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Bioética e ciência: Até onde avançar sem agredir

Volnei Garrafa 

Os avanços alcançados pelo desenvolvimento científico e tecnológico nos campos da biologia e da saúde, principalmente nos últimos trinta anos, têm colocado a humanidade frente a situações até pouco tempo inimagináveis. São praticamente diárias as notícias provenientes das mais diferentes partes do mundo que relatam a utilização de novos métodos investigativos e/ou de técnicas desconhecidas, a descoberta de medicamentos mais eficazes e o controle de doenças tidas até agora como fora de controle. Se, por um lado, todas essas conquistas trazem na sua esteira renovadas esperanças de melhoria da qualidade de vida, por outro, criam uma série de contradições que necessitam ser analisadas responsavelmente com vistas ao equilíbrio e bem-estar futuro da espécie humana e da própria vida no planeta.

Hans Jonas (JONAS, 1990) foi um dos autores que se debruçou com mais propriedade sobre esse tema, ressaltando a impotência da Ética e da Filosofia contemporâneas frente ao homem tecnológico, que possui tantos poderes não só para desorganizar como também para mudar radicalmente os fundamentos da vida, de criar e destruir a si mesmo. Ao mesmo tempo que gera novos seres humanos por meio do domínio das complexas técnicas de fecundação assistida, agride diariamente o meio ambiente do qual depende a manutenção futura da espécie. O surgimento de novas doenças infecto-contagiosas e de diversos tipos de câncer, assim como a destruição da camada de ozônio, a devastação de florestas e a persistência de velhos problemas relacionados com a saúde dos trabalhadores (como a silicose), são "invenções" desse mesmo "homem tecnológico", que oscila suas ações entre a criação de novos benefícios extraordinários e a insólita destruição de si mesmo e da natureza.

Ao contrário do que muitos pensam, a atual pauta bioética internacional não diz respeito somente às situações emergentes, proporcionadas por avanços como aqueles alcançados no campo da engenharia genética e seus desdobramentos (projeto genoma humano, clonagem etc.), mas também às situações persistentes, relacionadas principalmente com a falta de universalidade no acesso das pessoas aos bens de consumo sanitário e à utilização equânime desses benefícios por todos os cidadãos indistintamente (GARRAFA, 1998).

Considerando essas duas situações, portanto, a humanidade se vê atualmente às voltas não apenas com alguns velhos dilemas éticos que persistem teimosamente desde a antigüidade, como também com os novos conflitos decorrentes da marcha acelerada do progresso. Juntamente com seus inquestionáveis benefícios, a "biotecnociência", para utilizar um neologismo proposto por Schramm (SCHRAMM, 1996. p. 109-127), pode, contraditoriamente, proporcionar a ampliação dos problemas de exclusão social hoje constatados. Como impedir, por exemplo, que os conhecimentos recentemente alcançados sobre as probabilidades de uma pessoa vir a desenvolver determinada doença no futuro devido a uma falha em seu código genético (como nos casos da doença de Huntington), não sejam transformados em novas formas de discriminação por parte das companhias seguradoras responsáveis pelos chamados "planos de saúde"? (MORELLI in: BENER e LEONE, 1994. p. 287-292).

Tudo isso se torna mais dramático quando se sabe que o perfil populacional mundial tem sofrido transformações profundas a partir da elevação da esperança de vida ao nascer das pessoas (em anos), aliada ao fenômeno da globalização econômica que produz uma crescente e insólita concentração da renda mundial nas mãos de poucas nações, empresas e pessoas privilegiadas. Dentro desse complexo contexto, merecem menção, ainda, o aumento dos custos sanitários mediante a criação e expansão de tecnologias de ponta que possibilitam novas formas de diagnóstico e de tratamento, o recrudescimento de algumas doenças que já estiveram sob controle (como a tuberculose, febre amarela, dengue, malária e outras) e o surgimento de novas enfermidades (como a aids).

Segundo o presidente da lnternational Association of Bioethics, Alastair Campbell, em visita que fez ao Brasil em 1998, o maior desafio para a bioética será encontrar uma forma mais adequada de justa distribuição de recursos de saúde, numa situação crescente de competitividade. Para ele, é indispensável fugirmos do debate reducionista voltado exclusivamente para os direitos individuais, preocupando-nos, além do problema mais básico da exclusão social aos novos benefícios com o resgate de conceitos mais abrangentes relacionados à dignidade da vida humana, sua duração, o valor da diversidade na sociedade humana e, especialmente, a necessidade de se evitar formas de determinismo genético (...) (CAMPBELL, 1998. p. 9-11).

