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Bioética, Biodireito e Direitos Humanos

Vicente de Paulo Barretto


Sumário

1. Para além do direito natural

2. A face oculta do direito cosmopolita

3. Velhos temas , novas perplexidades

4. Origens e evolução temática da bioética

5. Os princípios da bioética

6. A agenda temática da bioética

7. Duas respostas aos temas da bioética

8. Da bioética aos direitos humanos

 

 


1. Para além do direito natural

A idéia de um direito com valor universal constituiu uma das características comuns do pensamento filosófico, político e jurídico da modernidade, tendo sido formulada por pensadores que se diferenciavam em suas posições doutrinárias, mas que compartilharam a mesma intenção de procurar estabelecer como fundamento da ordem jurídica positiva um direito encontrado na natureza do homem e da sociedade. A escola jusnaturalista moderna terminou por ser um referencial obrigatório no pensamento filosófico e jurídico dos últimos três séculos, ainda que não se possa estabelecer um mesmo eixo temático entre os seus representantes, que além de sustentarem a existência de um direito natural, pouco se assemelharam na abordagem dos problemas filosóficos, políticos e jurídicos. As diferentes concepções do direito e do Estado, desenvolvidas nas obras de autores como Hobbes, Puffendorf, Thomasius, Locke, Rousseau e outros, têm, no entanto, um mesmo princípio básico, qual seja a da existência de uma lei natural e de um direito natural, fundamentos da sociedade, do Estado e do direito. No final do século XVIII, foi essa idéia comum que serviu como argumento ideológico para as declarações de direitos da Revolução Norte-Americana de 1776 e da Revolução Francesa de 1789, fontes primárias das modernas garantias da pessoa humana nos textos constitucionais do estado liberal. Esse direito natural exerceu o papel de fonte legitimadora das primeiras constituições escritas, que vieram assegurar do ponto de vista constitucional a passagem do absolutismo para o estado de direito

Entre os filósofos que investigaram a possibilidade de uma ordem jurídica fundada em valores universais, diferencia-se, entretanto, Immanuel Kant, que ao refletir sobre o tema abandona a tradição jusnaturalista moderna e procura estabelecer, em torno da idéia do direito cosmopolita, uma resposta diferenciada para a mesma investigação intelectual comum aos pensadores jusnaturalistas. Em dois textos clássicos, Kant trata do tema o que permite a constatação de que, preliminarmente, o direito cosmopolita kantiano diferencia-se da hipótese do direito natural dos jusnaturalistas, e, também, e principalmente, serve como pista teórica, na modernidade, para que se possa situar criticamente a questão da fundamentação ética do direito e do Estado. Escolhemos para examinar a possibilidade da fundamentação ética da ordem jurídica, as relações estabelecidas entre os valores morais e a pesquisa e tecnologia biológicas, que se formalizam juridicamente na nova área do direito, o biodireito. Procuramos determinar até que ponto os valores éticos podem constituir-se em categorias racionalizadoras e legitimadoras dessa nova ordem jurídica. Para isto, privilegiamos o exame dos princípios da bioética, que, como veremos a seguir, surgiram para estabelecer parâmetros éticos para as pesquisas e tecnologias, e que terminaram por receber sua formalização, mais universal, sob a forma de direitos humanos ( Declaração Universal sobre o Genoma e os Direitos Humanos, UNESCO, 1997).

 O processo de transição das categorias éticas para a norma jurídica, corre o risco, no entanto, de transformar-se em dogmatismo moral, sendo necessário, para que isto não ocorra, o emprego de uma idéia que forneça as estruturas racionais necessárias para explicar e fundamentar o biodireito. Essa idéia é a do direito cosmopolita.


2. A face oculta do direito cosmopolita


O conceito de direito cosmopolita, proposto por Kant, refere-se, principalmente, ao entendimento de que a evolução histórica, e com ela as luzes da razão, iriam encontrar ou formular normas com fundamentação ética, que poderiam ser consideradas como uma forma de direito. De um direito moral, certamente, pois não se identificaria com normas positivadas, mas que se imporia pela força da sua própria racionalidade. A racionalidade como categoria universal, comum a todos os seres humanos, serviria na concepção kantiana, de instrumento para a determinação de valores livremente aceitos por todos os homens, independentemente de cultura, etnia ou religião. Essa característica do direito cosmopolita permite que se tenha uma leitura propriamente moral dos direitos humanos, podendo-se mesmo entender essa categoria de direitos como uma manifestação de valores éticos no sistema jurídico. Os direitos humanos tornam-se, assim, e principalmente, uma forma de moralidade, que tem a ver com uma determinada concepção ética da pessoa humana, da sociedade e do Estado. Parece-nos que a hipótese dos direitos humanos, como categoria ética, torna-se bastante plausível, quando analisamos os argumentos kantianos, sobre o direito cosmopolita e a melhor forma de governo, argumentos esses que poderão fornecer uma fundamentação racional aos direitos com pretensão de validade universal.

Na Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita (1986), Kant identifica na história da humanidade "a realização de um plano oculto da natureza para estabelecer uma constituição política perfeita internamente - e para este propósito também externamente - como sendo o único estado no qual todas as capacidades naturais da humanidade podem ser plenamente desenvolvidas" ( Proposição 8). O cerne da questão encontra-se na referência a uma "constituição politicamente perfeita", onde torna-se claro que estamos tratando com critérios que se encontram fora do próprio texto constitucional. A idéia de uma ordem normativa é referida, ainda que implicitamente, a valores a serem aplicados também externamente, ultrapassando, assim, as limitações do direito nacional e situando as suas normas numa dimensão universal. Kant, entretanto, no texto citado, não desenvolve em toda a sua extensão a idéia do direito cosmopolita, restringindo-se a constatar que esse tipo de direito é condição para o pleno desenvolvimento da humanidade. Por outro lado, a idéia de que a evolução da humanidade tem como referencial o aperfeiçoamento moral, encontra-se subtendida na proposição de que existirá um estado social e político onde essas virtualidades humanas encontrarão campo propício para que se realizem e, por essa razão, a ordem social e política será "politicamente perfeita". No pensamento de Kant, essa ordem social e política identifica-se com o governo republicano, em oposição ao despotismo.

No Projeto para uma paz perpétua ( 1970), Kant afirma que "os povos da terra participam em graus diferentes de uma comunidade universal, que se desenvolveu a ponto de que a violação de um direito numa parte do mundo, repercute em todos os lugares" ( 2a. secção, 3º art. definitivo). O direito cosmopolita consiste, portanto, no tipo de norma que ultrapassa as comunidades nacionais e identifica-se como sendo a norma de uma comunidade planetária. Por essa razão, continua Kant, em todos os lugares da terra reage-se de forma idêntica à violação do direito cosmopolita, sendo este direito "um complemento necessário do código não escrito, tanto do direito civil, como do direito das gentes, em vista do direito público dos homens em geral" ( ib.). Para Kant, a paz perpétua sòmente poderá ser atingida na medida em que entre os povos esse direito cosmopolita seja respeitado. O conceito de direito cosmopolita, no pensamento kantiano, será a explicitação da "idéia racional de uma comunidade geral, pacífica, quase mesmo amigável, de todos os povos da terra" (Kant, 1971). O direito é entendido, portanto, como o instrumento de uma forma de organização entre os povos baseada na racionalidade e, em função dela, justificando-se e legitimando-se. Na medida em que se organiza como fruto dessa racionalidade, a ordem jurídica irá refletir valores nascidos dessa própria racionalidade, necessariamente universal, e reguladora da autonomia individual.
Temos, assim, as condições de plausibilidade racional que permitem justificar direitos universais e que, em conseqüência, podem assegurar direitos subjetivos consagrados no direito positivo nacional. Os fundamentos dos direitos humanos, como manifestação de universalidade jurídica, supõem que se encontrem justificativas, que sejam universais para a aceitação desses direitos. Essa universalidade não será dada pela simples afirmação discursiva de direitos considerados, por si mesmos, como identificados com a natureza humana, como pretendiam os teóricos do jusnaturalismo moderno. Isto porque essa natureza humana apresenta-se de forma múltipla e variada, organizando-se em função de diferentes valores morais e normas jurídicas positivas. Trata-se, portanto, de discutir a possibilidade racional de se encontrar uma fonte comum e universalizadora de direitos. Uma primeira, e mais simples resposta, poderia ser aquela dada por alguns filósofos e juristas contemporâneos, que sustentam serem os direitos humanos aqueles proclamados e reconhecidos nas declarações relativas aos direitos humanos das Nações Unidas e incorporados aos direitos nacionais pelas respectivas constituições. A Declaração Universal dos Direitos do Homem representaria , no dizer desses autores, " a manifestação única através da qual um sistema de valores pode ser considerado humanamente fundado e, portanto, reconhecido: e essa prova é o consenso geral acerca de sua validade" ( Bobbio, 1992: 26 ). O filósofo italiano restringe os direitos humanos aos que são reconhecidos pela vontade soberana dos estados nacionais e com isto supõe que a universalidade desses direitos será, necessariamente, mitigada e relativa, pois dependerá das circunstancias e da vontade política mutável de diferentes estados. No entanto, faz referência, também, a um "consenso universal" como condição para a sua validade, que nos remete para um conceito - o de "consenso universal"- que acaba não sendo definido. Torna-se, então, tema prioritário de uma investigação, que pretenda concluir pela plausibilidade universal, porque antes racional, dos direitos humanos, encontrar evidencias empíricas que forneçam dados que possam constituir objeto de uma teoria. Essa teoria, entretanto, estará preocupada em retirar dos fenômenos sociais, os elementos necessários para que se possa compreender em que medida as raízes dos direitos humanos encontram-se mais no campo da racionalidade e da moralidade do que no espaço da vontade do estado soberano.

Desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, pelas Nações Unidas, houve uma tendência a definir-se, progressivamente, os direitos humanos em função das realidades sociais, econômicas e políticas. Os dois importantes documentos que complementam a declaração de 1948 - o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (!966) e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos ( 1966) - consagraram o entendimento de que os direitos humanos referem-se não somente à liberdade dos indivíduos, mas a uma gama de fatores que são determinantes na realização do indivíduo como pessoa humana. Coincidindo com a democratização do estado liberal clássico, principalmente, no correr do século XX, o conceito de direitos humanos alargou-se, incorporando outros direitos, além do direito à liberdade e suas formas, que têm a ver com a necessária correção das desigualdades sociais, econômicas e culturais encontradas na sociedade. De qualquer forma, esses direitos passaram a constituir condição mesma para que os direitos humanos clássicos fossem respeitados em toda a sua plenitude. Em alguns estados, no entanto, esses direitos, chamados de segunda geração foram privilegiados em relação aos de primeira geração, havendo mesmo o sacrifício de algumas liberdades em nome do respeito aos direitos sociais. A interpretação não-universal da natureza desses direitos evidenciou dúvidas e questionamentos em diferentes estados ( como, por exemplo, a China e os países islâmicos)* sobre a universalidade dos direitos humanos e o processo comum a ser adotado para a sua garantia. Essas conceituações e interpretações conflitantes demonstraram como faltam argumentos universais, que estabeleçam os fundamentos éticos, universais e legitimadores dessa categoria de direitos e, como tal, garantam a sua eficácia.

A falta dessas justificativas racionais, entretanto, não significou que o tema da ética estivesse para sempre sepultado na cultura e no pensamento social. Permaneceu subjacente na cultura cívica ocidental, como um conjunto de valores que se encontravam esquecidos, face ao avanço do positivismo e do cientificismo, nos últimos duzentos anos, mas que serviram como referência obrigatória na luta contra despotismos e tiranias. A experiência totalitária, em suas duas versões, durante o século XX, as duas guerras mundiais, as atrocidades cometidas no campo de batalha e os bárbaros experimentos genéticos, levados a efeito pelos médicos nazistas em campos de concentração, fizeram com que se acordasse para uma empiria que situava a questão moral de maneira contundente e em estado puro. A história mostrava, assim, como o direito e suas pretensões normativas não atendera às necessidades mínimas de proteção da pessoa humana, o que obrigou a que se recorresse às fontes legitimadoras do direito. A recuperação do tema clássico das relações da moral com o direito, renasceu, então, como meio de explicar e superar o impasse moral em que se encontrava mergulhada a consciência do homem ocidental. Nesse contexto de crise ética e da necessária restauração de parâmetros metalegais, as indagações suscitadas pelo passado recente e pelo avanço das pesquisas biológicas e suas aplicações tecnológicas do presente fizeram com que se procurasse estabelecer no campo da biologia, princípios destinados a garantir a humanização do progresso científico. Num primeiro momento, fixaram-se princípios de caráter moral abstrato, para logo em seguida, mesmo quando a questão ética não estava amadurecida, serem formuladas normas jurídicas, relativas às pesquisas e tecnologias biológicas. Restou, entretanto, um espaço vazio entre a formulação ética e a normatização jurídica, o que obrigou à retomada do debate clássico sobre a possibilidade da construção de normas jurídicas, que pudessem refletir valores éticos. Essa linha de investigação permite que se utilize a idéia do direito cosmopolita como estrutura racional dentro da qual possam racionalmente justificar-se os valores, discutidos em função dos avanços das ciências biológicas, e em que medida poderão constituir-se nos fundamentos da ordem normativa do biodireito. Isto por que, é na idéia do direito cosmopolita que poderemos encontrar os fundamentos racionais, e, portanto, éticos, de normas que se pretendem universais, válidas e legítimas em todos os quadrantes do planeta. A Declaração Universal sobre o Genoma e os Direitos Humanos procura preencher esse vazio, sendo mais uma etapa no processo de inserção de valores morais na construção de uma ordem jurídica, pois estabelece princípios bioéticos e normas de biodireito, às quais aderiram os estados, e que servirão como patamar ético-jurídico da pesquisa e da tecnologia da biologia contemporânea.


3. Velhos temas , novas perplexidades

A bioética é um ramo da ética filosófica, fruto de um tempo, de uma cultura e de uma civilização. Quando falamos em bioética estamos tratando de uma área de conhecimento, nascida há sòmente cerca de meio século, ainda que alguns de seus temas centrais - a saúde, a vida e a morte - tenham a ver com as origens da reflexão filosófica e da medicina na cultura do Ocidente. O juramento hipocrático, na Grécia Antiga, foi a primeira formulação de um sistema normativo, no qual se reconhecia a relação necessária entre a prática da medicina, e a conseqüente busca da cura das doenças, com o respeito aos valores da pessoa humana. Desde o século V a. C., a prática médica teve um referencial ético, que se constituiu na base dos modernos códigos de ética profissional, o corpus da deontologia médica. A medicina, portanto, mesmo quando, ainda no tempo de Hipócrates, lutava para ver reconhecida o seu status científico, ao rejeitar as explicações "sobrenaturais" para as doenças, tinha presente a dimensão moral do ser humano. O termo "deontologia" ou "ciência do dever", entretanto, somente veio a ser cunhado pelo filósofo inglês Jeremy Bentham, em 1834, quando tornou sinônimas a ética, ou o conhecimento científico sobre a moralidade, e a ciência do que é necessário ser feito; Deontology or the Science of Morality, como intitula-se o livro do filósofo inglês, pretendia, precisamente, criar uma nova área da filosofia, que deveria tratar da ciência ou teoria (logos) do que é necessário ser feito (do grego deon). O termo deixou de ter suas características filosóficas ao ser aplicado, extensivamente, durante o século XIX, para significar os códigos de ética profissionais, que não são produtos de uma reflexão ético-filosófica.
O paradigma ético-profissional da medicina, estabelecido na Grécia Antiga, daria sinais de esgotamento normativo durante a segunda metade do século XX, no quadro do chamado "vazio ético", em que mergulhou a civilização tecnocientífica da modernidade. A diversidade dos problemas morais, que atingiu o seu paroxismo na própria negação da existência de qualquer valor ético universal entre os homens, surgiu em todos os aspectos da civilização tecnocientífica, mas encontrou nas indagações suscitadas pela bioética campo fértil, onde a empíria exigia de forma urgente, e mais do que em outras áreas do conhecimento, a reflexão ética. Para que se possam entender os problemas e as perspectivas da bioética contemporânea, torna-se necessário, preliminarmente, estabelecer-se as relações entre a crise cultural dessa forma civilizatória e a conscientização moral crescente da sociedade, que encontra na bioética uma de suas principais manifestações. Nesse sentido é que se pode afirmar ser a bioética o mais no novo ramo da filosofia moral, por ter surgido da necessidade de se estabelecer princípios racionais que explicassem e fundamentassem o comportamento do homem face a novos conhecimentos e tecnologias. E somente poderia ter ganho corpo científico no quadro de uma específica cultura e civilização, pois a bioética extravasou da análise medico-paciente e atingiu todo o contexto que envolve os problemas da vida, da saúde, da morte e das tecnologias a elas relativas.
O fenômeno cultural e de civilização, denominado de tecnociência, ocorreu de modo progressivo a partir do século XVII, quando se processou uma radical mudança no paradigma do conhecimento humano, provocada pelo advento da ciência galileiana da natureza. O novo tipo de conhecimento consagrou os modelos operativos, tanto teóricos, quanto técnicos, fazendo com que houvesse "uma perfeita homologia na ordem do conhecer e do fazer, entre o ser humano e o mundo por êle transformado" (Lima Vaz, 1998: 32). A tecno-civilização modificou, portanto, não sòmente a forma do conhecimento humano, mas também o próprio estatuto natural da situação do homem no mundo ou, como dizem os filósofos, do nosso ser-no-mundo. O homem deixa de ser um agente, exclusivamente, voltado para dominar e controlar o mundo que o cerca, passando a receber desse domínio uma influência reflexa, que irá alterar o próprio estatuto da sua humanidade. Por essa razão, alguns filósofos contemporâneos (Jonas, 1995 e 1998; Hottois, 1993: 11 e segs.) procuram demonstrar que a ética contemporânea exige uma fundamentação, que não se esvai na prática de tal ou qual virtude ou na observação de tal regra. No contexto dessa civilização tecnocientífica é que se afirma ser a bioética o campo próprio para repensar a ética, pois o material de reflexão do novo ramo da filosofia moral trata com o nascimento de uma nova humanidade e de uma nova natureza. A interferência do homem no mundo que o cerca modifica não somente o mundo, mas o próprio homem, que se vê diante de possibilidades até então desconhecidas, como são as advindas dos novos conhecimentos proporcionados pelas ciências biológicas; são conhecimentos que não se restringem à explicação do mundo natural, mas que apontam para mudanças no próprio ser humano.

