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 Questões
                      sobre Bioética*
 Volnei
                      GarrafaPAINELISTA
 O mundo, nos últimos quarenta ou cinqüenta anos, evoluiu
                      mais do que em toda a sua história até então. Nurenberg
                      foi um momento de divisão, onde o mundo passou a refletir
                      sobre a necessidade de que certos parâmetros morais e éticos
                      fossem transformados. A Declaração de Nurenberg é
                      datada de 1948. Posteriormente, surgiu a Declaração de
                      Helsinque, em 1963, extremamente importante, e foi
                      sucedida por novas declarações, novos adendos de conferências
                      da Associação Médica Mundial na área da qualidade de
                      vida para os seres humanos deste planeta.
 Aproveitarei
                      este Fórum para fazer uma denúncia. Nosso País,
                      felizmente, mantém uma postura da maior dignidade, pelo
                      menos nesse campo. Está sendo orquestrada, em nível
                      internacional, uma modificação da Declaração de
                      Helsinque, considerada uma tese vencedora no campo da
                      cidadania e dos direitos humanos. Está marcada para
                      outubro deste ano uma conferência da Associação Médica
                      Mundial, a Assembléia Médica Mundial, em Israel, Jerusalém,
                      da qual estão sendo organizadas reuniões preparatórias
                      com propostas de modificações sutis, mas substanciais,
                      nessa Declaração. As modificações se operam pela via
                      da necessidade, por meio de pesquisas que estão sendo
                      desenvolvidas contra a AIDS — a Síndrome da Imuno
                      Deficiência Adquirida. Mais de quatorze mil variedades de
                      AIDS estão vindo por aí, e o mundo realmente está
                      assustado com isso. Países como a Tanzânia tiveram,
                      dramaticamente, a sua expectativa média de vida ao nascer
                      diminuída em quinze anos desde 1985. Foram feitos quinze
                      ensaios clínicos, denunciados por Peter Loore, um grande
                      investigador norte-americano que não é da área acadêmica,
                      mas sim — e isso surpreende — da área de defesa dos
                      direitos humanos e da cidadania, para tratar da prevenção
                      vertical da AIDS, da mãe gestante para o feto, futuro
                      filho. Esses quinze ensaios — quinze diferentes
                      pesquisas — usaram, na maioria deles, placebo — para
                      quem não sabe, é uma substância inócua. A Declaração
                      de Helsinque prega que o placebo só pode ser utilizado em
                      situações nas quais não há nenhuma outra terapêutica.
                      Hoje já se tem prevenção sabida para o feto, por meio
                      de terapêutica para a mãe grávida. O
                      que estão querendo modificar na Declaração de
                      Helsinque? Querem determinar que países diferentes
                      recebam desenhos metodológicos de pesquisas também
                      diferentes, ou seja, querem dizer que a diferença entre
                      as pessoas deve ser caracterizada. Ora, as mulheres, a
                      partir dos anos 50; os negros, dos anos 60; os
                      homossexuais, dos anos 70; têm mostrado e clamado para o
                      mundo que o conceito de diferença não significa
                      inferioridade. Diferente é ser uma coisa diferente, mas não
                      desigual. Essa tentativa de mudança da Declaração de
                      Helsinque, fortemente ancorada por laboratórios
                      multinacionais, que querem fazer pesquisa para vender mais
                      medicamentos, poderá trazer uma substancial mudança na
                      questão da cidadania e dos direitos humanos para o próximo
                      século. Penso que o Brasil deve ficar alerta. Felizmente,
                      o Grupo da DST/AIDS, do Ministério da Saúde do Brasil,
                      está frontalmente contra, mas somos uma voz muito pequena
                      num contexto de uma massificação econômica na área dos
                      medicamentos. Essa pesquisa está sendo aceita na Tailândia,
                      em Uganda, mas no Brasil não, e, por isso, estamos sendo
                      criticados. A
                      Bioética é uma nova disciplina; surgiu como um
                      verdadeiro movimento cultural no início dos anos 70. Da
                      mesma forma que o movimento ecológico surgiu nos anos 60,
                      em defesa da preservação da natureza, a Bioética veio
                      para defender a qualidade da vida humana, mas não como a
                      dos norte-americanos: dentro dos hospitais, uma Bioética
                      clínica, exclusivamente intro-hospitalar. Na visão
                      planetária do seu criador, Von Werner Potter, que
                      escreveu o livro A bridge to the future (Uma ponte
                      para o futuro), a Bioética está relacionada com a
                      qualidade de vida da espécie humana, inter-relacionada
                      com a flora, a fauna e o ecossistema. Uma visão
                      extremamente global, a qual chamamos de Bioética global.
