Boaventura
de Sousa Santos
Por
José Maria Cançado, Juarez Guimarães,
Leonardo Avritzer e Patrus Ananias*
O professor
Boaventura de Sousa Santos dispensa apresentações: doutor em
sociologia do direito pela Universidade Yale, professor titular da
Universidade de Coimbra, é hoje conhecido como um dos principais,
senão o principal intelectual da língua portuguesa na área de
ciência sociais. Entre seus diversos livros, dois deles,
publicados recentemente no Brasil, merecem destaque: Pela
Mão de Alice e A Crítica da Razão Indolente. Nascido
em Portugal, Boaventura teve a sua trajetória intelectual
intimamente ligada ao Brasil. Desde a pesquisa sobre pluralismo
legal feita nas favelas do Rio de Janeiro nos anos 70 às suas
constantes visitas a Porto Alegre para estudar o orçamento
participativo, o país sempre esteve associado às preocupações
do autor. Atualmente, o professor Boaventura está envolvido em
uma pesquisa sobre a reinvenção da emancipação social. Para
ele, existe no mundo atual uma enorme dissociação entre a experiência
e a expectativa. Cada vez temos experiências mais avançadas nas
áreas de democracia participativa, produção alternativa e
multiculturalismo, entre outras. No entanto, nessa última
modernidade, os indivíduos desistiram de associar experiência
com expectativa de mudança social. A grande sensação, nesse período
pós-muro de Berlim, é a do desperdício da experiência.
Boaventura acredita que é possível reconstruir a idéia de
emancipação social justamente a partir de experiências
bem-sucedidas em áreas como produção alternativa e democracia
participativa. Para ele, essas experiências estão localizadas
nos países do sul e precisam ter os seus elementos emancipatórios
explicitados e conectados. Nessa entrevista à Teoria e Debate,
o professor Boaventura explica a sua trajetória intelectual e
trata da questão da reinvenção da emancipação social.
Como
você descreveria a sua trajetória intelectual e o papel do
Brasil e
da política
brasileira no seu desenvolvimento?
A
minha trajetória, como a de muita gente da minha geração, é um
bocado heterodoxa, à medida que nasci num período em que
Portugal vivia sob uma ditadura. Aliás, uma grande parte da minha
vida foi sob a ditadura. Eu militava no movimento católico
progressista, que era extremamente reprimido. Fiz Direito em
Coimbra, depois fui estudar Filosofia na Universidade de Berlim
Ocidental. Regressei a Portugal e fui para o Estados Unidos em
1969. Aí, fiz uma viragem para a Sociologia. Especializei-me em
Sociologia do Direito. Nesta altura, surgiu uma oportunidade de
fazer um doutoramento na Universidade de Yale, por meio de um
trabalho na América Latina e optei pelo Brasil. Os meus dois avós
tinham imigrado para o Brasil. Conhecia desde pequenino o que era
este país por meio de meu avô, que ajudou a instalar as linhas
de bonde do Rio e que me falava sempre no grande presidente
Vasigton Luís (risadas). Durante muitos anos, não sabia que era
Washington Luís.
Vim para o Rio,
disposto a viver numa favela e realizar minha pesquisa, uma
tentativa de estabelecer uma alternativa à Antropologia, que,
nesta época no Brasil, era basicamente americana e estava
polarizada entre duas posições: a dos que achavam que os
favelados eram todos bandidos, faziam parte de um sistema de
ilegalidade, e a que romantizava as favelas como sendo uma grande
alternativa habitacional e que achavam que devíamos promovê-las.
Eu queria estabelecer uma outra explicação, mostrando que a
favela não era o paraíso mas também não era o inferno, era uma
sociedade em que as pessoas em situação de extrema pobreza
procuravam uma vida digna. Era inimaginável nesta época para os
brasileiros que um português viesse fazer pesquisa sociológica,
porque pesquisa era feita por americanos. Português vem ao Brasil
para fazer comércio, não é? E quando eu chegava na favela,
perguntavam: "afinal, qual é o seu negócio? É secos e
molhados, a gente ajuda, é sorvete?" Eu respondia: "não,
eu quero mesmo é fazer uma pesquisa".
A minha formação
teve aí o grande salto, a minha grande radicalização ocorreu
nessa altura. Estudei em Yale quatro anos, no período da grande
mobilização estudantil contra a guerra do Vietnã. Adquiri uma
consciência marxista, como dizia José Martí, "nos
intestinos do monstro". Foi nos EUA, com a Guerra do Vietnã
e, depois, com as favelas do Rio. Essas foram para mim as grandes
escolas de vida. Morei durante meio ano num barraco na favela do
Jacarezinho porque queria ver como funcionava. Era 1970, estávamos
sob ditadura, e havia nesta época a luta clandestina, o Partido
Comunista, os grupos do Brizola, as associações de moradores.