O desenvolvimento das ciências e das técnicas, nos dois últimos séculos, trouxe consigo desafios, que têm a ver com o surgimento de novos tipos de relações sociais no quadro cultural da tecno-civilização. O renascimento do debate ético em todos os domínios da atividade humana talvez encontre a sua explicação final na necessidade da consciência do homem contemporâneo em situar-se face ao fato de que, o paradigma científico domina cada vez mais as forças da natureza e, ao mesmo tempo, interfere de forma crescente no mundo natural, suscitando problemas que não encontram respostas no quadro da própria cultura tecnocientífica, onde surgiram e desenvolveram-se. A principal dessas intervenções é a que ocorre no corpo das ciências biológicas, onde o homem, ao ampliar o seu domínio sobre a natureza, intervém na sua própria condição natural de pessoa e possibilita a implantação de tecnologias sem previsão quanto às suas conseqüências. Por lidar com esse novo tipo de conhecimento, o homem contemporâneo interroga-se de forma crescente sobre as dimensões, as repercussões e as perspectivas das novas descobertas científicas e de suas aplicações tecnológicas.

A bioética nasce, assim, como uma resposta a desafios encontrados no corpo de uma cultura, de um paradigma do conhecimento humano e de uma civilização. Antes de tudo, é a expressão teórica da consciência moral de um novo tipo de homem no seio de uma nova cultura e civilização. Distingue-se, portanto, de uma ética estritamente profissional, pois trata da análise teórica das condições de possibilidade dos valores, normas e princípios, que procuram ordenar o avanço científico e tecnológico. O progresso científico, por outro lado, em virtude de suas aplicações tecnológicas, não se processa de forma neutra, mas, no campo da engenharia genética, envolve uma rede imensa de interesses econômicos que acabam por questionar os próprios fundamentos da tradição ética ocidental. Médicos e pacientes, empresas de seguro de saúde, grandes indústrias farmacêuticas, disputas na comunidade cientifica por recursos cada vez mais vultosos para a pesquisa, investimentos públicos e privados na aplicação dos produtos resultantes das pesquisas, tudo contribui para que os princípios reguladores da medicina tradicional tornem-se insuficientes para regular as relações sociais, econômicas e políticas nascidas na civilização tecnocientífica. A chamada crise ética refere-se, precisamente, ao conflito entre aquela tradição e os valores da cultura da tecno-civilização, que servem como alicerces para a construção de novas, imprevisíveis e descontroladas relações sociais e econômicas.


4. Origens e evolução temática da bioética

No contexto da tecnociência, o conflito referido assumiu peculiar intensidade no âmbito da biologia contemporânea, principalmente nas suas mais avançadas realizações, que se encontram no campo da engenharia genética. O progresso científico e suas aplicações tecnológicas provocaram o surgimento de um complexo e intricado conjunto de relações sociais e jurídicas, que envolve valores religiosos, culturais e políticos diferenciados e, também, a construção de poderosos interesses econômicos que se refletem na formulação de políticas públicas. As questões éticas suscitadas pela ciência biológica contemporânea tratam, assim, das interrogações feitas pela consciência do indivíduo diante dos novos conhecimentos, e, também, como esses conhecimentos materializados em tecnologias estão repercutindo na sociedade. Vemos, então, como a complexidade das relações estabelecidas em virtude da nova ciência e tecnologias no campo da engenharia genética, fazem com que a bioética e o biodireito, não possam ficar prisioneiros da teorização abstrata ou do voluntarismo legislativo, pois ambos são chamados a responder à indagações práticas e imediatas, que nascem de relações sociais, econômicas, políticas e culturais características da civilização atual.

Esse conjunto de relações pode ser analisado, do ponto de vista ético, sob aspectos distintos: em primeiro lugar, considerando que o mais novo ramo da filosofia moral - a bioética - constituí uma fonte e parâmetro de referência, tanto para o cientista, como para o cidadão comum. Em segundo lugar, procurando-se estabelecer quais os princípios racionais, que fundamentam a bioética e como podem servir de parâmetros éticos na formulação de políticas públicas, que encontrarão nas normas jurídicas a sua formalização final. E, finalmente, como o biodireito, conjunto de normas jurídicas destinadas a disciplinar essas relações, deverá encontrar justificativas racionais que o legitimem. Encontramo-nos, assim, diante do problema nuclear do pensamento social, qual seja, o da convivência de duas ordens normativas - a moral e o direito - diferenciadas entre si, mas que mantêm um caráter de complementaridade, que impeça, parafraseando Kant, o vazio da bioética sem o biodireito e a cegueira do biodireito sem a bioética.*
O termo bioética foi proposto, pela primeira vez, no início da década dos setenta, pelo cancerologista Potter Van Rensselaer. O precursor do uso do termo empregou-o em sentido bastante diferenciado daquele que encontramos na atualidade. Potter considerava que o objetivo da disciplina deveria ser o de ajudar a humanidade a racionalizar o processo da evolução biológico-cultural; tinha, portanto, um objetivo moral-pedagógico . Andre Hellegers, fisiologista holandês e fundador do The Joseph and Rose Kennedy Institute for the Study of Human Reproduction and Bioethics, passou a empregar a palavra em sentido mais amplo, relacionando-a com a ética da medicina e das ciências biológicas. Ambos os precursores no emprego da palavra, procuraram soluções normativas para problemas que, desde o início da década dos cinqüenta, inquietava os meios científicos. Tratava-se de avaliar as conseqüências dos rápidos avanços nas ciências biológicas e controlar, ou humanizar, os seus efeitos. Tentavam os iniciadores da bioética fazer com que a própria comunidade científica definisse princípios éticos, inibidores da síndrome de Frankstein, que rondava a ciência biológica desde os experimentos dos médicos nazistas.

O nascimento da bioética ocorreu, assim, em contexto histórico e social específico (Parizeau, 1996), correspondendo ao momento de crise da ética médica tradicional, restrita à normatização do exercício profissional da medicina, que não conseguia responder aos desafios morais encontrados no contexto da ciência biológica contemporânea. A primeira contestação aos padrões tradicionalmente utilizados pela corporação médica nas suas relações com os pacientes, e que revelou a insuficiência dos cânones da deontologia médica clássica, surgiu, entretanto, no bojo de um movimento social mais abrangente, onde a autoridade médica foi questionada, como as demais autoridades constituídas, como sendo representante do status quo do Estado liberal e da maquinária burocrática, montada para atender às políticas do bem-estar social dessa forma de organização estatal. Essas reivindicações, que caracterizaram o movimento social nos anos de 1960, foram expressas por algumas bandeiras: questionou-se a legitimidade das instituições, do Estado e da religião, o que provocou mutações profundas na vida privada dos indivíduos e na vida pública; no campo das ciências humanas e da vida ocorreram profundas mudanças em virtude de novos conhecimentos, novas tecnologias genéticas e da consagração de novos valores: fecundação in vitro, transplantes de orgãos, aperfeiçoamento das técnicas de enxertos, descriminalização do suicídio, do aborto, do homossexualismo, a legalização do divórcio, a questão do transexualismo, o emprego generalizado de métodos anticoncepcionais, a desinstitucionalização das instituições psiquiátricas, todos são temas que se incorporaram à cultura contemporânea através de acirrados debates científicos e morais, envolvendo universidades, pesquisadores, igrejas, partidos políticos, imprensa, organizações sociais e profissionais.