MORAL , ÉTICA E PESQUISA CIENTÍFICA

Alguns dos principais bioeticistas que têm-se dedicado a estudar a ética e a moral, bem como suas relações com situações que envolvem a vida no planeta, de uma forma geral, procuram considerá-las como sinônimos (ENGELHARDT, 1998; MORI, 1994. p. 332-341; SINGER, 1994. p. 01-23). Mesmo assim, nas disciplinas e cursos de bioética que venho ministrando na Universidade de Brasília e em outras universidades de 1994 para cá, tenho utilizado, para fins didáticos, alguns parâmetros diferenciais entre as duas. Essa diferenciação tem-se revelado útil no sentido de uma melhor compreensão de alguns temas mais conflitivos e fronteiriços da análise bioética, principalmente quando os interlocutores são alunos dos cursos de graduação.

Assim sendo, é inicialmente indispensável comentar que o termo "ética" vem do grego ethos e quer dizer "modo de ser" ou "caráter", no sentido similar ao do "forma(s) de vida(s) adquirida(s) pelo homem". A palavra "moral", por sua vez, deriva etimologicamente do latim mos ou mores ("costume" ou "costumes") e quer dizer "alguma coisa que seja habitual para um povo". Ambas, portanto, tem significado similar. Contudo, foi a partir do latim que estabeleceram-se as bases do Direito romano. Na Roma Antiga é que criou-se, historicamente, o que se entende hoje por "justiça", no seu sentido formal, por meio de leis que foram sendo adaptadas durante os séculos subseqüentes e que até os dias atuais estabelecem as diferentes formas de relação e regem os destinos de pessoas, povos e nações.

Como os romanos não encontraram uma tradução que lhes fosse inteiramente satisfatória para o ethos, passaram a utilizar de forma generalizada o mores, que em português é traduzido por moral. Dessa forma, a "boa" ou "correta" normatização passou a ser entendida como aquela legislação que interpretasse e manifestasse as situações concretas que aconteciam, de modo mais aproximado aos costumes ou às formas habituais dos cidadãos e das comunidades procederem nas suas vidas societárias quotidianas.

Em resumo, se por um lado o significado etimológico de ética e moral é similar, por outro, existe uma diferença historicamente determinada entre ambas. Como vimos acima, a moral romana é uma espécie de tradução latina de ética, mas que acabou adquirindo uma conotação formal e imperativa, que direciona ao aspecto jurídico e não ao natural, a partir da antiga polarização secularmente verificada, e especialmente forte naquela época, entre o "bem" e o "mal", o "certo" e o "errado", o "justo" e o "injusto" (GARRAFA, 1995. p. 20-24). Para os gregos, o ethos indicava o conjunto de comportamentos e hábitos constitutivos de uma verdadeira "segunda natureza" do homem. Na Ética a Nicômacos, Aristóteles interpretava a ética como a reflexão filosófica sobre o agir humano e suas finalidades (ARISTÓTELES, 1992). A partir da interpretação aristotélica, a ética passou posteriormente a ser referida como uma espécie de "ciência" da moral. Na prática, no entanto, a discussão persiste até hoje. Os códigos de ética profissional, por exemplo, consistem em manifestações maniqueístas e formais (e muito bem estruturadas, sob o ponto de vista corporativo ... ) daquilo que os romanos entendiam por moral. As legislações, de modo geral, também obedecem conotação semelhante.

Dentre as muitas discussões encontradas na literatura sobre as diferenças ou semelhanças entre moral e ética, merecem destaque as posições de Joseph Fletcher, de acordo com o qual não deveríamos sentir-nos obrigados por qualquer regra moral intangível: só o contexto e as conseqüências úteis ou prejudiciais das nossas escolhas deveriam determinar-nos (FLETCHER in: SÈVE, 1994. p. 138-139). Secundo Lucien Sève (SÈVE, 1994. p. 138-139), numerosos médicos apoiaram Fletcher, tomando a defesa deste repúdio dos absolutos morais em defesa de um contextualismo de espírito utilitarista, a partir da expressão "ética de situações". Assim, estabeleceu-se uma distinção, que passou a ser corrente em alguns meios, entre moral e ética, que recobre o conflito entre a exigibilidade das condutas prescritas por normas universais e a flexibilidade das decisões adequadas em cada caso singular.

