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A CIDADANIA EM 2020

Belisário dos Santos Jr. *

"Irritado, já com a resposta azeda a sair-lhe da boca,
abriu os olhos e viu. Viu e gritou. Vejo, vejo..."
(Saramago, Ensaio sobre a cegueira)

"Nosotros estamos com la democracia, pero la democracia no está com nosotros."
(recolhido por Eduardo Galeano –
Democracia - Compromiso)

"Cidadania é também obrigação:
A de ajudar a construir
a claridão na consciência
de quem merece o poder."
(Thiago de Mello, De uma vez por todas)

O futuro e o compromisso

Em manifestação lançada no II Encontro Ibero americano de Comunicação, em Caceres, Espanha, o escritor uruguaio Eduardo Galeano advertiu que a história latino-americana ensina a desconfiar das palavras. A linguagem oficial delira e seu delírio é a normalidade do sistema.

O sistema aplaude a infâmia, se bem sucedida e só a castiga quando fracassada. Somos treinados para não ver. A educação pode deseducar. Os meios de comunicação não comunicam. O democracímetro ocidental expressa uma cultura de aparência. O contrato do casamento importa mais que o amor; o funeral mais que o morto; a roupa mais que o corpo e a missa mais que Deus. O espetáculo da democracia importa mais que a democracia. A democracia é tratada como uma menor de idade, que não pode sair sem permissão, caminha nas pontas dos pés e pede desculpas por incomodar. A esperança, em verdade, reside no forte e incerto combate que as energias da criação humana travam contra o medo de mudar, contra o medo de ser e contra o medo de fazer.

Em nosso patamar de civilização, à beira do terceiro milênio, a linguagem de oposição aos direitos humanos não se expressa necessariamente como resistência, ganhando às vezes aspectos de aparente cumprimento.

Dalmo Dallari, chamando atenção para o fenômeno da perversão da retórica dos Direitos Humanos, mais de uma vez alertou que o princípio da igualdade, colhendo situações extremamente desiguais do ponto de vista cultural, econômico e social, pode ser instrumento de conservação de situações de opressão. Ou seja igualdade funcionando como vetor de desigualdade.

Paradoxalmente, fenômenos tão diversos como a democracia, seu exercício, mas também a violência desordenada, a tecnologia, o aumento da pobreza, a modernidade, o futuro crítico do emprego, contribuíram, de um lado para socializar tais medos, e de outro para reforçar a consciência da necessidade de novos padrões éticos para a vida em sociedade.

Neste mundo do confiar desconfiando, é que se insere qualquer compromisso de pensar a cidadania para o século XXI, para o ano 2020, para tomar uma data precisa. Mas à data devemos somar uma inequívoca e bem caracterizada vontade de aceitar mudanças, e bem assim de também promovê-las.

Em si, a idéia de futuro é bem aceita. O futuro implica algum descompromisso com a realidade presente, e assim a lei e a burocracia não são condicionantes do que se pensa sob a égide de "futuro".

Projetado o modelo ideal para o futuro, em seguida, deveria se retrotrair o produto da reflexão, para perguntar : Por quê não hoje? Por quê não ou como aplicar agora?

A data tem um caráter mágico.

A memória das sociedades precisa repousar em sinais inequívocos, sempre iguais a si mesmos. É a lição de Alfredo Bosi.

A memória carece de nomes e números.

2020 nos relembra um prazo. A fixação de prazo implica responsabilidade. 2020 é um longe perto. Permite o exercício do pensar alto, mas está ao alcance de nossa vida.

A data, em sua simplicidade numérica, tem uma força que liga os acontecimentos que projetamos a um tempo social, a um tempo cultural, a um tempo corporal, que pulsam sob a linha de superfície dos eventos.

À luz de tal reflexão, sugere-se conservar na mente a data, ainda que não escrita, que traduzirá responsabilidade, suscitará angústia e, portanto, alimentará a criatividade.

