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 Uma cartografia
              simbólica das representações sociais: prolegômenos a uma
              concepção pós-moderna do Direito*
               Boaventura de Souza
              Santos
               A escala é o primeiro grande
              mecanismo de representa-ção/distorção da realidade. A escala
              é "a relação entre a dis-tância no mapa e a
              correspondente distância no terreno" (Monmonier. 1981:41) e,
              como tal, implica uma decisão sobre o grau de pormenorização da
              representação. Os mapas de grande escala têm um grau mais
              elevado de pormenorização que os mapas de pequena escala porque
              cobrem uma área inferior à que é coberta. Os mapas são sempre
              "uma versão miniaturizada" (Keates. 1982:73) da
              realidade e, por isso, envolvem sempre uma decisão sobre os
              detalhes mais signifi-cativos e suas características mais
              relevantes. Como diz Muenrcke, "o que torna o mapa tão útil
              é o seu gênio da omissão, é o reduzir da realidade à sua essência"
              (1986:10). É fácil de ver que a decisão sobre a escala a adotar
              condi-ciona a decisão sobre o tipo de uso do mapa e vice-versa.
              Por exemplo, "os mapas de pequena escala não permitem medir
              com exatidão a largura das estradas ou dos rios mas permi-tem
              determinar com exatidão as posições relativas destes elementos,
              entre si e em relação aos demais acidentes do terreno" (Monmonier.
              1981:4). A geografia, que partilha com a cartografia o interesse pelo
              espaço e pelas relações espaciais, tem contribuído muito para
              o estudo das escalas, quer das escalas de análise, quer das
              escalas de ação. A respeito das primeiras. sabemos hoje que
              certos fenômenos, como, por exemplo, os climas, só são
              suscetiveis de serem representados em pequena escala, enquanto
              outros, como, por exemplo, a erosão, só são sus-cetíveis de
              serem representados em grande escala (6). Daí, que as diferenças
              de escala, apesar de serem, na aparência, quan-titativas, são na
              realidade qualitativas. Um dado fenômeno só pode ser
              representado numa dada escala. Mudar de escala implica mudar o fenômeno.
              Tal como na física nuclear, a escala cria o fenômeno. Muitas das
              correlações falaciosas, correntes na geografia, derivam da
              sobreposição de fenôme-nos criados e analisados em escalas
              diferentes. A escala é um "esquecimento coerente" que
              deve ser levado a cabo coerentemente. (Racine et aL, 1962:126).
               O Direito e a Escala Uma das virtualidades mais interessantes da cartografia simbólica
              do Direito consiste na análise do efeito da escala na estrutura e
              no uso do Direito. O Estado moderno assenta no pressuposto de que
              o Direito opera segundo uma única escala: a escala do Estado.
              Durante muito tempo, a sociologia do Direito aceitou acriticamente
              este pressuposto. Nas duas últimas décadas, a investigação
              sobre o pluralismo jurídico chamou a nossa atenção para a existência
              de direitos locais nas zonas rurais, nos bairros urbanos
              marginais, nas igrejas, nas empresas, no desporto, nas organizações
              profissionais. Trata-se de formas de Direito infra-estatal,
              informal, não oficial e mais ou menos costumeiro. Mais
              recentemente ainda, a investigação sobre as trocas econômicas
              internacionais per-mitiu detectar a emergência de uma nova lex
              mercatoria, um espaço jurídico internacional em que operam
              diferentes tipos de agentes econômicos cujo comportamento é
              regulado por novas regras internacionais e relações contratuais
              estabeleci-das pelas empresas multinacionais, pelos bancos
              internacionais ou por associações internacionais dominadas por
              umas ou por outros (Kahn. 1982; Wallace. 1982). O capital
              transna-cional criou, assim, um espaço jurídico transnacional,
              uma legalidade supra-estatal, um Direito mundial. Este Direito é,
              em geral, muito informal. Baseado nas práticas dominantes, ou
              seja, nas práticas dos agentes dominantes, não é um Direito
              Costumeiro no sentido tradicional do termo. Só poderá ser
              considerado costumeiro se admitirmos a possibilidade de prá-ticas
              novas ou recentes darem origem ao que poderíamos designar quase
              paradoxalmente por costumes instantâneos; como por exemplo,
              quando uma empresa multinacional inventa um novo tipo de contrato
              e tem poder suficiente para o impor a outros agentes econômicos.
              Tão pouco faz sentido considerar este novo Direito mundial como não
              oficial, uma vez que ele cria diferentes formas de imunidade, quer
              face ao Direito Nacional estatal, quer face ao Direito
              Internacional Público e, neste sentido, constitui a sua própria
              oficialidade (Farjat. 1982:47).
