a Folha
de S. Paulo descobriu, porque a gente teve essa discussão
toda, bem franciscana, comendo pizza num restaurante e
tinha jornalista perto. Um deles, que pegou o fio da
meada, me disse depois: "Boff, sei de tudo. Você
decidiu sair e vou publicar amanhã na Folha".
"NA NOITE DE PASCOA ME
LIGAM DE
ROMA: 'O PAPA MANDA DIZER QUE
VOCÊ ESTÁ LIVRE, PODE FALAR'."
Ricardo Kotscho - Incrível, isso foi em 92 e, até agora,
oficialmente você continua.
Leonardo Boff - Continuo.
Quer dizer, unilateralmente saí, mas até hoje o Vaticano
não tomou uma posição, nada. No ano passado, numa
palestra para umas 3.000 pessoas em Roma, dei com dureza
em cima da instituição. Eles não reagiram.
Ricardo Kotscho - Mas o
papa não fica conhecendo todo o processo, todos os
detalhes?
Leonardo Boff - Ele é
informado toda quinta-feira. Os cardeais se reúnem às
quartas-feiras, são treze cardeais – o ministério
central do Vaticano – que se reúnem e debatem as
doutrinas que estão em voga, os textos, os teólogos etc.
E na quinta o cardeal-chefe, que é o Ratzinger, tem uma
hora com o papa para informá-lo como vai a teologia, como
são as tendências, os teólogos, ele é informado passo
a passo. O meu caso ele acompanhou. Na conversa que teve
com dom Ivo, ele disse que sabia passo a passo, até
lamentou, porque, quando fui condenado, veio apoio
internacional, e ele disse: "O vilão sou eu e o Boff
é o herói". E, segundo dom Ivo, chegou a chorar.
Chico Vasconcellos - Mas o
papa é político...
Leonardo Boff - É, porque
dom Ivo disse: "Pra nós, é um escândalo, porque no
Brasil a Igreja lutou sempre contra a ditadura, que
cortava a língua dos jornalistas, impedia a liberdade, e
o senhor fez isso". Então, o papa: "Como, eu
fiz isso?!" Aí se deu conta de que era uma medida
contraditória. E queria desfazer a condenação. O
cardeal Sales, eu soube depois por dom Paulo Evaristo,
interveio: "Santidade, se o senhor suspender a
condenação, o povo vai dizer que o papa erra, que o papa
não sabe". Então, ele sustentou. Eu sei que, na
noite de Páscoa, estava entrando na missa da meia-noite,
cronometrado, aí me telefonam de Roma: "O papa manda
dizer que você está livre, pode falar". Porque a
proibição era pelo menos por um ano e, a partir desse
tempo, eu podia ficar proibido por tempo indefinido, mas
aos onze meses, na noite de Páscoa, ele pessoalmente
mandou suspender. E depois, pelo cardeal Casaroli,
escreveu uma carta agradecendo por eu ter acolhido o
diálogo, me submetido, dizendo que "dessa forma é
possível criar uma autêntica Teologia da
Libertação". Quer dizer, uma carta que o Casaroli
escreve, secretário de Estado, em nome do papa. E com
isso encerrava a parte oficial deles. Terminou assim. Aí
vem em 1992, quer dizer, cinco anos depois, aquela
conversa durante a Eco, quando eu disse: "Não aceito
mais". E aí me desliguei.
Ricardo Kotscho - Mudando
de assunto, uma coisa que se conversa muito entre os
católicos é a questão do celibato. Existe hoje um monte
de gente insatisfeita dentro da Igreja por causa do
celibato. E um monte de gente fora que poderia entrar e
não entra por causa disso. Qual a importância do
celibato pra quem está dentro da Igreja e pra quem está
fora?
Leonardo Boff - O celibato,
para esse tipo de Igreja que temos, é estrutural e
necessário. Temos uma Igreja altamente concentrada em
termos de poder, que está só na mão de uma mínima
parte, que é o clero. E tem de gerenciar a primeira
grande multinacional do Ocidente que é o cristianismo –
desde o século 4 é uma multinacional, que envolve cerca
de 1 bilhão de pessoas. Então, para a Igreja, o celibato
é estratégico. Porque você tem uma mão-de-obra
diretamente ligada a você e que não tem nenhum vínculo
de família, de mulher, de filhos, de herança, e é o
intelectual orgânico estrito da instituição. Ele
encarna a instituição e, não sem razão, é tirado da
família com a idade de 12, 13 anos, levado para o
seminário e criado na sua mentalidade, na sua
subjetividade, para servir a instituição. Ele é
estruturado nessa perspectiva, que vai contra duas
tendências básicas da modernidade, que são resgatar a
liberdade e a subjetividade. Quer dizer, o ser humano se
descobre como sujeito livre, que organiza sua privacidade,
sua sexualidade, seu projeto pessoal. Se é casando, se é
mantendo-se solteiro, se é sendo gay, não importa, você
respeita as preferências do projeto que você tem. E a
Igreja nega isso. Ela impõe que quem quer servi-la tem de
ser celibatário. Então, frustra todo um caminho, que é
um caminho também de realização humana, porque a
sexualidade não é só uma questão de troca genital, é
o diálogo com a dimensão da anima e do animus, como um
integra a alteridade do outro, mulher ou homem
respectivamente, como trabalho da dimensão da ternura, da
fragilidade, do amor, que é uma exposição ao outro. O
celibatário trabalha com grande dificuldade isso, porque
ele, por força da educação e sua função, é
autocentrado. E toda a dimensão do feminino, não só da
mulher, mas do feminino no homem e na mulher, é
encurtada. Então, esse é o primeiro problema. O segundo
é o que tem a ver com o poder. E todo poder é
autoritário, seja nazista/fascista, do Hitler ou Stálin,
ele é altamente negador da ternura, da sexualidade, da
intimidade. E na Igreja há isso, então é um poder
altamente autoritário, no cânon que fala dos poderes do
papa ele é absoluto, ilimitado, universal, sobre cada
cristão, sobre toda a Igreja, e infalível. Se você
risca papa e bota Deus, vale. Ele atribui a si
características divinas. Então, é um poder que em
teologia se chama totatus dictatus papa, expressão latina
que se criou no século 14: é o dictatus papa,
literalmente traduzido, "a ditadura do papa".
