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 AS LIÇÕES DE
              GÉNOVA BOAVENTURA DE SOUSA
              SANTOS* São quatro as principais lições
              do que se passou em Génova durante a reunião dos G-8.
              Tê-las-emos presentes no Segundo Fórum Social Mundial de Porto
              Alegre em Fevereiro de 2002. Primeira lição: esta globalização
              é insustentável. O relatório mais importante da reunião dos
              G-8 foi elaborado por quem lá não esteve, pelos Ministros das
              Finanças dos sete países mais ricos. Esse relatório, intitulado
              "O alívio da dívida e para além dele", é revelador
              da contradição insanável entre a economia neoliberal e o
              bem-estar da maioria da população mundial. Reconhecendo que esse
              bem-estar depende hoje do alívio da dívida externa dos países
              mais pobres, o relatório proclama o êxito da iniciativa nesse
              sentido em relação a 23 países (entre os quais, três de
              língua oficial portuguesa: a Guiné-Bissau, Moçambique e São
              Tomé e Príncipe) e assegura que, a médio prazo, a
              sustentabilidade da dívida assenta na maior integração desses
              países no comércio mundial. No entanto, é o próprio relatório
              a afirmar que a participação dos países menos desenvolvidos no
              comércio mundial diminuiu na última década e por isso se
              empobreceram. Ora, não se propondo no documento nada radicalmente
              novo que altere este estado de coisas, a hipocrisia não poderia
              ser maior: impõe-se como solução a metade da população
              mundial o que se reconhece ter sido até agora o seu problema. E a
              hipocrisia atinge o paroxismo na abordagem das pandemias
              (HIV/AIDS, malária e tuberculose)que afligem os países menos
              desenvolvidos. Depois de reconhecer que estas doenças matarão 15
              milhões de pessoas por ano, insiste-se que a produção de
              medicamentos mais baratos deve ser feita sem violação da
              protecção dos direitos de propriedade intelectual das
              multinacionais farmacêuticas. A contradição deste modelo é
              insanável porque a liberalização das trocas sem condições é
              como um combate de boxe entre um peso-pesado e um peso-pluma. Se o
              Mali controlasse o preço internacional do algodão a sua dívida
              não seria, como é de novo, "insustentável". Se
              Moçambique pudesse ter resistido à imposição do Banco Mundial
              no sentido de eliminar as tarifas sobre a exportação do caju,
              não teria destruído a sua indústria de processamento de caju.
              Haveria menos fome no mundo se os países menos desenvolvidos
              pudessem proteger as suas actividades económicas da voracidade
              das 200 maiores empresas multinacionais que detêm 28% do
              comércio global mas apenas 1% do emprego global. Se os países,
              endividados em dólares, pudessem resistir à desvalorização das
              suas moedas não veriam as suas dívidas aumentar por mero efeito
              da desvalorização. A balança comercial dos países menos
              desenvolvidos não se deterioraria tão drasticamente se os seus
              produtos não estivessem sujeitos ao proteccionismo dos países
              ricos (a mãe de todas as hipocrisias do neoliberalismo) e não
              tivessem que competir com produtos altamente subsidiados. Segunda lição: está em curso uma
              globalização alternativa. À medida que o neoliberalismo deixa
              cair a máscara, vai emergindo uma opinião pública mundial
              assente no seguinte: os governos nacionais estão hoje reféns dos
              grandes interesses económicos e a democracia disfarça essa
              dependência ao ser mais ou menos efectiva nas áreas que não
              interferem com tais interesses; sem formas de controle político
              democrático efectivo, a nível local, nacional e global, a busca
              incessante do lucro cria disparidades eticamente repugnantes entre
              ricos e pobres e causa danos irreversíveis ao meio ambiente; num
              modelo económico assente no respeito sagrado pela propriedade
              privada, a magnitude da falta de controle público sobre a riqueza
              mundial reside no facto de dos 100 maiores Produtos Internos
              Brutos mundiais, 50 não pertencerem a países mas a empresas
              multinacionais; este modelo de (in)civilização não é
              inelutável, tem pés de barro e a sua força reside sobretudo na
              apatia e no conformismo que produz em nós. Esta opinião pública
              mundial começa a dar vida a centenas de milhares de
              organizações não governamentais, e de redes de advocacia
              transnacional que vão organizando a resistência à
              globalização hegemónica e formulando alternativas que, na
              cacofonia da sua diversidade, têm em comum a ideia de que a
              dignidade humana é indivisível e que só pode florescer em
              equilíbrio com a natureza e numa organização social que não
              reduza os valores a preços de mercado. Terceira lição: o diálogo entre
              as duas globalizações é inadiável. O capitalismo global -
              representado pelos governos dos países ricos e pelas agências
              financeiras e comerciais multilaterais que eles dominam - que
              pensava ter caminho livre depois da queda do Muro de Berlim é
              hoje obrigado a erigir muros de aço e de cimento para que os seus
              representantes possam continuar a tomar decisões que ele reclama.