Transportando o foco da discussão para o tema das investigações científicas, objeto do nosso assunto, é indispensável assinalar que as regras e as leis que dispõem sobre o desenvolvimento científico e tecnológico devem ser cuidadosamente elaboradas para, por um lado, prevenir abusos e, pelo outro, evitar limitações e proibições descabidas. Secundo o filósofo italiano Eugenio Lecaldano (LECALDANO in: RODOTÁ, 1993), existe um núcleo de questões que precisam ser reconduzidas dentro de regras de caráter moral, e não sancionadas juridicamente; e um outro, no qual estas questões devam ser rigidamente sancionadas e, portanto, codificadas. O primeiro aspecto se refere ao pluralismo, à tolerância e à solidariedade, prevalecendo a idéia de legitimidade (moral). O segundo diz mais respeito ao Direito formal e à justiça, em que prevalece a idéia de legalidade (ética). Dessa forma, dentro do pluralismo moral constatado nos dias atuais, parece-me preferível confiar mais no transculturalismo (nas singularidades culturais e nas diferenças de moralidades verificadas entre pessoas e povos) do que em certas "verdades universais" e normas jurídicas inflexíveis.

Vou ilustrar a diferenciação que percebo entre ética e moral, com um exemplo situado na zona de limites para a tomada de decisões. Uma menina de rua com apenas doze anos de idade, sem família, prostituta desde os oito anos, natural de grande capital de uma região pobre do Brasil, procura um médico para auxiliá-la na realização do aborto. Um detalhe: a menina é portadora do vírus HIV. Apesar de ser católico e saber que no Brasil o aborto, nesses casos, é proibido, o médico decide efetivar o ato, dizendo estar tranqüilo por não ter pecado contra seu Deus, nem infringido o código de ética médica ou a legislação do país. Essa situação pode ser caracterizada entre aquelas que Adela Cortina denomina de "ética sem moral" (CORTINA, 1990). Ou seja, apesar de existir formalmente uma transgressão legal (ética), pela infração aos mandamentos católicos, ao código profissional e à legislação brasileira, o médico tomou partido por uma decisão legítima pautada na sua própria moralidade, que o levou a decidir pela interrupção do processo de gravidez (ou, se os leitores preferirem, a impedir que uma situação de limites como essa seguisse adiante). Nesse caso, a essência da discussão não deve incidir especificamente na decisão individual do médico, mas na análise globalizada da ética da responsabilidade pública do Estado com relação à sociedade que o mantém e aos quadros dramáticos de inadmissível abandono e injustiça social constatados em todas regiões do país.

A MANIPULAÇÃO DA VIDA E O TEMA DOS "LIMITES"

A questão da "manipulação da vida" pode ser contemplada a partir de variados ângulos: "biotecnocientífico", político, econômico, social, jurídico, moral... Em respeito à liberdade individual e coletiva conquistada pela humanidade através dos tempos, a pluralidade constatada neste final do século XX requer que o estudo bioético do assunto contemple, na medida do possível e de forma multidisciplinar, todas essas possibilidades.

Com relação à vida futura do planeta, não deverão ser regras rígidas ou "limites" exatos que estabelecerão até onde o ser humano poderá ou deverá chegar. Para justificar essa posição, vale a pena levar em consideração alguns argumentos de Morin sobre os sistemas dinâmicos complexos. Para ele, o paradigma clássico, baseado na suposição de que a complexidade do mundo dos fenômenos devia ser resolvida a partir de princípios simples e leis gerais, não é mais suficiente para considerar, por exemplo, a complexidade da partícula subatômica, a realidade cósmica ou os progressos técnicos e científicos da área biológica (MORIN, 1996). Enquanto a ciência clássica dissolvia a complexidade aparente dos fenômenos e fixava-se na simplicidade das leis imutáveis da natureza, o pensamento complexo surgiu para enfrentar a complexidade do real, confrontando-se com os paradoxos da ordem e desordem, do singular e do geral, da parte e do todo. De certa forma, incorpora o acaso e o particular como componentes da análise científica e coloca-se diante do tempo e dos fenômenos.