Todo o meu trabalho foi feito à volta dessas associações de
moradores. Foi aí que eu conheci um pouco a realidade, o outro
lado que eu não tinha visto, o lado da miséria, da exclusão,
das condições horríveis em que se vivia. Fiz a tese e, para não
identificar as pessoas e não causar nenhum problema aos meus
amigos que tinham ajudado na pesquisa, pus um nome fictício,
“Direito de Pasárgada”, título inspirado no poema de Manuel
Bandeira. Durante muito tempo ninguém soube que era na favela
Jacarezinho, havia alguma dúvida, uns diziam que era a Rocinha,
outros, Jacarezinho.
Como
foi a sua relação com o marxismo e com o processo político
português? De que maneira eles influenciaram o seu pensamento?
Abandonei
a minha ligação com o movimento católico já antes de ir para
Berlim Ocidental, porque a Igreja Católica em Portugal, ao contrário
da brasileira, era muito conservadora, muito reacionária. Havia
um bispo, do Porto, que era razoavelmente progressista, mas
Salazar o exilou para o Vaticano. Continuei a dar algum apoio a
certas causas progressistas católicas que sempre me motivaram.
Por exemplo, fui membro da Comissão Nacional da candidatura da
Maria de Lourdes Pintassilgo, uma engenheira que foi ministra de
um governo provisório em Portugal, depois da Revolução. Ela era
ligada ao movimento católico e foi candidata à Presidência da
República. Por ser mulher e católica progressista bastante avançada,
apoiei sua candidatura. Tivemos 7% dos votos.
Quanto
ao socialismo, tive a sorte, digamos, de ver um pouco o socialismo
real na Alemanha Oriental. Este socialismo nos anos sessenta era
extremamente punitivo. Eu próprio ajudei a fuga de estudantes de
Berlim Oriental para Berlim Ocidental. Nós, que atravessávamos o
muro quase todos os dias, às vezes acumulávamos pilhas de
livros, que, por vezes, até serviam de estantes, de mesas. Éramos
muito bombardeados com toda bibliografia marxista, que recebíamos
gratuitamente: as obras completas de Lenin, de Marx, de modo
nenhum Trotski, que do lado de lá nunca aparecia. Portanto, esta
minha primeira experiência com o chamado socialismo real foi
matricial para a minha compreensão do processo que viria
acontecer depois.
Como,
então, você viu o fim do comunismo?
Para
nós, na Europa, foi uma morte um bocado anunciada. Em Portugal,
tivemos outras vivências de socialismo que tiveram a ver com a
descolonização, porque nas zonas de influência da língua
portuguesa deu-se um grande ressurgimento do movimento socialista
e do marxismo por meio dos movimentos de libertação nacional.
Todos nós tínhamos amigos nos movimentos de libertação de Moçambique,
Angola, Guiné Bissau, onde se fazia uma produção teórica notável.
Estes movimentos trouxeram para o centro da revolução portuguesa
um marxismo diferente, mais aberto, ligado às lutas de libertação.
O marxismo acabou por ser muito importante em Portugal depois da
revolução. Não apenas por via do Partido Comunista. O Partido
Socialista já tinha abandonado o marxismo, mas tivemos outras
organizações trotskistas, maoístas, muitas outras que se
desenvolveram naquele período da revolução. E foi um período
extremamente rico de debates, sobretudo em um grande movimento político
no qual se localizaram quase todos os intelectuais portugueses da
época, chamado Movimento de Esquerda Socialista (MES), com muitas
influências de Rosa Luxemburgo, da tradição conselhista
etc. A evolução desta esquerda foi muito interessante e são
remanescentes desta tradição que hoje sustentam em Portugal uma
política de esquerda. Na década de 80, houve a possibilidade de
se unir várias tendências, a Democracia Proletária, que era maoísta,
os trotskistas e aquilo que se chamava Política 21, que era o que
talvez descendesse mais diretamente do MES. E estas tendências
fundaram um grupo de esquerda que atualmente impulsiona o bloco
parlamentar mais ativo, mais criativo da Europa.
Assim,
a lógica do desenvolvimento político da esquerda em Portugal foi
interna. Claro que a partir do final da década de oitenta tudo
mudou. O comunismo da União Soviética estava a bloquear toda a
criatividade marxista. Estava bloqueada de uma maneira político-doutrinária,
à medida em que a primeira coisa que um marxista tinha que fazer
era se posicionar em relação à União Soviética. O que era
muito difícil, pois sabíamos que havia coisas positivas na URSS,
que ninguém podia pôr em discussão, notadamente os chamados
direitos econômicos e sociais, à saúde, à seguridade social.
