Documentos
que comprovam que o exército brasileiro vinha usando contra os
movimentos sociais práticas semelhantes – rede de informantes e
espionagem – às aplicadas nos tempos da ditadura para reprimir
os opositores do regime militar foram descobertos no Município de
Marabá, no interior do Pará. O governo, no entanto, conseguiu
reaver os documentos, impedindo a continuidade da investigação.
O Movimento Tortura Nunca Mais, de Pernambuco, imediatamente
iniciou uma corrente de repúdio. Nesta entrevista, a presidente
da entidade, Amparo Araújo, analisa a permanência de métodos
adversos ao regime democrático e manifesta sua preocupação com
o respeito à cidadania e aos direitos humanos pelas próximas
gerações.
Rets - Recentemente
foram descobertos, na região do Araguaia, documentos oficiais do
exército brasileiro que revelam que as mesmas práticas aplicadas
nos tempos da ditadura vêm sendo utilizadas contra os movimentos
sociais organizados. No entanto, a Advocacia Geral da União
conseguiu uma liminar que determinou a devolução dos documentos
ao Serviço de Inteligência do Exército. Como foram localizados
esses documentos e que medidas estão sendo tomadas para impedir
que as investigações sejam interrompidas?
Amparo Araújo - Esse
material foi descoberto pela imprensa. Foram jornalistas que
colheram esses documentos e os divulgaram. O que nós procuramos
fazer de imediato foi enviar uma carta ao presidente da República
solicitando que tudo seja apurado e reiterando nossa posição
radicalmente contrária a esses métodos. E também fizemos um
apelo para que mensagens de repúdio sejam enviadas às
autoridades.
Rets - A que se pode
atribuir a permanência dessas práticas, tanto tempo depois do
fim dos "anos de chumbo"?
Amparo Araújo - Um dos
fatores é a falta de controle social em relação aos órgãos de
segurança, além de uma democracia não consolidada e uma população
que não tem condições de exercer sua cidadania plenamente.
Tivemos uma transição política que não mexeu nas estruturas
das instituições do sistema de justiça e segurança, nem das
forças armadas. É o que Paulo Sérgio Pinheiro* chama de
entulho autoritário. O Brasil passou para uma democracia e os órgãos
de segurança não entenderam que devem estar a serviço do cidadão
e não do Estado – como ocorria na ditadura –, até porque não
houve o mínimo interesse político ou social de provocar a mudança
de mentalidade e de atuação.
Rets - A sociedade
brasileira ainda pode ter a perspectiva real de que os crimes
cometidos durante a ditadura sejam esclarecidos, os corpos das vítimas
sejam localizados e os culpados sejam punidos?
Amparo Araújo - Não é
possível saber até que ponto isso interessa à sociedade
brasileira. A população talvez não tenha a compreensão da
importância do resgate histórico para uma nação. Seria
complicado afirmar isso sem uma pesquisa de opinião, mas o que
tem sido demonstrado ao longo de todos esses anos depois da
anistia é que essa é uma luta – e um interesse – restrita
aos familiares de mortos e desaparecidos políticos. Acredito
na perspectiva do esclarecimento dos crimes e da localização dos
corpos, apesar de todas as dificuldades de encontrar pessoas que
estiveram envolvidas com o aparelho de repressão dispostas a
falar, como também da falta de vontade política de todos os
governos civis até hoje. Mas a perspectiva de punição está
descartada. Avalio que, se a transição política tivesse sido
realizada de outra forma, sem concessões, nossa realidade seria
outra. Mas hoje, tanto tempo depois do que aconteceu, apesar de
serem considerados crimes contra a humanidade, não há condições
nem espaço para esse tipo de discussão. Só se houvesse uma
mobilização social muito forte, o que não acredito que irá
acontecer. Até porque não temos uma cultura de luta pelos
direitos civis em épocas de democracia tão forte como acontece
no Chile ou na Argentina. Muitas pessoas nem sabem o que aconteceu
durante a ditadura militar.
Rets - De modo geral,
como as autoridades têm se comportado? Existe interesse em
esclarecer esses episódios?
Amparo Araújo - Não.