Nesse quadro de profundas modificações culturais, as relações médico-paciente foram denunciadas como sendo mais uma forma de paternalismo, entre as muitas encobertas pela sociedade liberal, a ser substituída por uma relação transparente e responsável. Os imensos progressos das ciências biológicas provocaram, entretanto, uma atitude ambivalente em relação ao modelo tecnocientífico vigente da medicina, responsável, aliás, pelos progressos alcançados no combate às doenças e endemias. A bioética surgiu como resposta ao conflito entre a ética médica deontológica, restrita à corporação médica, e as reivindicações de transparência e responsabilidade pública, levantadas pelo movimento social, que reconhecia, entretanto, as conquistas fundamentais realizadas pelas ciências biológicas. Vemos então, como nas suas origens, a bioética, e o biodireito, logo em seguida, iriam ter que conviver com essas duas dimensões: de um lado, a crítica às práticas éticas da medicina tradicional, consideradas inaptas para lidar com o novo mundo da biologia e tecnologias genéticas; de outro lado, a necessidade de apoio e incentivo às pesquisas que traziam avanços consideráveis na luta contra as doenças e epidemias.

A bioética trouxe do nascedouro algumas características, tornando-se evidente que as pesquisas da ciência biológica ampliavam os seus horizontes, deixando o campo restrito da busca da cura e desdobrando-se em temas, como as novas formas de procriação, a eutanásia, a clonagem e as políticas públicas relacionadas com esses temas. O campo de conhecimento da bioética exigiu, assim, a incorporação à temática original de outras áreas científicas. Por essa razão, a bioética contemporânea tornou-se, necessariamente, um conhecimento interdisciplinar, pois ela é parte, mas, na realidade, ultrapassa a ética médica, restrita às relações médico-paciente. Isto por que trata de investigações que envolvem a vida humana na perspectiva terapêutica e também de pesquisas puras, que podem ou não levar à aplicações práticas. Esse conhecimento, portanto, não se esgota na reflexão sobre as novas terapias, mas desdobra-se acompanhando as múltiplas aplicações tecnológicas, que irão envolver outras áreas de conhecimento sobre o homem e a sociedade. Por essas razões, a bioética tem uma dupla face, pois ela é um discurso e uma prática, materializando-se não na teoria acadêmica, mas na prática dos hospitais, nos comitês de bioética e na formulação de políticas públicas. Esse duplo aspecto da bioética é que a torna um ramo da filosofia moral, comprometida com um tipo de conhecimento voltado para a prática.

A análise filosófica da bioética, que irá possibilitar o estabelecimento dos parâmetros racionais, éticos e universais do biodireito, pode ser desenvolvida em duas dimensões:

a) trata-se, no primeiro nível, de desenvolver os argumentos racionais, que possam fundamentar e explicar os valores e princípios envolvidos. A bioética, sob esse aspecto, situa-se num nível meta-deontológico e analítico. Pretende-se, portanto, menos tomar posição, e em conseqüência expressar uma verdade canônica, e mais descobrir os argumentos contraditórios ou tautológicos encontrados no discurso bioético;

b) no segundo nível, a bioética procura explicitar recomendações objetivas, que contribuam para solucionar problemas específicos e circunscritos. Encontram-se nesse caso pareceres dos filósofos morais sobre problemas de política pública ou decisões judiciais, como, por exemplo, os pareceres do grupo de filósofos morais norte-americanos, que, como amicus curiae, ajudaram à Côrte Suprema dos Estados Unidos a decidir sobre a eutanásia. *
A bioética, portanto, não pretende constituir-se no corpo de uma moralidade canônica, estabelecida por uma autoridade religiosa ou política, que impõe a sua concepção moral própria, pois a sociedade pluralista em que vivemos não comporta uma mesma resposta para os problemas morais, mas múltiplas interpretações de diferentes códigos morais, pertencentes a diversas comunidades. A bioética é, assim, considerada como sendo necessariamente plural, e pode ser caracterizada "como uma lógica do pluralismo, como um instrumento para a negociação pacífica das instituições morais" (Engelhardt, 1991:19 ). Para a realização da negociação pacífica, peculiar ao argumento ético, supõe-se que seja possível determinar um princípio de universalidade, como raiz da vida moral e jurídica.

O mais novo ramo da filosofia moral poderá definir, assim, não um código de normas substantivas, que sirva de guia para as políticas públicas de saúde e de pesquisa biológica, mas sim analisar as condições racionais para a existência de argumentos, fundadores de princípios, que serão materializados através da ordem jurídica, e visem resguardar a pessoa humana e os seus descendentes. Os problemas bioéticos referem-se em sua amplitude às condições de conservação e melhoria da própria condição humana, que se expressam no estado da saúde de cada pessoa, reflexo não sòmente de condições físicas ou psíquicas do indivíduo, mas, também, de políticas públicas e da prática da medicina (Gadamer, 1996). Nesse sentido, a bioética insere-se na tradição da ética prática, analisando do ponto de vista ético a prática da medicina e, também, os fundamentos e objetivos das políticas públicas de saúde.

Os propósitos da bioética são necessariamente limitados, tendo em vista a situação social contemporânea, na qual ocorre uma descontinuidade entre a racionalidade e a moralidade. A principal razão para essa ruptura intelectual, advém do fato de que presenciamos uma anemia crescente no debate público sobre a natureza e a função da moralidade. Construímos e convivemos com diferentes justificativas morais, que não mais fazem referência a um Deus unificador, gênese do que é certo e do que é errado, do bom e do mal, fonte durante séculos da moralidade. A necessidade da bioética na contemporaneidade - como, aliás, da filosofia moral de um modo geral - prende-se ao fato de que o modelo de sociedade individualista e socialmente atomizada dos tempos atuais, encontra-se questionada em seus fundamentos pelo próprio relativismo moral, que dela tomou conta. A fome pela ética no nosso tempo, principalmente levando-se em consideração as interrogações morais provocadas pelas ciências biológicas e tecnologias médicas, expressa o entendimento essencial do ser humano de que, para além das convicções individuais, encontra-se a necessidade de se estabelecer um balanceamento entre os custos e os benefícios do mais ambicioso projeto da pós-modernidade: adiar a morte ( Engelhardt: 1996: 14).

UERJ/UGF
http://www.fdir.uerj.br/publicacoes/publicacoes/vicente_barreto/vb_8.html
 
"Lo que hace un hombre es como si lo hicieran todos los hombres. Por eso no es injusto que una desobediencia en un jardin contamine al género humano..."Jorge Luis Borges, Ficciones.

Existe, portanto, uma tensão permanente entre os valores morais e os cânones éticos encontrados na sociedade pluralista da modernidade. A própria natureza humana é concebida de forma diversa pelas diferentes tradições culturais e religiosas. Dentro da tradição judáico-cristã, por exemplo, encontramos posições divergentes diante de uma mesma situação fatual, obrigando o médico a agir de uma ou de outra forma. Por outro lado, os regimes democráticos contemporâneos romperam as muralhas institucionais protetoras de segredos, tornando-se cada vez mais reduzido o número de fatos protegidos sob o manto dos arcana imperii, permitindo-se um contrôle mais efetivo pela sociedade civil dos rumos das pesquisas e experiências científicas. A mentalidade dos cientistas, é certo, encontra dificuldades em lidar com essa nova realidade político-institucional, caracterizada por uma consciência crescente da comunidade na defesa de valores e direitos considerados essenciais para a pessoa humana. O professor Robert Edwards, que, com Patrick Steptoe, iniciou a técnica da fertilização in vitro, em discurso pronunciado, em 1987, advertia para essa deficiência na formação dos cientistas: "os cientistas são notoriamente desprovidos de ética se comparados à população em geral. Muitos deles não se interessam em participar desses debates sequer em seu próprio campo de trabalho, a menos que as circunstâncias sociais os empurrem literalmente para a discussão ética. A maioria dos cientistas nunca teve uma formação ética e enfrenta consideráveis dificuldades, quando obrigada a expressar seus próprios princípios éticos em relação à sua disciplina" (Wilkie, 1994: 19).


5. Os princípios da bioética

Desde os seus primórdios, imaginou-se a bioética como uma fonte de normas, regras gerais e princípios, cujo objetivo principal seria o de disciplinar eticamente o trabalho de investigação científica e de aplicação dos seus resultados, protegendo a biologia da ameaça de deshumanização. A própria comunidade científica despertou para essa necessidade, fazendo com que os princípios da bioética constituíssem, nas suas primeiras formulações, uma espécie de código de ética profissional para cientistas e pesquisadores. A partir do início da década dos cinqüenta, a rapidez e sofisticação das novas descobertas biológicas, suscitaram indagações morais, que procuraram resposta na formulação de princípios éticos, que em sua origem, pretendiam regular a pesquisa e a engenharia genéticas, consideradas, em muitos aspectos, como uma ameaça à inviolabilidade da pessoa humana. Mas os princípios pretendiam, também, exercer o papel de fonte de obrigações e direitos morais, constituindo-se em principia (Engelhardt, 1996: 103), que expressavam raízes da vida moral, sendo suas determinações obrigatórias por si mesmas.