               Estes desenvolvimentos sócio-jurídicos revelam, pois, a existência
              de três espaços jurídicos diferentes a que corres-pondem três
              formas de direito: o Direito local, o Direito nacional e o Direito
              mundial. É pouco satisfatório distinguir estas formas de direito
              com base no objecto de regulação pois, por vezes, regulam ou
              parecem regular o mesmo tipo de ação social. Em meu entender o
              que distingue estas formas de direito é o tamanho da escala com
              que regulam a ação social. O Direito local é uma legalidade de
              grande escala; o Direito nacional estatal é uma legalidade de média
              escala; o Direito mundial é uma legalidade de pequena escala.
              Esta concepção tem muitas implicações. Em primeiro lugar, e
              uma vez que a escala cria o fenômeno, estas formas de direito
              criam diferentes objetos jurídicos a partir dos mesmos objectos
              sociais empíricos. Usam diferentes critérios para determinar os
              pormenores e as características relevantes da actividade social a
              ser regulada. Estabelecem diferentes redes de factos. Em suma,
              criam realidades jurídicas diferentes. Tomemos, como exemplo, o
              conflito de trabalho. O código da fábrica, ou seja, o conjunto
              dos regulamentos internos que constituem o Direito local da fábrica,
              regula com grande deta-lhe as relações na produção (as relações
              entre operários, entre operários e supervisores, entre estes e
              os diretores, etc.) a fim de garantir a disciplina no espaço da
              produção, impedir a ocorrência de conflitos e tentar diminuir o
              seu âmbito sempre que ocorram (NR12). O conflito de trabalho é o
              objeto nuclear do código da fábrica porque confirma, ao con-trário,
              a continuidade das relações na produção que é a sua razão de
              ser. No contexto mais amplo do direito laboral estatal, o conflito
              de trabalho é tão só uma das dimensões, se bem que importante,
              das relações de trabalho. É a parte de uma rede mais ampla de
              fatos econômicos, políticos e sociais em que facilmente
              identificamos, entre outros, a estabilidade política, a taxa de
              inflação, a política de rendimentos, as rela-ções de poder
              entre organizações sindicais e patronais. No contexto ainda mais
              amplo do direito mundial da franchise e da subcontratação
              internacionais, o conflito de trabalho transforma-se num pormenor
              minúsculo das relações econômicas internacionais que não
              merece sequer ser assinalado.
               As diferentes ordens jurídicas operam, assim, em escalas
              diferentes e, com isso. traduzem objetos empíricos even-tualmente
              iguais em objetos jurídicos distintos. Acontece, porém, que na
              prática social as diferentes escalas jurídicas não existem
              isoladas e, pelo contrário, interagem de diferentes maneiras.
              Continuemos com o nosso exemplo e imaginemos que um conflito de
              trabalho irrompe numa fábrica portuguesa de confecções,
              produzindo em regime de subcontratação para uma multinacional de
              pronto-a-vestir (NR13). Numa tal situação, os objetivos de
              regulação dos três direitos acima referidos convergem na mesma
              acção social, o conflito concreto. Isto pode criar a ilusão de
              que os três objectos jurídicos se sobrepõem e coincidem. De
              facto, assim não é; tão-pouco coincidem as imagens jurídicas
              de base, os universos simbólicos, dos diferentes agentes econômicos
              mobilizados no con-flito. Os operários e, por vezes, o patrão
              tendem a ter uma visão de grande escala do conflito, uma visão
              dramatizada, plena de detalhes e de discursos particularísticos,
              em suma, uma visão e uma concepção moldadas pelo direito local
              da produção. Os dirigentes sindicais e, por vezes, o patrão
              ten-dem a ver o conflito como uma crise, mais ou menos momen-tânea,
              no processo contínuo das relações de trabalho. É uma visão
              predominantemente moldada pelo direito estatal e as ações que
              dela decorrem procuram um compromisso entre o conflito concebido
              em grande escala no direito da produção e a sua concepção em média
              escala no direito estatal. Final-mente, para a empresa
              multinacional de pronto-a-vestir o conflito de trabalho é um
              pormenor ou acidente mínimo que, se não for prontamente
              resolvido, pode ser facilmente ultra-passado, transferindo a
              encomenda para a Malásia ou Taiwan.