Para Hans Jonas, o tema da "liberdade da ciência" ocupa posição única no contexto da humanidade, não limitado pelo possível conflito com outros direitos (JONAS, 1997. p. 67-75). Para ele, no entanto, o observador mais atento percebe uma contradição secreta nessa afirmação, porque a posição especial alcançada no mundo graças à liberdade da ciência significa uma posição exterior de poder e de posse, enquanto a pretensão de incondicionalidade da liberdade da investigação tem de apoiar-se precisamente em que a atividade de investigar, juntamente com o conhecimento, esteja separada da esfera da ação. Porque, naturalmente, na hora da ação, toda liberdade tem suas barreiras na responsabilidade, nas leis e nas considerações sociais. De qualquer maneira, ainda de acordo com Jonas, sendo útil ou inútil, a liberdade da ciência é um direito supremo em si, inclusive uma obrigação, estando livre de toda e qualquer barreira.

Abordando o tema da "ética para a era tecnológica", Casals traz o assunto para a esfera da responsabilidade individual dizendo que se trata de atingir o equilíbrio entre o extremo poder da tecnologia e a consciência de cada um, bem como da sociedade em seu conjunto: Os avanços tecnológicos nos remetem sempre à responsabilidade individual, bem como ao questionamento ético das pessoas envolvidas no debate, especialmente aquelas que protagonizam as tomadas de decisões (CASALS, 1997. p. 65-84).

De acordo com o exposto acima, para as pessoas que defendem o desenvolvimento livre da ciência, mesmo aceitando que este tenha como referência a responsabilidade e a participação, é difícil conviver pacificamente com expressões que estabeleçam ou signifiquem "limites" para a mesma. O tema, contudo, é de difícil abordagem e solução. Por isso, enquanto não encontrar uma expressão (ou iluminação moral suficiente ... ) que se adeque mais às minhas exatas intenções, prefiro utilizar a palavra "limites" entre aspas, procurando, com esse artifício, certamente frágil, expressar minha dificuldade, sem abdicar de minhas posições.

Assim sendo, é necessário que se passe a discutir sobre princípios mais amplos que, sem serem quantitativos ou "limítrofes" na sua essência, possam proporcionar contribuições conceituais e também práticas no que se refere ao respeito ao equilíbrio multicultural e ao bem-estar futuro da espécie. Nesse sentido, parece-me indispensável agregar à discussão alguns temas que tangenciam as fronteiras do desenvolvimento, sem limitá-lo: a pluralidade e a tolerância, a participação e a responsabilidade; a eqüidade e a justiça distributiva dos benefícios (BERLINGUER, 1993. p. 19-37; BERLINGUER e GARRAFA, 1993. p. 17-34).

Diversos setores da sociedade, principalmente aqueles religiosos e mais dogmáticos, têm traçado uma visão perturbadora, pessimista e apocalíptica da relação entre a ciência e a vida humana neste final de século. Um dos documentos mais respeitáveis surgidos nos últimos anos e que contempla a discussão bioética — a Encíclica Evangelium Vitae, do Papa João Paulo II — desenvolve essa linha de pensamento (JOÃO PAULO II, 1995). A relação de temas abordados pela Encíclica papal abrange tudo aquilo que se opõe de forma direta à vida, como a fome e as doenças endêmicas, guerras, homicídios genocídios, aborto, eutanásia; tudo aquilo que viole a integridade da pessoa, como as mutilações e torturas; tudo aquilo que ofenda à dignidade humana, como as condições sub-humanas de vida, prisões arbitrárias, escravidão, deportação, prostituição, tráfico de mulheres e menores, condições indignas de trabalho. A partir dessa realidade incontestável, o Papa chega a definir o século XX como uma época de ataques massivos contra a vida, como o reino do culto à morte. A veracidade desses fatos, no entanto, é maculada pela unilateralidade do julgamento sobre o presente e pela escuridão apontada para o futuro.

A insistência nos aspectos negativos da realidade obstaculiza uma visão mais precisa e articulada deste século. Sem cair na posição oposta, deve-se reconhecer que o século XX, apesar das guerras e crimes e de estar se encaminhando para seu final em clima de incerteza, foi também o século da vida. Foi o século no qual aprofundou-se o conhecimento científico sobre a própria vida que, sem dúvida, melhorou em termos de qualidade para a maioria da espécie humana. Foi o século no qual, pela primeira vez na história, a duração média da vida aproximou-se aos anos indicados como destino "normal" da nossa espécie; no qual a saúde dos trabalhadores foi defendida e sua dignidade reconhecida em muitos países; onde vimos emergir os direitos vitais, jurídicos e culturais das mulheres, que nos séculos anteriores foram sempre desprezados; em que existiu uma substancial valorização do corpo; onde as ciências biológicas e a medicina chegaram a descobertas fantásticas, beneficiando indivíduos e populações. O grande desafio de hoje, portanto, é construir o processo de inclusão de todas as pessoas e povos como beneficiários desse progresso.

