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Os novos antagonismos
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

No momento em que escrevo estão ainda no ar duas incógnitas sem cujo esclarecimento não será possível determinar até que ponto o mundo mudou com o hediondo ataque terrorista de 11 de setembro, 28 anos depois da queda violenta de Salvador Allende, no Chile, com a intervenção ativa da CIA. Essas incógnitas são: quem é exatamente o inimigo? Como vão retaliar os EUA e quais os desdobramentos da retaliação?
Temo que a resposta à segunda pergunta possa ocorrer antes da resposta à primeira. A pressão na sociedade norte-americana para transformar os sentimentos de horror e de luto em sentimentos de vingança é de tal maneira forte que a decisão da retaliação pode vir a contentar-se com provas duvidosas e incompletas. Tenhamos em mente que a maioria dos atentados contra alvos norte-americanos, israelitas e árabes da última década continuam por ser esclarecidos após anos de investigação.

Nessas condições, não é possível pensar no futuro senão em termos dos fatores que no passado recente têm vindo a contribuir para a emergência ou agravamento de novos antagonismos que, ao contrário do antagonismo que caracterizou a Guerra Fria, assentam em brutais desequilíbrios de poder e na falta ou impotência de instituições para regular o desenrolar dos conflitos em que eles se traduzem. Distingo três desses antagonismos: os conflitos no Médio Oriente e na ex-Iugoslávia; a guerra econômica dos países ricos contra os países pobres, sob o nome de globalização neoliberal; a transformação recente dos EUA numa espécie de "Estado pária", ao arrogar-se o direito de denunciar tratados internacionais para, contra tudo e contra todos, consolidar a sua supremacia e se defender do resto do mundo, concebido como inimigo ou concorrente comercial, o que na tradição da diplomacia americana não é uma distinção significativa.
Em todos esses antagonismos, a parte mais fraca -sejam eles os palestinos, os libaneses, os iraquianos, os sérvios, os países pobres estrangulados pela dívida externa ou, no caso do terceiro antagonismo, até a União Européia e o Japão, que assistem impotentes ao isolacionismo dos EUA- é sujeita a três processos de desumanização que tornam impossível a negociação, o compromisso e a institucionalização dos conflitos.

O primeiro processo é a máquina tecnológica, seja ela militar ou econômica, que atua com tanta superioridade, violência e precisão que o inimigo se torna invisível, descartável ou irracional. O inimigo perde tudo e sobretudo a dignidade de poder resistir. A impossibilidade de resistência é transvalorizada em ausência de resistência. A idéia de libertação assume assim o caráter de redenção pelo milagre. É nesse contexto que a teologia surge frequentemente como única arma contra a tecnologia.

As diferenças políticas são despolitizadas e naturalizadas em diferenças étnicas, raciais e religiosas

O segundo processo é a máquina de propaganda que submete a parte fraca a dois dispositivos de degradação. Por um lado, magnifica o inimigo com o objetivo único de magnificar a sua derrota. É assim que inimigos liliputianos (como sejam Saddam Hussein, Fidel Castro, Slobodan Milosevic) são ampliados simbolicamente até adquirirem um estatuto semelhante ao do megainimigo (o comunismo), para o qual foram criadas as narrativas e as instituições do velho antagonismo e que ainda estão em vigor.

Por outro, demoniza o inimigo a ponto de o tornar incapaz de qualquer motivação nobre. É esse dispositivo que faz com que os telespectadores norte-americanos, ao verem as imagens dos jovens palestinos a atirar pedras aos tanques israelitas, vejam nelas atos de agressão e não de heroísmo. Por esse processo é também suprimida a possibilidade de igualdade na diferença. As diferenças políticas são despolitizadas e naturalizadas em diferenças étnicas, raciais e religiosas. Assim, a diferença transforma-se na incomensurabilidade entre amigo e inimigo.
O terceiro processo são os critérios duplos a que os vencedores e os vencidos estão sujeitos. Tanto Israel como o Iraque são violadores de decisões do Conselho de Segurança da ONU, mas o primeiro continua a receber a maior fatia da ajuda internacional dos EUA, enquanto o segundo é bombardeado há dez anos. Os vencedores perdem vidas, tanto mais preciosas quanto o novo lema militar é "morte zero", enquanto os vencidos são vítimas de "danos colaterais", os quais, no caso do Iraque, podem ter atingido meio milhão de crianças. Do mesmo modo, os países ricos impõem aos países pobres o comércio livre, mas guardam para si o privilégio de proteger as suas economias.

Esses três processos de desumanização acabam por desumanizar quem desumaniza. Conduzem à construção especular de paixões e emoções descontroladas -sejam elas os sentimentos antiamericanos ou os sentimentos antiárabes, antimuçulmanos, antiasiáticos, antiafricanos e anti-hispânicos que minam qualquer proposta de segurança coletiva assente na gestão de conflitos que não exclua e, antes, pressuponha a cooperação e a confiança mútuas.
O problema desses novos antagonismos é que os que semeiam ventos não são os mesmos que colhem tempestades. Estes últimos são quase sempre vítimas inocentes.


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Boaventura de Sousa Santos, 60, sociólogo, é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

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