               Explicar estas discrepâncias e descoincidências
              exclusi-vamente em função das diferenças entre os interesses em
              conflito ou dos graus de consciência de classe torna-se pouco
              convincente, sabido que o direito tende a construir a realidade
              que se adequa à sua aplicação. Tal construção obedece a
              certas regras técnicas, uma das quais, como defendo aqui, é a
              regra da escala. Em boa verdade, só podemos comparar interesses
              sociais e graus de consciência de grupo dentro do mesmo espaço sócio-jurídico
              e, portanto, no interior da mesma forma de direito. A dificuldade
              de uma tal empresa reside em que, como já deixei dito acima, a
              vida sócio-jurídica é constituída, na prática, por diferentes
              espaços jurídicos que operam simultaneamente e em escalas
              diferentes. A intera-ção e a interseção entre os diferentes
              espaços jurídicos é tão intensa que. ao nível da
              fenomenologia da vida sócio-jurídica, não se pode falar de
              direito e de legalidade mas antes de inter-direito e
              inter-legalidade. A este nível, é menos impor-tante analisar os
              diferentes espaços jurídicos do que identifi-car as complexas e
              dinâmicas relações entre eles. Mas, se ao procedermos a tal
              identificação, descuidarmos a questão da escala, cairemos numa
              situação tão frustrante quanto a do turista que esqueceu em
              casa o transformador que lhe permitiria usar a máquina de barbear
              no país estrangeiro.
               Ao realizar a investigação sobre a justiça popular em Cabo
              Verde, deparei com um fato de algum modo intrigante. A filosofia
              subjacente à organização da justiça popular era a de envolver
              ao máximo as comunidades locais no exercício da justiça,
              incorporando nesta, sempre que possível, o direito local
              (costumes, práticas respeitáveis e respeitadas). Esta incorporação
              era facilitada pelo fato de os juizes dos tribu-nais de zona serem
              leigos, membros das comunidades locais, e também pelo fato de o
              direito escrito que regulava a ati-vidade dos tribunais ser
              propositadamente vago e lacunoso. Detectei, no entanto, que em
              alguns casos pelo menos o pro-cesso de seleção dos juizes pelo
              Estado e pelo partido não facilitava a incorporação do direito
              local. Assim sucedia, por exemplo, quando eram selecionados homens
              jovens. Tal seleção, baseada na identificação ativa com os
              objetivos gerais da ação política do Estado e do partido,
              provocava, por vezes, alguma tensão no seio das comunidades
              locais para as quais o exercício da justiça devia ser deixado
              aos mais velhos, com maior sabedoria e prudência. Uma reflexão
              mais aprofundada desta discrepância permitiu-me concluir que
              estava perante uma situação de interlegalidade, ou seja, de uma
              relação complexa entre dois direitos, o direito estatal e o
              direito local, usando escalas diferentes. Para as comuni-dades
              locais, sobretudo rurais, os costumes locais eram um direito
              local, uma legalidade de grande escala, adaptada às exigências
              da prevenção e resolução de conflitos locais. Para o Estado, o
              direito local era parte integrante de uma rede mais ampla de
              factos sociais e políticos, entre os quais as exigências da
              consolidação do Estado e da criação da sociedade socialista, a
              unidade do sistema jurídico, a socialização polí-tica, etc.,
              etc. A esta escala mais pequena, o direito local era parte
              integrante do direito estatal e, portanto, um instrumento específico
              de ação social e política (Santos, 1984:33).
               A primeira implicação da identificação de diferentes
              esca-las de juridicidade é, como acabamos de ver, o chamar a
              nossa atenção para o fenômeno da interlegalidade e para o seu
              complexo funcionamento. A segunda grande implicação tem a ver
              com os padrões de regulação associados com cada escala de
              legalidade. Mencionei já a tensão dialéctica entre representação
              e orientação. Em verdade, estamos perante dois modos antagônicos
              de imaginar e constituir a realidade, um adequado a identificar a
              posição e o outro adequado a identificar o movimento. A
              legalidade de grande escala é rica em detalhes, descreve
              pormenorizada e vivamente os comporta-mentos e as atitudes,
              contextualiza-os no meio envolvente e é sensível às distinções
              (e relações complexas) entre familiar e estranho, superior e
              inferior, justo e injusto. Tais característi-cas estão presentes
              qualquer que seja o objeto de regulação jurídica, seja ele relações
              de família, ou de trabalho, activida-des contratuais ou
              criminosas. Em suma, esta forma de lega-lidade cria um padrão de
              regulação baseado na representação e adequado a identificar
              posições. Ao contrário, a legalidade de pequena escala é pobre
