Projeto DHnet
Ponto de Cultura
Podcasts
 
 Direitos Humanos
 Desejos Humanos
 Educação EDH
 Cibercidadania
 Memória Histórica
 Arte e Cultura
 Central de Denúncias
 Banco de Dados
 MNDH Brasil
 ONGs Direitos Humanos
 ABC Militantes DH
 Rede Mercosul
 Rede Brasil DH
 Redes Estaduais
 Rede Estadual RN
 Mundo Comissões
 Brasil Nunca Mais
 Brasil Comissões
 Estados Comissões
 Comitês Verdade BR
 Comitê Verdade RN
 Rede Lusófona
 Rede Cabo Verde
 Rede Guiné-Bissau
 Rede Moçambique

Pobreza, Exclusão Social e Direitos Humanos:
O Papel do Estado

Patrícia Helena Massa Arzabe

Procuradora do Estado
Doutoranda em Direito pela Universidade de São Paulo

Muitas são as indagações que podem ser trazidas à análise do tema da pobreza, da exclusão social e da questão do acesso e exercício de direitos na sociedade moderna, seja ela urbana e industrializada ou agrícola. O que caracteriza a pobreza, o que faz dela um problema social, que traços a diferem da pobreza de outrora, o que permite falar em exclusão social, o que cabe à sociedade e ao Estado nesse processo e, em particular, em que medida está associado o tema da pobreza com o Direito e os direitos? Estas são algumas das perguntas que este trabalho pretende responder para demonstrar a importância do Estado nos processos que geram e mantêm a desigualdade social e a necessidade dos direitos econômicos, sociais e culturais para possibilitar aos 'menos iguais' o exercício ativo dos direitos civis e dos direitos políticos relevantes para a democracia efetiva.

As discussões acadêmicas e políticas vêm proliferando neste campo, após se verificarem que as questões de gênero, de raça, de origem, de idade, todas constituintes de problemas sociais de séria gravidade convergem ao problema da pobreza e da desigualdade econômica. É nestas circunstâncias que mulheres, negros, índios, velhos, crianças, deficientes, migrantes e imigrantes compartilham em geral de desigualdades comuns à carência econômica e não raro à pobreza absoluta: a desigualdade de saúde, de moradia, de ocupação social, de bem-estar e, traço comum, a desigualdade política. A pobreza, nas suas feições de desigualdade de renda e de acesso a recursos, repercute claramente na participação política. Barreiras efetivamente sólidas se acumulam, obstando a participação na democracia e aprofundando os problemas que fazem dissolver a integração social.

O caso brasileiro bem reflete as conseqüências da pobreza no acesso e no exercício de direitos fundamentais. Como líder às avessas no processo de distribuição de renda no mundo, campeão da concentração da renda nas mãos de poucos, o Estado brasileiro distribui a mais da metade de sua população doenças, ausência de moradia, educação insuficiente que não permite trespassar a barreira do analfabetismo funcional, desemprego e desagregação cultural. Largos extratos da população sofrem não somente a ausência do Estado, mas a omissão ativa, que privilegia parcelas reduzidas e aquinhoadas da sociedade, caracterizando verdadeira violação dos direitos humanos, em franca oposição aos fins legitimadores da razão de constituição e de existência do Estado.

Nossos números são efetivamente estarrecedores. A despeito de o Brasil ter garantido sua posição de oitava economia do mundo no 22º Relatório Mundial sobre o Desenvolvimento (1999), elaborado pelo Banco Mundial e seu PIB per capita em 1998 ser de US$ 4.750,00 (o da Bolívia foi US$ 1,00 e da Colômbia US$ 2,60) o Brasil permanece líder na desigualdade de renda. Dos números citados, vê-se que a renda nacional é suficiente para satisfazer as necessidades mínimas de cada pessoa. Nossa pobreza deriva de mecanismos econômicos e sociais perversos de distribuição extremamente desigual da renda. Segundo estudo da economista Sonia Rocha, do IPEA, órgão do governo federal, os 50% mais pobres do país detêm cerca de 13% da renda nacional, parcela equivalente ao que os 1% mais ricos detêm. Em 1997, antes do país mergulhar na crise financeira que resultou na adoção de políticas ainda mais recessivas, o país contava 51,84 milhões de pessoas vivendo na pobreza absoluta, na indigência.