Então, é essa a perspectiva de um poder altamente
centralizado, piramidal e totalitário, que engloba tudo,
não convive com a fragilidade do amor, da sexualidade. A
essa estrutura pertence o celibato e também o poder mais
imediato: você não tem partilha, não tem herança, não
tem de se preocupar com a educação dos filhos, onde a
mulher vai ficar, nada. Você se torna um soldado
totalmente disponível à instituição, que pode
mandá-lo a Hong Kong, pólo norte ou Rio de Janeiro.
Leo Gilson Ribeiro - O que
foi, um tratado?
Leonardo Boff - Foi uma
praxe, inicialmente. No campo, o celibato nunca funcionou,
porque o padre era simultaneamente camponês e tinha de
arranjar mão-de-obra, e não havia seminários onde se
formassem padres. Ele gerava um filho, explicava como era
a missa, os sacramentos e tinha o seu sucessor. No
primeiro milênio, o celibato era reservado aos bispos,
que tinham de ser monges celibatários. Com os padres era
mais ou menos livre. O seminário só veio na polêmica
com os protestantes no século 16, quando a Igreja cria a
instituição de formação de seus quadros e aí impõe o
celibato rigoroso. É assim até hoje. Agora, isso nunca
foi algo que fosse entendido como do âmbito da tradição
cristã, ou da revelação. É uma disciplina
eclesiástica, portanto depende da vontade do príncipe.
"ACHO QUE A GENTE
DEVIA TIRAR DO
FHC O TÍTULO DE INTELECTUAL,
PORQUE É UM FALSO INTELECTUAL ."
Ricardo Kotscho - Na sua vida pessoal, o que mudou? Era
como se você estivesse a vida inteira dentro de uma
prisão, dentro das regras da Igreja, e de repente você
está livre disso, aí pode ter um monte de namoradas,
casar, ter filhos, o que muda pra você isso?
Leonardo Boff - Tive a
audácia de casar com uma mulher que já tinha seis
filhos. Me acompanhava nos trabalhos, é uma mulher
extremamente empenhada na luta das favelas, direitos
humanos, é de uma família burguesa que se converteu a
essa causa da teologia, dos pobres. E vi que o casamento,
que a vida a dois é casar com um projeto também, casar
com o sonho de uma vida, que você mistura, que você une.
E também assumi a família dela. Acho importante dizer
isso, porque implica uma ruptura também com a ditadura da
Igreja. Um padre, teólogo, casa com uma desquitada.
Ricardo Kotscho - Aí
também você fez strike, né? (risos)
Leonardo Boff - Quando o
amor humano ocorre, ele tem a sua santidade, tem a sua
presença sacramental. Não me importo se ela é casada,
não é casada, se é desquitada ou não, desde que esse
fenômeno ocorra e a gente possa assumir.
Sérgio de Souza - No
começo, você falou de uma certa convivência com o
Fernando Henrique Cardoso, no Cebrap.
Leonardo Boff -
Convivência, digamos, funcional.
Sérgio de Souza - Você
acha que ele mudou de lá pra cá?
Leonardo Boff - Acho que a
gente devia tirar dele o título de intelectual, porque é
um falso intelectual. Ele é um político. O intelectual
pensa a sociedade a partir de um horizonte de utopia, em
que toma a liberdade de dizer o que pensa e como vê as
relações de poder: isso faz o reino do intelectual, quer
dizer, a partir do ideal ele julga a sociedade. E o
Fernando Henrique julga a sociedade a partir de um jogo de
interesses, do qual ele é parte importante, e ele assume
o poder dentro de um projeto que acho profundamente
perverso, porque não significa nenhuma ruptura da
herança de exclusão que teve este país. Os sujeitos
históricos, que sempre detiveram o poder de uma forma
autoritária, excludente, exploradora, são aqueles que
compõem a base do governo do qual ele é presidente.
Então, ele não representa nenhuma ruptura, ele consagra,
com ares de intelectual, que considero falso, uma nova
forma de dominação da sociedade brasileira. Então, acho
que a gente devia destituí-lo como intelectual,
considerá-lo político, com todas as virtudes de um
político, que é pensar sempre numa intenção, isto é,
numa segunda intenção. E,por isso, cheio de malícia.
