Intercâmbio
aproxima países e anuncia
"cultura global"
MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Editor de Domingo
Abrimos livros, jornais e revistas,
ligamos a TV, vamos ao cinema, teclamos o computador ou entramos
no avião: tudo nos diz que o mundo está mudando, está menor e
mais semelhante. Todos consumimos os mesmos produtos, vemos as
mesmas imagens, repetimos os mesmos comentários sobre os mesmos
fatos e suas versões. Somos convocados a testemunhar o alvorecer
de uma nova época, a emergência da era da ''cultura global'',
expressão que, de imediato, nos sugere imagens das mais prosaicas
às mais mirabolantes.
Uma delas, bastante difundida,
poderia ser descrita, simplificadamente, como a visão de um mundo
crescentemente limpo, informatizado, no qual os povos e os indivíduos
beneficiam-se das maravilhas da técnica e cultivam a semente da
consciência planetária que triunfará na aldeia global do
terceiro milênio.
Aqui, os vertiginosos
desenvolvimentos no campo da informática e das comunicações
soam como trombetas de uma revolução. O futuro, liderado pela
tecnologia, reservaria à humanidade possibilidades jamais
imaginadas, capazes de transformar profundamente o modo de vida
sobre a face da Terra.
Um dos indícios mais eloquentes a
prenunciar tal transformação seria a Internet, da qual deriva a
imagem de um mundo organizado segundo a estrutura de uma rede. No
dizer de Nicholas Negroponte, autor do eufórico ''A Vida
Digital'', a comunidade de usuários da Internet ''vai ocupar o
centro da vida cotidiana'' e a demografia da rede ''vai ficar cada
vez mais parecida com a do próprio mundo''.
Para o autor, a chamada supervia da
informação já é bem mais do que um atalho para consultas à
biblioteca do Congresso norte-americano: ''Ela está criando um
tecido social inteiramente novo e global''.
Menos entusiasmada, mais politizada
(e também mais decepcionada), uma outra imagem contrapõe-se à
do mundo-rede informatizado. Aqui, a noção de cultura global é
vista como resultado da extensão de uma determinada cultura aos
limites do globo. Um mesmo sistema de crenças, hábitos,
comportamentos e representações expande-se sobre a Terra,
suplanta as fronteiras nacionais, subjuga a heterogeneidade e impõe-se
como totalidade uniformizada.
A globalização cultural é tomada
como peça ideológica de uma estratégia de domesticação em
escala planetária, que resultaria na configuração de um mundo
integrado e organizado nos moldes de um gigantesco Estado-nação.
Para que esse processo exista é
necessário imaginar um centro irradiador, cuja hegemonia econômica,
tecnológica e cultural poderia ser coroada com a conquista final
do planeta. Seu nome é conhecido: imperialismo capitalista.
O imperialismo, liderado no século
19 pela Inglaterra, é representado no século 20 pelos Estados
Unidos da América, cuja máquina ideológica, aliada a interesses
econômicos e militares, marcharia sobre a Terra, destruindo as
manifestações culturais 'àutênticas'', para impor seu domínio.
Nas palavras do ex-terrorista italiano Antonio Negri: ''A
constituição do Império está se desenvolvendo sob nossos
olhos''.
Essas duas visões do futuro
mundial parecem ocupar, esquematicamente, extremos da discussão
sobre a atual fase da internacionalização e seus desdobramentos.
Ambas, diga-se, fazem referência a processos reais, que não
devem ser ignorados.
Realmente, nenhum olhar poderá
apreender as transformações por que passa o mundo sem ver o
papel desempenhado pela informática, pela robótica, pelas
comunicações por satélite, pela Internet e pelos modernos meios
de transporte.
Da mesma forma, seria impossível
ignorar que os norte-americanos dominam a indústria cultural em
escala internacional e vendem sua cultura e seus produtos nos
quatro cantos do mundo.
Alguns fatos, porém, conspiram
tanto contra o fetiche e a apologia da técnica quanto o
determinismo militante.
Como observa Renato Ortiz em seu
livro ''Mundialização e Cultura'', o clima de euforia da
literatura sobre meios de comunicação e informática incorre em
simplificações e traz de volta a atitude do homem do século 19,
quando afluía às exposições universais, ''extasiando-se com as
maravilhas dos inventores: fonógrafo, elevador, esteira rolante,
automóvel''.
É humano que a fantasia responda a
estímulos _e são muito estimulantes as novidades científicas
antes de estarem concretamente incorporadas à vida social. É
também muitas vezes incontível, ante as façanhas tecnológicas,
a tentação de investi-las de faculdades como ''formar um novo
tipo de indivíduo'', ''moldar a consciência'' ou ''revolucionar
o planeta''.
Por outro lado, não são menos
simplificadoras algumas evidências recorrentes de que a cultura
norte-americana impõe-se ao mundo para moldá-lo à sua imagem e
semelhança.
Um dos exemplos mais corriqueiros
da inexorabilidade dessa americanização em escala mundial é a
rede de lanchonetes McDonald's, embora a difusão da pizza
italiana e da comida chinesa alcancem as mesmas proporções
_livres, no entanto, da acusação de destruir hábitos
alimentares autóctones e autênticos.
A defesa da autenticidade cultural,
subjacente ao ataque antiimperialista, é frequentemente
sentimentalista e nostálgica. Traz à tona mitos de acolhimento,
calor humano e proximidade que, como ironiza Mike Featherstone, em
''O Desmanche da Cultura'', sugerem a segurança mítica de uma
infância deixada para trás.