Os próprios russos, os ucranianos, os húngaros, os polacos já não
ligavam muito para isso, porque achavam que aquilo era garantido
para sempre pelo Estado. E, portanto, toda a lógica dos
movimentos do Leste, desde o Solidariedade na Polônia, era por
direitos cívicos e políticos. Claro, o que eles não sabiam era
que o modelo de sociedade que passaram a adotar ia imediatamente
questionar os direitos econômicos e sociais. Isso explica o fato
de, poucos anos mais tarde, os partidos comunistas que tinham
estado no poder voltarem por via eleitoral para o governo.
Em
termos da construção das alternativas para o século 21, acho
que o regime da União Soviética pertence ao século 20. A URSS
nunca foi um país desenvolvido de fato, foi uma ilusão nossa
pensarmos que estava em pé de igualdade com os EUA. Política e
militarmente estava, mas economicamente não era a mesma coisa
desde os anos 60. Claro que o colapso da URSS teve duas conseqüências
contraditórias: por um lado, veio confirmar que o capitalismo era
a única alternativa enquanto modo de produção para o mundo
contemporâneo; por outro, veio libertar uma série de energias teóricas
e políticas para novas utopias de emancipação social. Não
imaginaríamos o Fórum Social de Porto Alegre no período da
Guerra Fria. Não seria possível a congregação de pessoas e de
movimentos que tivemos em Porto Alegre. porque realmente os campos
estavam demarcados. Hoje, já começa a haver a possibilidade de
se pensar em termos de alternativas ao próprio capitalismo. Não
é ainda uma coisa muito mais que embrionária, mas está em curso
e tem muita criatividade. Penso que isso só foi possível
exatamente porque não há um modelo alternativo fixo. Há
programas, há horizontes.
Como
você entende o conceito da transição paradigmática? Que papel
isso tem em seu pensamento?
O
meu pensamento neste aspecto é marxista. O capitalismo não
existiu sempre e nem é eterno. Ele não é apenas um modo de
produção, é uma civilização, é um processo civilizacional
bastante longo e profundo. Mas o momento em que o capitalismo
mostra o seu apogeu é quando começa a mostrar sinais de
fraqueza. E esta transição vai se dar, seja em nível do próprio
capitalismo enquanto projeto civilizacional, seja a nível
do conhecimento. Portanto, a transição paradigmática tem duas
dimensões na minha análise. Uma é epistemológica, tem a ver
com o conhecimento. A própria ciência moderna, desde o século
19, está a serviço do desenvolvimento capitalista. Ela tem, de
alguma maneira, que recuperar uma autonomia, transformar o
conhecimento de maneira a torná-lo menos elitista, mais ativo,
mais envolvido nas questões de cidadania e menos dependente dos
programas e das necessidades do capitalismo. Penso que este modelo
civilizacional do capitalismo tem os seus dias contados.
Fundamentalmente porque até agora a maneira como ele venceu as
suas crises foi aprofundando a mercadorização,
sujeitando, portanto, à área de mercado e à área de valor bens
que anteriormente não estavam sujeitos a este valor. Neste
momento, estamos atingindo o paroxismo deste processo com as
privatizações e com muitos outros movimentos. A manifestação
mais recente e mais perversa dessa dinâmica refere-se ao espectro
eletromagnético, às freqüências de rádio por meio das quais
funcionam a televisão, os celulares, os laptops, a
internet. Como se sabe, são freqüências a um espectro
eletromagnético que pertencem aos Estados Nacionais e que são
alugados às empresas. E neste momento, as empresas multinacionais
a quem o Estado aluga esse espectro eletromagnético querem que o
Estado o venda definitivamente a elas, para depois venderem aos
mercados secundários. O que significa que as empresas de comunicação
vão qualquer dia ter a propriedade do espectro eletromagnético
das radiofreqüências. Significa que a comunicação ficaria na mão
de meia dúzia de multinacionais de comunicação e informação.
Portanto, isso é um paroxismo que pode e vai levar a uma crise.
De
que espécie de crise você está falando?
Quando
falamos de crises do capitalismo, muitas vezes as pessoas não
acreditam porque pensam que estamos prevendo crises que
nunca ocorrem e que afinal o capitalismo sempre vence. Mas penso
que a sujeição à mercadorização está para atingir seu
limite. O continente que falta plutonizar é a África. De
resto, praticamente o mundo inteiro está como nunca sujeito à
lei do capital. Pela primeira vez, a metade da população mundial
vive em cidades. Estamos hoje a caminhar para um mundo cada vez
mais urbano, cada vez mais mercantilizado e onde, portanto, a plutonização
pode atingir os seus níveis máximos. E este é o grande
debate neste momento. É preciso saber se isto é uma crise final
ou é uma crise de ciclo. A questão está em saber efetivamente
se este horizonte civilizacional não está chegando ao
fim. Não temos pensado outra coisa que não seja mudar de padrões
dentro do capitalismo global, mas sou daqueles utópicos que
pensam que precisamos de outro modelo de civilização. O modelo
capitalista está destruindo as possibilidades de o trabalho ser
um fator de inclusão social. Isto significa que os processos de
exploração atingem o máximo de virulência e conflito. Por
outro lado, o conflito entre o capital e a natureza se aprofunda
por meio da degradação ecológica. Parece que estamos numa situação
de crise final. Mas, é claro, isto está sujeito a todas as
especulações contrárias, igualmente legítimas. Para mim, o
importante é alimentar e dar credibilidade às alternativas de
civilização que estão em curso. Eu não quero perder o futuro.