Ricardo Kotscho - Quer
dizer que você não se surpreendeu, porque muita gente
fala que o Fernando Henrique mudou muito. Outros, que o
conhecem bem, dizem que ele sempre foi assim, as pessoas
é que tinham uma imagem errada dele.
Leonardo Boff - A
construção teórica dele, que utilizamos na Teologia da
Libertação e nos ajudou a ver o mecanismo do
subdesenvolvimento, nos fazia entender que era possível
uma ruptura. Quer dizer, um desenvolvimento
auto-sustentado, que respondesse às demandas históricas
daqui e que, por isso, implicava uma certa distância com
os centros hegemônicos – isso estava dentro da
construção teórica dele. E vejo que ele renunciou a
essa convicção, ao nível da economia brasileira, e essa
inserção do Brasil no mercado mundial ele discute sem
receios de comprometer a soberania. Ele não tem
preocupação de ter um projeto para esse povo. Projeto
nacional, um país com uma situação geopolítica
fantástica, uma biodiversidade fabulosa, experiência
cultural singular, um país multiétnico, multicultural,
quer dizer, isso vale no diálogo mundial e ele não sabe
fazer, porque acho que não ama suficientemente este povo,
ele ama o poder.
Sérgio Pinto - É um
projeto de poder, ponto.
Leonardo Boff - É um
projeto de poder em que ele se beneficia. Mas tem de
qualificar esse poder, qual a natureza desse poder? É o
velho poder oligárquico, excludente, da história
brasileira, e ele não colaborou em nada para modificar
isso. E aí penso que ele traiu a todos nós, porque
depositamos na lucidez do intelectual, do sociólogo que
conhece o mecanismo do poder, a esperança de que pudesse
interferir e dar uma marca diferente. E ele não fez.
Sérgio de Souza - O
benefício que você disse que ele conseguiu é só na
vaidade pessoal ou...
Leonardo Boff - Eu
pessoalmente acho o seguinte, talvez possa dizer entre
caros amigos, não é? Acho que ele não acredita em
absolutamente nada, nenhuma transcendência, é de um
marxismo clássico, ateu e, para quem não tem uma
transcendência da história – história é isso –,
quem está no poder tem de se aproveitar do cavalo que
passa encilhado, porque não tem mais nada além disso,
nenhum projeto de longo alcance, em que haja a dimensão
da renúncia, para construir uma base mais popular, mais
ampla e dialética, acho que ele não tem isso.
Leo Gilson Ribeiro - Será
que ele não terá raciocinado da seguinte maneira: dentro
da hegemonia que se estabeleceu na Terra atualmente, não
há ponto de saída a não ser a de tornar o Brasil um
capitalismo dependente, marca do capitalismo?
Leonardo Boff - Isso é
versão dele, que mostra a ausência da dimensão ética.
Porque alguém pode chegar, dentro dessa realidade, dessa
fatalidade, a ter como dimensão ética ainda a dimensão
do protesto, de dizer: "Eu não aceito isso porque é
iníquo, não quero ser um agente que consolida, que dá
aval a isso". Eu diria que o processo da
mundialização é um processo que transcende o
econômico, o político, é pra mim um processo
civilizatório, uma nova etapa da Terra, da humanidade, e
não há como não entrar nisso. Agora, podemos entrar de
uma maneira mais soberana, mais dialogal, sentar junto aos
poderosos do mundo e colocar muitos argumentos, o que ele
não faz. É servil, fazendo o jogo do norte. Ele não faz
o jogo do sul. É subalterno, é uma integração
subalterna, que prolonga o que sempre houve. Pra nós, a
mundialização começou no século 16. O projeto de mundo
do reino hispânico, Portugal e Espanha, não sofreu
ruptura, tem continuidade até hoje.
Ricardo Kotscho - O que
você vê hoje no horizonte, como sonho coletivo, uma luta
coletiva, uma coisa que mobilize, que unifique as pessoas?
O que você vê ainda capaz de levar o povo para a rua?
Leonardo Boff - Um tema que
está mobilizando e possivelmente vai mobilizar mais, é o
tema da terra, que é levado pelos sem-terra, mas por
enquanto é levado mais para a terra de produção, terra
do campo. No dia em que se unir campo e cidade, em que se
discutir o tema da terra na cidade e o problema todo da
favela, o direito à moradia e à terra no sentido mais
contemporâneo, mais moderno, da terra como Gaia, não só
terra de produção, mas terra como nosso próprio corpo,
terra como prolongamento do planeta, vivo, supersistema
altamente refinado e organizado...
Leo Gilson Ribeiro - A
nossa mãe-terra.
Leonardo Boff - A nossa
mãe-terra, grande pátria amada. Que é a visão dos
povos originários, é a visão do camponês, a visão do
nosso cotidiano, porque a visão científica é
reducionista, vê a terra como composição desses cem
elementos físicos/químicos da escala de Mendeleiev. A
terra não é isso. A terra é paisagem, a terra fala, a
terra é a mensagem que podemos escutar, e a terra também
somos nós mesmos, os seres humanos. Então, se
conseguirmos dramatizar que o valor supremo é preservar
este planeta – e só temos este – porque ele está
profundamente ameaçado e não tem uma arca de Noé que
salve alguns dessa vez e deixe perder os outros, essa é a
base para qualquer outro valor. E o segundo valor, o de
preservar a família humana, a espécie humana junto às
demais espécies, e garantir as condições para que ela
subsista e continue a desabrochar, desenvolver-se. São os
dois valores supremos de uma ética planetária, terrenal.