                      Esse tema, infelizmente, foi deixado de lado até novembro
                      do ano passado. No
                      IV Congresso Mundial de Bioética, realizado em Tóquio,
                      no Japão, o Núcleo de Estudos de Bioética da
                      Universidade de Brasília, o qual tenho a honra de
                      coordenar, tratou de levar a questão da Bioética por
                      esse caminho da Bioética global. Mandamos dois trabalhos
                      para o Congresso Mundial no Japão, no ano passado, e
                      tivemos os mesmos, felizmente, classificados entre os
                      trinta que serão publicados nos Anais do Congresso
                      Nacional, mostrando que estamos trabalhando seriamente,
                      com muito afinco, nessa área. A
                      visão de Potter foi recuperada nesse Congresso no Japão:
                      a Bioética não deve ser clínica. A Bioética pequena,
                      tacanha, ainda é representada pela corrente hegemônica,
                      o principialismo, pautada em quatro únicos princípios
                      basicamente importantes, mas limitados, quais sejam: a
                      autonomia, a não-maleficência, a beneficência e a justiça. A
                      Bioética não é um modismo que chegou de uma hora para
                      outra e sobre a qual qualquer um que leia meia dúzia de páginas
                      começa a escrever. Infelizmente, por não haver em nosso
                      País conselhos editoriais rigorosos, acaba-se
                      possibilitando tais publicações. No último número do Jornal
                      do Conselho Federal de Medicina, com uma tiragem de
                      300 mil exemplares, há um texto sobre Bioética, na página
                      "Ponto de Vista", escrito por um desembargador
                      de Porto Alegre, que é uma seqüência de
                      "asneiras". A
                      Bioética tem um estatuto epistemológico; é uma
                      disciplina que já requer um rigor acadêmico; deve ser
                      estudada com afinco e tem hoje mais de dez correntes. O
                      nosso núcleo da UnB trabalha com a corrente
                      contextualizada: cada situação tem de ser analisada
                      dentro do seu contexto. Trabalhamos
                      com a irreversibilidade do pluralismo moral. O Brasil,
                      felizmente, nesse aspecto, é generoso. Apesar das nossas
                      discrepâncias gritantes no campo social, lutamos por um
                      pluralismo religioso, social, político, ideológico,
                      moral e sexual, dentre outros. Temos ainda muito
                      preconceito contra o homossexualismo, contra a questão
                      dos direitos iguais das mulheres no mercado de trabalho;
                      somos racistas, sim, de uma forma velada; cínicos, quando
                      vamos discutir temas como o aborto e a eutanásia —
                      principalmente o aborto, que dizima mulheres pobres, mas
                      que permite que ricas façam os seus em clínicas ricas da
                      zona sul do Rio de Janeiro — e temos posto essa sujeira
                      debaixo dos nossos tapetes. Está na hora deste País
                      adquirir coragem cívica e democrática por meio da
                      Bioética,
                      que é uma disciplina pluralista, para discutirmos
                      corajosamente, e dentro do bojo de toda a sociedade, e que
                      sobressaia a proposta da maioria. As
                      boas leis feitas nos países democráticos são aquelas
                      que espelham a moralidade da população. Não como aquela
                      lei imbecil feita, arrogantemente, pelo Senado brasileiro
                      há dois anos, a lei da doação presumida de órgãos,
                      que combatemos veementemente desde o começo. Não que a
                      lei não seja boa — é boa demais — mas para daqui a
                      trinta anos. O Senador Lúcio Alcântara sabia que a
                      sociedade brasileira não iria aceitar o princípio da doação
                      presumida, que ela não iria querer ser presumivelmente
                      doadora. O resultado está aí: 60% a 70% dos cidadãos de
                      São Paulo, da Bahia e do Rio Grande do Sul estão optando
                      por ser não-doadores. Os senadores, arrogantemente,
                      votaram essa lei sem consultar a sociedade civil
                      organizada. A Câmara dos Deputados havia feito isso na
                      Comissão de Seguridade Social e da Família, onde essa
                      questão tinha sido aprovada por unanimidade, com o relato
                      do Deputado Carlos Mosconi, do PSDB de Minas Gerais. O
                      Senado, simplesmente, não aceitou o projeto da Câmara,
                      votou e aprovou essa lei desastrosa que está em
                      descompasso com a moralidade da sociedade brasileira e
                      atrasando a doação de órgãos no País, pelo menos, por
                      duas décadas. Se a lei tivesse sido positiva, com o
                      "sim" do doador nas carteiras de identidades,
                      estaríamos hoje com 60% a 70% de doadores no País. Esses
                      erros têm culpados, sim. Isso custa muito dinheiro e,
                      mais do que dinheiro, vidas. Temos de começar a
                      responsabilizar as nossas instituições democráticas
                      pela pressa com que têm votado e discutido essas questões.
