I - Introdução.
Pretendemos
com esta breve exposição apenas levantar algumas questões
e possíveis soluções para o problema evidente que se
coloca hoje em dia da tendência de retirada dos direitos
econômicos e sociais pela economia global e pelas políticas
neoliberais.
Não temos a pretensão
de fazer uma análise profunda, nem ao menos de conceituar o que seria
globalização ou mesmo a política neoliberal, mesmo porque não se
trata da nossa área, visto que abordaremos o assunto sob o aspecto jurídico.
Além disso, sabemos que mesmo entre os grandes especialistas há grande
divergência quanto a definição de globalização, ou mesmo sobre a
sua existência, pois há os que crêem que na realidade a idéia de
"aldeia global", tal como dito pela primeira vez por MacLuhan,
havendo também os que acreditam que o fenômeno por eles denominado de
"mundialização" (e não globalização), nada mais é do que
o impacto da economia e da política das grandes potências sobre os países
em desenvolvimento, como uma nova forma de dominação.
Embora os conceitos
possam variar, o que não pode ser negado é que em nossos dias se faz
presente de uma forma muito mais ostensiva e acelerada o impacto das políticas
governamentais econômicas. Na era da informática e da alta tecnologia
a pobreza cresce de forma avassaladora acentuando o abismo econômico já
existente. Fica evidente que o modelo neoliberal é altamente excludente
e elitista, colocando a margem deste processo um contingente
representativo da maior parte da população mundial. Como declara J. A.
Lindgren Alves: "não é necessário ser &quo???E???t;de esquerda"
para observar o quanto as tendências econômicas e as inovações
tecnológicas têm custado em matéria de instabilidade, desemprego e
exclusão social. Inelutável ou não, nos termos em que está posta, e
independentemente dos juízos de valor que se possa atribuir, a
globalização nos anos 90, centrada no mercado, na informação e na
tecnologia, conquanto atingido (quase) todos os países, abarca
diretamente um terço da população mundial. Os dois terços restantes,
em todos os continentes, dela apenas sentem, quando tanto, os reflexos
negativos".
Resta-nos então,
perguntar como será possível fazer com que os efeitos da globalização
sejam positivos para a manutenção e o respeito aos direitos econômicos
e sociais se é que isto seja possível? Bem como, qual a relação
entre todas essas mudanças e as violações dos direitos econômicos e
sociais? O que esperar de um mundo global sob o domínio do
neoliberalismo em relação a efetividade de tais direitos? Não temos a
pretensão de conseguirmos responder a todas estas questões, mas ao
menos de indicar caminhos que no nosso entender levam a soluções mais
adequadas.
II - Globalização e
direitos Econômicos e Sociais.
Com o fim
do dualismo entre capitalismo x comunismo surgiu no
mundo a idéia de que todas as utopias haviam se esvaído
e que o capitalismo triunfara. É disseminada a idéia
de Robert D. Kaplan, de que passamos a viver em um mundo
bifurcado, não mais com o dualismo leste X oeste, mas
com parte do mundo sendo habitado pelo "Último
homem" de Hegel e Fukuyama, com todas as vantagens
trazidas pela tecnologia, e em outro extremo, o "primeiro
homem", tal como em Hobbes, condenado a uma vida
brutal. Seria para o autor o retorno ás cidades estados,
e a idéia de que o Estado tal como primariamente concebido
estaria prestes a desaparecer.
Já para outros autores
como Alain Minc, em razão da história manifestar-se através de
movimentos pendulares, estaríamos realizando um retorno à Idade Média,
com a fragmentação do poder, o enfraquecimento do Estado e de sua
soberania, bem como o fortalecimento de organizações de caráter
global, como as multinacionais, vistas como os novos "senhores
feudais". Esta nova fase da história seria marcada pelo fim de um
mito de esperança coletiva, o que causara um certo vazio ideológico,
havendo necessidade de uma nova visão de mundo, uma nova ideologia.