O marxismo é absolutamente fundamental para explicar a sociedade
em que vivo. Não é muito importante para dizer para que
sociedade eu vou. Porque acho que nunca soubemos prever o futuro,
nós vivemos em sociedades complexas, caóticas.
O
que mais me chama a atenção nesse esforço de elaboração de
uma nova cultura emancipatória é exatamente ela se
colocar a partir de uma problemática civilizacional, como
era típico de certos marxismos. E, ao mesmo tempo que se coloca
uma problemática no plano da tradição intelectual ocidental
criada no Norte, você faz um esforço de incorporar experiências
que estão emergindo no Sul. Isto está ligado ao fato de Portugal
ser um lugar entre o Norte e o Sul?
O
marxismo e o liberalismo pertencem-se mutuamente muito mais do que
a gente pensa. E eles representam diferentes maneiras da crise no
pensamento eurocêntrico do Norte. Eles representam muito do
modelo civilizacional que nasceu da Europa e que viveu uma
expansão colonial e, depois, uma expansão imperial. Por exemplo,
a maneira como o Marx olhou para o colonialismo na Índia, me dá
vergonha hoje como marxista, porque, no fundo, para ele, era a
civilização que estava chegando à Índia. Temos hoje um outro
registro, quando sabemos que a Índia tinha um rendimento per
capita que era metade do da Inglaterra quando os ingleses
chegaram e que, poucos anos depois, estava com algo em torno de
vinte vezes menos. Foi um processo de destruição massiva que o
colonialismo produziu, não a grande modernização em relação
à barbárie.
Então,
estamos numa fase totalmente nova e é preciso, como eu digo em Crítica
da Razão Indolente, aprender com o Sul. Isto é, cada vez
mais chegamos à conclusão de que a Europa e os EUA são um
pequeno rincão, onde não só se reproduziram experiências
extremamente destrutivas em termos de genocídio, mas também de
destruição do conhecimento. Estas teorias, estes conhecimentos
produzidos não têm hoje capacidade para nos transportar para o século
21. Eles foram importantes, eles representaram todo um ciclo. Mas
hoje precisamos de outros conhecimentos, e esses vêm do Sul, vêm
de todos esses povos que sofreram o colonialismo e o imperialismo,
que produziram saberes importantíssimos, mas que ficaram
completamente esquecidos. Você tem razão quando fala da minha
condição de português. Portugal, como país semiperiférico,
foi sempre isto, colonizador e colônia ao mesmo tempo. Sendo o
sul do Norte, talvez sejamos também o norte do Sul, há esta
interface que é importante descobrir.
Como
você vem desenvolvendo esses estudos?
O
projeto de pesquisa que estamos realizando envolve seis países:
Brasil, Colômbia, Portugal, Índia, Moçambique e África do Sul.
Estamos procurando identificar novas formas de conhecimento. Temos
ainda um subprojeto chamado "As vozes do mundo", no qual
estamos entrevistando ativistas dos movimentos sociais. Precisamos
cada vez mais trazer para as ciências sociais estes conhecimentos
alternativos dos ativistas sociais. Estamos captando experiências,
sobretudo nos países de desenvolvimento intermediário, pois
nestes as contradições entre a globalização neoliberal e a
globalização alternativa ou contra-hegemônica, que estamos a
tentar promover – Porto Alegre é neste momento o símbolo desta
globalização alternativa –, afirmam-se de modo mais evidente.
Porque os países do Norte se beneficiam da globalização
neoliberal e olham com certo cinismo as alternativas. Os países
menos desenvolvidos estão à mercê da ajuda externa, estão
endividados. Em países como Senegal, Malásia, Uganda, Angola,
mais de 50% do orçamento público vai para o pagamento de dívidas
externas. Estão de joelhos. 80% do orçamento de Moçambique é
de ajuda externa. Como estes países podem oferecer alternativas?
Ao contrário, os países de desenvolvimento médio podem ter
alternativas. Na verdade, as têm surgindo neles. Países como o
Brasil, a Índia, a África do Sul, com desenvolvimento médio e
grande população, podem ter uma alternativa. Não isoladamente,
pois esta tem sido exatamente a estratégia suicida do Brasil.