              em detalhes e reduz os compor-tamentos e as atitudes a tipos
              gerais e abstratos de ação. Mas, por outro lado, determina com
              rigor a relatividade das posições (os ângulos entre as pessoas
              e entre as pessoas e as coisas), fornece direções e atalhos, e
              é sensível às distin-ções (e às complexas relações) entre
              parte e todo, passado e presente, funcional e disfuncional. Em
              suma, esta forma de legalidade cria um padrão de regulação
              baseado na orienta-ção e adequado a identificar
              movimentos(NR14). Quando, em 1970, estudei o direito interno e não
              oficial das favelas do Rio de Janeiro, tive ocasião de observar
              que este direito local, um direito de grande escala, representava
              adequadamente a realidade sócio-jurídica da marginalidade urbana
              e contribuía significativamente para manter o status quo das posições
              dos habitantes das favelas enquanto moradores precários de
              bar-racas e casas construídas em terrenos invadidos (Santos,
              1977). Quando, dez anos mais tarde, estudei as lutas sociais e jurídicas
              dos moradores das favelas do Recite com o objetivo de legalizarem
              a ocupação das terras por meio de expropria-ção, compra ou
              arrendamento, verifiquei que a forma de direito a que recorriam
              era o direito oficial, estatal, um direito de menor escala, que só
              muito seletiva e abstratamente representava a posição sócio-jurídica
              dos moradores, mas que definia muito claramente a relatividade das
              suas posições face ao Estado e aos proprietários fundiários
              urbanos, um direito que, nas condições sociais e políticas da
              época, oferecia o atalho mais curto para o movimento de uma posição
              precária para uma posição segura (Santos, 1982b; 1983).
               Para além de suscitarem diferentes padrões de regulação, as
              diferentes escalas de legalidade condicionam (e são
              con-dicionadas) por redes de ações diferentes. Uma rede de ações
              é uma seqüência interligada de ações estruturalmente
              determinadas por limites pré-definidos. Identifico dois tipos de
              limites: os limites definidos segundo o âmbito e os definidos
              segundo a ética das interações. Segundo o âmbito, distingo
              dois tipos de redes de ações: a rede de ações estratégicas e
              a rede de ações tácticas. Segundo a ética, distingo igualmente
              dois tipos de redes de ações: a rede de ações instrumentais e
              a rede de ações edificante. À luz dos exemplos apontados acima
              sugiro que a legalidade de grande escala suscita (e é suscitada
              por) redes de ações tácticas e edifi-cantes, enquanto a
              legalidade de pequena escala suscita (e é suscitada) por redes de
              ações estratégicas e instrumentais. Os diferentes grupos e
              classes sociais não são todos igualmente socializados nas
              diferentes redes de ações. Estas encon-tram-se desigualmente
              distribuídas na sociedade. Um dado grupo ou uma dada classe
              social socializados predominante-mente num certo tipo de rede de ações
              tendem a ser especi-ficamente competentes no tipo de legalidade
              que lhes está associado. Numa situação de interlegalidade, ou
              seja, numa situação em que a legalidade de pequena escala se
              entrecruza com a legalidade de grande escala, as ações
              associadas com a primeira tendem a ser agressivas, excepcionais,
              críticas, respeitantes a lutas ou conflitos de grande alcance,
              enquanto as ações associadas com a legalidade de grande escala
              ten-dem a ser defensivas, vulgares, respeitantes à interação de
              rotina e às lutas e conflitos de pequeno alcance (NR15).
               A terceira e última implicação da análise das escalas de
              regulação jurídica diz respeito ao que designo por patamares de
              regulação. Qualquer que seja o objeto social regulado e o
              objetivo da regulação, cada escala de legalidade tem um patamar
              de regulação próprio com que define o que pertence à esfera do
              direito e o que é dela excluído. Este patamar é .o produto da
              operação combinada de três patamares: o patamar de detecção,
              o patamar de discriminação e o patamar de ava-liação. O
              patamar de detecção diz respeito ao nível mínimo de pormenor
              da ação social que pode ser objeto de regula-ção. Este patamar
              permite distinguir entre o relevante e o irre-levante. O patamar
              de discriminação diz respeito às diferenças mínimas na descrição
              da ação social suscetiveis de justifi-car diferenças de regulação.
              Permite distinguir entre o mesmo (que deve ter tratamento igual) e
              o distinto (que deve ter tratamento diferente). Por último, o
              patamar de avaliação diz respeito às diferenças mínimas na
              qualidade ética da ação social suscetíveis de fazerem variar
              qualitativamente o sen-tido da regulação. Permite distinguir
              entre o legal e o ile-gal (NR16).