Sérgio de Souza - Isso
decerto pressupõe uma luta.
Leonardo Boff - Penso que a
gente devia consultar não quem está pensando essa
questão, como nós que estamos aqui teoricamente falando
sobre isso. Mas quem vive da terra, sente a terra e luta
pela terra. Então, o que dá força e coesão aos
sem-terra são os seus símbolos, os seus mártires, os
pedaços de roupas que eles têm, os frutos que levam, a
batata, a mandioca, o animalzinho... e que mostram como a
vida é concreta e que está ligada à vida e à
subsistência deles. E não só deles, de todo o mundo
urbano. Quem produz o feijão e arroz que comemos?
Ricardo Kotscho - Isso é
que eu ia falar dos sem-terra. Apesar de muitos, são uma
minoria. A maioria são os com-terra, os pequenos
proprietários que produzem 70, 80 por cento do que
comemos. Não seria o caso de ouvi-los também?
Leonardo Boff - Lógico,
ouvi-los e denunciar que não há uma política agrária
no Brasil. Há uma política para a grande agroindústria,
que é para a exportação, não para o mercado interno.
Eu mesmo vi, estando anteontem com camponeses gaúchos
desesperados, pessoas se suicidando, porque o preço da
cebola, da batata, nunca houve tanta produção e é
degradado o preço. Os meus parentes que cultivam lá em
Concórdia, lá onde está a Sadia, em sessenta dias
ganham 1.000 reais. Com uma superexploração, trabalhando
quinze, dezesseis horas por dia. Se diz: "Todo mundo
pode comer frango". Mas é à custa de camponeses que
estão morrendo, não conseguem mais manter esse preço
achatado. Não se escuta num diálogo o que significa
isso, como a cidade vive do campo. Então, acho que uma
dessas grandes causas – e é planetária – é essa. E
a segunda é mais social. É a questão da cidadania.
Porque se opõe à exclusão, que é um fenômeno novo.
Antes, você tinha o marginalizado, o que estava à margem
do sistema lutando para entrar e se desenvolver. Aquele
que está fora hoje não se confronta com o sistema, se
confronta com a morte. Porque pra ele não há projeto de
saúde, nem de cesta básica, nem de casa, nem de escola,
nada, ele está à margem. Qual a proposta para esses
excluídos? É a cidadania como participação, uma
sociedade em que todos possam caber. Neste país cabem 70,
80 milhões, os demais não cabem. São zeros econômicos,
são excluídos, não entram na contabilidade. Para eles,
o Estado não propõe nada. Então, aí entra o resgate da
cidadania, não como valor meramente cívico, você ter
direitos. Não, você tem direito de participar, você tem
direito a um pedaço de terra, direito de comer, porque é
filho dessa terra. E aí acho que a alternativa é criar
economias paralelas, formas de produção alternativas, de
melhoria do ingresso, que é o espírito cooperativo.
Criar cooperativas o mais possível, como a gente está
incentivando de novo a fazer. Pegar pneus e dos pneus
fazer sandálias para vender, fazer artesanato, fazer
quentinhas, mil formas como esses excluídos se organizam
para poder garantir a subsistência. O espírito
cooperativo seria uma alternativa fantástica para uma
produção que não está no mercado, está à margem do
mercado, e que satisfaz necessidades e atende
necessidades, e criaria uma nova dinâmica social,
romperíamos a ditadura do mercado, que se impõe a todo
mundo, quem não está no mercado não existe, e apeado
dele morre.
Roberto Freire - Estou
sentindo que neste momento você está falando muito a
respeito do que vejo como pensamento anarquista.
Autogestão, por exemplo, é a coisa mais libertária que
existe em matéria de produção.
Leonardo Boff -
Cooperativas autogestionáveis, assim elas se definem, e
há grupos pensando seriamente nisso.
Ricardo Kotscho - Já está
acontecendo nos assentamentos.
Leonardo Boff - Exato. E
resgatar a partir dessa categoria o que está sendo negado
hoje – desenvolvimento, porque até hoje a Teologia da
Libertação se fez contra a teoria do desenvolvimento,
que vinha de cima para baixo, vinha do Estado. Agora tem
de ser o desenvolvimento como categoria do sujeito
coletivo do povo, das comunidades.
Marina Amaral - A doutrina
cristã, como o senhor disse, é uma doutrina
revolucionária. Não consigo entender como as pessoas que
têm essa doutrina em mente vão para esses seminários,
aceitam uma estrutura de Igreja que sabem que vai ser
aquela. Queria entender por que essas pessoas procuram a
Igreja e por que essa rebelião afinal é tão pequena
perto de uma Igreja tão grande.
Leonardo Boff - Esse é um
dos trabalhos pedagógicos mais sutis que a instituição
faz sobre seus quadros. O padre, o seminarista é educado
para ter um verdadeiro casamento com a instituição,
aquilo que a pessoa dá em termos de libido, de amor à
sua companheira, à sua mulher, ele é educado a dar à
sua Igreja. Agora, há uma fase em que o padre desperta.