O conflito entre modernidade e igualdade

No Brasil, com o fim do regime militar, a recuperação das liberdades civis e políticas foi acompanhada da plena vigência de garantias judiciais (v.g., o habeas corpus e o mandado de segurança) e de mecanismos institucionais (v.g., o voto, a possibilidade de organização de partidos políticos) que deveriam assegurar a preservação dos direitos enucleados em torno da palavra liberdade. Ocorre que tal aparente recuperação foi acompanhada pela presença de duas características que praticamente a anulam. De um lado, conservamos (mesmo após a Constituição de 88) alguns vícios de nosso sistema representativo. Gerados na época da ditadura, se externam pelo superdimensionamento da representação das regiões de menor população, de mais precária cultura política e mais dependentes do governo federal e agora também pela elevação de territórios a estados e pela criação artificial de novas unidades federativas. De outro lado, um novo protagonista - o poder econômico - passou a influir decisivamente no processo eleitoral, seja manipulando os meios massivos de comunicação, seja prestigiando a crescente corporativização do Parlamento.

De outra parte, o aparato estatal revelou-se eficaz para a proteção dos direitos individuais, mas lento e burocrático, quando não ineficiente, na tutela dos direitos coletivos. Ademais de ineficiente, o Estado, por vezes, permite que dentro dele se gerem bandos organizados , para violação do próprio direito à vida. A tudo isso se soma a crescente demanda pelo atendimento às necessidades básicas do indivíduo e da coletividade, vinculadas à saúde, à habitação, ao lazer, à previdência social, à educação, ao trabalho , ao acesso à cultura, luta que vem sendo mais e mais reconhecida como importante para conquista de espaço político da cidadania.

Tais necessidades são hoje entendidas como verdadeiros direitos - direitos econômicos sociais e culturais - e se exprimem em torno do conceito de igualdade.

Como contribuirá a democracia para atendê-los ?

Como se conciliarão o avanço tecnológico e os bolsões de pobreza?

Nem sempre os avanços da modernidade vêm melhorar a qualidade de vida dos mais pobres. Consegue-se hoje produzir mais e melhor em menos espaço de terra e, apesar de tudo, a fome ainda é um flagelo, a violência ainda persiste como um dos grandes males de nossa época, notadamente contra os mais frágeis.

Hoje o Brasil concentra 44% dos pobres da América Latina. Em relação aos níveis de distribuição de renda entre todas as áreas do mundo, o Brasil foi pior do que a média regional da América Latina. É um dos países com mais alto nível de mortalidade infantil e analfabetismo no subcontinente, ao lado da Bolívia e da Guatemala. 40,9% da população brasileira é pobre ( leia-se miserável, já que têm renda de menos de US$ 60 por mês),cifra maior que a calculada em 1980. É o que revela o estudo "Pobreza e Distribuição de Renda na América Latina, realizado por técnicos do BANCO MUNDIAL (BIRD)(cf. Folha de S.Paulo,8.3.93). O Brasil, com tais números, pode ser o país mais injusto da América Latina.

Com tal realidade, convive uma ordem jurídica teoricamente insuscetível de crítica. A longa enumeração dos direitos individuais e coletivos feitas pela Carta de 1988, sua inserção logo no portal do novo texto constitucional, a previsão de novas garantias (mandado de injunção, habeas data, mandado de segurança coletivo), a contemplação de algumas formas de participação popular direta, são próprias de qualquer país democrático de verdade.

Essa e outras pistas indicam que os anos noventa se iniciam com a atenção voltadas para o binômio : modernidade - igualdade.

A correta perspectiva da defesa e promoção dos direitos humanos, nos próximos anos, dependerá do entendimento da solução de tal equação.

Cidadania: direitos e deveres

A definição do direito romano para justo incluía : viver honestamente; não lesar a ninguém e dar a cada um o que é seu.