                      A Bioética tem de ser democratizada, pois vem para
                      trabalhar de forma pluralística essas questões. O
                      importante é que o Direito uma-se a essa área, pois é
                      um dos pilares da Bioética, juntamente com a Filosofia.
                      Devemos analisar isso não de uma forma superficial, mas
                      com a profundidade e o rigor científico que essa nova
                      disciplina requer. Um
                      dos grandes teóricos da Bioética, o médico e filósofo
                      norte-americano Hugo Tristan Herenger Rad Júnior, da
                      Universidade de Winston, no Texas, é autor de um grande
                      livro: Foundation of Bioethics (Fundamentos da
                      Bioética),
                      publicado em português pela Editora Loyola, dos padres
                      jesuítas. Ele é brilhante ao dizer que, no mundo de
                      hoje, temos de conviver com estranhos morais. No dizer de
                      Herenger, temos amigos morais — pessoas da mesma
                      moralidade — e inimigos morais — aquelas de moralidade
                      diferente. Jugen Habermas, o grande filósofo alemão,
                      diferentemente de Herenger, apregoa que os conflitos devem
                      ser discutidos até a exaustão para se chegar a um
                      consenso. Mas alguns conflitos morais dos tempos atuais não
                      serão resolvidos pela discussão. Para Herenger,
                      conflitos absolutos ou extremos entre estranhos morais não
                      têm solução, e a única solução para temas como o
                      aborto, sobre o qual jamais teremos uma opinião
                      universal, é aprender a viver com tolerância. Entre
                      estranhos morais, sejamos tolerantes. Essa é uma das
                      grandes pautas da Bioética. A
                      Bioética trabalha com o campo dos princípios e também
                      com o campo das virtudes. No campo da virtude, temos de
                      abordar temas como o da solidariedade — não como a
                      Comunidade Solidária, que a D. Ruth Cardoso está
                      conduzindo, na qual uma idéia maravilhosa do Herbert de
                      Souza — nosso falecido Betinho —, que estava
                      transformando a solidariedade numa ética prática e
                      concreta, deixando-nos incômodos nas esquinas das nossas
                      avenidas, onde as crianças vem nos pedir esmolas — foi
                      transformada em "quilo de arroz e de feijão para
                      pobre", vulgarizando o conceito de solidariedade.
                      Solidariedade é diferente de compaixão, de acordo com o
                      que disse Hanna Harendt e com o que já dizia Nietzche.
                      Para estes, a compaixão só existe quando os dois
                      sujeitos são iguais — quem dá e quem recebe — senão
                      não é compaixão. Quem ganha é aquele que dá, porque
                      está eternizando as diferenças. O passo adiante da
                      compaixão é o passo da solidariedade, e esse campo das
                      virtudes que a engloba é fundamental para essas áreas
                      que temos de ver nesse porvir. Um
                      outro tema, fundamental para o assunto que estamos
                      tratando, é o da prudência. A Bioética apregoa que,
                      diante do desconhecido e da dúvida, devemos caminhar com
                      prudência. As posições fechadas só devem ser
                      escolhidas no momento em que há uma absoluta segurança
                      sobre tudo aquilo de novo que está sendo inserido em
                      nossa sociedade. Este País está sendo irresponsável ao
                      discutir, da forma como está discutindo, unilateralmente,
                      a questão dos transgênicos. Temos no País duas grandes
                      comissões: a CTNBio, do Ministério da Ciência e
                      Tecnologia, exclusivamente formada por "deuses",
                      sem dúvida, os melhores "deuses do Olimpo". Não
                      é uma crítica à competência, à capacidade das pessoas
                      que compõem essa Comissão, muito pelo contrário. São
                      pessoas pelas quais eu me rendo e aplaudo, só que comissões
                      com essa responsabilidade, no mundo moderno, têm de ser
                      obrigatoriamente pluralísticas, e não compostas
                      exclusivamente por um único setor da sociedade, por mais
                      capacitado que seja. O Ministério da Saúde foi um pouco
                      mais sábio: criou a Comissão Nacional de Ética na
                      Pesquisa com Seres Humanos, da qual tenho a honra de fazer
                      parte, cujo presidente é um grande brasileiro, o Sr.