Neste fim de século
encontramos ainda uma situação dicotômica: se por um lado temos forças
integracionistas e de causas universais, forças centrípetas, por outro
lado temos uma dinâmica de resistência, forças centrífugas que estão
ligadas a afirmação étnicas e nacionais. Para Celso Lafer e Gelson
Fonseca Júnior, o pós-guerra fria pode ser dividido em duas fases, na
primeira onde houve o predomínio das forças integracionistas, como o
desenvolvimento econômico dos tigres asiáticos; na segunda, o predomínio
das forças desagregadoras, como o desmantelamento da ex-Iugoslávia.
Tal dualismo se apresenta
contraditório, pois como é possível em um mundo globalizado, de
tecnologias desenvolvidas, que se julga "civilizado", permitir
que barbáries como a guerra na ex- Iugoslávia, massacres em Ruanda,
Timor entre outros aconteçam?
Para Celso Lafer, esse
movimento ambíguo faz com que seja necessário dar um sentido
equilibrado aos movimentos globalizantes, "evitando o seu
defeito maior, justamente o de fomentar desigualdades, reforçando a
integração dos já integrados, da mesma forma, é o lado sadio da
globalização, a manifestar-se seja sob a forma de disseminação de
informações, de valores democráticos, de ações multilaterais solidárias,
que pode corrigir, atenuar e superar o "lado perverso" da
fragmentação". Conclui o autor que só haverá uma
perspectiva positiva se soubermos aproveitar a dinâmica oferecida pela
globalização.
Para podermos analisar
quais seriam as medidas a serem tomadas como meio de impedir que as
denominadas "forças globalizantes" levem a retirada dos
direitos sociais e econômicos é pertinente analisarmos o processo histórico
de evolução na proteção destes direitos, vendo onde se encontra a
sua fragilidade, fazendo com que sejam vulneráveis ao processo de
"globalização" e ao neoliberalismo, o que veremos no capítulo
seguinte.
III
- Os direitos econômicos e sociais - Evolução histórica:
A clássica, e já
superada, dicotomia entre direitos civis e políticos e direitos econômicos
e sociais surgiu com a decisão tomada em 1951 para pela Assembléia
Geral das Nações Unidas de estabelecer os dois Pactos adotados em
1966. A visão predominante na época era de que os diretos civis e políticos
eram passíveis de implementação imediata, pois requeriam apenas uma
abstenção por parte do Estado no sentido de não adentrar na esfera de
direito de seus cidadãos. Já os direitos econômicos e sociais
necessitavam de toda uma política governamental para a sua implementação,
não podendo ser realizados de imediato, devendo serem alcançados
progressivamente.
Porém, tal idéia estava
estreitamente ligada com a bipolarização mundial entre capitalismo e
socialismo, pois o regime capitalista era tido como o favorecedor e
defensor dos direitos civis e políticos, enquanto os países
socialistas privilegiavam os direitos sociais e econômicos.
Neste contexto a proteção
internacional dos direitos econômicos e sociais se deu relegada a um
segundo plano, pois os critérios adotados pelo sistema internacional de
progressividade na sua implementação, tal como no Pacto Internacional
dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais passa a ser a perfeita
justificativa para sua inobservância. Para os países em
desenvolvimento, a justificativa de que a falta de recursos financeiros
para implementá-los, enquanto que aos países desenvolvidos a sua
implementação não passa de mera questão de política governamental.
No sistema Interamericano
o quadro é ainda mais acentuado, o fato dos direitos econômicos
sociais e culturais estarem previstos no corpo do mesmo documento dos
direitos civis e políticos, que a princípio poderia ter proporcionado
igualdade de tratamento entre tais direitos, na realidade acentuou ainda
mais esta dicotomia, ao conferir dos 82 artigos da Convenção
Interamericana de Direitos Humanos, apenas um artigo aos direitos econômicos,
sociais e culturais.