Geralmente quando cai na vida real, como pároco, como
agente de pastoral, aí ele se dá conta de que essa
Igreja é uma grande madrasta. Que usa a força dele, sua
libido, sua inteligência em favor dos interesses
institucionais dela e não das pessoas humanas. Que ela
não se interessa muito pelos problemas do homem da rua,
que tem problema com limitação de natalidade, com
eventual aborto, com fracasso no matrimônio e a vontade
de começar um outro. Ela não se interessa, ela é fria e
sem piedade e aplica a doutrina. E aí o padre entra em
crise, fica entre o pastor que sente o próximo e a
subjetividade que foi criada nele de ser o representante
da instituição, da doutrina, e entra num conflito e
muitos sucumbem nesse conflito. Ou ele abre e entra num
novo estado de consciência e é um pastor que viola as
doutrinas, ou ele se enrijece, recalca aquele mundo e fica
o homem da instituição, do poder, da palavra rígida e
até se transfigura. Ou então a terceira alternativa:
muitos abandonam. E vão atrás das causas profundas que
podem ser, digamos, o encontro com uma mulher. Não é
apenas o encontro com uma mulher, quer dizer, ao encontrar
a mulher e descobrir o mundo da intimidade, da ternura, da
compreensão, do companheirismo, da vida como todos os
mortais vivem, que é carregada de valores, e que isso foi
tolhido a ele, diz: "Puxa, mas Deus não pode ser
inimigo disso, Deus tem de ser pensado como um
prolongamento disso ao infinito e não como corte
disso". E muitos então saem. Profundamente
frustrados com a instituição. Então, a educação é
levada nesse sentido, por força do celibato você não
pode ter o intercurso sexual. Então, a mulher se torna a
tentação próxima. E você é educado a não olhar nos
olhos da mulher, porque ela é tentadora, de nunca
conversar com ela sozinho, sempre acompanhado de outros.
Leo Gilson Ribeiro - Mas os
muçulmanos do Taliban também dizem isso.
Leonardo Boff - Porque é
uma sociedade patriarcal e machista. Então, eu queria
dizer o seguinte: que as mulheres tiveram uma grande
função civilizatória junto aos padres. Que aqueles que
se deixaram introduzir nesse diálogo, nesse encontro, se
humanizaram, ficaram mais sensíveis, mais
misericordiosos, mais compreensivos com o povo. Até podem
viver o celibato, integrando essa dimensão, mas a ruptura
foi a mulher que provocou neles, os ajudou a fazer a
passagem, coisa que o seminário e nenhuma teoria
teológica fazem.
Marina Amaral - E por que
as freiras aceitam essa dominação? Freira não pode ser
da hierarquia, freira não reza missa.
Leonardo Boff - Aí é todo
um processo que a ideologia mostra. Quer dizer, você
apresenta uma totalidade ideológica fechada, cheia de
valores, inculca e cria uma subjetividade adequada a isso.
O cristianismo poderia ser uma escola de humanidade, de
generosidade, de compaixão. Se transformou num reduto de
machismo, de rigidez, de ideologia compacta. Isso tem de
ser denunciado, não tem nada a ver com a tradição que
vem de Jesus. É uma tradição libertária, não diz
"eu sou tradição", diz "eu sou a verdade,
eu sou luz". E aqui o que vemos é a tradição, o
império da reprodução do mesmo. Há uma geração de
padres que fez mudanças fundamentais, passaram para o
lado do povo, do feminino, sofreram muito, tiveram de
reinterpretar o celibato e se reintegrar na dimensão mais
feminina da vida e ganharam muita estatura.
Desgraçadamente, a Igreja escolhe para substituir no
episcopado só aqueles que vêm do estrito celibato. Um
dos itens novos que introduziram do padre candidato a
bispo é se nunca criticou o papa, se nunca criticou o
celibato. Se alguma vez fez crítica ao celibato, não é
nomeado bispo. O que revela a fraqueza da instituição.
Ela não é mais vulnerável ao diálogo, ao crescimento,
ela tem de usar a força simbólica para se impor.
Sérgio de Souza - E quem
mais denuncia isso, além dos teólogos da Igreja?
Leonardo Boff - Na Igreja
há um discurso absolutamente farisaico. Você conversa
com um bispo, se ele está entre caros amigos, diz tudo o
que estou dizendo. Cai na rua, "não posso dizer
porque vou ser demitido, vai ter briga com o Vaticano, a
CNBB cai em cima de mim, não posso falar". E muitos
teólogos que pensam assim têm de dar aulas segundo os
ditames, senão são depostos pela cátedra, "perco
minha paróquia, caio no mundo, e tenho de buscar outro
caminho". Então, a Igreja, a instituição, essa
instância central de governo, obriga as pessoas a ser
falsas por elas mesmas, hipócritas.
Chico Vasconcellos - Como
se constitui o poder na Igreja?
Leonardo Boff – Primeiro,
o Vaticano, com os seus mistérios, os encarregados da
educação, dos bispos, das religiosas, dos padres, da
doutrina, que são verdadeiros ministérios. O papa em si
com seus ministérios, um governo centralizado onde tem
informação do mundo inteiro, informação hoje já
informatizada.