Sendo um país de desenvolvimento médio muito grande, seus
governantes pensam que podem ter tratamento preferencial por parte
do centro, mas isso não é possível. E, ao contrário, consegue
ser um bom aluno por meio da aplicação completamente radical da
globalização neoliberal. Eu passo a metade do ano nos EUA e
estou convencido de que não há uma idéia nova em ciências
sociais que venha de lá. Nós podemos aprofundar, podemos tornar
muitas sofisticadas as nossas análises, mas as idéias inovadoras
não vêm de lá neste momento.
Por
que isso acontece?
O
sistema da organização do conhecimento, o sistema disciplinar, a
competição entre as faculdades, que os brasileiros também têm
de alguma maneira, estão eliminando a criatividade. São países
com boas condições para a gente trabalhar, mas a gente tem que
trazer a inovação de fora. O grande exemplo são os indígenas.
Quando se fundaram as Nações Unidas, somente a Bolívia afirmou
ter minorias étnicas. Nenhum outro país reconheceu que tinha
minorias étnicas. Hoje, o movimento mais pujante no continente é
o indígena. Obviamente, é um movimento que apresenta outra
concepção dos direitos humanos, tenta encontrar formas de
conhecimento que podem ser defendidas contra a pilhagem das
multinacionais, que é a biodiversidade.
Você
fala de uma sociologia da ausência, da capacidade de contar com o
que não existe. Nós, da esquerda, seremos capazes de, contra a
ansiedade do realmente existente, contra a ansiedade de uma política
de resultados, permanecermos fiéis a uma utopia do que não há?
Esta
questão é central, sobretudo porque estamos em um contexto político
em que as forças de esquerda, não tendo à sua disposição um
modelo de revolução como grande alternativa ao capitalismo, não
podem partir da carência e da incompatibilidade, que era o que
permitia a revolução. A revolução permitia pensar o que não
existe, pensar de uma maneira grandiosa e acabada e criar uma
energia mobilizadora para a levar a cabo. Hoje, não temos isso e,
portanto, no fundo a própria questão entre a compatibilidade
entre as nossas lutas com o capitalismo é realmente uma questão
inversa. Não havendo paradigmas revolucionários, todas as lutas
da esquerda são pensadas a partir da compatibilidade com o
capitalismo. Esta compatibilidade é necessária como ponto de
partida, mas não de chegada. A minha idéia é de que essa
sociologia das ausências é algo que tem que ser construído à
medida que avança esta luta dentro do que é possível numa
sociedade capitalista. O nosso grande objetivo é tornar o mundo
menos confortável para o capitalismo. Isto é, aprofundar a
democracia não apenas a nível político, mas nas fábricas, nas
famílias, nas ruas, nas universidades, em todo lugar. Há de
haver um momento em que esta democratização aprofundada entrará
em linha de choque frontal com o capitalismo. Ora bem, como esta
democracia se afirma? Numa linha extremamente ambígua para os líderes
políticos e para os movimentos sociais. É que, por um lado, é
necessário que eles apresentem resultados melhores do que os dos
outros. Portanto, tudo parece militar contra uma sociologia das
ausências. Porque uma sociologia das ausências é aquilo que não
há. Ora, aquilo que não há, se não for possível transformá-lo
numa agenda, significa fracasso para o líder político. Portanto,
o líder político tem uma tendência natural de, estando no jogo
parlamentar e eleitoral, apresentar o que há: resultados. Com o
orçamento participativo conseguimos isto, conseguimos aquilo, e,
portanto, esta idéia da reificação das conquistas é um grande
problema. Isto é um dilema, porque de maneira nenhuma eu iria
dizer que esta política de resultados é negativa em si mesma.
Pelo contrário, de outra maneira não é possível fazer avançar
a esquerda. Agora, o que a esquerda tem de saber é que os
partidos são apenas um dos lados desta política, o outro lado são
os movimentos sociais que têm que ter autonomia, pois no momento
em que eles deixarem de tê-la, terminamos com toda a política
inovadora de esquerda. São eles a consciência do que não há.
Eles não estão sujeitos ao ciclo eleitoral, eles querem
resultados para as suas comunidades, mas têm capacidade de
transformar suas reivindicações em coisas cada mais avançadas.
Hoje, por exemplo, em Porto Alegre, as pessoas têm
infra-estrutura e, quando se tem infra-estrutura, querem
atividades culturais e outras coisas. E o governo vai dizer que não
há verbas para tudo isto, mas as pessoas vão fazendo opções. E
esta tensão é exatamente o que chamo de uma sociologia das ausências,
isto é, uma dinâmica que leve a aumentar as expectativas.