                      Willian Saado Rochiner, Professor Titular da Universidade
                      de São Paulo, já aposentado. Nessa Comissão, a
                      sociedade civil organizada está representada, por
                      exemplo, pelo Jornalista Mário Scheffer, representante
                      dos grupos da AIDS em São Paulo, uma das pessoas mais
                      profícuas e mais úteis; pelo Artur, representante do
                      Morhan, o grupo defensor dos hansenianos, que tem trazido
                      subsídios fundamentais para nossa Comissão. Há padres,
                      freiras e uma pluralidade de opiniões. Sociedade
                      democrática é aquela que procura, nas suas decisões
                      coletivas, a voz de toda a sociedade. Não são os "cientistas-deuses"
                      que vão dizer para as pessoas, as quais julgam
                      inferiores, aquilo que devam ou não fazer. Os cientistas
                      e os médicos têm um poder técnico, adquiriram um saber
                      técnico, mas confundem, muitas vezes, esse saber com
                      poder moral, para decidir pelos outros o que é bom ou
                      ruim. A sociedade que tem de decidir o que é bom ou ruim
                      para ela. O
                      eminente Professor italiano Giovanni Berlinguer recebeu o
                      título de Doutor Honoris Causa da Universidade de
                      Brasília e Cidadão Honorário de Brasília. Qualquer
                      "pé-de-chinelo" que ganha o título de Cidadão
                      Honorário de Brasília sai na Coluna do Gilberto Amaral
                      ou nessas inúteis colunas sociais. Berlinguer, Presidente
                      do Comitê Nacional de Bioética da Itália, um País onde
                      o Comitê é tão importante que é ligado diretamente ao
                      Primeiro-Ministro, passou despercebido. Todos os países
                      europeus têm comitês nacionais de Bioética plurais,
                      ligados à Presidência da República ou ao
                      Primeiro-Ministro. Todos os anos, em dezembro, eles se reúnem
                      num país diferente para elaborar normas comuns para a
                      Comunidade Européia. Nós, aqui, não temos nada. Temos
                      apenas essa Comissão do Ministério da Saúde, pequena e
                      restrita ao seu poder e à CTNBio. Temos
                      de fazer um apelo à Presidência da República, mas não
                      o que o Senador Lúcio Alcântara está fazendo mais uma
                      vez no Senado. Esse Senador, que já foi da Arena, depois
                      foi para o PDT do Brizola e agora está no PSDB, que fez a
                      Lei da doação presumida, está propondo uma Comissão
                      Nacional de Bioética dentro de uma Comissão do Senado,
                      onde os nomes terão de passar pelo crivo do Presidente do
                      Senado. Isso é piada. Essa comissão tem de surgir do
                      Poder Executivo e estar ligada ao Gabinete Civil da Presidência
                      da República. O Presidente da República tem de pedir a
                      assessoria dessa comissão para todos os grandes temas
                      nacionais. Antes desse tema entrar nos diversos ministérios
                      ou ir para discussão no Congresso Nacional, o Presidente
                      da República tem de receber, em mão, o parecer de uma
                      grande comissão pluralista, formada por grandes juristas,
                      por grandes jornalistas, por cientistas, pelas diversas
                      religiões, pela sociedade civil organizada — pela
                      democracia. A
                      Sociedade Brasileira de Bioética está à disposição
                      para ajudar nesse conserto, sendo, também, laica, sem
                      partido político e visando exclusivamente à questão da
                      pluralidade dentro da sociedade. Essas
                      coisas devem ser tratadas com pressa e ao mesmo tempo com
                      prudência: esse é o desafio. O nosso País não pode
                      continuar sem uma Comissão Nacional responsável por
                      temas de tamanha importância. Felizmente, temos algumas
                      iniciativas, como esta do Superior Tribunal Justiça, que
                      traz um pouco de luz. Engelhardt
                      diz que o mundo de hoje, com tamanhas novidades, tem vários
                      compartimentos — as nossas salas mentais —, onde temos
                      pouca iluminação moral. Não sabemos muito bem qual é a
                      decisão moral melhor para essa ou aquela situação.