Chico Vasconcellos -
Quantos homens fazem parte desses ministérios?
Leonardo Boff - Uma vez
perguntaram a João XXIII quantos trabalhavam no Vaticano,
ele disse: "Metade...". Acho que são 11.000
funcionários.
Chico Vasconcellos - Esse
colégio de cardeais que dominam, quantos são?
Leonardo Boff - Cardeais
são uns 150, mais ou menos, no mundo. O Vaticano deve ter
uns trinta.
Ricardo Kotscho - O papa
não é uma rainha da Inglaterra?
Leonardo Boff - Não, ele
escolhe. A força dele é poder escolher os seus
assessores diretos, que é o chamado Corpo do Papa,
pessoas que pensam e agem como ele. A quem ele delega todo
poder.
Frei Betto - O projeto
estratégico é dele?
Leonardo Boff - O projeto
estratégico é dele. Por outro lado, há uma grande
resistência da máquina, de quem está por baixo. Por
exemplo, temos três, quatro cardeis da Cúria Romana que
fazem o nosso jogo, que nos defendem, empurram nossos
textos em cima dos cardeais, mandam briefings, a luta
ideológica é bárbara lá dentro.
Chico Vasconcellos - Desses
cento e tantos cardeais, quantos são do Primeiro Mundo e
quantos são do Terceiro?
Leonardo Boff - Hoje, 52
por cento dos católicos vivem no Terceiro Mundo. Para
mostrar uma certa contradição entre o poder da base e o
poder da representação, isso significa, primeiro, que o
cristianismo hoje é uma religião do Terceiro Mundo, que
teve origem no Primeiro Mundo. Isso é importante
constatar. Segundo, que esse poder real, que é numérico,
que garante o futuro institucional da Igreja, não é
adequadamente representado no aparelho central do
Vaticano. Acho que um terço dos cardeais é de italianos,
mais de cinqüenta cardeais italianos, o que é uma
inflação fantástica em termos de poder. E acho que dois
terços são do Primeiro Mundo. Isto é, Europa, Estados
Unidos, porque aí joga muito uma questão
numérico-econômica, quer dizer, poder real da Igreja.
Uma diocese como Nova York, como Chicago, que são
extremamente ricas, ou como o Rio de Janeiro, ganha
cardeal por quê? Porque articula interesses da Igreja,
que tem reprodução na economia, nos investimentos, essa
coisa toda, e que são reforço na aliança que o Vaticano
faz com os poderes desse mundo, porque é um poder que
busca aliança com outros poderes. É um poder espiritual,
mas é um poder que sempre tem algo a dizer na política,
nos negócios também.
Leo Gilson Ribeiro - Existe
alguma tendência dissimulada de um certo racismo na
Igreja, com uma predominância do hemisfério norte
branco?
Leonardo Boff - Eu não
diria racismo, diria uma discriminação cultural. Eles
consideram a grande cultura da Europa, que é a cultura
que nasceu cristã. Agora, eles têm um senso de eqüidade
no sentido de universalidade. Isso o Vaticano herdou da
tradição romana. Então, eles têm dois corpos grandes,
o corpo doutrinário, que representa o corpo jurídico dos
imperadores, que é a Congregação da Doutrina e da Fé,
que zela pela unidade dos símbolos e da doutrina; e o
segundo corpo, que é a fábrica de fazer bispos, a
Congregação dos Bispos. Isto é, quem você vai eleger
no mundo que esteja afinado com o governo central e ao
mesmo tempo enraizado na sua cultura. Então, a
importância do dom Lucas Neves é que ele foi cardeal da
fábrica de bispos.
Leo Gilson Ribeiro - Uma
linha de montagem...
Leonardo Boff - Linha de
montagem. Então, essas duas instituições são
fundamentais para o Vaticano. Por outra parte, é um corpo
contraditório, porque ele, na força de atender várias
culturas, na África, nos Estados Unidos, aqui, na Europa,
Leste etc., não pode ter um discurso muito uniforme,
porque se torna incompreensível. Por isso, o Vaticano
produz um discurso profundamente ambíguo, um discurso de
grande multinacional, que representa muitos interesses e
para preservar o papa como príncipe da unidade, de fé,
de política, de liturgia...
Leo Gilson Ribeiro - É o
unipartidarismo?
Leonardo Boff - É o
partido do papa, quem se opõe a ele é logo perseguido.
Ricardo Kotscho - Existe
uma possibilidade, mesmo remota, de que alguém como o dom
Paulo Evaristo possa ser eleito papa?
Leonardo Boff -
Possibilidade existe, quer dizer, é o imponderável.
Olha, neste momento os cardeais estão viajando muito,
porque eles se dão conta de que o pontificado do papa já
se encerrou em termos de estratégia, de tudo... ele já
fez o que tinha de fazer, e eles governam a Igreja sem
Wojtyla, supõem Wojtyla já morto em termos
estratégicos. Então, a luta agora é entre duas grandes
tendências. Uma é a tendência wojtyliana, porque mais
da metade dos cardeais eleitores foi feita por ele e
existe uma espécie de pacto entre os cardeais, que é o
de você sempre respeitar a memória daquele papa que o
fez cardeal – é a que eles chamam de
"tendência-testemunho", que parte do seguinte:
a Igreja é a única portadora da revelação da verdade,
não tem de dialogar com as outras igrejas ou religiões.