Desde
há cerca de 150 anos, a sociedade moderna vive de uma discrepância
entre expectativas e experiências. Na sociedade antiga, as experiências
da vida coincidiam com as expectativas. Isto é, quem nascia
analfabeto morria analfabeto, quem nascia nobre morria nobre, quem
nascia pobre morria pobre. Com a sociedade moderna, sobretudo a
partir do século 19, quando se instituiu o Estado liberal, por
meio do velho conceito do progresso, criamos discrepâncias entre
as experiências e as expectativas. As experiências são medíocres,
mas as expectativas são altas. Quem nasce pobre pode morrer rico;
sou camponês analfabeto, mas meu filho pode morrer doutor. Qual
foi a lógica da esquerda? Foi ampliar a discrepância entre o que
havia, que eram as experiências, e as expectativas. Qual era a
grande diferença entre a esquerda reformista e a revolucionária?
Toda a esquerda se constituiu entre experiências medíocres e
expectativas brilhantes. As manhãs radiantes do socialismo para a
esquerda revolucionária e o Estado de Providência para a
reformista. Qual é a situação hoje? É que nós, desde 1989,
mais ou menos, invertemos, pela primeira vez na mentalidade
ocidental, esta dinâmica. Temos hoje uma discrepância, mas ela
é negativa em relação às experiências para a esmagadora
maioria da população mundial. Isto é, para quem tem emprego e o
perde, a expectativa é que o novo emprego seja pior. Quando se vê
no jornal uma reforma da seguridade social, temos certeza de que
é para pior. Então, a esquerda foi obrigada a defender o status
quo. Se a experiência é menos negativa que a expectativa, a
esquerda tem que defender o que há. Mas a esquerda nunca foi boa
em defender o status quo. Temos que ter uma pressão social
por trás dos partidos, que vem das organizações que não estão
sujeitas à lógica eleitoral, para manter exatamente a pressão
em favor daquilo a que a gente tem direito.
Você tem
toda uma teoria das seis áreas que seriam fundamentais para a
construção de um pensamento emancipatório. Fale-nos um
pouco sobre o que seriam essas áreas?
Hoje
não há condições de pretender atribuir em abstrato a
prioridade total nas lutas sociais a um determinado movimento,
seja ele operário, ecológico, feminista, ou indígena. Outra
coisa diferente é indicar lutas prioritárias que podem ser
assumidas por todos esses movimentos. Todas as seis áreas
interessam a todos os movimentos.
A
primeira área é a questão da democracia. Perdeu-se hoje a tensão
entre o capitalismo e a democracia, que era característica da
modernidade. Nesta, as lutas pela inclusão foram lutas pelos
direitos, e estes, a certa altura, implicaram redistribuição
social. A redistribuição é totalmente hostil ao capitalismo,
este nunca a fez voluntariamente. Foi uma luta dura do movimento
operário e dos outros movimentos para conseguir a distribuição.
E criou-se uma tensão entre a democracia e o capitalismo. No
momento atual, a democracia não é só compatível (OU INCOMPATÍVEL?)
com o capitalismo, como é o outro lado do capitalismo. Isso
porque exatamente está a perder as suas capacidades
redistributivas. Este modelo de democracia liberal representativa
está nesse momento perdendo a sua credibilidade, já estamos numa
segunda fase. Depois dessa onda de “democratização”, na década
de oitenta, está se evidenciando que essas democracias não
funcionam efetivamente. O que se passa na Rússia nesse momento não
é uma democracia, de maneira nenhuma. É um governo eleito mas o
poder central tem muito pouco poder. Nas democracias africanas
acontece o mesmo. Em Moçambique, temos talvez o melhor exemplo:
adversários são mortos se falam demais e, no entanto, há
partidos e eleições. Por outro lado, precisamente por causa da
iniciativa de partidos de esquerda, como o PT no Brasil e o
Partido Comunista na Índia, há o surgimento de formas mais ricas
e autênticas de democracia. A grande luta será entre esses dois
modelos de democracia, a de baixa intensidade, a que temos, e
outra ausência, que é exatamente uma luta por democracias de
mais altas intensidades, democracias tipo participativas. Em Porto
Alegre, em Belo Horizonte, em Kirela,(CHECAR NOME COM ZÉ CORREIA)
na Bengala Ocidental, há formas interessantes de colaboração
entre democracias representativas e democracias participativas.
A
segunda grande área são os sistemas alternativos de produção.