                      Engelhardt pregou ainda que, frente a campos de
                      moralidade, ainda não muito claros, infelizmente, não
                      temos a chave do interruptor para ligar a luz moral e
                      iluminar todas as salas. Temos de, com muita prudência,
                      ir colocando devagarinho, por meio da discussão, da
                      construção democrática, um pouquinho mais de luz moral
                      nesses campos que são tão pouco ou mal iluminados pela
                      própria novidade, rapidez e velocidade do desenvolvimento
                      científico e tecnológico. Por isso, a questão da
                      virtude da prudência é extremamente importante. A
                      Bioética trabalha em dois campos: com o das situações
                      persistentes — de exclusão social, racismo, discriminação
                      da mulher no mercado de trabalho, abandono de velhos,
                      crianças, aborto e eutanásia, temas esses que vêm desde
                      o Velho Testamento; e com o das situações emergentes. O
                      Curso de Especialização em Bioética da UnB se pauta
                      totalmente dentro desses dois vieses, os quais
                      estabelecemos como nosso paradigma. Infelizmente,
                      muitas pessoas têm confundido a Bioética com novidades,
                      com um projeto de normas, com a Engenharia Genética, com
                      a Biotecnologia. A Bioética brasileira, basicamente, é a
                      da exclusão social. A pauta da Bioética internacional,
                      hoje, tem dois grandes temas: por um lado, a exclusão
                      social, e, pelo outro, a Engenharia Genética,
                      especialmente no que se refere aos transgênicos. A Bioética
                      é uma nova disciplina, obrigatoriamente multidisciplinar.
                      Essa é uma das suas grandes vantagens, porque quem
                      trabalha em Bioética tem de ser prudente, humilde, pois
                      cada um sabe o pedacinho do seu contexto. A Bioética tem,
                      obrigatoriamente, de beber água nas fontes da Filosofia;
                      do Direito; da Antropologia; da Teologia; da Economia; das
                      Ciências da Saúde; das Ciências Biológicas; da
                      pesquisa etc. Não há bioeticista completo. O
                      neologismo que estão tentando implantar, chamado "Biodireito",
                      é um aleijão. Se a Bioética já veio como uma nova
                      disciplina e requer um pouco de cada uma e a sua grande
                      força é a multidisciplinaridade, imaginem se começam
                      com a Biofilosofia; a Bioeconomia; a Biomedicina; a
                      Biobiologia; a Biopsicologia? Não é essa a concepção.
                      Há o perigo de usar esse modismo — que é francês,
                      para variar, mas isso não significa que a França não
                      esteja trabalhando seriamente. Nos países que estão
                      atuando seriamente nessa área — a Inglaterra, por
                      exemplo —, o grande tema é Bioética e Direito, Bioethics
                      and Law. Essa questão, ao ser reduzida, ficará
                      compartimentalizada, e não é essa a idéia inicial. Faço
                      um apelo para as pessoas que estão querendo colocar a
                      palavra "Biodireito" na rua que pensem duas ou
                      três vezes. Se "Biodireito" significar o
                      Direito trabalhando as questões biotecnológicas,
                      concordo, mas, se significar o "Biodireito" com
                      respeito à Bioética, discordo flagrantemente e digo que
                      isso é uma impureza conceitual e um erro metodológico e
                      epistemológico grave. Se estão colocando isso na rua, é
                      porque não leram direito todas as bases da Bioética. A
                      confusão da Bioética com o tema das questões
                      persistentes é um perigo. A Bioética é mais ampla, é
                      global, tem de abordar a vida como um todo. Refere-se à
                      vida interplanetária, na qual a questão da biossegurança,
                      da biodiversidade e de todos esses sistemas são da maior
                      importância. Assim
                      como o motor a vapor foi o grande veículo de impulsão
                      econômica do século XIX; assim como a informática foi o
                      grande veículo de impulsão econômica do século XX; a
                      Biotecnologia e a Biotecnociência serão indubitavelmente
                      o grande veículo de impulsão econômica do início do século
                      XXI. Isso envolve muito dinheiro. Na semana em que Dolly
                      foi clonada no Rosing Institute, na Escócia, as ações
                      na Bolsa de Valores da Grã-Bretanha do Rosing
                      Institute foram lá em cima. Nessa
                      questão de transgênicos e de bioderivados, no Brasil, há
                      o poder econômico por trás. Um grama de ouro, hoje,