Porém, tal visão foi
gradualmente sendo alterada, muito colaborando para essa mudança a I
Conferência Mundial de Direitos Humanos realizada em Teerã em 1968, na
qual foi proclamada a indivisibilidade dos direitos humanos, sendo
impossível portanto a manutenção de uma visão segmentada, como se a
própria violação de um "setor" não influenciasse e não
gerasse um desrespeito a outra "classe" de direitos. Deste
modo, o respeito aos direitos humanos deve ser dado de uma forma
integral. É também nesta conferência que o caráter histórico dos
direitos humanos foi ressaltado, além de seu aspecto universal.
No plano regional
interamericano o protocolo de San Salvador de 1988 teve importância por
introduzir mudanças como acrescentar um sistema de petições e relatórios,
porém manteve a idéia de "implementação progressiva".
No plano
interno, destacamos o programa nacional de direitos
humanos apesar de reconhecer a indivisibilidade dos
direitos humanos, acabou por dar primazia aos direitos
civis e políticos, justificando que "para que a
população possa assumir que direitos humanos são direitos
de todos, e as entidades da sociedade civil possam lutar
por estes direitos e organizar-se para atuar em parceria
com o Estado, é fundamental que os direitos civis elementares
estejam protegidos e, especialmente, que a Justiça seja
uma instituição garantidora e acessível para qualquer
um".
Deste modo, o programa
demonstra uma clara adoção da idéia de "gerações" de
direitos humanos, o que é incompatível com a idéia da
indivisibilidade, mas não podemos retirar seus méritos, já que tem
alcançado algumas mudanças importantes, cuja necessidade existia há
tempos.
A principal transformação
ocorreu com a Convenção de Viena de 1993. Para o secretário geral da
ONU na época, Boutros Boutros Ghali, os três imperativos dessa conferência
são: Universalidade, garantia e democratização.
A declaração
de Viena é um documento de rico conteúdo, suas recomendações
são muito pertinentes ao momento histórico em que vivemos.
Ela conclama a necessidade de se eliminar a pobreza
e a exclusão social que constituem uma alta violação
aos diretos econômicos e sociais. Confere ainda grande
relevância ao direito ao desenvolvimento como direto
humano e reconhece a necessidade de modificação do sistema
de Proteção Internacional dos direitos econômicos e
sociais à realidade atual, bem como preocupa-se com
a incorporação do direito internacional no plano interno
com meio de dificultar a violação desses direitos, já
que os sistemas internacionais e internos devem ser
vistos de uma forma integrada.
Para A. A. Cançado
Trindade, "Teerã corresponde à fase legislativa, a declaração
de Viena à fase de implementação desses instrumentos múltiplos".
A fase de implementação
na qual estaríamos vivendo pós-Viena, no entanto, vem sido ameaçada
pela política neoliberal, e a globalização, pondo em risco o que já
foi alcançado, aproveitado-se das fragilidades do sistema mencionadas
ao longo desta exposição, que precisam ser superadas, para não deixar
o que foi alçando neste processo histórico sucumbir a esta "nova
ordem".
IV - Novas Perspectivas
Conforme salienta Bonnie
Campbell, "A conjuntura internacional do final da década de 90
ilustra melhor do que nunca a indivisibilidade de todos os direitos,
econômicos e sociais, civis, políticos e culturais, em seu sentido
amplo. Mas apesar de vivermos um momento crucial, no qual direitos
humanos proliferam ao mesmo tempo em que evoluem as suas formulações e
suas práticas, se não analisarmos os desafios, os atores, as estratégias
e os interesses que podem preservá-los, haverá grandes riscos de
produzir uma desvalorização dos ideais e dos princípios que a declaração
Universal visa proteger".
Neste sentido
cremos que como resposta ao desafio de fazer com que
os direitos econômicos e sociais sejam respeitados e
fazer com que seja atenuado o "lado perverso"
da fragmentação, conforme sugere Celso Lafer em trecho
já citado, se faz urgente a necessidade de adoção de
um protocolo facultativo, permitindo o recebimento de
denúncias, tanto por parte dos indivíduos, como de grupos
e dos Estados.