A esquerda, exatamente devido a uma influência no meu entender
negativa do marxismo, não deu grande atenção a movimentos de
produção alternativa, nomeadamente as cooperativas. Ora, estamos
a assistir hoje a uma grande reinvenção, às vezes por
necessidade de sobrevivência, de movimentos cooperativos. São
cooperativas que estão produzindo bens, segundo uma lógica não
capitalista. A grande característica do que eu chamo de organizações
econômicas populares, que existem cada vez mais neste país, é
que não olham apenas para o econômico, mas para a cultura, para
a política. Por exemplo, aquela maravilhosa cooperativa de
reciclagem de lixo, em Porto Alegre, a de Belo Horizonte ou os recicladores
de papel de Bogotá. Há também uma alternativa para o comércio
justo, que é uma luta para que os bens que circulam pelo mercado
mundial sejam produzidos a um salário justo, em condições
ambientais dignas, com liberdade sindical etc. Nesse momento, o
comércio justo abrange cerca de 9% do mercado mundial. Podia
citar também a experiência das mutualidades, dos microcréditos.
Tudo isso são iniciativas que começam a ter algum significado e
é nossa obrigação, dentro da esquerda, dar a elas cada vez mais
amplitude.
A
terceira grande área é a do multiculturalismo e da
cidadania multicultural. O marxismo, como o liberalismo, só
conheceu a igualdade, não conheceu a diferença. Só soubemos
criar solidariedade entre iguais, por exemplo, entre
trabalhadores, mas e entre trabalhadores e mulheres? Entre
trabalhadores e índios? Trabalhadores e homossexuais? A nossa lógica
não soube realmente criar equivalência entre o princípio de
igualdade e o da diferença. Isto é difícil. Mas, as pessoas não
querem apenas ser iguais, também querem ser diferentes, há áreas
em que a gente quer ser igual, mas em outras não. Essa equivalência
dos dois princípios vai levar ao conceito de cidadania
multicultural, que começamos a ter com as minorias étnicas, os
povos indígenas, o movimento negro. As pessoas querem pertencer,
mas querem ser diferentes. É necessário um multiculturalismo
que crie novas formas de hibridização, de interação entre as
diferentes culturas. Cada cultura é que deve definir até onde
quer se integrar.
A
quarta grande área é a biodiversidade. É a grande área do
futuro, este é o grande conflito. Temos dois conhecimentos
rivais, o conhecimento que os indígenas e os camponeses têm
acerca das propriedades curativas das plantas e o apetite das
empresas multinacionais para identificarem essas plantas,
processarem os seus princípios ativos, patenteá-los e, assim,
quando os camponeses, os indígenas e todos nós precisarmos
daquele produto para diarréia, para dor de cabeça, teremos de
pagar por ele. Mas se a multinacional não tiver a ajuda do xamã,
do sábio daquela etnia para dizer "essa erva é boa para
isso, aquela é boa para aquilo", ela nunca chega a lugar
algum. Portanto, o conhecimento tradicional é absolutamente
crucial. Mas tem que ser valorizado e protegido. Qual é o papel
dos Estados nesse momento? Por exemplo, o Brasil tem uma política
de biodiversidade, em meu entender, completamente negativa porque
está pretendendo digitalizar a biodiversidade. Essa propriedade
digitalizada seria depois processada e poderia, portanto, ser
objeto de patente. O problema é que este tipo de conhecimento
tradicional, das comunidades, das pessoas, não pode ser
digitalizado.
A
quinta área é o novo internacionalismo operário. Como sabemos,
não foram os operários que se internacionalizaram, mas o capital
que se globalizou. Durante muito tempo, a Guerra Fria impediu uma
internacionalização. Havia as duas grandes centrais do movimento
sindical internacional, a Federação do Sindicato Livre e a
Federação Mundial dos Sindicatos, uma pró-capitalista e outra
comunista. Mas esse tempo passou, estas instituições ainda
existem, mas estão moribundas. O que está em curso são as novas
iniciativas sindicais, quer no âmbito da União Européia, quer
no âmbito do Mercosul, quer no âmbito do Nafta. Neste momento,
os sindicatos americanos e canadenses estão realizando ações e
alianças extremamente interessantes com sindicatos mexicanos,
nomeadamente com uma das frentes do trabalho autêntico, que é
uma frente de esquerda que não está ligada ao PRI. Há aí uma
grande energia, uma das melhores iniciativas estudadas em nosso
projeto é a chamada iniciativa do sul para os sindicatos em nível
internacional, a Sictur, uma aliança entre sindicatos, entre a
CUT do Brasil e sindicatos da África do Sul.
A
sexta área, finalmente, é a questão da comunicação e da
informação. Essa área é de grande concentração de poder
entre o Norte e o Sul, na qual vai se dar uma grande luta. Porque
se realmente se chegar à privatização dos espectros eletromagnéticos,
o mundo e a comunicação do ciberespaço passará a depender de
três ou quatro empresas, que comercializarão com certas
vantagens o espaço. Se olharmos, por exemplo, para o ciberespaço
do mundo, a África como continente desaparece completamente. Os
mapas da internet, por exemplo, dos sistemas eletrônicos são
assim: a África é um bocadinho da África do Sul e um bocadinho
do Egito e Marrocos. O resto não existe. Ora bem, se se
privatizar o espectro eletromagnético será o fim. Portanto, é
fundamental uma luta por meios de comunicação alternativos
democráticos.