Os avanços do conhecimento científico, no contexto de desconhecimento objetivo sobre os resultados da aplicação das tecnologias e, também, de uma certa paranóia nascida, mais do culto da ficção científica do que propriamente da ciência, provocaram uma proliferação de regras bioéticas ou deontológicas de caráter geral, cuja fundamentação encontram-se nos princípios da bioética.. Os antecedentes normativos do biodireito, mais éticos do que jurídicos, representaram sòmente a primeira resposta para que pudesse ser preenchido o vazio normativo, ocasionado pela incapacidade da ordem jurídica vigente de lidar com as novas descobertas e suas aplicações, consideradas como ameaças, quando não reais, imaginadas, para a sobrevivência da humanidade. O vazio normativo tornou-se mais evidente com a insuficiência da deontologia médica clássica em lidar com as novas descobertas e as exigências sociais de transparência e publicidade na pesquisa e na prática médica, fazendo com que as questões morais suscitadas procurassem socorrer-se de princípios, que, teoricamente, deveriam pautar eticamente o desenvolvimento da investigação científica e suas aplicações práticas. Os princípios em sua generalidade, no entanto, não corresponderam às expectativas de regulação e, por essa razão, legislou-se sobre a pesquisa e as tecnologias de forma impulsiva, procurando-se resolver situações pontuais e não estabelecer normas jurídicas gerais.
Os fantasmas que rondaram as descobertas da biologia contemporânea tinham, entretanto, uma certa materialidade, pois o progresso biológico trouxe consigo a lembrança dos experimentos nazistas, o que justificou a proclamação das normas do Código de Nuremberg, em 1947. Essa foi a primeira tentativa de distinguir entre pesquisas clínicas e não clínicas, quando se recomendou a formação de comitês destinados a regular o processo de obtenção do consentimento e do tipo de informação dada aos doentes, que fossem objeto das pesquisas. O movimento dos comitês de ética expandiu-se, principalmente, em hospitais universitários, sendo formado, originalmente, por médicos; em pouco tempo, surgiram os comitês nacionais de bioética, que a partir dos anos sessenta foram criados nos Estado Unidos, na Grã-Bretanha, na Suécia, na Austrália e em outros países, com a função de atuarem como instâncias nacionais para o contrôle do desenvolvimento da pesquisa e da tecnologia biológicas. Normas internacionais terminaram por consagrar a temática da bioética como tema planetário, procurando envolver em suas determinações inclusive aqueles países onde não se tinham ainda estabelecidos os comitês nacionais de bioética.

Os chamados princípios da bioética foram formulados, pela primeira vez, em 1978, quando a "Comissão norte-americana para a proteção da pessoa humana na pesquisa biomédica e comportamental", apresentou no final dos seus trabalhos o chamado Relatório Belmont; este texto respondia àquelas exigências, acima referidas, vindas da comunidade científica e da sociedade no sentido de que se fixassem princípios éticos a serem obedecidos no desenvolvimento das pesquisas e que deveriam ser considerados quando da aplicação de recursos públicos nessas atividades científicas. O Relatório Belmont estabeleceu os três princípios fundamentais da bioética, em torno dos quais toda a evolução posterior dessa nova área do conhecimento filosófico iria desenvolver-se: o princípio da beneficência, o princípio da autonomia e o princípio da justiça, chamado por alguns autores de princípio da equidade (Lepargneur, 1996: 133). As normas biojurídicas, promulgadas, desde então, em países pioneiros na legislação do biodireito, como a Grã-Bretanha, Austrália e França, tiveram como referencial último esses princípios estabelecidos pelo Relatório Belmont. O exame desses princípios permite que se tenha uma idéia, no entanto, de suas limitações como princípios fundadores de uma ética e de um biodireito na sociedade pluralista e democrática.

O princípio da beneficência deita suas raízes no reconhecimento do valor moral do outro, considerando-se que maximizar o bem do outro, supõe diminuir o mal; o princípio da autonomia estabelece a ligação com o valor mais abrangente da dignidade da pessoa humana, representando a afirmação moral de que a liberdade de cada ser humano deve ser resguardada; o princípio da justiça ou da equidade estabelece, por fim, que a norma reguladora deve procurar corrigir, tendo em vista o corpo-objeto do agente moral, a determinação estrita do texto legal. Verificamos que os três princípios correspondem a momentos e perspectivas subsequentes na evolução da bioética, e em conseqüência do biodireito: o momento e a perspectiva do médico em relação ao paciente; o momento e a perspectiva do paciente que se autonomiza em relação à vontade do médico; e, finalmente, o momento e a perspectiva da saúde do indivíduo na sua dimensão política e social.

Alguns problemas de ordem racional surgem, entretanto, na análise da formulação e aplicação desses princípios. O estabelecimento de princípios, expressando raízes da vida moral, como quer Engelhardt (1996: 103), significa que irão formular uma determinação que, em última análise, torna-se canônica - pois quem irá definir em cada caso qual o "verdadeiro" significado de cada um deles -, e com isto terminam por negar o princípio racional básico de que as leis morais resultariam de uma ampla argumentação pública entre pessoas autônomas. A aplicação dos princípios, por sua vez, leva à situações conflitantes, entre si, a partir da constatação de que tomados, separadamente, cada um deles pode ser considerado como superior ao outro. Logo, logicamente, a sua aplicação não pode ser feita de maneira conjunta e não diferenciada, pois implicaria num processo de paralisação mútua do processo decisório.

A própria origem de cada um dos princípios da bioética mostra, em sua formulação restrita, que não atendem às demandas da ordem normativa, moral e jurídica de uma sociedade pluralista e democrática. As condições mínimas para a construção de qualquer sistema normativo - i.e., ordem e unidade - supõem a coexistência de princípios, que sejam complementares e não, como é o caso dos princípios da bioética, princípios que partem de pressupostos e cujos objetivos são mutuamente excludentes. O princípio da beneficência tem suas origens na mais antiga tradição da medicina ocidental, na qual o médico deve visar antes de tudo o bem do paciente - definido pelas luzes da ciência , sendo que o principal desses bens é a vida; logo, o compromisso maior do médico é o de envidar todos os esforços e empregar todos os meios técnicos tornados viáveis pela ciência e pela tecnologia para manter vivo o paciente, mesmo contra a vontade deste último. O princípio da autonomia, por sua vez, surge dentro da tradição liberal do pensamento político e jurídico, que por sua vez deita suas raízes no pensamento kantiano; o indivíduo, dentro da concepção liberal, é um sujeito de direitos, que garantem o exercício de sua autonomia, sendo que como paciente deve, também, ter aqueles direitos, que o situam como pessoa e membro de uma comunidade, advindo dessa constatação, o direito do paciente decidir, como sujeito de direito, na relação médico-paciente. O princípio da justiça recebe a sua primeira formulação no bojo da crise do estado liberal clássico, quando o processo de democratização dessa forma de organização política passa a considerar a sociedade e o Estado como tendo a obrigação de garantir a todos os cidadãos o direito à saúde; essa obrigação torna o Estado e a sociedade agentes e responsáveis na promoção da saúde do indivíduo, achando-se estabelecida na Constituição brasileira de 1998, nos seguintes termos: "a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação" ( art. 196). Torna-se, assim, evidente que a aplicação literal dos três princípios da bioética de modo mecânico, sem que sejam discutidos os seus fundamentos éticos, podem tornar-se conflitivos, contraditórios e auto-excludentes.
Em cada princípio, privilegia-se um elemento diferente, sendo que a prática deformada de cada um desses princípios provoca situações sociais injustas. Assim, o princípio da beneficência pode facilmente transmutar-se em paternalismo médico, tendo sido contra esta característica da prática médica dos últimos cem anos, que se manifestou o movimento social dos anos sessenta. O princípio da autonomia, por sua vez, pode instaurar o reino da anarquia nas relações entre médico e paciente, isto acontecendo, quando a liberdade individual passa a representar o escudo atrás do qual o paciente impede que o médico exerça a sua função. O princípio da justiça, por fim, corre o risco de transformar-se na sua própria caricatura nas mãos da burocracia estatal, sob a forma de paternalismo e clientelismo político. O que se encontra por detrás da aplicação mecânica desses princípios, como se fosse possível a sua aplicação conjunta, é a tentativa de justificar-se a hegemonia de uma das três dimensões da saúde na sociedade contemporânea, o paciente, o médico e a sociedade. Os três princípios sòmente adquirem sentido lógico se forem considerados como referentes a cada um dos agentes envolvidos: a autonomia, referida ao indivíduo, a beneficência ao médico e a justiça à sociedade e ao Estado. A aplicação isolada de cada um desses princípios, no entanto, terminará por consagrar as situações sociais injustas a que fizemos referência. Torna-se, então, necessário procurar um modelo que não permita a hegemonia de um princípio sobre os dois outros, mas que assegure a justificação, a integração e a interpretação dos três princípios. Em outras palavras, como fazer com que a autonomia seja preservada, a solidariedade garantida e a justiça promovida.