Depois do primeiro presidente civil, eleito por voto indireto, até
1995 nada havia sido feito. E não por falta de luta dos
familiares de mortos e desaparecidos políticos. Os encontros com
os ministros da Justiça de cada novo governo não davam resultado
algum. A questão dos mortos e desaparecidos era ignorada ou
encarada como revanchismo. Em 1995, durante uma coletiva nos
Estados Unidos, depois de ser pressionado por uma jornalista que
teve um irmão desaparecido e pelo secretário geral da Anistia
Internacional, o presidente FHC designou o chefe de gabinete do
ministério da Justiça, na época o José Gregori, para fazer uma
lei para resolver a questão. Foi então criada a Lei nº 9140,
que reconheceu 136 desaparecidos, concedeu atestados de óbito,
estabeleceu indenizações e a criação de uma comissão especial
para investigar e apreciar pedidos dos familiares. Uma das grandes
vitórias do trabalho da comissão foi de colocar por terra várias
versões oficiais – de resistência à prisão, tiroteio,
atropelamento, suicídio – de mortes de militantes, como de
Lamarca e Marighella. Mas de lá para cá nada mais foi feito. E a
principal reivindicação dos familiares, que é o esclarecimento
das mortes, a partir da abertura dos arquivos das forças armadas,
e a localização e identificação das ossadas, não foi
atendida.
Rets - Em maio, pela
primeira vez na história, o Brasil foi chamado ao Comitê contra
a Tortura da ONU, em Genebra, para debater o problema da violência
e da tortura. O que resultou dessa reunião?
Amparo Araújo - Resultou um
conjunto de recomendações que a ONU fez para o combate à
tortura no país. O relatório do Sir Nigel Rodley e as recomendações
do comitê podem ser encontradas na página do Centro
de Justiça Global . Entre as recomendações mais importantes
estão investigações imparciais, sob o controle do Ministério Público,
para denúncias de tortura; medidas para regular e
institucionalizar os direitos das vítimas de tortura; proibição
do uso de provas obtidas sob tortura etc. O que é importante
lembrar é que o Brasil ratificou a Convenção contra a Tortura
em 1989 e deveria ter enviado relatórios em 1990, 1994 e 1998,
mas só fez o primeiro relatório em 2000. E que, apesar de ter a
pena de tortura proibida desde a constituição de 1988, apenas em
1997 – depois do episódio da Favela Naval** –
sancionou a Lei nº 9455, que tipifica o crime de tortura.
Enquanto não havia lei que regulamentasse esse crime,
torturadores eram condenados por lesão corporal – quando eram
condenados.
Rets - O Tortura Nunca
Mais nasceu como um contraponto à repressão política. Com o
retorno ao processo democrático, que atividades vem desenvolvendo
a entidade e quais as maiores preocupações em sua atuação?
Amparo Araújo - A gente
trabalha com capacitação profissional e cultural de jovens.
Nosso maior programa é de prevenção à violência em escolas públicas
de 14 cidades da região metropolitana do Recife, em trabalho
conjunto com as Secretarias Municipais de Educação.
Desenvolvemos também um projeto que levou computadores para uma
aldeia de índios xukuru em Pesqueira, no Agreste pernambucano.
Hoje temos 13 computadores em rede. Fazemos ainda capacitação de
policiais e guardas municipais. Nós atuamos de forma integrada
com a Rede Brasileira de Educação e Direitos Humanos e a Fundação
Pauline Reichstul, com espaços comuns compartilhados e administração
conjunta. Graças a um convênio com a Faculdade de História de
Nazaré da Mata, contamos com a colaboração de quatro estagiários
que cuidam da nossa documentação. Nossa principal preocupação
é com o resgate histórico e com o respeito aos direitos humanos.
Fazemos um trabalho sistemático de divulgação da lei contra a
tortura e do que fazer em situações em que as pessoas estão
presas e sob ameaça. Há uma preocupação com a formação das
novas gerações, para que o país tenha um povo que exerça sua
cidadania, tenha acesso aos seus direitos, respeite a diversidade
e os direitos humanos e reconheça a necessidade e a importância
da democracia e do estado de direito.