O abismo na distribuição nacional da renda continua aumentando. Só na região metropolitana de São Paulo, em 1994 o extrato de 5% das famílias mais ricas auferia renda mensal 37,4 vezes superior às 5% mais pobres. Quatro anos depois, em 1998, essa mesma faixa ganhava 45 vezes mais do que os 5% mais pobres. Isso em tempos de estabilidade econômica. Lembremos que após outubro de 1998 o desemprego aumentou, chegando a 19% em São Paulo e o nível da atividade econômica se reduziu. Considera-se, então que São Paulo teria 24,5% de sua população abaixo da linha de pobreza, enquanto o Rio de Janeiro teria 35% e Minas Gerais 51%. Os outros Estados estão em situação bastante pior para produzir a cifra nacional de 54% de pobres no Brasil. O Estado de São Paulo teria 10% de sua população (3,4 milhões de pessoas) abaixo da linha de pobreza absoluta, ganhando cada um menos de R$ 73,00. A linha da pobreza relativa estaria até o limite de renda em torno de R$ 149,00, por pessoa. Acima disso, deveria a pessoa ser considerada, pelos critérios governamentais, não-pobre, ou seja, pertencente à classe média. Entretanto, é difícil dizer que esse valor possa satisfazer as necessidades mais elementares de alimentação, saúde, moradia, vestimentas e lazer para atestar a existência de uma vida digna em regiões urbanas com elevado custo de vida.

Pelas observações acima, há que se ter bem claro que os números oficiais indicadores da pobreza devem ser considerados como uma referência, e não um espelho fiel da realidade. Não é imparcial a utilização de critérios distintos para a aferição da distribuição da renda. A seleção desses critérios presta-se exatamente a produzir resultados ou imagens de realidade mais favoráveis à sua imagem. Destremau salienta que o discurso público sobre a pobreza, incluindo a manipulação das medições dos níveis e da extensão da pobreza, constitui um ato político, que visa tanto à legitimidade quanto ao controle. E pode desempenhar diferentes funções, como por exemplo: um número elevado do pobres pode ser percebido como falha do Estado em integrá-los e promover seu bem-estar, como também pode contribuir para a construção da imagem de um "país pobre" para estimular programas internacionais de doações ou financiamentos a custo reduzido para iniciativas de combate à pobreza.

Não cabe aqui analisar exaustivamente a racionalidade que faz mover o Estado de forma a manter mecanismos de reprodução de desigualdade e a implementar políticas e projetos que beneficiem agentes econômicos - muitas vezes estrangeiros. Basta que se relacione o modo de funcionamento do sistema capitalista brasileiro e internacional, os mercados e o Estado. Autores como Habermas, Claus Offe e, entre nós, Alaôr Caffé Alves e Eros Grau já estudaram e identificaram o papel do Estado na constituição e reprodução dos mercados, por meio da proteção institucional da propriedade e do contrato para a viabilização da circulação mercantil. O Estado também ampara o mercado oferecendo-lhe os meios e condições necessárias à sua reprodução pelo estabelecimento das infra-estruturas, como construção de estradas, ferrovias, portos, hidrelétricas, além de formação e capacitação de mão-de-obra, subsídios, proteções tarifárias, etc. Aliada a essa racionalidade de privilégio a determinados setores produtivos, a corrupção e o nepotismo terminam por macular a legitimidade que deu ensejo à consolidação do Estado como guardião dos direitos e da liberdade de todos os membros da sociedade.

Cabe-nos analisar a racionalidade que deve nortear a identificação da pobreza como uma disfunção relacional que viola a autonomia da pessoa, a dignidade, o respeito e que impede pessoas situadas nesse âmbito de se desenvolver plenamente como pessoa dentro da sociedade, ou seja, dentro do jogo das relações e exigências sociais da atualidade.

As faces de um conceito

O termo 'pobreza' traz significações diversas e é freqüente vê-lo acompanhado de qualificativos que alteram seu sentido. Assim é que se lê pobreza absoluta, pobreza relativa, pobreza estrutural, pobreza urbana, pobreza rural, além da expressão nova pobreza, correlata a 'novos pobres'.

Outras expressões são empregadas como equivalentes a pobreza, como miséria, indigência, carência e, mais recentemente, desigualdade, exclusão, destituição, precariedade e vulnerabilidade.