6. A agenda temática da bioética

A aplicação desses princípios tem sido realizada em contextos específicos, o que possibilita a elaboração de uma agenda temática da bioética da qual poderemos remontar e procurar solucionar o problema da contradição, considerando-se que quando nos referimos a princípios, estamos fazendo referência a parâmetros, que mesmo sendo auto-excludentes, referem-se a determinados temas. Na bioética, esses princípios têm por objeto material o processo de avaliação ética da pesquisa e das tecnologias da biologia e da medicina contemporânea. Os parâmetros, no entanto, exigem para a sua materialização, uma contextualização temática, que delimite o universo próprio onde deverão ser aplicados. Parizeau (1996) sistematizou a temática do discurso da bioética nos seguintes itens:

a) a relação médico-paciente, em grande parte contemplada nos códigos de ética médica;
b) o problema da regulamentação das experiências e pesquisas com os seres humanos;
c) a análise do ponto de vista ético das técnicas concernentes à procriação e à morte tranqüila ou eutanásia;
d) a análise ética das intervenções sobre o corpo humano (transplantes de órgãos e tecidos, medicina esportiva e transexualismo);
e) a análise ética das intervenções sobre o patrimônio genético da pessoa humana;
f) a análise ética das repercussões do emprego das técnicas de manipulação da personalidade e intervenção sobre o cérebro ( psicocirurgia e contrôle comportamental da psiquiatria);
g) a avaliação ética das técnicas genéticas e suas repercussões no mundo animal.

Vemos como a temática cobre uma ampla gama de questões que se iniciam no âmbito exclusivo do indivíduo e sua saúde e termina nos debates sobre as repercussões sociais de decisões, também de caráter individual ( como aquelas que envolvem os transexuais). Ressente-se, entretanto, essa agenda temática daqueles problemas, a que faz referência Hans-Georg Gadamer, que são os problemas relativos à saúde como bem do indivíduo e bem da coletividade. Somente nos últimos anos, a bioética começou a considerar, além da análise das decisões que envolvem a escolha do tipo de pesquisas a serem financiadas com recursos públicos, o problema relativo às políticas públicas de saúde e previdência, que testam o princípio de justiça e o princípio da autonomia. A análise dos escolhas morais, que se encontram subentendidas na definição de políticas públicas é um tema, que por si mesmo, exige um tratamento teórico à parte, pois encontram-se, também, nesse terreno, dados empíricos necessários para a avaliação das possibilidades dos princípios da bioética.

7. Duas respostas aos temas da bioética

As questões políticas referentes à bioética foram respondidas de forma diversas pelas duas grandes linhas do pensamento contemporâneo: liberais e conservadores. Para que se possa, de uma forma geral, verificar onde se encontram as diferenças entre os dois grandes grupos doutrinários do cenário político da modernidade, torna-se necessário situar as políticas advogadas, por ambas as correntes do pensamento social, no quadro de três perguntas básicas, cujas respostas servem para diferenciar os pensadores liberais dos pensadores conservadores ( Fagot-Largeault, 1996: 33 e segs.). Essas perguntas representam o cerne da indagação bioética contemporânea e em função delas encontramos, grosso modo, respostas que têm a ver com a concepção do homem e da sociedade, como foram formuladas pelo pensamento social.

As perguntas que constituem o cerne da temática política da bioética são as seguintes:
a) o que é necessário evitar?
b) o que é necessário promover e apoiar?
c) qual o estatuto do corpo humano?
As respostas às três questões acima referidas traçaram o quadro teórico dentro do qual desenvolveu-se o debate sobre a bioética nos tempos atuais, quadro este que deverá informar ou complementar o trabalho do legislador e do julgador. À primeira pergunta, os conservadores responderam com a afirmação de que não se encontra em discussão a liberdade dos indivíduos, mas sim os problemas individuais e sociais, provocados pelas novas tecnologias, ainda não devidamente controladas e conhecidas em suas conseqüências pelo homem. Sustentam os conservadores que, no caso de dúvida, deve-se paralisar as experiências e transferir para especialistas bem intencionados a decisão e o contrôle final do processo científico e tecnológico.

Os liberais, por sua vez, respondem colocando em situação privilegiada o indivíduo, acima de considerações de caráter público ou social. Considerado como agente moral, cuja a liberdade constitui a sua dimensão principal, o indivíduo é o senhor absoluto dos seus destinos, não devendo sujeitar-se às imposições dos detentores do conhecimento ou do poder público; trata-se, portanto, para os liberais, de evitar qualquer restrição ao exercício pleno da liberdade individual. Em torno da idéia de pessoa e de liberdade, a boa doutrina liberal ( Engelhardt, ob.cit.) sustenta que, por tratar-se da pessoa humana, e em função dela, é que se deverão aplicar os princípios da bioética; e da pessoa humana que vive numa sociedade democrática e pluralista, significando, assim, que os princípios da bioética supõem a existência de uma sociedade liberal. Essa objetivação dos princípios da bioética, para Engelhardt, sòmente pode ocorrer na sociedade plural, estruturada através de uma ordem política liberal, sendo essa a razão pela qual, em seu pensamento, o princípio da autonomia torna-se hegemônico em relação aos dois outros princípios da bioética. A solução política liberal deixa, então, para o indivíduo, através de seus representantes políticos, a tarefa de avaliar o progresso da ciência e da tecnologia, cujo ritmo e objetivos deverão estar sujeitos ao contrôle da sociedade civil.
A segunda questão de caráter geral que se coloca para a bioética - o que se deve fazer -, também, é respondida de forma diversa pelas duas correntes de pensamento. O pensamento liberal sustenta que se deve promover a tolerância e assegurar a resolução pacífica dos conflitos. Os conservadores consideram, por outro lado, que se torna necessário aprofundar os debates sobre as descobertas e tecnologias da genética, antes que a ciência humana aventure-se por campos do conhecimento ainda pouco conhecidos; esses debates devem obedecer a uma estratégia política de dissuasão, através do medo, a chamada "heurística do medo" ( Hottois, 1993:23). Assim, na concepção conservadora seria exorcizada a compulsão tecnicista da contemporaneidade, que, ao ver de importantes críticos da modernidade, transformou o homem de sujeito em objeto da técnica.
Tanto liberais, como conservadores, entendem o estatuto do corpo do indivíduo de forma diferente, sendo que esse entendimento resulta de uma concepção, também diversa, da natureza ontológica do ser humano. Para os conservadores, o homem estrutura-se em função de uma unidade orgânica, na qual a liberdade constitui a espinha dorsal, essencial para o equilíbrio e aperfeiçoamento da pessoa humana. Por essa razão, a natureza biológica do ser humano é facilmente atingida pelas temidas agressões tecnológicas, cujas conseqüências acabam atentando contra a própria natureza humana. Sustentam os conservadores ser necessário suspender essas experiências, que resultam em violações desse espaço primitivo de liberdade natural, para que se possa recuperar a unidade natural do indivíduo. Os liberais respondem à questão sobre o estatuto do ser humano relacionando-o com uma das formas naturais que garantem o exercício da liberdade; na verdade, os liberais, pelas próprias caraterísticas do seu pensamento, não têm uma concepção unificada do ser humano, a não ser a remissão à liberdade.

As diferentes respostas, dadas por liberais e conservadores, permitem determinar qual o entendimento do homem e da sociedade, que se encontra subjacente em cada uma das posições e quais as conseqüências para o mundo da nova biologia. A posição conservadora parte da suposição de que as aplicações dos novos conhecimentos, principalmente genéticos, devem ser encarados com cautela. Não se encontrando no contexto das biotecnologias parâmetros seguros, que possam servir de referência para pesquisas, ainda embrionárias, deve-se procurar preservar a todo o custo a esfera da pessoa, considerada como um todo orgânico. Propõem os conservadores, o estabelecimento de uma moratória nessas pesquisas, impedindo-se, assim, que a natureza humana seja desnaturada (Jonas, 1980:141 e segs.). Essa moratória serviria, portanto, para resguardar a pessoa humana de tecnologias que poderão ou não modificar a própria natureza humana, pois, sustentam os conservadores, ninguém conhece com precisão os resultados e as repercussões, principalmente, da engenharia genética. O temor de um progresso científico e tecnológico, que se desenvolvia em ritmo acelerado, a partir de 1950, fez mesmo com que o argumento contrário ao prosseguimento das pesquisas fosse aceito pela comunidade científica, durante a reunião de Asilomar, em 1974, quando cientistas concordaram em estabelecer uma moratória nas pesquisas sobre a recombinação artificial com vistas à transferência de material genético para uma célula receptora. Em 1975, ainda em Asilomar, a moratória foi suspensa, retomando-se as pesquisas. Constatamos, assim, como para o pensamento conservador o importante, tendo em vista a imprevisibilidade do novo mundo que se vai abrindo para o conhecimento humano, é evitar o risco tecnológico, ainda que custe novos avanços na ciência.

