Anistia: um sonho vivido!
Depoimento de Maria Amélia de Almeida
Teles
Amelinha Teles
Na década de 70, quando começamos
a discutir a anistia, eu já era, de certa forma comprometida com
essa bandeira.
Desde que saí da prisão
(12/10/1973), pensava que a única forma de tirar todos (as)
os(as) presos(as) daquela situação era través de um trabalho
político como parte da Anistia. Não que eu fosse uma pessoa
iluminada, mas a organização política da qual eu fazia parte,
apontava em todos os documentos sobre conjuntura nacional, três
bandeiras de luta: fim dos atos de exceção, anistia e
constituinte livre e soberana. Só que a idéia da anistia que eu
tinha era bem outra… Ela viria com a derrubada da ditadura.
Coisa aliás que nós nunca assistimos no Brasil. A coisa aqui se
deu de maneira lenta e gradual. E sempre mais lenta do que
gradual!
Na minha vida o político e o
pessoal sempre se misturaram. Eu nunca tive uma atuação
inteiramente política ou inteiramente pessoal. O hibridismo fez
parte da minha vida. E cada amigo, amiga, que perdi, ou que ganhei
nesta luta política, fazem parte da minha família. Aliás, a
mistura era tão grande que até mesmo os policiais se confundiam.
Em 1975, eu retomei a minha
condição de familiar de preso político. Meu companheiro, César
Augusto Teles, fora condenado e estava cumprindo pena no Presídio
Romão Gomes, Barro Branco, São Paulo .
Eu atuava junto com mulheres
militantes, ex-presas políticas ou não, que falavam em
feminismo, sexualidade, igualdade de direitos, assuntos que
fizeram e fazem parte do meu trabalho político.
Trabalhava e tinha colegas que me
davam muita esperança, torciam por nossa causa. Nossa diretora
era alemã e judia. Era uma refugiada do nazismo. Era totalmente
solidária à nossa causa. Quando eu estava para ser admitida no
trabalho, um agente do DOPS foi até lá e disse para ela que não
me contratasse, que eu era envolvida com subversão. Ela indagou
se eu estava sendo procurada pela polícia. Ele disse que não:
"ela está aguardando julgamento na Auditoria Militar".
Aí, a diretora respondeu: "Então, enquanto ela aguarda o
julgamento, ela deverá trabalhar, não? Vou contratá-la…".
Eu trabalhava muito. Tinha meus
dois filhos, meu sobrinho e minha irmã, além do marido preso.
Todos dependiam do meu salário. Minha irmã trabalhava como
atendente de enfermagem à noite e ganhava um pouco mais que um
salário mínimo. Às vezes morávamos juntas, às vezes,
separadas. Mas sempre nos encontrávamos para falar dos nosso
afetos e desafetos, dos prazeres e das mágoas, das nossas
amizades, do nosso trabalho e das coisas da ditadura, que fazia
tanto mal a tanta gente…
Nunca faltaram apoio e
solidariedade de amigos e amigas como a Rioko, a Betinha, a Erica,
a Jô, o Zé Pereira, a Elza, a Marli e tantos outros(as). Como
eles nos ajudavam? Deixavam roupas, livros e cadernos para a
escola dos meninos, sacola com verduras, legumes e frutas. Eles
passavam lá em casa. Não achavam ninguém, deixavam a sacola
cheia na porta.
No final do dia, às vezes passava
no escritório da Rosinha (minha querida advogada, Dra. Rosa
Cardoso) para saber das notícias do meu processo e ela me
entregava um envelope cheio de dinheiro que ela dizia que uma
pessoas anônima havia deixado para mim. Ela não podia revelar o
nome: era segredo profissional. Nunca fiquei sabendo quem foi a
pessoa ou as pessoas que me deram dinheiro. A Rosinha pedia
encarecidamente que eu aceitasse, porque a pessoa tinha dado de
coração.
Nunca enfrentei a solidão. Sempre
me apareceu alguém para me dizer: "Coragem! Não desanime…Um
dia tudo isso será história, vamos dar a volta por cima…"
Eu trabalhava tanto que tinha dia
que, ao voltar à noite, pensava assim: "eu podia desmaiar
neste ônibus e ter alguém para me levar no colo até em casa e
me colocar na cama…" Mas, em seguida, meu pensamento era
interrompido: "se tiver algum cara da repressão por aqui e
se aproveitar do meu desmaio para me prender, me torturar e me
separar dos meus filhos?". Eu começava a ter medo.
Chegava em casa e encontrava meus
filhos sonolentos, me esperando para me dar um beijo e irem para a
cama. Era sempre uma alegria. Eu os via crescendo, contando o que
tinham feito na escola e me sentia feliz.
No meio disso tudo, às vezes eu me
perguntava: "a anistia é mesmo uma bandeira vitoriosa de
luta ou é apenas um sonho, uma maneira da gente alimentar nossa
alma?"
Em 1964,quando tinha 19 anos de
idade, fui indiciada em Inquérito Policial Militar (IPM)
instaurado para apurar supostas "atividades subversivas no
meio estudantil secundarista de Belo Horizonte/MG". No
relatório do encarregado do IPM - Tenente-Coronel Grossi - datado
de 05/06/1964, eu que era professora do Grupo Escolar da
Mannesmann, era tida como perigosa por ser freqüentadora de
reuniões e conferências de pessoas e grupos comunistas na sede
de um jornal em Belo Horizonte. Segundo o relatório, eu teria
cometido "crime de natureza militar definido nos artigos 9º
e 10º da Lei nº 1.802/53 (antiga Lei de Segurança Nacional) e
artigo 258 do Código Penal Militar".
