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 Os conflitos
              sociais e os
 mecanismos de sua resolução*
 Boaventura de Souza Santos
 Este tema constitui a terceira
              contribuição da sociologia para a administração da justiça.
              Aliás, neste domínio a contribuição inicial pertenceu à
              antropologia ou etnologia social. Os estudos de Evans Pritchard no
              Sudão, de Guíliver e Sally Moore na África Oriental, de
              Gluckman e Van Velsen na África Central e Austral, de Bohannan na
              África Ocidental, tiveram um impacto decisivo no desenvolvimento
              da sociologia do Direito. Deram a conhecer formas de direito e
              padrões de vida jurídica totalmente diferentes dos existentes
              nas sociedades ditas civilizadas: direitos com baixo grau de
              abstração, discerníveis apenas na solução concreta de
              litígios particulares; direitos com pouca ou nula
              especialização em relação às restantes atividades Sociais;
              mecanismos de revolução dos litígios caracterizados pela
              informalidade, rapidez, participação ativa da comunidade,
              conciliação ou mediação entre as partes através de um
              discurso jurídico retórico, persuasivo, assente na linguagem
              ordinária. Acima de tudo estes estudos revelaram a existência na
              mesma sociedade de uma pluralidade de direitos convivendo e
              interagindo de diferentes formas. No momento histórico em que a
              antropologia convergia teórica e metodologicamente com a
              sociologia, o impacto destes estudos na sociologia do Direito foi
              enorme. Muitos foram os estudos que se seguiram, tendo por unidade
              de analise o litígio (e não a norma) e por orientação teórica
              o pluralismo jurídico, orientados para a análise de mecanismos
              de resolução jurídica informal de conflitos existentes nas
              sociedades contemporâneas e operando à margem do direito estatal
              e dos tribunais oficiais. Citarei dois exemplos: o estudo pioneiro
              de S. Macaulay sobre as práticas jurídicas e sobretudo os
              conflitos jurídicos dentre os produtores e os comerciantes de
              automóveis nos EUA, resolvidos de modo informal à margem das
              disposições do Direito comercial e da intervenção dos
              tribunais, orientados pelo objetivo de não criar rupturas nas
              relações econômicas e retirando destas poderosos dispositivos
              sancionatórios não oficiais.  Em segundo lugar, os estudos por
              mim realizados no início da década de 70 nas favelas do Rio de
              Janeiro e onde me foi possível detectar e analisar a existência
              no interior destes bairros urbanos de um Direito informal
              nãooficial, nãoprofissionalizado, centrado na associação de
              moradores que funcionava como instância de resolução de
              litígios entre vizinhos, sobretudo nos domínios da habitação e
              da propriedade da terra. Estes e muitos outros estudos que se
              seguiram com objetivos analíticos semelhantes permitiram concluir
              o seguinte: em primeiro lugar, de um ponto de vista sociológico,
              o Estado contemporâneo não tem o monopólio da produção e
              distribuição do Direito. Sendo embora o Direito estatal o modo
              de juridicidade dominante ele coexiste na sociedade com outros
              modos de juridicidade, outros Direitos que com ele se articulam de
              modos diversos.Este conjunto de articulações e interrelações
              entre vários modos de produção do Direito constitui o que
              designo por formação jurídica. Em segundo lugar, o relativo
              declínio da litigiosidade civil, longe de ser indício de
              diminuição das conflitualidades social e jurídica, é antes o
              resultado do desvio dessas conflitualidades para outros mecanismos
              de resolução, informais, mais baratos e expeditos, existentes na
              sociedade. Estas conclusões não deixaram de
              influenciar algumas das reformas da administração da justiça
              nos últimos anos. Distinguirei dois tipos de reformas: as
              reformas no interior da justiça civil tradicional; e a criação
              de alternativas. Quanto às primeiras são de salientar as
              seguintes: o reforço dos poderes do juiz na apreciação da prova
              e na condução do processo segundo os princípios da oralidade,
              da concentração e da imediação, um tipo de reformas com longa
              tradição na teoria processualista européia iniciada pela obra
              pioneira de Franz Klein; a criação de um novo tipo de
              relacionamento entre os vários participantes no processo, mais
              informal, mais horizontal, visando um processamento mais
              inteligível e uma participação mais ativa das partes e
              testemunhas. Como exemplo deste tipo de reforma citarei o chamado
              Stuttgart Modell na Alemanha Federal e os tribunais de grande
              instância criados em 1967 nos departamentos periféricos da
              região parisiense; por último, e relacionado com as anteriores,
              as reformas no sentido de ampliar o âmbito e incentivar o uso da
              conciliação entre as partes sob o controle do juiz.64 As reformas que visam à criação
              de alternativas constituem hoje uma das áreas de maior inovação
              na política judiciária. Elas visam criar, em paralelo à
              administração da justiça convencional, novos mecanismos de
              resolução de litígios cujos traços constitutivos têm grandes
              semelhanças com os originalmente estudados pela antropologia e
              pela sociologia do Direito, ou seja, instituições leves,
              relativa ou totalmente desprofissionalizadas, por vezes impedindo
              mesmo a presença de advogados, de utilização barata, senão
              mesmo gratuita, localizadas de modo a maximizar o acesso aos seus
              serviços, operando por via expedita e pouco regulada, com vista
              à obtenção de soluções mediadas entre as partes. Neste
              domínio os países socialistas de Estado do leste europeu têm
              uma grande experiência (os tribunais sociais e os tribunais de
              camaradas) assim como a China e o Japão com as instituições,
              algumas ancestrais, de mediação. Em tempos recentes, são de
              mencionar a criação experimental dos centros de justiça de
              bairro nos EUA e os conceIiateurs na França. Em Portugal algumas
              iniciativas no mesmo sentido no pós 25 de abril não tiveram
              qualquer concretização. * Este trecho foi
              extraído da seguinte obra: Santos, Boaventura de Souza,
              Introdução à sociologia de administração da Justiça.  
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