              A violência deste sistema alimenta-se da violência de alguns
              grupos minoritários que lutam contra ele mas alimenta-se
              sobretudo da falta do reconhecimento da globalização
              alternativa, protagonizada pelos que se sentem solidários com os
              interesses dos muitos milhões excluídos das reuniões e vítimas
              das decisões. O diálogo é, pois, inadiável para que se passe
              de uma retórica cínica de concessões vazias à elaboração de
              um novo contrato social global caucionado por uma nova
              arquitectura política democrática também ela global. Será um
              diálogo difícil e certamente confrontacional, mas
              incontornável. Quarta lição: de Génova 2001 a
              Porto Alegre 2002 há um longo caminho a percorrer. À medida que
              cresce a globalização contra-hegemónica, cresce a
              responsabilidade dos seus protagonistas. Essa responsabilidade vai
              ser medida a três níveis: organização, actuação e objectivos.
              A qualquer destes níveis as tarefas são exigentes. A energia do movimento pela
              globalização alternativa reside na sua diversidade interna, nas
              múltiplas formas de organização e de actuação e nos
              múltiplos objectivos que acolhe. Esta diversidade vai ser mantida
              quanto mais não seja porque não há no movimento nenhum grupo ou
              organização capaz de a cooptar ou eliminar a seu favor. No
              entanto, ao nível da organização vai ser necessário aprofundar
              os processos de coordenação e de assegurar o carácter global e
              democrático destes. Ao nível das formas de actuação, o
              movimento tem de proceder a uma distinção fundamental entre
              violência que deve ser rechaçada, e ilegalidade que deve ser
              acolhida sempre que os meios legais não estejam disponíveis ou
              não bastem. O capitalismo global, ao mesmo tempo que provoca a
              desregulamentação da economia dos países, impõe uma nova
              legalidade que, por exemplo, torna ilegal proteger os direitos dos
              trabalhadores ou o meio ambiente. Todos os grandes movimentos
              democráticos começaram com acções ilegais (manifestações e
              greves não autorizadas, acção directa, desobediência civil).
              Há que elaborar uma teoria democrática da ilegalidade não
              violenta. Finalmente, ao nível dos objectivos há que distinguir
              entre os primeiros passos e os horizontes. Neste momento, os
              primeiros passos estão razoavelmente bem definidos e são eles
              que integrarão os primeiros e mais difíceis momentos do diálogo
              entre globalizações: perdão efectivo da dívida; impostos Tobin;
              democratização dos processos de decisão das agências
              financeiras multilaterais; sujeição a referendo das mais
              importantes iniciativas de liberalização do comércio; inclusão
              em novas negociações comerciais (sobretudo no âmbito da
              Organização Mundial do Comércio) dos direitos humanos, em
              especial dos direitos laborais e ambientais. Mas estes primeiros
              passos devem ser integrados num horizonte civilizacional mais
              amplo, no horizonte de um mundo melhor. Só assim se garantirá
              que o sistema actual, já de si bastante injusto, não venha a
              ser, pela perversão dos objectivos contra-hegemónicos,
              substituído por outro ainda pior. São tarefas urgentes na agenda
              do povo de Porto Alegre. Boaventura de Sousa Santos*, é
              português, sociólogo e professor catedrático da Faculdade de
              Economia da Universidade de Coimbra Texto publicado no jornal
              "Folha de São Paulo", 26 de julho de 2001  
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