Assim, desde sempre, na noção de justo, convivem os dois componentes fundamentais cujo exercício marca a cidadania: direitos e deveres. CIDADANIA seria um conjunto de direitos, mas igualmente de deveres. Interpretando a Constituição criativamente, teríamos cidadania, como coragem de participar dos esforços em criar a sociedade livre, justa e solidária de que trata a Constituição (artigo 3º, I).

Coragem de alterar a cultura de violação dos Direitos Humanos, para cultura de cumprimento, exigindo seus direitos, mas interiorizando a necessidade de cumprir deveres. Cultura da solidariedade, antes que cultura do individualismo e do jeitinho.

Coragem que implica a aceitação do outro. A Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem (abril de 1948), em seu artigo XXIX, dizia do dever de convivência do indivíduo com os demais, de maneira que todos e cada um possam formar e desenvolver integralmente a sua personalidade.

O trabalho não é só alterar a cultura dos outros. É a nossa, em primeiro lugar. Trabalhar uma nova relação ética a partir de casa, do trabalho, da família, das esferas da vida social e da vida política. Os agentes do Estado sempre terão um papel especial a desempenhar. Há alguns agentes em especial (professores, policiais, agentes comunitários de saúde) que, em sua ação, podem ser os arautos de um Estado mais moderno e igualitário. São os têm contato direto com a cidadania em formação, em risco, em emergência ou instantes de perigo. Resolvem problemas. Podem ser os grandes cobradores dos deveres de convivência e de tolerância. Podem preparar a identificação do cidadão-livre como cidadão co-dirigente.

Conceitos formadores da nova cidadania

Alguns elementos são básicos para a construção desse novo conceito de cidadania. Emanam de documentos internacionais tão distintos como o Plano de Ação da II Conferência Cimeira das Américas, (abril de 1998, em Santiago do Chile), como a Declaração e Programa de Ação da Conferência Mundial dos Direitos Humanos de Viena (junho de 1993) ou do Documento "Elementos para a Modernização do Estado" produzido pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em julho de 1994.

Podem ser vistos como produto da atual reflexão sobre as características da cidadania no terceiro milênio.

Tais documentos , construindo uma nova visão de democracia e portanto um novo conceito de cidadania, apontam para as seguintes pistas:

a) uma nova visão dos direitos humanos; b) a educação para a democracia como chave do progresso; c) a construção de uma nova face para o Estado (recuperando-o para o estabelecimento do bem comum); d) o estabelecimento de uma cultura pautada pela ética da solidariedade e e) necessidade de parcerias criativas entre Estado e sociedade no exercício do dever de convivência.

Uma nova visão dos direitos humanos.

A partir de seu caráter histórico, de sua dimensão internacional, incorporam-se os conceitos de universalidade e indivisibilidade enunciados definitivamente na Conferência Mundial de Viena, em 1993. Os direitos humanos são, portanto, indivisíveis. Isto significa que eles devem ser cumpridos globalmente.

Os direitos humanos fundamentais são universais. Nem só dos brancos, nem só dos ricos. Isto pode implicar em afetar profundamente o poder dos ricos e privilegiados, sempre que tal riqueza ou privilégio seja o impedimento a uma vida decente de outras pessoas.

Não há uma relação estabelecida e final de tais direitos, já que seu caráter é progressivo, correspondendo a cada momento ao estágio cultural da humanidade, como se vê das sucessivas "gerações".

O direito a uma vida livre e digna de uns deve ser efetivado sem impedir tal direito a outros.

Os direitos humanos independem de registro escrito no acervo legislativo de uma nação. Seu reconhecimento pode ocorrer mesmo à revelia das leis e da Constituição.

Têm, outrossim, caráter internacional. Em outras palavras, a preocupação com a vigência dos direitos humanos é universal e o seu descumprimento em alguma parte atinge mesmo aqueles que ali não vivem e não estão submetidos à mesma autoridade.

A educação para a democracia como chave do progresso

A educação aponta para o futuro, para a construção de uma nova cidadania, para uma sociedade solidária.