                      custa doze dólares no mercado internacional. Para obter
                      um grama de ouro temos de ir a Serra Pelada, abrir buraco,
                      brigar com garimpeiro. É um trabalho complicado. Se tenho
                      uma salinha de quatro por quatro, se tenho inteligência e
                      instrumentais, vou fabricar clorofila bruta. Um grama de
                      clorofila bruta custa, no mercado internacional, de
                      seiscentos a setecentos dólares, enquanto o ouro vale
                      doze dólares. Um grama de clorofila purificada custa
                      vinte mil dólares. Alfa e betacaroteno, de três a seis
                      mil dólares. Alguns
                      jornais publicaram a denúncia feita por um pesquisador da
                      Fiocruz — ex-aluno da UnB, para muita honra nossa —,
                      de que empresas norte-americanas estão tentando vender
                      DNA de índios suruís e caritianas, de Rondônia, no
                      mercado internacional, pois trata-se de uma matéria-prima
                      da maior importância para a fabricação de novos
                      imunoderivados e de novas vacinas. É muito fácil ensinar
                      a qualquer menino de doze a catorze anos, em três ou
                      quatro horas, num laboratório, a tirar DNA de núcleo. O
                      DNA é a essência da vida. Só que o nosso DNA já é
                      miscigenado, e o dos suruís — que são remanescentes
                      — ou o dos caritianas — que são cento e quarenta
                      resistentes e estão se acabando por falta de interesse do
                      Estado, da Funai e pela entrada desses grupos estrangeiros
                      — são extremamente valiosos. De quem é o DNA do Pedro
                      Caritiano ou da Maria Suruí? É do Pedro ou da Maria? É
                      do feiticeiro da tribo? Do cacique? Do Governador de Rondônia?
                      Do Presidente da Funai? Do Presidente Fernando Henrique
                      Cardoso? De Deus? É da natureza? Estão patenteando a
                      vida das pessoas. Transformam
                      tudo em mercadoria hoje em dia. A reserva biológica que o
                      nosso País tem na nossa Amazônia tem um potencial econômico
                      extraordinário. E na lei das patentes também fomos
                      permissivos, até mais atrasados que a Argentina.
                      Confundimos descoberta com invenção. Permitimos que a
                      planta transformada geneticamente, a coisa mais simples de
                      se fazer, possa ser patenteada. Descoberta é o que está
                      na Natureza e não pode ser patenteada; invenção é
                      aquilo inventado, podendo ser patenteada. Hoje, com as técnicas
                      de Engenharia Genética, um cientista transforma uma
                      plantinha que tinha duas folhas em uma com três; ela
                      deixa de ser uma descoberta e passa a ser uma invenção;
                      porque inventou aquela com três folhinhas, ele a
                      patenteia. O
                      Brasil está-se abrindo demais. Temos de ter cuidado,
                      porque a nossa grande reserva não está na Serra Pelada,
                      no ouro, nos metais ou no ferro de Minas Gerais, mas sim
                      na nossa Natureza e temos de defendê-la, com prudência,
                      com tolerância, mas com muita firmeza. Não temos o
                      direito de fechar o nosso País ao progresso do mundo, mas
                      também não temos o direito de escancará-lo, como
                      fizemos com americanos que foram pegar o DNA dos índios
                      suruís e carintianas, deles tirando dez centímetros cúbicos
                      de sangue em troca de espelhinhos. Os portugueses chegaram
                      aqui em 1500 e ludibriaram os índios com espelhinhos e
                      com o tiro de Caramuru. Continuam a fazê-lo agora com
                      radinho de pilha e outras coisas. Agora se leva sangue, não
                      mais o pau-brasil. Um leucócito, um único glóbulo
                      branco é suficiente para se tirar o DNA e duplicá-lo. E
                      depois alguém o coloca na geladeira, o deixa em nitrogênio
                      líquido e vai vendê-lo para o resto de sua vida. Este
                      é o apelo: temos uma reserva extraordinária, e o vetor
                      econômico do século XXI vai ser esse. Temos de trabalhar
                      com muito cuidado e com prudência. Isso não é
                      responsabilidade exclusiva de cientista; é
                      responsabilidade de toda a sociedade brasileira e de um
                      tribunal como o Superior Tribunal de Justiça, que tem
                      tanta importância para o nosso País. 
 *Texto
                      baseado em notas taquigráficas, não revisado pelo autor.   Volnei
                      Garrafa é
                      Professor da Universidade de Brasília e Vice-Presidente
                      da Sociedade Brasileira de Bioética.  
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