A posição liberal sustenta não ser possível determinar uma definição do bom e do mal de forma abstrata e com expressão universal. Em conseqüência, o importante nas questões da bioética, como em todos os demais problemas sociais, consistirá na preservação da liberdade de escolha e do debate público, permitindo-se que cada indivíduo e comunidade estabeleçam seus próprios padrões de contrôle (Charlesworth, 1993: 10 e segs.). Os liberais consideram mesmo que esta não é uma questão essencial, pois cada sociedade, em princípio, deve determinar os seus próprios parâmetros normativos, seja do ponto de vista moral, seja sob o aspecto jurídico.


8. Da bioética aos direitos humanos

A bioética, portanto, não se identifica com a "ética" médica, como esta foi entendida durante séculos, nem se constitui em um corpus de princípios, interpretados de forma uniforme, por diferentes correntes do pensamento social; trata-se de uma área de conhecimento, cujas raízes encontram-se nos dados fornecidos pelas ciências biológicas, que fornecem o material empírico necessário para a reflexão propriamente filosófica. Desde a definição de Potter, que pretendia construir um projeto para garantir a humanização das ciências biológicas com vistas à melhoria da qualidade de vida, o conceito sofreu profundas modificações. A evolução da bioética processou-se em função da necessidade de pensar-se o avanço científico, levando-se em conta como a intervenção do homem na natureza exige a construção de uma ética filosófica, que possa ter a pretensão de universalidade, mas que responda às ameaças reais ou imaginadas à humanidade, conseqüência de novas descobertas e tecnologias; essa evolução caminhou, também, no sentido da construção de um discurso ético, dentro do qual possam encaminhar-se, e achar solução, os conflitos que ocorrem em virtude das novas relações sociais e econômicas, nascidas dessas descobertas e até então desconhecidas pelo ser humano.
Na atualidade, o campo da bioética extrapola do âmbito restrito das ciências da saúde e apresenta uma dupla face. De um lado, incorpora as novas formas da responsabilidade, principalmente a responsabilidade com as gerações futuras, como foram vistas por Hans Jonas; mas também aceita a idéia kantiana do respeito à pessoa e do respeito ao conhecimento. A bioética surge, assim, como o mais novo e complexo ramo da ética filosófica, pois trata da responsabilidade em relação à humanidade do futuro e, ao mesmo tempo, considera a pessoa humana como detentora de direitos inalienáveis. Contribuem, assim, para estabelecer os seus fundamentos duas linhas do pensamento contemporâneo: a primeira, peculiar à tradição liberal, onde se proclamam e afirmam os direitos da pessoa humana, como limites à ação do Estado e dos demais indivíduos; a segunda, socorre-se de uma nova linha do pensamento filosófico, originária da primeira, mas que passa a pensar a ação do indivíduo, não somente no quadro de suas conseqüências imediatas, mas principalmente em função de suas repercussões futuras. Trata-se, portanto, de construir uma ética que irá materializar-se em novas responsabilidades.

Dentre os diferentes objetos da regulação jurídica, o problema nodal do direito - a questão da responsabilidade -, por exemplo, deverá sofrer uma profunda reavaliação, quando lida sob essa perspectiva ética, pois irá ultrapassar a concepção restrita e ineficiente da responsabilidade civil e penal do direito liberal. Nesse sentido, torna-se necessário abandonar o conceito de uma responsabilidade jurídica, comprometida em determinar uma compensação ex post facto, e procurar construir uma nova responsabilidade, a ser formalizada juridicamente, fundada no conceito mais abrangente de responsabilidade moral. Nas palavras de Hans Jonas, a civilização tecnocientífica, que tem na engenharia genética uma de suas mais importantes realizações, encontra-se eticamente à deriva, sendo que a sobrevivência do ser humano depende da construção de uma nova ética. Essa "ética do futuro", escreve Jonas, "não designa a ética no futuro - uma ética futura concebida na atualidade para os nossos descendentes futuros -, mas sim uma ética da atualidade que se preocupa com o futuro e pretende protege-lo, para os nossos descendentes, das conseqüências de nossa ação presente" ( Jonas, 1998: 69). Essa responsabilidade moral, núcleo da ética do futuro, não é, portanto, a responsabilidade civil clássica, determinada pelo cálculo do que foi feito, mas pela "determinação daquilo que se irá fazer; um conceito em virtude do qual eu me sinto responsável, portanto, não em primeiro lugar por meu comportamento e suas conseqüências, mas da coisa que reivindica o meu agir" ( Jonas, 1995: 132). Essa é a idéia fundante das novas responsabilidades, que se torna característica quando referidas às coisas a que se destinam o agir humano, seja o corpo humano, os animais ou o equilíbrio ecológico.

Por ambas as razões, o tema da bioética extrapolou da área restrita dos hospitais e da própria profissão médica e tornou-se tema a ser analisado na espaço público democrático. Tratando de tema essencial para a sobrevivência da humanidade, e que envolve liberdades, direitos e deveres da pessoa, da sociedade e do Estado, a bioética transformou-se na mais recente fonte de direitos humanos. Esse trânsito da bioética para o biodireito, a nível internacional, materializou-se através da Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, elaborada pelo Comitê de Especialistas Governamentais da UNESCO, tornada pública em 11 de novembro de 1997. O texto, assinado por 186 países-membros da UNESCO - portanto, fonte legitimadora do documento - estabelece os limites éticos a serem obedecidos nas pesquisas genéticas, especificamente as pesquisas relativas à intervenção sobre o patrimônio genético do ser humano. A natureza ética e jurídica do citado documento, como veremos adiante, remete-nos à constatação de que é necessário, para que ocorra a passagem da ordem ética para a ordem jurídica, a explicitação de uma norma, mas que tenha características de universalidade, próprias do discurso ético. Não se trata, portanto, de uma simples formalização jurídica de princípios, estabelecidos por um grupo de sábios ou mesmo proclamados por um legislador religiosos ou moral. O biodireito pressupõe a elaboração de uma categoria intermediária , que se materializa nos direitos humanos, assegurando os seus fundamentos racionais e legitimadores.

A formulação de uma nova categoria de direitos humanos - a dos direitos do ser humano no campo da biologia e da genética - responde à indagação central do pensamento social contemporâneo: a possibilidade da universalização de direitos morais, fundados numa concepção ética do Direito e do Estado, vale dizer, na construção de uma ordem normativa construída através do diálogo racional entre pessoas livres. Neste contexto, a possibilidade da bioética depende, como sustentam os pensadores liberais, da existência de uma sociedade democrática, pois se assim não for os valores e princípios bioéticos irão expressar a vontade dos cientistas, ou do Estado, e não de indivíduos livres e autônomos. Essa sociedade, entretanto, necessita de mecanismos institucionais que assegurem a manifestação de diferentes concepções religiosas, políticas e sociais, sem as quais torna-se inviável o discurso ético.

Como verificamos acima, os princípios provocam na sua aplicação antinomias, que sòmente podem ser racionalmente resolvidas na medida em que se puder integrar os três princípios e não privilegiar-se um deles. A formulação canônica, pela própria comunidade científica, desses princípios, e a sua aplicação sem que haja uma intermediação entre o patamar ético e a prática social, termina por consagrar uma interpretação subjetiva e, portanto, relativista do sentido e alcance dos principia. Esses princípios, entretanto, serviram como inspiração na implementação de uma nova categoria de direito humanos, que procura, precisamente, suprir essa lacuna ou vazio existente entre a esfera ética e as normas jurídicas constitutivas do biodireito. Em outras palavras, o biodireito deixado à mercê do subjetivismo procura amparar-se em princípios bioéticos, que como tal necessitam de uma objetivação com características de universalidade. Estamos tratando de uma forma de direito que se legitima racionalmente e pela expressão livre de autonomias numa sociedade democrática, o que pode ser identificado como um direito construído em função do exercício livre da razão, portanto, o que Kant chamou de "direito cosmopolita". Os princípios da bioética deixam, então, de representar determinações canônicas e passam a constituir uma forma de direito cosmopolita, que serão objetivados, através dos direitos humanos. A formulação encontrada na Declaração de 1997 permite comprovar a viabilidade desse trânsito entre a ética e o direito. O documento da UNESCO permite que se superem as dificuldades para a implementação de princípios éticos e de direitos, que têm uma natureza específica, pois pretendem estabelecer limites universais às legislações nacionais e políticas públicas de estados soberanos. Mantendo a necessária vocação universalista, a Declaração de 1997 estabelece, também, uma série de medidas, visando à promoção dos princípios expressos e às exigências a que se submetem os estados signatários, para a sua implementação.