Educar para quê ? Distribuir melhor o conhecimento teórico?

Talvez muito mais que isso. Preparar o projeto individual e coletivo de interferência na realidade.

Estabelecer as metas para levar a 100% das crianças o ensino formal, até o 2º grau, preparando-as, trabalhando transversalmente estes temas, a trabalhar com os conceitos da tolerância, da convivência e do respeito à dignidade do outro.

Segundo dados da pesquisa da Latinobarômetro, entre os jovens da América Latina a democracia ainda prevalece, mas por pouco. Assim, o grande tema da educação deve ser a democracia, perpassando todos os conteúdos, impregnando o ensino e as práticas de vida da juventude.

Reconhecimento da necessidade de estabelecimento de uma ética da solidariedade.

O período do regime autoritário viveu a clara tentativa do Estado de empurrar a cidadania para a lógica do individualismo e do isolamento dos indivíduos em categorias estanques: "estudante estuda", "trabalhador trabalha", "professor ensina", etc. A condição de patriota era atribuída oficialmente a uns poucos, quando não apenas a uma categoria de servidores: os militares. Os outros eram todos suspeitos de práticas chamadas subversivas, quando não declarados como inimigos internos, dentro da tática de reconhecer um estado de guerra interno, na aplicação da doutrina da segurança nacional.

Mas, a oposição foi toda construída em moldes multissetoriais, suprapartidários, intercorporativos. O terceiro setor, esse conjunto de forças morais não detentor de poder oficial, construiu palanques extremamente amplos, forjando laços de solidariedade que determinaram sua atuação até o restabelecimento do estado de direito. O revigoramento das instituições democráticas se fez, de início, sob essa ótica. No entanto, após a volta ao convívio com os direitos civis e políticos mais elementares, verificou-se que essa aparente recuperação foi acompanhada pelas circunstâncias limitadoras já analisadas ao início do texto. Daí a necessidade de estabelecimento de uma nova cultura política, assentada em princípios éticos.

Os novos padrões éticos se retiram de uma nova visão dos direitos humanos. Esta nova visão pode ser construída a partir de instrumentos internacionais, como a Resolução 32/130 da ONU, tomada pela Assembléia Geral, em 1977. Ali se estabelece o que se deve ter em conta ao se falar em direitos humanos:

- os direitos humanos e as liberdades fundamentais constituem um todo único indivisível;

- é impossível a realização dos direitos civis políticos sem o usufruto dos direitos econômicos, sociais e culturais;

- os direitos e liberdades fundamentais da pessoa humana e dos povos são inalienáveis ;

- os problemas afetos aos direitos humanos devem ser tratados globalmente;

- no marco da sociedade internacional, deve ser dada prioridade absoluta para a busca de soluções a violações massivas e flagrantes de direitos dos povos e pessoas vítimas de situações que lesam sua dignidade;

- é essencial para a consolidação dos direitos e liberdades fundamentais, a ratificação pelos Estados dos instrumentos internacionais a respeito do tema.

Estabelecimento de parcerias entre Estado e sociedade

O início dos anos 70 foi saudado no Brasil por uma frase presidencial que demonstrava a distância entre Estado e sociedade : " O país é rico, o povo é que é pobre". O Estado ocupado por militares opunha-se à sociedade, civil por excelência.

Na transição, na euforia da recuperação de alguns direitos, manteve-se em parte a desconfiança da cidadania em relação ao governo e aos governantes.

Essa desconfiança foi agravada no início da redemocratização, já pela multiplicação de escândalos causados pelos novos detentores do poder, em mau uso de recursos públicos, como pela volta à cena política, pelo voto popular, de figuras claramente identificadas com a ditadura militar. Aqui caberia uma reflexão, poupada pela falta de espaço, sobre a falta de relação, principalmente nas camadas populares, entre voto e melhoria de condições de vida.