Esta medida é defendida
por diversos especialistas da área, como Philippe Texier, francês
membro do Comitê de Direitos econômicos, sociais e culturais das Nações
Unidas, que afirma: "Só semelhante documento permitiria firmar
jurisprudência sobre os direitos econômicos". Acrescente-se ainda
a opinião de Philip Alison, presidente deste comitê: "Pois sem
ele, esses direitos continuariam a ser considerados de segunda
categoria".
Esta é a maneira de se
garantir no âmbito internacional a observação destes direitos,
introduzindo "sanções" concretas, pois conforme afirma
Maribel Wolf, representante da ONG Terre des hommes na ONU: "a
utilidade de receber queixas reside mais do que nas eventuais sanções
na possibilidade de denunciar publicamente a violação dos direitos
econômicos, pois isso não agrada aos Estados". Na verdade,
justamente por não agradar aos Estados é quem encontramos um grande
empecilho no acolhimento do projeto de protocolo já existente, pois não
há interesse em declarar ao mundo estas violações. Até agora apenas
seis países se manifestaram sobre o projeto: Chipre, Equador, Finlândia
e Síria, de modo positivo , e Canadá e Alemanha, com certo ceticismo.
No entanto, apesar das
dificuldades, deve-se lutar pela adoção do protocolo, mesmo lutando
contra interesses de Estados poderosos, inspirados na vitória obtida em
julho do ano passado, quando tivemos a aprovação do Estatuto do
Tribunal Internacional Criminal Permanente, na conferência realizada em
Roma, desvinculado do Conselho da ONU, o que era contrário aos
interesses de Estados poderosos como os EUA.
Além disso, no plano
internacional, este talvez seja realmente um dos únicos modos de poder
se exigir o respeitos aos direitos econômicos e sociais, deixando de
ser uma mera utopia. Só assim, indivisibilidade dos direitos humanos tão
proclamada na Convenção de Viena será real.
‘’É necessário que
os direitos civis e politicos e os direitos sociais e economicos não
formem dois grupos distintos, pois não podemos esquecer que seus
antagonismos que deram nascimento às doutrinas que se chocam
violentamente. Todos estes direitos são iguais e indivisiveis. Não há
escolha a ser feita entre eles. Quando se suprime um deles, suprime-se
todos os outros. A democracia não suporta ser parcial ‘’.
No âmbito interno, há
necessidade de se ampliar a educação em direitos humanos em dois
aspectos : popularizar os instrumentos de defesa, através de
campanhas educativas de cidadania, a serem direicionadas principalmente
para as crianças.
Por outro
lado são necessárias ações que mobilizem o Judiciário,
principalmente os Magistrados, como aplicadores da lei,
para que possamos mudar a visão ainda presente no Judiciário
brasileiro de que os direitos sociais e econômico são
problemas que concernem às políticas administrativas,
tendo ainda arraigada a idéia que tais direitos, apesar
do disposto no artigo 5° parágrafo primeiro da Constituição
Federal de 88, não têm aplicação imediata. A jurisprudência
firmada em torno do mandado de injunção é um bom exemplo
disso, felizmente, temos sentido algumas mudanças, no
teor destas decisões. Manter tal posicionamente seria,
como nos ensina Luís Roberto Barroso, seria negar o
exercício de um direito consagrado na Constituição,
seria em última análise, negar a eficácia da constituição,
submetendo-a muitas vezes, a normas hierarquicamente
inferiores.
Se vivemos em um tempo de
contradições, marcado pela tendências econômicas e as inovações
tecnológicas com efeitos colaterais bem conhecidos, inclusive nos países
em desenvolvimentos, se ‘’o fim ‘’ das grandes
ideologias deixou um vazio, talvez fosse o momento dos direitos humanos
tomarem para si esta função, com um contraponto, de maneira isenta,
universal e indivisível.
Provavelmente, muitas
mudanças não ocorrerão a curto prazo, pois o problema do respeito aos
direitos humanos, está ligado a uma questão de valores, à consciência
de nosso papel de cidadãos nesse processo de transformação. Porém,
devemos manter a utopia, como um meio de nos impulsionar a abrir as
trilhas da mudança, para chegarmos à observância desses direitos .
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