A força da ciência e da técnica está, exatamente, em apresentar-se como uma lógica utópica de libertação, que pode levar-nos a sonhar para o futuro inclusive com a imortalidade. Tudo isso deveria, pois, desaconselhar as tentativas de impor uma ética autoritária, alheia ao progresso técnico-científico. Deveria, além disso, induzir-nos a evitar formulações de regras jurídicas estabelecidas sobre proibições. É preferível que os vínculos e os "limites" das leis sejam declinados positivamente e que seja estimulada uma moral autógena, não imposta, mas inerente. Em outras palavras, é necessário que entre os sujeitos ético-jurídicos não seja desprezada a contribuição daqueles que vivem a dinâmica própria da ciência e da técnica (os cientistas), sem chegar todavia a delegar somente a estes decisões que dizem respeito a todos.

Nesse sentido, é necessário que ocorram mudanças nos antigos paradigmas "biotecnocientíficos", o que não significa obrigatoriamente a dissolução dos valores já existentes, mas sua transformação: deve-se avançar de uma ciência eticamente livre para outra eticamente responsável; de uma tecnocracia que domine o homem para uma tecnologia a serviço da humanidade e do próprio homem ... de uma democracia jurídico-formal a uma democracia real, que concilie liberdade e justiça (KÜNG, 1994). Trata-se, portanto, de estimular o desenvolvimento da ciência dentro das suas fronteiras humanas, e, ao mesmo tempo, de desestimulá-la quando esta passa a avançar na direção de "limites" desumanos.

"ENDEUSAMENTO" VERSUS "DEMONIZAÇÃO" DA CIÊNCIA

Com relação às ciências biomédicas, as reflexões morais emanadas de diferentes setores da sociedade mostram hoje duas tendências antagônicas. De um lado existe uma radical bioética racional e justificativa, por meio da qual tudo aquilo que pode ser feito, deve ser feito. No extremo oposto, cresce uma tendência conservadora, baseada no medo de que nosso futuro seja invadido por tecnologias ameaçadoras, levando seus defensores à procura de um culpado, erroneamente identificado na matriz das novas técnicas na própria ciência. Nesse quadro complexo, a bioética pode vir a ser usada por alguns como instrumento para afirmar doutrinas anti-científicas e, por outros, ser considerada como um obstáculo impertinente ao trabalho dos cientistas e ao desenvolvimento bioindustrial; ou ainda, como um instrumento para negar o valor da ciência (ou como validação de posições anti-científicas) ou então para justificá-la a qualquer custo (BERLINGUER e GARRAFA, 1996a).

Orientar-se entre essas duas teses opostas não é tarefa fácil. A novidade e a complexidade são características inerentes à maioria dos temas bioéticos atuais, dos transplantes às pesquisas com seres humanos e animais, do projeto genoma à reprodução assistida. Sobre muitos desses problemas, ainda não foram formuladas regulamentações que em outros campos e em épocas passadas conduziram a comportamentos mais ou menos homogêneos e se constituíram no fundamento de leis cujo objetivo, mais do que evitar ou punir qualquer conduta censurável, era o de manter um certo equilíbrio na sociedade. Nos dias atuais, o desenvolvimento da ciência está sujeito a choques com diversas doutrinas e crenças existentes, ao mesmo tempo em que as opiniões pessoais também oscilam entre sentimentos e orientações diversas. Por outro lado, linhas de pesquisa se alargarão no futuro, alcançando resultados ainda imprevisíveis, enquanto diversos conhecimentos já adquiridos (como a clonagem) estão hoje apenas na fase inicial de sua aplicação prática.

De acordo com essa ordem polarizada de coisas, o mundo moderno poderá desaguar em uma crescente "confusão diabólica" ou na resolução de todos problemas da espécie humana por meio do progresso científico. As duas hipóteses incorrem no risco de alimentar, na esfera cultural, o dogmatismo, e, na esfera prática, a passividade. Se, por um lado, são inúmeros os caminhos a serem escolhidos para que a terra se transforme num verdadeiro inferno, são também infinitas as possibilidades de utilização positiva das descobertas científicas. O embate entre valores e interesses sobre cada uma das opções é um dado real, inextinguível e construtivo sob muitos aspectos. A adoção de normas e comportamentos moralmente aceitáveis e praticamente úteis requer, por todas razões já expostas, tanto o confronto quanto a convergência das várias tendências e exigências (GARRAFA e BERLINGUER, 1996b. p. 5).