A Constituição de 1988 estabeleceu a importância da democracia participativa, reforçando a clássica figura da representação popular (C.F., artigo 1º, parágrafo único). E a participação popular foi estabelecida sob duas óticas: no controle do poder político e na administração da coisa pública. Se, no controle do poder político, há uma grande gama de alternativas, como o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular legislativa, em relação à participação popular na administração existe um campo inexplorado.

Há necessidade de criar instrumentos cujos objetivos possam ser assim sintetizados:

- Redimensionar o Estado. Privilegiar os espaços normais da iniciativa privada, por meio de parcerias(com universidades, com associações, com empresas, com entidades de classe, com ONGs, etc.);

- Incentivar atividades multissetoriais, diminuindo a superposição de órgãos (Poder Judiciário, outras Secretarias, M.P., Universidades);

- Reaproximar o Estado da cidadania, estabelecer formas alternativas de solução de conflitos, reduzindo os espaços de violência;

- Educar para o exercício da cidadania(direitos e deveres);

- Incentivar a solidariedade.

O conflito e a necessidade de solução criativa

A convivência civilizada não se faz só com o esvaziamento dos espaços de violência. O esvaziamento dos espaços de violência não deve nem pode ser cobrada só da Polícia. O Estado como um todo deve repensar criativamente na sua relação com a sociedade.

Devem ser reduzidos os espaços entre o Estado e as prestações por ele oferecidas e a cidadania e suas necessidades. O Estado deve funcionar de forma mais integrada, menos segmentada, com menos paredes, garantindo maior acesso à participação da comunidade na realização de programas com essa face.

Constituem, neste Estado de São Paulo, bom exemplos dessa filosofia e devem ser incentivados como a nova e revolucionária forma de Estado, os Centros de Integração da Cidadania e a as Jornadas da Cidadania e Educação Comunitária, os Fóruns de Cidadania, o Programa Estadual de Direitos Humanos, o Programa de Polícia Comunitária, o Programa de Proteção à Testemunha(PROVITA), o de Atendimento à Vítima ( Cravi – Centro de Atendimento à Vítima), os Parceiros do Futuro, a Lei de Defesa do Usuário do Serviço Público, também de iniciativa deste Governo do Estado, consagrando os direitos à informação, a um bom serviço público e ao controle adequado desse serviço.

As Comissões de Ética e o sistema de Ouvidorias criados pela Lei constituem canais importantes para a cidadania comunicar-se com a Polícia como instituição. As comissões de ética devem ser criadas. São obrigatórias, necessárias, mas, sobretudo, poderão constituir para os comandos das polícias importante termômetro de aferição não da prática de crimes ou transgressões apenas, mas do grau de conversão da tropa para a nova filosofia, afirmativa, positiva, de respeito à dignidade da pessoa, de cumprimento dos direitos humanos.

Não aceitar a participação sociedade civil organizada como importante fator de resolução alternativa de conflitos será ignorar a informação que vem do IBGE(PNAD, 1988): apenas 55% dos conflitos no Brasil é resolvida dentro da forma clássica, com interveniência de juiz, promotor, advogado, polícia.

Assim, só um Estado mais próximo, envolvendo-se com a comunidade em soluções alternativas com criatividade e respeito aos direitos humanos, vai impedir as soluções fora da legalidade, como os linchamentos, o vigilantismo, a cobrança de pedágios pelo crime organizado e outros da mesma linha.

É claro que tudo isso demandará outras reformas, legais, por uma Justiça que funcione 24 horas por dia; por um processo com menos meandros possibilitando mais e mais rápidas decisões de mérito, pelo fim do inquérito policial; ou tecnológicas, que viabilizam a resolução dos casos no local do fato, com emissão dos termos respectivos. É claro que não devemos descuidar de uma opção mais decidida pelas reformas sociais, com mecanismos eficientes de redistribuição de renda, de combate não apenas retórico à pobreza.

E chegamos ao momento de encarar esta aparente antinomia: Todos queremos segurança. Ter segurança significa abrir mão da liberdade?