               Durante a crise revolucionária por que passou a socie-dade
              portuguesa em 1974-1975, José Diogo, assalariado rural, foi
              acusado do homicídio do seu antigo patrão, um grande latifundiário
              alentejano. Em sua defesa, o réu invocou a pro-vocação da
              vitima e um longo rol de ações prepotentes e violentas contra os
              trabalhadores cometidas pelo latifundiário durante o longo período
              da ditadura salazarista. Depois de muitas peripécias, devidas à
              atenção pública que o caso obteve e às manifestações de
              solidariedade para com o réu, este acabou por ser julgado e
              condenado. De uma das vezes em que o julgamento foi adiado, quando
              o processo fora transferido para o tribunal de Tomar, um tribunal
              popular constituído por operários da cintura de Lisboa e por
              assala-riados rurais, reuniu-se no exterior do tribunal da comarca
              e condenou postumamente o latifundiário ao mesmo tempo que
              absolveu o réu apesar de reconhecer que a sua ação, sendo um
              ato de violência individual, não podia ser considerada
              revolucionária. A discrepância entre o tribunal estatal e o
              tri-bunal popular reside, entre outras coisas, nos diferentes
              patamares de regulação das formas do direito adotadas por cada
              um dos tribunais. Para o direito estatal, então chamado
              "legalidade democrática", as duas ações, a ação do
              réu e as ações anteriores da vítima, tinham conteúdos éticos
              muito distintos. Para o direito aplicado pelo tribunal popular, a
              "legalidade revolucionária", como então se chamava, e
              em face do patamar de avaliação e de discriminação mais baixo
              por esta adotado, os dois tipos de ação eram eticamente
              semelhantes. Se a ação do réu não podia ser considerada
              revolucionária, poderia pelo menos ser desculpada enquanto reação
              compreensível contra as ações anteriores da vitima (Santos,
              1982a:272).
               Notas de rodapé
 (NR11) Sobre o pluralismo jurídico, cfr., entre muitos outros,
              J. Griffiths (1987); F. Snyder (1981); P. Fitzpatrick (1983); B.
              Santos (1985b).
               (NR12) O direito local da fábrica é o direito da produção
              gerado no espaço estrutural da produção. Este espaço é
              constituído por uma forma de direito (precisamente, o direito da
              produção), uma unidade de prática social (classe), uma forma
              institucional (fábrica/empresa), um mecanismo de poder (exploração)
              e um modo de racionalidade (maximização do lucro). Os outros
              espaços estruturais da acção social: o espaço doméstico, o
              espaço da cidadania e o espaço mundial. Sobre este mapa
              estrutural da sociedade, cfr. Santos, 1985b:307 e segs.
               (NR13) Uma análise aprofundada da natureza jurídica e econômica
              da subcontratação em M. M. Marques (1986; 1987).
               (NR14) Como deixei dito acima, a cartografia simbólica é
              susceptível de aplicação a outras formas institucionalizadas de
              representações sociais, da religião à educação, da saúde à
              moda, das forças armadas ao movimento sindical. Por exemplo, o
              processo educativo de grande escala, que tem lugar de modo
              informal e quotidiano no seio da família, do grupo de referência
              ou da comunidade local, não coincida com o processo educativo de
              pequena escala no âmbito do sistema educativo formal, nacional (público
              ou privado), mesmo quando os dois processos incidem, na aparência,
              sobre os mesmos tópicos. A educação de grande escala suscita,
              em geral, um padrão de socialização que privilegia a representação
              dos espaços socialmente constituídos e a posição que nesses
              espaços ocupam os diversos sujeitos do processo educativo. Ao
              contrário, a educação de pequena escala suscita, em geral, um
              padrão de socialização que privilegia o movimento e a orientação
              entre diferentes espaços sociais, constituídos ou a constituir,
              mesmo quando esse movimento, a nível agregado, é ilusório e a
              ilusão de que ele existe na realidade é um dos fatoras da
              rigidez macrosocial .
               (NR15) Sobre o conceito de lutas de diferente alcance, cfr. A
              distinção entre "molar struggles" e "molecular
              struggles" em G. ª Miller et. Al. (1972:59).
               (NR16) Continuando o exercício de expandir a estratégia analítica
              aqui desenvolvida numa aplicação ao direito, e à semelhança do
              que fiz com a educação (ver nota 14), pode dizer-se que, no domínio
              da saúde, uma outra grande representação social com vários
              graus de institucionalização, os patamares de regulação
              variam, por exemplo, entre a medicina popular e a oficial. A
              primeira parece caracterizar-se por um patamar de regulação mais
              baixo que a Segunda, quer enquanto patamar de detecção (a
              caracterização de sintomas que podem constituir uma questão de
              saúde), quer ainda enquanto patamar de avaliação ( discriminação
              entre o que é saúde e o que é doença).
  
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