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A Constituição do 'mundo novo'

Devem as empresas governar o mundo?

Com este título, diversas organizações e entidades civis, agrupadas numa coalizão chamada Fórum Internacional sobre Globalização, com sede nos EUA, publicaram um manifesto na imprensa americana chamando a atenção pública para as negociações quase secretas que se desenrolavam em meados de fevereiro último em Paris, durante a reunião da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), organismo integrado pelos países industrializados.

O manifesto era parte de uma grande campanha empreendida por 565 organizações da sociedade civil em mais de 70 países - uma coalizão de grupos ligado a desenvolvimento, meio ambiente, direito s humanos, associações sindicais, de consumidores, de mulheres - para impedir a aprovação, naquela reunião, de um Tratado denominado Acordo Multilateral de Investimentos (AMI). O AMI daria aos investidores estrangeiros poderes sobre os governos nacionais, estaduais e locais, em todo o mundo, ao conferir às empresas transnacionais o direito de ignorar a legislação nacional sobre trabalho, meio ambiente, saúde e outras áreas protegidas por legislação social.

Segundo Brent Blackwelder, presidente do grupo amigos da Terra nos EUA, o AMI representaria o "bif of rights" das empresas transnacionais, assegurando e regulando as livre circulação internacional dos investimentos, com vistas à proteção social e ambiental, teríamos uma regulação não do capital, mas dos governos.

O objetivo é a proteção de mais de 350 bilhões de dólares por ano que circulam globalmente em fluxos internos e externos entre os 29 países industrializados da OCDE. Entre os países que seriam atraídos para assinar o tratado, numa primeira etapa, encontram-se Argentina e Chile (que formalmente apoiaram o AMI), além de Brasil, Eslováquia e, não obstante seu estatuto especial, Hong Kong.
O Acordo previa a supressão, nos países signatários, da expropriação sem indenização, de restrições à remessa de lucros, de tratamento privilegiado a empresas nacionais em licitações e privatizações, do direito soberano de os governos nacionais decidirem o que e onde deve ser investido. Os investidores estrangeiros teriam o direito de receber indenização sempre que alguma lei de proteção ambiental, social ou trabalhista, acarretar "perda de patrimônio", o que seria considerado uma "expropriação indireta".

Neste caso, o investidor estrangeiro recorreria a um tribunal internacional de comércio, por cima dos estados nacionais, para exigir indenização, a ser paga pelos contribuintes do país em questão. O julgamento em tais tribunais seria sigiloso e sem audiência pública.

O AMI vem sendo negociado desde 1995 na OCDE, sem transparência alguma, em discussões quase secretas, sem nenhuma participação pública. Foi somente mediante a ofensiva do movimento de cidadãos nos EUA contra a aprovação do procedimento comercial conhecido por via expressa (fast track), que o Congresso norte-americano tomou conhecimento das negociações do AMI encaminhada há três anos pelo Departamento de Estado e do Tesouro. O governo americano chegou a negar a existência de um texto de discussão, que acabou vazando e caindo nas mãos de organizações da sociedade civil que o divulgaram na Internet (conferir o endereço www.citzen.org ou, em francês, o endereço www.monde-diplomatique.fr/md/dossiers/ami).

Os intelectuais franceses reagiram com veemência, acusando o AMI de ser um instrumento da dominação americana na Europa. Tornou-se simbólica a declaração atribuída a Renato Ruggiero, presidente da Organização Mundial de Comércio, que teria dito - e depois negado - que a AMI é "a única economia global". Si non è vero ...

O ponto de partida e modelo do AMI é, sem dúvida, o Acordo de Livre Comércio da América do Norte - NAFTA. Lembremos que, para ser admitido no NAFTA, o México suprimiu diversos dispositivos constitucionais, entre os quais a proibição de compra de terras por capital americano e canadense. Nos últimos anos, o pequeno campesinato mexicano vem sendo esmagado pelo avanço do agrobusiness multinacional. Outro exemplo relevante é o Canadá que proibiu, em abril de 1997, a importação de um aditivo à gasolina chamado MMT, uma neurotoxina perigosa que produz danos à saúde se lançada no ar. O aditivo é produzido pela empresa americana Ethyl, que exigiu 251 milhões de dólares de indenização ao governo do Canadá, alegando "expropriação indireta" do patrimônio e da receita da empresa. O caso ainda não foi julgado, mas vem sendo citado como alerta contra a aprovação do AMI.