PLURALIDADE E TOLERÂNCIA, PARTICIPAÇÃO E RESPONSABILIDADE, EQÜIDADE E JUSTIÇA DISTRIBUTIVA

Toda essa desorganização de idéias e práticas comprometem diretamente a própria espécie humana, que se tornou interdependente em relação aos fatos, ainda que por sorte se mantenha diversificada em termos de história, leis e cultura. A relação entre interdependência, diversidade e liberdade poderá tornar-se um fator positivo somente no caso das escolhas práticas e das orientações bioéticas terem reforçadas suas tendências ao pluralismo e à tolerância.

A intolerância e a unilateralidade, porém, são fenômenos freqüentes tanto nos comportamentos relacionados às situações persistentes quanto nas atitudes que se referem aos problemas emergentes surgidos mais recentemente e que crescem todos os dias. Quanto aos comportamentos, pode-se citar, por exemplo, o ressurgimento do racismo na Europa e em outras partes do mundo e cujas bases culturais estão exatamente em negar o fato de que as etnias pertencem ao domínio comum da espécie humana e em confundir o conceito de "diferença" com o de "inferioridade". Para as atitudes com relação aos problemas "emergentes", pode-se recordar a decisão do Presidente norte-americano Bill Clinton de proibir as pesquisas de clonagem com seres humanos e cortar todo possível auxílio governamental para as mesmas, contrariando as sugestões de uma comissão nacional de bioética por ele convocada.

O desenvolvimento da ciência pode percorrer caminhos diversos e utilizar diferentes métodos. O conhecimento é por si só um valor, mas a decisão sobre quais conhecimentos a sociedade ou os cientistas devem concentrar seus esforços implica a consideração de outros valores. Da mesma forma, não se pode deixar de considerar o papel do cientista ou da atividade que ele exerce. Sua responsabilidade ética deve ser avaliada não só pelo exercício das suas pesquisas em si, mas principalmente pelas conseqüências sociais decorrentes das mesmas. Enquanto a ciência, não sendo ideológica por sua estrutura, pode estar a serviço ou dos fins mais nobres ou dos mais prejudiciais para o gênero humano, o cientista não pode permanecer indiferente aos desdobramentos sociais do seu trabalho. Se a ciência como tal não pode ser ética ou moralmente qualificada, pode sê-la, no entanto, a utilização que dela se faça, os interesses a que serve e as conseqüências sociais da sua aplicação. Está ainda inserido nessa pauta o tema da democratização do acesso a todas as pessoas, indistinta e equanimemente, aos benefícios do desenvolvimento científico e tecnológico (às descobertas), uma vez que a espécie humana é o único e real sentido e meta para esse mesmo desenvolvimento.

Dentro ainda do tema da democracia e desenvolvimento da ciência, não se pode deixar de tratar da questão do controle social sobre qualquer atividade que seja de interesse coletivo e/ou público. Mesmo em temas complexos como o projeto genoma humano ou as doações e transplantes de órgãos e tecidos humanos, a pluriparticipação é indispensável, para a garantia de que a cidadania e os direitos humanos sejam respeitados. O controle social, por meio do pluralismo participativo, deverá prevenir o difícil problema de um progresso "biotecnocientífico" que reduz o cidadão a súdito ao invés de emancipá-lo. O súdito é o vassalo, aquele que está sempre sob as ordens e vontades de outros, seja do rei, seja dos seus opositores. Essa peculiaridade é absolutamente indesejável em um processo no qual se pretende que a participação consciente da sociedade mundial adquira um papel de relevo. A ética é um dos melhores antídotos contra qualquer forma de autoritarismo e de tentativas espúrias de manipulações.