A segunda, que é de Paulo VI e João XXIII, hoje
representada pelo cardeal Martini, de Milão, é chamada
de "tendência do diálogo e da mediação". Que
quer dizer dialogar com todas as culturas, religiões,
caminhos espirituais, porque todas têm Deus por trás e
você tem algo a aprender. E propiciar esse diálogo para
criar ambiente de paz religiosa, paz política,
valorização da dimensão espiritual nos humanos, sejam
muçulmanos, budistas ou cristãos, e o papa como
interlocutor grandioso de uma cultura ocidental. E o
cardeal Martini é um jesuíta altamente inteligente,
viveu no Oriente Médio, entre os muçulmanos, domina o
judaísmo, foi professor de judaísmo a vida inteira, tem
um diálogo fantástico com as religiões do Oriente, que
conhece profundamente. Então, é um dos grandes cardeais.
Ou o cardeal Sing, de Hong Kong, educado em Roma. Mas que
tem toda a tradição chinesa. É um dos fortes
candidatos. Então, tem o cardeal Ruini – que é o mais
fiel seguidor do Wojtyla, que faz a política com os
grandes, mesmo que seja a máfia, contanto que reforce a
instituição – como um dos grandes candidatos daquela
ala. Da outra ala tem o Martini e o cardeal Sing. Então,
hoje se dá essa polêmica. E os cardeais já estão
viajando, trocando informações, com um deles até já
conversei. Estão fazendo consultas, porque se dão conta
de que, num processo de mundialização, ou a Igreja capta
esse movimento ou ela se isola no Ocidente. Eles estão
numa grande encruzilhada. E se dão conta de que todo o
fluxo da história está passando pelo Sudeste asiático.
Lá está o novo centro econômico mundial...
"HOUVE UM MOMENTO EM QUE EU
TINHA PERDIDO A ESPERANÇA, QUE
É PIOR DO QUE PERDER A FÉ ."
Ricardo Kotscho - Há
possibilidade de termos um papa chinês, é isso?
Leonardo Boff -
Possivelmente, oriental.
Ricardo Kotscho - Então
fale um pouco mais dele, nunca ouvi falar.
Leonardo Boff - Uma vez
participei de um encontro que houve em Hong Kong, um grupo
de teólogos aqui, você estava, não é, Betto?
Frei Betto - Estava, foi
quando a gente voltou da China, ele perguntou sobre as
CEBs.
Leonardo Boff - É um homem
muito aberto, fez teologia em Roma, conhece Roma, mas
profundamente chinês, querendo abrir para a China,
querendo que a Igreja que está lá se enraíze dentro da
China, que não fique apenas um pedaço do Ocidente lá
dentro. Quer dizer, um homem do nosso lado. Ele encarna o
cristianismo. Os cardeais, quando vão eleger o papa,
fazem uma análise de conjuntura muito grande. Primeiro,
captar o sentido de "para onde vai o cristianismo,
quais são os seus desafios, que chances ele tem de
crescer ou de diminuir na concorrência com os muçulmanos
que temos de fazer, porque em 2010 eles serão mais que
nós", porque há uma conversão em massa da África
para os muçulmanos. E ainda que a Igreja tenha de fazer
alianças para manter os seus valores ocidentais –
família indissolúvel, não aceitação do aborto, da
contracepção... aquela coisa toda. Quer dizer, "que
alianças políticas temos de fazer para nos mover, manter
e criar civilizações" – medem cada país. Estados
Unidos, América Latina etc. Quando acabam de fazer essa
análise – "Qual de nós aqui é o mais adequado a
essa conjuntura?" –, então pintam o cenário e,
para esse cenário, há um papa que seja razoável. Aí
entram a idade, a cultura dele, a capacidade de diálogo,
as alianças que ele tem na base para poder ter um governo
que o sustente, porque a Cúria pode boicotar, e ela é
terrível nisso. E é aí que eles elegem. E há o
imponderável, sabe? Conversei com um grande
vaticanólogo, o Zizola, que entende disso, e ele me
disse: "Esse papa humilhou tanto os cardeais, as
conferências nacionais, que ninguém mais quer saber
dele. Querem derrubar o wojtylianismo. Vai ser uma
desgraça, foi um retrocesso enorme. A Igreja se
enrijeceu, voltada para dentro, criou conflitos em todas
as conferências, teólogos punidos, bispos castigados,
conferências rebeladas porque foram muito humilhadas,
submetidas por Roma". Então, ninguém quer saber
dele e esses cardeais que foram feitos por ele também
sabem, pensam maior.
Ricardo Kotscho - Qual é o
significado de o papa vir ao Brasil pela terceira vez?
Leonardo Boff - Isso é da
política latino-americana, reforçar o lado mais
conservador, ligado à família tradicional. Qual é a
família que eles defendem? A do pequeno-burguês,
estabelecida, fiel etc., que não é a família real da
sociedade contemporânea.
Sérgio Pinto - E o governo
brasileiro, durante o seu embate com o Vaticano, como se
portou?