Uma agenda concreta de cidadania

Nesta época de crise, em que prioridades devem ser estabelecidas, entre outras providências, a sociedade de São Paulo o Governo do Estado e a Assembléia Legislativa, criaram um significativo mecanismo da participação direta, e de ausculta das necessidades maiores do povo paulista que como previstos na Constituição, estabelecendo canais livres e desburocratizados de atuação da cidadania: o Programa Estadual de Direitos Humanos- PEDH, programa fundamental não só para a promoção dos direitos humanos como para o exercício da democracia participativa.

Ao se redigir o 1º Programa Estadual de Direitos Humanos do Brasil, a participação da sociedade civil foi marcada pela contribuição de mais de 600 ONGs. Este Programa tem algumas características importantes. De início, é didático notar que o programa foi todo construído ao redor de ações afirmativas, concretas, com sabor de cotidiano, de urgência.

É interessante que, em nenhum momento, nele ressurge o mito de conflito entre segurança e liberdade, mito que deve ser confinado ao passado, aos anos de chumbo que não se quer esquecer, mas aos quais não se quer voltar.

Nos itens referentes ao acesso à justiça e luta contra a impunidade e à segurança do cidadão e medidas contra a violência, a cidadania marcou as relações importantes entre Justiça, Polícia e direitos humanos. Cria-se um verdadeiro programa, uma autêntica agenda para a cidadania na modernidade.

A educação em direitos humanos foi considerada fundamental. Cursos de capacitação em direitos humanos deverão se estender a lideranças populares. Devem ser estimulados núcleos municipais de direitos da cidadania, com fornecimento de documentos, orientação jurídica.

Fala-se em participação política, como direito de interferência na formulação e implementação de políticas públicas para redução de desigualdades.

O estímulo a solução pacífica de conflitos é ponto do tema acesso à justiça e da luta contra a impunidade. Na periferia das grandes cidades, aponta-se a necessidade dos Centros de Integração da Cidadania, integrando serviços de Polícia, Justiça, Ministério Público, Procon, assistência jurídica, atendimento social, requalificação profissional, geração de renda, concessão dos documentos básicos, prevenção de doenças, tudo contando com a co-dirigência da comunidade, em espaços que podem ser usados coletivamente. Aliás, o uso dos espaços públicos como o das escolas é ponto relevante de vários programas que associam, na periferia, lazer, cultura, esportes, vida participativa, restabelecendo espaços de convivência, além do "bar".

São lembrados os programas de proteção a testemunhas e de atenção a vítimas, e de indenização administrativa sempre que haja violação de direitos por agentes do Estado.

Fala-se em fortalecimento da Ouvidoria da Polícia e dos mecanismos constitucionais de seu controle. Pede-se o fim do trabalho forçado de crianças. Muitas são as providências lembradas contra a intolerância e o preconceito. Pede-se a instalação de canais especiais para denúncias, garantida a segurança do usuário.

A necessidade de promoção nos municípios de fóruns sobre políticas e programas de direitos humanos(ponto 7) entrosa-se com o estímulo à criação de núcleos municipais de defesa da cidadania (ponto 111).

O apoio ao estabelecimento de plantões permanentes do Poder Judiciário e do Ministério Público e da Procuradoria de Assistência Judiciária (ponto 114) vem logo antes do reconhecimento da importância do debate sobre a reorganização do Poder Judiciário, para melhor atender às demandas da população(ponto 115).

Fica esta agenda moldada nas recomendações do Programa Estadual de Direitos Humanos. Que melhor forma de compatibilizar os elementos do tema, que usar os critérios que a sociedade aspira sejam usados, já que os elegeu como legítimos e necessários?

Quase em conclusão

Os grandes temas que exigem discussão por um Fórum que pretende projetar seus efeitos para o século XXI, a partir da agenda fixada pela sociedade paulista podem ser assim resumidos:

EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA (trabalhar práticas democráticas, formar os agentes do Estado para agirem de acordo com os conceitos fixados pela Constituição Federal, investir em pesquisa como controle de políticas públicas e formação de indicadores; combater o desperdício.)