A indagação do que faz com que uma pessoa possa ser incluída dentro do grupo de pessoas denominadas pobres não porta resposta simples.

José Bengoa observa que "pobreza é um conceito difícil de definir, mas que todo mundo entende quando se o menciona. Talvez porque cada qual, cada indivíduo sabe perfeitamente o que seria para ele e sua família uma situação de pobreza. Para um poderia ser não comer; para outro, vestir-se pobremente, para um terceiro, baixar seu nível de vida habitual. São muito imprecisas, portanto, as definições habituais sobre a pobreza. Fala-se que a 'pobreza absoluta' seria aquela em que a pessoa não pode alimentar-se com o mínimo suficiente para sua manutenção fisiológica. A antropologia demonstrou a relatividade destes mínimos fisiológicos, pois que estão sempre determinados culturalmente. Por isso, quando falamos de 'pobreza' poucas vezes nos referimos aos níveis absolutos. Trata-se, pois, de um conceito essencialmente relativo. A pobreza é, em geral, o olhar dos não-pobres sobre os pobres. É um olhar estereotipado, cheio de temores, ansiedades, visões etnocêntricas e, mais ainda, com uma proposta implícita de homogeneização cultural e integração ao consumo. Esta conceituação é mais clara na literatura que vê a pobreza como 'carência', isto é, como ausência total ou parcial de bens, serviços, acesso à cultura e à educação, enfim, à falta de integração à sociedade. Não é por acaso que em todas as investigações realizadas, as pessoas que tecnicamente poderiam ser denominadas 'pobres' não se reconhecem como tais. Ao se lhes perguntar se são pobres, afirmam que não o são, e que os pobres são outras pessoas mais próximas da 'pobreza absoluta'. Ninguém quer ser estigmatizado com a definição de carência. O pobre que reconhece sua pobreza e a aceita, renuncia à sua superação e faz da mendicância seu ofício e da lástima seu discurso".

Se por um lado a avaliação da pobreza possui um caráter subjetivo e contingente, variando em conteúdo ou intensidade conforme o 'outro' na comparação, fazendo-nos pensar na pobreza somente como um conceito relativo, por outro lado, devido à situação de extrema indignidade em que elevada parcela da população mundial vive, pela falta de recursos, pela ausência de políticas públicas, pela sujeição étnica e social e pela absoluta destituição material de direitos, passou-se a utilizar o conceito de pobreza absoluta para permitir a aferição dos níveis de destituição, ainda que imperfeita, para fins de desenvolvimento e implementação de políticas sociais, permitindo, também, a possibilidade de comparação entre diferentes regiões e países.

Relativamente equivalente às idéias de indigência e miséria, a noção de pobreza absoluta foi cunhada por Robert McNamara, quando presidente do Banco Mundial, para diferenciar do tipo de pobreza verificado em países desenvolvidos. Segundo ele, a extrema pobreza consiste "na condição de vida caracterizada por má-nutrição analfabetismo, doenças, entornos esquálidos, alta mortalidade infantil e baixa expectativa de vida, tudo abaixo de qualquer definição razoável de decência humana". Essa conceituação permite ver melhor, por contraposição, as nuances da pobreza relativa, visto que muitas vezes, aqueles qualificados como pobres em relação à riqueza de seus próximos, podem estar em situação confortável se comparados aos pobres de uma outra região ou de outro país. Essa análise mostra a pobreza em seu sentido relativo, ou seja, indicando o extrato de uma população que tem acesso aos bens e serviços que garantem a sobrevivência e respeitam os limites objetivos de uma vida digna, mas que vive em circunstâncias e condições bastante inferiores aos que estão no outro extremo da linha de riqueza.

Questão social e pobreza

Pobreza e privação são termos próximos, mas não exatamente sinônimos. Há uma distinção entre a 'privação', em suas várias formas, conseqüências, sentimentos e sofrimentos a ela relacionados e 'pobreza' como um discurso construído, cuja forma lhe é dada pelas definições que recebe. Assim, por exemplo, a definição de uma linha de pobreza estabelece uma linha administrativa e artifical entre pobres e não-pobres.