Leonardo Boff - Aqui, não
sei. Sei que o caso da Teologia da Libertação movimentou
estratos importantes da burguesia européia e católica. O
cardeal Ratzinger, de vez em quando, se encontra com
grandes industriais alemães, passam o dia juntos, eles
têm subsidiado enormemente as causas da Igreja contra a
Teologia da Libertação, que vêem aliada ao marxismo,
processo de instabilidade social, e os governos entraram,
os próprios Estados Unidos, com aquele famoso texto da
Carta de Santa Fé, que dizia que a Teologia da
Libertação é um risco para a segurança dos Estados
Unidos, por ser um fator de desestabilização na América
Latina. E a partir daí foi colocado um posto de
vigilância muito maior sobre os bispos, comunidades de
base, houve prisão, tortura, ao largo do continente todo
há uma infinidade de mortos e vítimas desse processo.
Uma vez consultei o ministro das Relações Exteriores, o
Silveira, que foi de dois governos, e ele me disse:
"Fomos instruídos para repassar ao Vaticano a
atividade ideológica e política que a fé vinha
recebendo no Brasil mediante padres de formação marxista
e que a Igreja, não tanto o governo" – porque
sabiam que era complicado prender padres –, "devia
fazer a vigilância sobre os seminários e esses
quadros".
Roberto Freire -
"Comunismo" é ainda usado como argumento?
Leonardo Boff - Um dos
argumentos que o Ratzinger usou num encontro de teólogos
alemães, e que deve ser tomado em consideração, foi:
"O marxismo morreu como ideologia, morreu como força
política organizadora dos Estados, mas ele sobrevive na
Teologia da Libertação, que funciona como cavalo de
Tróia para penetrar no meio dos pobres. Devemos redobrar
a vigilância sobre essa teologia".
Ricardo Kotscho - Houve
algum momento em que você quase desanimou, perdeu a fé,
que você tenha pensado "Deus não existe, não é
possível", houve esse momento?
Leonardo Boff - Houve um
momento e eu até disse isso, porque tinha perdido a
esperança. Que é pior do que perder a fé. Quando o
Vaticano interveio na Vozes em 1992, depuseram toda a
direção, nomearam um alemão como interventor, que a
primeira coisa que fez foi pegar os nossos livros e mandar
picotar e queimar. Pegou o arquivo todo da Teologia da
Libertação, aquela coleção de cinqüenta tomos,
trabalho fantástico de bispos, de teólogos de toda a
América Latina, pegou aquilo e jogou no lixo, para ser
levado pelos caminhões: ainda consegui correr atrás e
salvar. E disse que a Vozes, eu e a Teologia da
Libertação fizemos uma chaga muito grande na Igreja e
que essa chaga devia ser sanada. E deu uma guinada
fantástica na Vozes, que passou a ser uma editora de
direita, fechada, contra a Teologia da Libertação. E
virou censor pessoal meu. Cada artiguinho que eu fazia ele
corrigia tanto, que não dava nem pra publicar. Senti uma
profunda humilhação da inteligência: uma editora que
ajudou a pensar o Brasil mais à esquerda, o cristianismo
mais de libertação, sofrer esse tipo de intervenção.
Aí eu digo: "Não, isso é injusto. Um editor que
manda queimar livros, como pode ser um editor?"
Chico Vasconcellos - A
minha última pergunta seria a que sua mãe lhe fez: como
é que um padre não vê Deus? Como é, você já viu
Deus, como é Deus?
Leonardo Boff - Acho que a
gente vê com os olhos interiores. Talvez a gente não
veja, mas sinta Deus. Acho que toda vez que a gente sente
entusiasmo, de levantar de manhã e ter de começar o dia,
ter capacidade de estender a mão ao outro... Deus não é
um objeto, não é uma entidade, é uma suprema paixão,
suprema energia, o que os gregos de uma maneira genial
disseram e eu gostaria de dizer, porque ela está presente
em nossa língua, que é a palavra "entusiasmo".
Em grego, entusiasmo significa ente os mos "ter um
Deus dentro". Então, todo o entusiasmo é a
essência da vida, é a energia que faz a vida viver.
Creio que é essa realidade que penetra em tudo e não se
deixa captar, e sem a qual não entendemos nosso vigor,
nossa esperança, nosso sonho, nosso entusiasmo, que
escapa continuamente e, ao mesmo tempo, nos desafia pra
frente e pra cima. Penso que isso é Deus. E cultivar esse
espaço, manter a devoção, manter o encantamento e
deixar que isso se irradie é obra de alguém que é
inteiro. Porque, como disse Santa Teresa, quando se trata
de comer galinhas, então comer galinhas, quando se trata
de jejuar, então jejuar, quando se trata de lutar ao lado
dos sem-terra, lutar com os sem-terra, quando se trata de
escrever um artigo, ser inteiro na escritura do artigo.
Acho que essa capacidade é aquilo que é a ressonância,
que é o resultado da presença secreta, sutil, dessa
paixão, desse fogo interior, que nós chamamos Deus.
Entrevistadores: Marina
Amaral, Frei Betto, Sérgio Pinto de Almeida, Ricardo
Kotscho, Roberto Freire, Carlos Moraes, Chico
Vasconcellos, João Noro, Sérgio de Souza.
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