PARTICIPAÇÃO POLÍTICA (dar nova cara do Estado, com integração das diversas instâncias de poder em face das grandes questões, incentivar novas formas de agir com a sociedade; evitar superposição de ações)

ACESSO À JUSTIÇA E COMBATE À IMPUNIDADE (discussão dentro do Estado, integrada por meios tecnológicos avançados, identificando os avanços possíveis, através de alteração da lei de organização judiciária, leis de procedimentos como possibilitado pela Constituição

ESTABELECIMENTO DE MECANISMOS DE SOLUÇÃO PACÍFICA DE CONFLITOS (irradiar a metodologia dos Centros de Integração da Cidadania por toda a Capital e pelos municípios médios e grandes; incentivar a criação de tribunais arbitrais)

MUNICIPALIZAÇÃO DO DEBATE SOBRE CIDADANIA (criar Comissões de Direitos Humanos em todas as Câmaras Municipais, incentivar a elaboração de programas municipais de direitos humanos e cidadania; trabalhar localmente a questão da educação pela democracia, da igualdade e do combate à discriminação; )

GERAÇÃO DAS LEIS NECESSÁRIAS AO APOIO À CIDADANIA (estabelecer e incentivar as leis reclamadas pelo PEDH, como nova lei de terras, a regulação dos Centro de Integração da Cidadania, entre outros pontos)

Modernidade e igualdade (a título de conclusão)

Isto nos conduz ao fim desta exposição. Ao dualismo final de todos os propostos. A tecnologia e os direitos humanos. A modernidade e a igualdade. A modernidade que nos trouxe a integração globalizada da economia, dos costumes, a modernidade que nos traz a comunicação instantânea, com qualquer parte, que a cada dia traz mais novidades instigantes, com técnicas de produção que levam a produzir mais, melhor e em menos espaço, não inventou o fim da fome ou o fim da ignorância e da violência.

A igualdade surge como a ótica dos direitos humanos, como um viés ético, para enxergar e temperar a aparentemente "desideologizada" modernidade. A forma de solução achada para essa equação: modernidade- igualdade, nos antecipará o futuro que teremos.

Depende de nós adotarmos ou não a agenda que conduz a uma nova forma de ver o Estado e suas relações com a sociedade, acreditando nos direitos humanos e na participação popular como um instrumento de modernizar essas relações. A cada passo, deve-se perguntar, com pertinácia budista, eu diria: Isto que nós fizemos fortaleceu o processo democrático? Em caso negativo, não hesitemos em recomeçar. Falar em crise (krisis), lembra o seu sentido etimológico, de momento de decisão. É, assim, num exercício de otimismo racional, consciente, sinto que nós decidimos firme e definitivamente pela paz, não a ausência de guerra ou a calma dos cemitérios, mas a que seja, no dizer de Espinosa, a virtude originada na força d’alma no respeito às leis.

A paz não como fuga da morte, mas desejo de vida. Marilena Chauí ( Sobre o Medo), com base ainda em Espinosa, fornece a conclusão:

"A coragem da sociedade será sempre medida por sua esperança de cidadania. Ciência alguma garantirá por antecipação a derrota do medo. A luta aqui, passional, é combate entre duas paixões em tudo contrárias: fuga da morte e desejo de vida. Só depois que as paixões tiverem decidido o porvir, saberemos, se tristemente, morreremos de medo e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas, ou se veredas se abrirão para as alamedas da razão, da liberdade e da felicidade."

* Belisário dos Santos Jr.,(belisariosantos@hotmail.com), advogado em São Paulo, membro da Comissão Justiça e Paz/SP e de organismos internacionais de promoção dos direitos humanos, foi Secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, desde janeiro de 1995 até julho de 2000.

 

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