Ainda no que diz respeito à tolerância, Mary Wamock destacou o princípio segundo o qual a única razão válida para não se tolerar um comportamento é que este cause danos a outras pessoas, além de quem o adota (WARNOCK in: MENDUS e EDWARDS, 1990. p. 169). O exemplo a que ela se refere é a legislação sobre embriões, que foi discutida na Inglaterra durante anos. Com relação ao aborto, é oportuno recordar, na mesma linha de idéias já abordada em tópico anterior, que existe uma diferença entre seu enfoque legal e moral. Sobre a legalidade, vários países o reconheceram, objetivando evitar que ele permanecesse como um fenômeno clandestino, por isso mesmo agravado e impossível de prevenir. Quanto à moralidade, ele é, de qualquer modo, um ato interruptivo de um processo vital, ao qual alguns setores da sociedade atribuem significado negativo e outros não. De qualquer forma, questões complexas como o aborto não encontram respostas satisfatórias unicamente no âmbito exclusivo do pluralismo e da tolerância, devendo ser integradas a outros conceitos, como a responsabilidade (da mulher, da sociedade e do Estado) e a eqüidade no seu mais amplo sentido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É sempre preferível confiar mais no progresso e nos avanços culturais e morais que em certas normas jurídicas. Existem de fato zonas de fronteira nas aplicações da ciência. Levando em consideração a velocidade do progresso "biotecnocientífico" é, contudo, impossível reconstruir rapidamente certas referências ou valores que possam vir a ser compartilhados por todos, a menos que se insista na alternativa da imposição autoritária e unilateral de valores. A solução está, então, em verificarmos se é possível trabalhar para a definição de um conjunto de condições de compatibilidade entre pontos de vista que permanecerão diferentes, mas cuja diversidade não implique necessariamente um conflito catastrófico ou uma radical incompatibilidade (RODOTÁ, 1993. p. 9). É oportuno levantar, neste ponto, o importante papel formador desempenhado pela mídia (virtual, impressa, falada e televisionada), que deve avançar do patamar do simples entretenimento em direção à abertura de debates públicos relacionados e comprometidos com temas de interesse comum.

O grande nó relacionado com a questão da manipulação da vida humana não está na utilização em si de novas tecnologias ainda não assimiladas moralmente pela sociedade, mas no seu controle. E esse controle deve-se dar em patamar diferente ao dos planos científicos e tecnológicos: o controle é ético. É prudente lembrar que a ética sobrevive sem a ciência e a técnica; sua existência não depende delas. A ciência e a técnica, no entanto, não podem prescindir da ética, sob pena de transformarem-se em armas desastrosas para o futuro da humanidade nas mãos de minorias poderosas e/ou mal-intencionadas.

O "xis" do problema, portanto, está no fato de que dentro de uma escala hipotética de valores vitais para a humanidade, a ética ocupa posição diferenciada em comparação com a pura ciência e a técnica. Nem anterior, nem superior, mas simplesmente diferenciada. Além de sua importância qualitativa no caso, a ética serve como instrumento preventivo contra abusos atuais e futuros que venham a trazer lucros abusivos para poucos, em detrimento do alijamento e sofrimento de grande parte da população mundial e do próprio equilíbrio bio-sóciopolítico do planeta.

Para que a manipulação da vida se dê dentro do marco referencial da cidadania, com preservação da liberdade da ciência a partir do paradigma ético da responsabilidade, existem dois caminhos. O primeiro deles é por meio de legislações que deverão ser construídas democraticamente pelos diferentes países, levando-se em consideração os indicadores já mencionados e no sentido da preservação de referenciais éticos estabelecidos em consonância com o progresso moral verificado nas respectivas sociedades. No que diz respeito a esse tópico, vale a pena recordar o fracasso representado pela nova legislação brasileira com relação à doação presumida de órgãos para transplantes: após a promulgação da lei, nos últimos meses de 1997, a qual em momento algum foi discutida e muito menos aceita pela sociedade do país, o número de doadores mortos passou a diminuir progressivamente, mês após mês, até que em agosto de 1998 o Ministério da Saúde anunciou interesse pela sua alteração.

O segundo, por meio da construção democrática, participativa e solidária — pela comunidade internacional de nações — de uma versão atualizada da Declaração Universal dos Direitos Humanos, pautada não em proibições, mas na busca afirmativa da inclusão social, de saúde, bem-estar e felicidade. Uma espécie de Estatuto da Vida, que possa vir a servir de guia para as questões conflitivas já constatadas atualmente e para aquelas novas situações que certamente surgirão no transcorrer dos próximos anos como conseqüência do desenvolvimento.

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Volnei Garrafa é Professor titular do Departamento de Saúde Coletiva e Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética da Universidade de Brasília e Vice-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (l998-2001).

 

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