É natural que nesse mundo
transtornado pela internacionalização e pelo caos informativo
venha à tona a nostalgia da comunidade integrada, que ancora o
indivíduo num espaço físico, afetivo e simbólico determinado.
É esse lugar perdido _onde as relações sociais baseiam-se no
face a face e onde florescem formas culturais ''verdadeiras''_ que
muitas vezes se convoca subliminarmente para demonizar a expansão
ocidental.
Nessa modalidade de ecologia social
o discurso preservacionista oscila de microculturas étnicas a
grandes culturas nacionais, passando por classismos e
regionalismos. Curiosamente, entretanto, uma das características
importantes do que se entende hoje por cultura global é
justamente a maior visibilidade de manifestações étnicas,
regionalistas ou oriundas de sociedades ''excluídas'' _do cinema
iraniano à literatura africana.
Talvez nunca as nações ocidentais
tenham-se visto, como hoje, na contingência de conviver com a
diversidade cultural no interior de suas próprias fronteiras. Se
a ''invasão americana'' é um tema importante na pauta da
esquerda das periferias, a ''invasão do Terceiro Mundo'' também
o é para a direita dos países centrais.
Tome-se o caso exemplar da ''world
music'', modo como passou a ser designado, inicialmente nos EUA,
um conjunto relativamente heterogêneo de formas musicais originárias
de diversas regiões do planeta. A rigor, essas músicas têm em
comum apenas a vinculação a situações étnicas ou localistas,
ainda que possam adotar procedimentos da modernidade: é o canto
árabe, é a toada brasileira, são as misteriosas vozes búlgaras,
as cantoras de Okinawa ou os batuques africanos.
Note-se que o rótulo, amplo para
abarcar manifestações de todos os continentes, convive, nas
prateleiras dos magazines, com categorias tradicionais, de gênero
ou origem, tais como bossa nova, jazz latino, pop inglês ou
reggae jamaicano.
Essa sobreposição é sugestiva e
ajuda a compreender o estágio atual da mundialização cultural:
um processo em curso, sugerido, mas não concluído, no qual
formas culturais nacionais ou locais entram crescentemente em
contato, desterritorializam-se, geram mediações e criam
''terceiras culturas''.
As ''terceiras culturas'', na
definição de Featherstone, são um ''conjunto de práticas,
conhecimentos, convenções e estilos de vida que se desenvolvem
de modo a se tornar cada vez mais independentes dos Estados-Nação''.
Dessa forma, retornando ao exemplo
da alimentação, o sushi-bar, o ligue-pizza, o delivery chinês
ou o Big Mac já não podem ser vistos a partir de seus antigos vínculos
orgânicos com as culturas de origem ou Estados-Nação. Passam a
fazer parte de uma cultura culinária ''fast-food'', à qual
pode-se recorrer com naturalidade, na China, no Uruguai ou nos
EUA. Uma culinária desterritorializada, que transita por um novo
(e sobreposto) ''território'' _que pode ser designado de global.
''Terceiras culturas'' formam-se
como mediação em diversas áreas e põem em xeque a idéia de
que as vítimas periféricas da ofensiva do Império têm apenas
duas alternativas _deixar-se subjugar ou erguer fortalezas para
evitar sua incorporação à modernidade ocidental.
A exposição, por exemplo, dos
negros das periferias urbanas brasileiras ao contato com a cultura
norte-americana não gera simplesmente a destruição do samba 'àutêntico''
e a difusão de clones domésticos de Pai Tomás. Pode engendrar,
como acontece de fato, subculturas de contestação, nas quais
informações do rap ou do funk mesclam-se a referências locais e
geram uma terceira forma _eis aí, por sinal, o princípio da
Antropofagia, a estratégia do modernista Oswald de Andrade para a
inserção brasileira na cultura mundial.
Não se deve perder de vista que,
em muitas oportunidades, a própria cultura dita autêntica
torna-se, por processos internos, um simulacro inofensivo de
autenticidade (como os desfiles das escolas de samba),
revelando-se inoperante para expressar novos anseios e realidades.
Aqui, o elemento estrangeiro pode vir a ter, a depender do modo de
apreensão, um papel revitalizador.
É, portanto, duvidosa a idéia de
que o imperialismo cultural simplesmente suprime as culturas
locais para implantar em seu lugar a face do destruidor. Essas
teorias, em comum com outras que apregoam a uniformização sem
arestas da indústria cultural, imaginam a vigência de um sistema
monolítico, capaz de manipular platéias em escala planetária.
Tendem também a considerar os efeitos negativos dos meios
modernos evidentes por si próprios.
Seja qual for a perspectiva que se
adote, o fato é que está em curso uma nova etapa da
internacionalização, embora seu futuro permaneça em aberto. Não
há dúvida de que o mundo, finito e cognoscível, é cada vez
mais percebido, ele mesmo, como um lugar; não há dúvida de que,
paralelamente às culturas nacionais, gera-se uma cultura
''global'', na qual indivíduos dos quatro cantos do planeta podem
minimamente se reconhecer; não há dúvida de que essa cultura
global deriva da intensificação dos contatos entre povos e
civilizações, por sua vez vinculada à expansão econômica e técnica.
Se o mundo, entretanto, como
resultado desse processo, será o território de um único grande
império, se encontrará mediações para a convivência
multicultural ou se será abalado por novos cismas e cataclismas
_isso, só o tempo dirá.
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