O projeto do AMI ignora importantes decisões da ONU contempladas na Agenda 21, nas Normas de Proteção ao Consumidor, na Declaração de Pequim sobre Mulheres, no Plano de Ação Global da Conferência Habitat. Mais ainda: viola princípios já incorporados ao Direito Internacional, como os princípios de precaução, equidade entre gerações, não transferência de substâncias ou atividades nocivas e aplicação nacional dos tratados internacionais.
Talvez mais significativo ainda seja o conflito interestatal surgido durante as negociações. Os representantes do governo dos EUA, criticados pelas leis de restrição ao comércio com Cuba, Irã e Líbia, acabaram recuando da proposta de assinar o Acordo na reunião ministerial anual da OCDE a ser realizada em Paris em 27-28 de abril próximo.

Entre os impasses de negociação, encontrava-se a exigência de "exceção cultural" apresentada pela França e Canadá, que excluiria a produção cultural da regra segundo a qual os governos estriam proibidos de fornecer subsídios à produção nacional. Os produtores franceses de cinema estavam indignados com a possibilidade de o governo Francês ser obrigado a dividir subsídios com seus tradicionais concorrentes de Holywood. Para eles, o AMI não passa de um "cavalo de Tróia" que permitirá aos produtores cinematográficos americanos abocanhar subsídios do governo francês.

O contencioso com a Franca já vinha de antes, quando a empresa francesa Total ignorou a lei americana e assinou um contrato petrolífero bilionário com o Irã. Na ocasião, o primeiro-ministro francês Leonel Jospim declarou que "as leis americanas valem nos EUA, e não na França". Mas a questão cultural poderia ser objeto de acordo, conforme transpirou na reunião de fevereiro da OCDE. Outros impasses, porém, não encontraram vias de negociação, como a relação do AMI com os padrões nacionais de proteção ambiental e trabalhista.
Por conter apenas direitos para as empresas e obrigações para os governos, e não prever nenhuma regulamentação sobre práticas monopolistas, o tratado ficou sob fogo cerrado de alguns governos e de uma grande coalizão da sociedade civil, que passou a exigir a suspensão das negociações, transparência e participação, nas discussões, de órgãos de governo da área social e de comissões parlamentares.
Acusado de defender somente os interessados dos banqueiros e investidores internacionais, esse audacioso tratado acabou paralisado na OCDE por impasses internos e pressões externas. A oposição do AMI pode ser considerada uma resistência democrática a um poderoso instrumento de globalização econômica autoritária, talvez o mais sério ataque já desfechado à soberania dos estados nacionais.

No dia 11 deste mês, o Parlamento Europeu, por esmagadora maioria - 437 votos a favor, 8 contra e 62 abstenções - aprovou o Relatório Dreiss-Dvrfler, rejeitando o atual projeto do AMI e pressionando a OCDE a não aprova-lo, sem mudanças substanciais a serem discutidas publicamente, em sua próxima reunião em Paris, no dia 28 de abril.

Para alguns, o AMI está morto. Outros, mais prudentes, julgam que, mais cedo ou mais tarde, os grandes interessados no fluxo transnacional dos 350 bilhões de dólares anuais, cobertos pelo tratado, acabarão encontrando fórmulas para fixar regras que garantam a todo custo a circulação global de capital. É possível, mas, pelo menos, não existirá mais o efeito surpresa. O sinal de alerta foi disparado.

Liszt Vieira é autor de "Cidadania e Globalização" e pesquisador visitante da Universidade de Columbia. - JB 22/03/1998

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