A Declaração da UNESCO divide-se em grandes eixos temáticos. O tema da dignidade humana constitui o fundamento ético de todas as normas estabelecidas e do exercício dos direitos delas decorrentes ( arts. 1º - 4º). A Declaração situa os direitos das pessoas envolvidas como referencial obrigatório para as pesquisas e suas aplicações tecnológicas ( arts. 5º - 8º). O ser humano em função dessa dignidade natural, compartilhada por todos os seres humanos, independentemente de suas características genéticas, tem o direito de ser respeitado em sua singularidade e diversidade (art.2º, "a"). Outra conseqüência da identificação e materialização da dignidade humana, no respeito ao genoma, encontra-se na proibição de utilizá-lo para ganhos financeiros ( art. 4º ).

A regulação da pesquisa científica é tratada sob dois aspectos correlatos: o documento estabelece, como decorrência dos princípios e direitos anteriormente definidos, que a pesquisa e aplicações tecnológicas não poderão desrespeitar os direitos humanos, as liberdades fundamentais, a dignidade humana dos indivíduos e de grupos de pessoas. O documento não se restringe a determinar os parâmetros legais que visam proteger diretamente a pessoa humana nas pesquisas relacionadas com o genoma humano, mas avança procurando estabelecer as condições para o exercício da atividade científica ao prever responsabilidades, tanto dos cientistas e pesquisadores envolvidos nessas pesquisas, como dos Estados ( arts.10º - 16º).
Os deveres de solidariedade e cooperação internacional, no contexto da internacionalização crescente do conhecimento científico, torna-se tema necessário na medida em que os princípios éticos e direitos afirmados pela Declaração, tornar-se-ão vazios de conteúdo prático caso não exista um compromisso dos Estados em promover a solidariedade entre indivíduos e grupos populacionais. A cooperação internacional é prevista na Declaração sob quatro formas: através da avaliação dos riscos e benefícios das pesquisas com o genoma humano, da promoção de pesquisas sobre biologia e genética humana, levando-se em conta os problemas específicos dos diferentes países, da utilização dessas pesquisas em favor do progresso econômico e social e assegurando-se o livre intercâmbio de conhecimentos e informações nas áreas de biologia, genética e medicina ( art. 19º).
Os eixos temáticos são desenvolvidos na Declaração através, em primeiro lugar, da explicitação de princípios éticos, e em segundo, prevendo instrumentos capazes da assegurar a observância desses princípios e dos direitos deles decorrentes pela comunidade internacional, pelos estados e pela comunidade científica. A originalidade do ponto de vista da teoria do direito encontrada na Declaração do Genoma Humano reside, assim, na reunião, em um só texto, de princípios bioéticos e normas de regulação, que obrigam o sistema jurídico internacional e nacional.

O objetivo principal da Declaração consiste em estabelecer princípios e prever mecanismos que resguardem o genoma humano, considerado como fundamento da "unidade fundamental de todos os membros da família humana" ( art. 1º). O genoma é elevado, portanto, a uma categoria universal, definidora da própria humanidade. Essa definição, entretanto, responde à necessidade de se estabelecer um padrão que possa garantir a natureza comum para homens de diferentes credos, etnias e convicções, tornando-os iguais e, portanto, sujeitos de um mesmo conjunto de direitos. Encontra-se, assim, um referencial seguro para que se possa elaborar uma normatização com características universais e capaz, portanto, de ser definida como um direito de toda a humanidade.

Os direitos da pessoa são encarados pela Declaração como repercutindo no biodireito a idéia mais geral dos direitos humanos. O texto da UNESCO propõe uma série de medidas que têm por objetivo preservar a autonomia e a saúde do indivíduo. Encontram-se nesses casos o princípio da dignidade do indivíduo, que se encontra no princípio bioético da autonomia, independente de suas características genéticas; e o princípio da irredutibilidade do ser humano ao determinismo genético, o que desmente as falácias dos diferentes argumentos racistas. O segundo princípio é exemplificado no documento da UNESCO, como instrumento de garantia da necessidade de permissão prévia para pesquisas, tratamento ou diagnóstico, e, também, da proteção contra a discriminação fundada em características genéticas. A preservação do caráter confidencial dos dados genéticos de uma pessoa representa uma outra face da aplicação do princípio bioético da autonomia, pois atribui à esfera dos direitos personalíssimos, informações e dados que possam ser usados para a prática da discriminação social e política. O ponto nevrálgico do documento da UNESCO reside, assim, na defesa do patrimônio genético dos indivíduos como constitutivo de uma base empírica na qual se pode construir uma ética e um direito cosmopolita, como previra Kant.

A Declaração Universal da UNESCO, de 1997, estabeleceu, assim, uma nova categoria de direitos humanos, o direito ao patrimônio genético e a todos os aspectos de sua manifestação. A concordância dos países signatários, através dos mecanismos próprios da sociedade democrática, legitima limites aos cidadãos, grupos sociais e ao próprio Estado, que se obriga em função de normas da comunidade internacional. Esse documento internacional representa, também, uma tentativa de criar uma ordem ético-jurídica intermediária entre os princípios da bioética e a ordem jurídica positiva, o que irá obrigar os países signatários, como no caso o Brasil a incorporar as suas disposições no corpo do direito nacional ( Constituição brasileira de 1988, art. 5 º, § 2º).
A questão, portanto, da necessária complementaridade entre os princípios éticos e as normas jurídicas torna-se explícita, no caso da legislação sobre a genética, em virtude da incorporação ao direito nacional, por força da norma constitucional, de normas internacionais, que refletem valores éticos e que se destinam a todos os povos. A caracterização dos direitos relativos ao genoma humano como direitos humanos torna, ainda mais evidente, como o documento da UNESCO vem preencher um vácuo normativo no contexto do direito nacional. Isto significa que a legislação brasileira sobre engenharia genética - Lei nº 8 501, de 30 de novembro de 1992; Lei nº 8 974, de 05 de janeiro de 1995 e Lei nº 9 434, de 04 de fevereiro de 1997, complementadas por decretos, regulamentos e resoluções do Conselho Nacional de Saúde e do Conselho Federal de Medicina, inclusive o Código de Ética Médica - dependerá para o seu aperfeiçoamento de uma análise e um amplo debate sobre os princípios e os direitos estabelecidos na Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos. Fará parte integrante desse processo de aperfeiçoamento legislativo, o entendimento, tanto pelo legislador, como pelo magistrado, de que existe uma complementaridade entre a ética e o direito. A prática social acha-se, progressivamente, modificada pelas novas tecnologias, ocupando lugar de destaque nesse processo o papel da ética, que obriga a revisão de conceitos da doutrina jurídica clássica e a conseqüente revolução paradigmática na teoria do direito.

As questões suscitadas pela ciência biológica tornaram evidentes às relações necessárias, que acontecem no seio de uma sociedade democrática e pluralista, entre os valores morais e o biodireito. O campo de conhecimento aberto abrange uma vasta gama de possibilidades. Os problemas suscitados não se referem sòmente à questão da vida e suas condições, mas também aqueles relativos ao fim da vida, que encontra nas diversas legislações relativas à morte assistida e à eutanásia motivo de sérias e inquietantes indagações morais. Essas interrogações tornam-se matéria a ser julgada pelos tribunais e debatida pela sociedade civil, sendo necessário a utilização de critérios éticos comuns, vale dizer racionais, para a busca de soluções. Nesse quadro, a identificação dos direitos do genoma humano, como sendo uma forma de direitos humanos, constituiu um progresso, pois forneceu conteúdos jurídicos a princípios éticos, e, por outro lado, assegurou, também, uma fundamentação moral para a ordem jurídica do biodireito. Essa relação de complementaridade, entretanto, somente poderá efetivar-se na medida em que se utilize uma idéia como a do direito cosmopolita, considerado, não como uma forma sofisticada de direito das gentes, mas sim como um modelo jurídico, que apresenta um conteúdo ético original, característica que se encontrava implícita na concepção do seu primeiro formulador. Os direitos humanos, assim entendidos, constituem a formalização desse direito cosmopolita, primeira manifestação de uma leitura ética do direito e do Estado. Verifica-se, então, como a aplicação da idéia do direito cosmopolita, permite que se recupere o sentido ético original da ordem jurídica no pensamento kantiano. A idéia do direito cosmopolita serve, portanto, de categoria racional, para que se possa realizar um enxerto propriamente ético nos direitos humanos. O desafio da ética no campo das ciências e tecnologias biológicas representou, em última análise, um momento privilegiado, onde a hipótese da complementaridade entre a ética e o direito pôde ser testada e provada, através da explicitação dos princípios bioéticos sob a forma de direitos humanos.

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