Estas
são grandes lutas nas quais, penso, os movimentos sociais vão
estar envolvidos nas próximas décadas.
O
Brasil é ainda um país que não se realizou enquanto um projeto
de nação emancipada. Há uma idéia de que a construção do
Brasil enquanto uma verdadeira nação só se dará quando se
combinar uma construção ao mesmo tempo política, econômica,
social e cultural.
Esta
questão é muito importante porque muitos países estão passando
pelo mesmo problema. Houve autores fundamentais para a interpretação
do Brasil, como Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Nelson
Werneck Sodré, Gilberto Freyre, Celso Furtado, Florestan
Fernandes. Foram os grandes intérpretes do Brasil no momento em
que se podia entrever a criação de um projeto nacional. Este
projeto foi também uma criação intelectual, de alguma maneira.
O problema é que a própria ditadura começou a destruir
este projeto nacional, por meio de um projeto de modernização
que não tinha nada a ver com a idéia de nação. Ao mesmo tempo
que modernizava, destruía toda a institucionalidade por meio da
qual a nação podia se afirmar, participando de um projeto. Não
há projeto nacional sem a nação. Ora, o que a ditadura fez foi
modernizar, mas sem a nação. Pode parecer um bocado provocativo,
mas é isso exatamente o que penso: há uma continuidade com a
ditadura neste momento. Isto é, houve rupturas importantes na
transição democrática, mas até agora não foi possível repor
a idéia de um projeto nacional. Porém, não é possível recriá-lo
nos mesmos termos postos em 1930. A questão complexa para a
esquerda é de como formular um projeto nacional em um período pós-nacional.
Agora não se pode pensar o Brasil sozinho. Veja a carência que há
de pensamento continental no Brasil. Os grandes intérpretes do
Brasil pouco trataram a questão do continente. Não tivemos aqui
um José Martí, nem um Sarmiento, nenhum Mariátegui.
Temos
o Manuel Bonfim...
É
o único.
O
Darci Ribeiro também...
O Darci
Ribeiro, na sua fase final. Mas fora os dois não houve. Porque o
Brasil é, ele próprio, um continente. Vejo cada vez mais os países,
neste momento, sujeitos à globalização neoliberal, sem
capacidade criativa, desvalorizando as suas especificidades e não
conseguindo imitar o que os outros fazem. Não sou contra projetos
nacionais de maneira nenhuma, o que penso é que os projetos
nacionais agora têm que ser feitos no âmbito continental, pós-nacional.
Mas
você acha que ainda há um lugar para o Estado-Nação?
O
Estado é hoje mais importante do que nunca. O Estado organiza a
globalização, os blocos regionais. Quem esteve no Québec?
Estiveram lá os empresários, estiveram lá os sindicatos? Não,
estiveram lá os governos. Quem esteve no Mercosul? Quem anunciou
a União Européia? O próprio Estado é um princípio ativo na
globalização neoliberal e, neste momento, o Estado-Providência
que havia na Europa – e era um Estado-Providência dos cidadãos
– é hoje um Estado de Providências das empresas. Nunca se viu
tanto dinheiro a fundo perdido de investimentos para as empresas
se instalarem. O Estado continua a ser um articulador fundamental,
mesmo quando privatiza. O Estado organiza as privatizações e vai
ter que organizar a regulação, porque os serviços, a não ser
que haja uma convulsão política muito grande dentro de um
sistema democrático, têm que ter uma certa regulação. A
chamada meta-regulação pertence ao Estado. Portanto, não
pensemos que ele deixou de ser importante ou é uma instituição
obsoleta.
Até
os anos setenta, a esquerda pensava que o Estado-Previdência era
uma artimanha do capitalismo, isto é, que ele havia criado as políticas
sociais para manter os operários mais ou menos contentes e mais
ou menos resignados para continuar a sua lei de acumulação.
Outra corrente afirmava o contrário, que os direitos sociais e
econômicos dos trabalhadores foram conseqüências de lutas e não
existiriam sem elas. A minha idéia é que eles foram fruto de
muita luta. Por isso, digo: seria o maior erro da esquerda pensar
que o Estado não é importante e que deve ser abandonado.
*
José Maria Cançado é crítico literário; Juarez Guimarães
é professor de Ciência Política da UFMG; Leonardo Avritzer
é professor de Ciência Política da UFMG; Patrus Ananias
é advogado e foi prefeito de Belo Horizonte
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