Meu pai, Jofre de Almeida, era
ferroviário e se encontrava preso desde os primeiros dias de
abril e, até aquele momento, "desaparecido". Só fomos
tomar conhecimento do seu paradeiro nos idos do mês de agosto/64.
Já naquela época meu companheiro,
que também tinha 19 anos, e minha irmã, com 17 anos,
encontravam-se também indiciados por motivos semelhantes.
Naqueles anos de 64, eu gostava de
passear pela Serra do Curral que hoje se encontra destruída por
causa do excelente minério, uma puríssima hematita.
A vida continuou e a luta também.
Só que na clandestinidade: mudando sempre de bairro, de cidade,
porque a perseguição não parava. Até que um dia (28/12/72)
caí presa pelo DOI-CODI do II Exército (Operação
Bandeirantes). Caí presa juntamente com minha família, marido,
filhos e minha irmã grávida e um amigo dirigente comunista que
foi torturado até a morte (Carlos Nicolau Danielli). Desta vez
meu pai se encontrava foragido. Mais uma vez fui indiciada,
julgada e condenada.
Fiz parte da Comissão de
Familiares de Presos Políticos (1975, 76, 77). Em 1964 eu fizera
parte da Comissão dos Familiares dos Presos Políticos da
Penitenciária de Neves (MG).
Quando clandestina, trabalhava na
imprensa do Partido. Na legalidade, fui trabalhar em dois jornais:
Movimento e Brasil Mulher.
Na luta pela Anistia tive uma
atuação polivalente. Discutia com os presos políticos, onde
havia um setor significativo que era contrário a esta bandeira.
Não aceitavam a Anistia mesmo sendo qualificada como ampla, geral
e irrestrita. Eles achavam que a anistia era pedir perdão e eles
não aceitavam a idéia. Afinal eles não tinham cometido crimes.
Era o Estado que havia cometido crime contra o povo brasileiro.
Eu argumentava que a anistia
significava um passo fundamental para a democracia. Assim
poderíamos conquistar liberdades políticas, etc. Mas minha
conversa não entusiasmava muito esses presos. Minhas idéias eram
muito conciliadoras.
No trabalho com as mulheres, muitas
vezes aparecia o medo de defender a anistia por causa da
repressão. Outras vezes, aparecia um certo desprezo. Afinal a
bandeira da Anistia era geral e não específica. No bairro de
periferia onde morávamos, a Anistia significava defender
bandidos.
Os mais entusiastas eram mesmo os
estudantes e alguns advogados. Os primeiros viam nesta bandeira
uma possibilidade de retomar, nas ruas, o movimento estudantil,
que estava bastante acuado. Houve momentos em que os estudantes
tomaram a iniciativa de fazer a defesa da Anistia na USP e os
familiares de presos políticos foram desautorizados pelos
próprios presos políticos de se manifestarem de maneira
favorável à essa bandeira.
Talvez os anos de 1975 a 1977
tenham sido os mais difíceis para convencer aqueles que deveriam
ser os mais beneficiados com a conquista da Anistia.
Os policiais procuravam nos
intimidar onde estivéssemos, seja na OAB, na Igreja ou na
Universidade. Eu cheguei a ouvir um desses policiais comentando
com um colega sobre nossa participação na luta pela Anistia:
"se elas quiseram falar de feminismo, vá lá...Mas libertar
terrorista isto não vai dar mesmo"(se não e engano, esses
policiais se encontravam num Congresso de Advogados na OAB/SP, em
novembro de 1975).
Para mim e para minha família, a
anistia significou a alegria de poder ficarmos juntos com aqueles
que sobreviveram; o direito de manifestar nossa saudade, o direito
de termos sentimentos, de chorar nossas perdas e de reencontrar
pessoas queridas
Os momentos mais significativos
foram muitos!
Alguns foram tristes como o de
reencontrar companheiros e companheiras em situação de muita
pobreza, distantes da vida política, sem saber o que tinha
acontecido em nosso país, pois faziam muitos anos que se
encontravam clandestinos. Era como se eles fosses nossos
antepassados.
A localização, a exumação e o
traslado dos ossos de Carlos Nicolau Danielli, que havia sido
preso, torturado e assassinado na OBAN, de cujo assassinato fomos
testemunhas e de quem éramos amigos. Felizmente depois desse ato
de sepultamento pude dormir tranqüila. O que não acontecia
antes, tinha um sono agitado e muitas vezes eu tinha pesadelos
onde ele aparecia todo ensangüentado como eu o vi quando estava
sendo torturado na OBAN.
A triste certeza de que nunca mais
veria. alguns companheiros e algumas companheiras.
A tristeza de ver que minha irmã
nunca foi anistiada por ter sido guerrilheira do Araguaia. É como
se tivessem roubado uma parte da vida dela.
A alegria de ter sido anistiada
juntamente com o meu companheiro e meu pai. Meu nome saiu nos
jornais no dia 30/08/1979.
A anistia possibilitou a
renovação dos quadros políticos.
A grandeza da participação das
mulheres que recuperaram a história.
*Amelinha Telles, professora,
ex-presa política, integrante da União de Mulheres de SP.
Atualmente é assessora da Comissão de Direitos Humanos da
Câmara dos Vereadores de São Paulo.
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