A esquerda devia amar a globalização
Condenado
por apoiar o terrorismo, o marxista Antonio Negri contesta a
demonização e o endeusamento do mercado-rei
MARK
LEONARD*
Os
inimigos da globalização podem ter finalmente encontrado um
adversário à altura. O desafio não vem da Organização
Mundial do Comércio, do Fundo Monetário Internacional ou do
Banco Mundial, mas de um acadêmico sessentão que não é
novato em técnicas de ação direta. É o homem acusado de
liderar a esquerda revolucionária italiana na década de 1970:
Antonio Negri. Trinta e tantos anos depois de ter conseguido
notoriedade nas revoltas estudantis de 1968, seu novo livro, Empire
(editado pela Harvard University Press), tem sido aclamado como
''um manifesto comunista dos nossos dias''. É uma réplica aos
Jeremias da esquerda que vêem a globalização como um mal em
si mesmo e aos fatalistas da direita que a consideram um fato
consumado que não podemos mudar.
Para
Negri, ainda impregnado do otimismo de uma era anterior, a
globalização é uma grande oportunidade: para uma economia do
conhecimento em que a própria vida se torna a ''matéria-prima
de produção'' e os trabalhadores são liberados das pesadas máquinas
do capitalismo industrial; para uma substituição da
''democracia representativa'', que impõe soluções uniformes a
uma população multiforme, por uma nova política de ''expressão'';
para uma autêntica cidadania global, na medida em que uma
população cada vez mais móvel interage para criar novas
formas de identidade; e, acima de tudo, para uma política de
esquerda preocupada com a liberdade e a qualidade de vida, mais
do que com uma busca redutiva de igualdade entre grupos.
Encontrei
Negri pela primeira vez em Roma, para beber vinho e chá no
conforto burguês do seu apartamento sem divisórias. Poderia
ser o lar de qualquer intelectual de esquerda, só que serve
também de prisão.
Cause
célèbre -
A história remonta a 1979, quando, respeitado professor da
Universidade de Pádua, Negri foi detido e acusado de ser o líder
secreto das Brigadas Vermelhas, grupo terrorista que tinha seqüestrado
e assassinado Aldo Moro, o presidente do Partido Democrata Cristão.
Negri foi formalmente absolvido desta acusação específica,
mas enfrentou outras de ''insurreição armada contra o Estado''
e ''responsabilidade moral'' pelos choques entre ativistas
revolucionários e policiais em Milão, nos anos 70. Depois de
mais de quatro anos de ''detenção preventiva'', enquanto o
tribunal deliberava sobre estas acusações, Negri foi libertado
depois de sua eleição para o Parlamento, na chapa do Partido
Radical, em 1983. Dois anos mais tarde, o Parlamento cassou sua
imunidade e decidiu por votos mandá-lo de volta à prisão. Ele
fugiu para a França. Ali, lecionou na Universidade de Paris e
fez pesquisas para departamentos do governo francês,
tornando-se uma cause célèbre entre membros da intelligentsia
francesa, entre os quais Michel Foucault e Jacques Derrida.
Enquanto
isso, em Roma, foi sentenciado à revelia a 30 anos de prisão,
apesar da denúncia de ''sérias irregularidades legais'' no
julgamento, feita pela Anistia Internacional. Até que, em 1997
- após exílio de 14 anos em Paris -, ele se entregou às
autoridades italianas. Foi mandado para a prisão, mas
permitiram-lhe que saísse para casa diariamente, desde que
voltasse à noite. Há poucas semanas, disseram-lhe que não
precisa mais ir para a prisão: agora, tem permissão para
dormir em casa, desde que não saia entre 19h e 7h. ''É
espantoso'', disse eu quando ele me contou. Deu uma risada:
''Vou lhe dizer, dormir com uma mulher à noite é
surpreendentemente bom.''
Borbulhante
de energia, rindo com os olhos e falando com as mãos, este filósofo
de 60 e tantos anos encanta com seu calor e charme. Parando
ocasionalmente para respirar quando sua elocução ultrapassa o
ritmo dos pulmões, ele fala com várias vozes ao mesmo tempo:
marxista, polemista espirituoso, pensador analítico, crítico
intelectual. É quase impossível fazê-lo definir-se. Uma vida
que oscila entre a academia, a política e a prisão deixou-o à
vontade com os contrastes. A voz ortodoxa que vê uma progressão
teleológica rumo à revolução (ele fala da ''irreprimível
leveza e alegria de ser comunista'') de algum modo coexiste com
suas jocosas e abertas tentativas de entender um mundo
desconcertante (''não me pressione, eu só estou brincando''.)
Paradoxo
-
O novo livro de Negri, escrito com um dos seus ex-alunos,
Michael Hardt, começa com um paradoxo. De um lado, a globalização
é um novo ''império'' capitalista, unindo todos os Estados sob
um lógica única; de outro, esta busca de normas globais libera
os indivíduos para viver existências mais plenas, flexíveis e
variadas. ''Nossa tarefa política'', afirma Negri, ''não é
simplesmente resistir a esses processos, mas redirecioná-los e
reorganizá-los rumo a novos objetivos.''
Revirando
a teoria de Marx sobre a miséria (mais-valia), Negri afirma que
a modernização no fim sempre tem sido positiva. Cada nova fase
do capitalismo tem melhorado a posição da classe trabalhadora
- e criado uma plataforma para ulterior liberação. Operários
profissionais forçaram o reconhecimento de sindicatos e
partidos políticos e, assim que se tornaram organizados como
''trabalhadores de massa'', tiveram poder para reivindicar o
Estado do bem-estar social. Negri cita William Morris: ''Os
homens lutam e perdem a batalha, e a coisa pela qual lutaram
acontece apesar de sua derrota, e então se verifica não ser o
que eles pretendiam, e outros homens têm de lutar pelo que
querem sob outro nome.''