É por isso que surgem problemas com a idéia de pobreza relativa, assim como com a fixação do critério de estabelecimento da linha da pobreza extrema ou absoluta, demonstrando que a questão não é simples e as respostas que lhe são dadas podem trazer conseqüências bastante significativas, positiva ou negativamente. Amartya Sen observa que a privação relativa no âmbito da renda pode significar privação absoluta no campo das capacidades de realização, visto que em um país afluente, maior quantidade de renda pode ser necessária para a aquisição de bens suficientes para a consecução da 'mesma funcionalização social', como 'aparecer publicamente com dignidade, sem envergonhar-se'. O mesmo vale para a capacidade de 'tomar parte na vida da comunidade ".

O Brasil não foge a esse panorama, em vista do custo de vida razoavelmente elevado em comparação a outros países pobres. Para aqueles que ainda estão incluidos no mercado formal de trabalho, a lei prevê patamares mínimos de renda. Entretanto, o salário mínimo nacional, hoje em torno do equivalente a US$ 65,00 não basta a suprir minimamente as necessidades de alimentação de uma família vivendo em área urbana, menos ainda se lembrarmos que, por norma constitucional inscrita no artigo 7º, IV da Constituição Federal, seu valor deveria bastar para satisfazer as necessidades de alimentação, moradia, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social. A dificuldade de conversão da renda oriunda de salário nesse valor em 'capacidade' de realização e ação em sociedade é evidente. Todavia, os mesmos US$ 65,00 poderiam satisfazer as necessidades mínimas acima elencadas em outro país com custo de vida menor, como em alguns países vizinhos ao nosso ou países do Oriente ou da África.

Outro aspecto que cabe lembrar tange a importância de não se limitar a compreensão da pobreza somente como falta ou insuficiência de renda. Como Amartya Sen aponta, a pobreza é sobretudo, e na sua parte mais sensível, uma questão de inadequação dos meios econômicos da pessoa para a sua realização na sociedade (por realização podemos também dizer sua expressão como pessoa, seu acontecimento, com a possibilidade de efetivo desenvolvimento de sua personalidade). Assim, por exemplo, uma pessoa que possui metabolismo alto, ou é de grande compleição física, ou ainda sofre de alguma parasitose que absorve seus nutrientes estará em desvantagem quanto à capacidade de realizar-se em relação à outra pessoa que receba a mesma renda, mas que não tenha essas peculiaridades. O mesmo vale para mulheres grávidas, que demandam mais nutrientes, pessoas doentes, que necessitam de cuidados especiais e de medicamentos, pessoas que habitam bairros ou cidades que requerem gastos elevados com transporte ou segurança, pessoas muito jovens ou muito idosas, que têm necessidades próprias, famílias numerosas e outras circunstâncias que, ainda que temporárias, afetam a capacidade de realização e de exercício de direitos, especialmente em sociedades individualistas onde a solidariedade e a mútua ajuda constituem exceções.

Características pessoais, como a idade, doenças ou certas deficiências, que interferem na obtenção de renda pela via normal de inserção da pessoa na sociedade, o trabalho, afetam também a conversão da renda em 'capacidades'. Em conseqüência, tem-se que a vulnerabilidade das pessoas pobres é multifacetária. As causas que culturalmente obstam o pleno acesso às atividades econômicas ou ao mercado de trabalho - o preconceito - impedem também a conversão ótima da renda em capacidades na sociedade. Dentre os pobres, os mais pobres, aqueles outrora chamados miseráveis ou indigentes, são os que menos possibilidade têm de, uma vez excluídos, serem resgatados para dentro do pacto social.

É por isso que o critério da baixa renda, por ser independente das condições pessoais, não serve para avaliar coretamente o universo das pessoas denominadas pobres. Mais apropriado a um conceito relevante da pobreza é o critério da inadequação da renda para a geração das capacidades minimamente aceitáveis. Falando de outro modo, a renda é fundamental para afastar a pobreza, mas o estabelecimento de um critério único e objetivo para fixação de quem pertence ou não a essa faixa social conduz a resultados equivocados por recusar o reconhecimento das diferenças pessoais que podem fazer com que uma pessoa de maior renda, que hipoteticamente a situaria fora da linha de pobreza, possa ser de fato mais pobre que outra com menor renda, mas com menor demanda de determinados recursos ou 'insumos'. Daí porque tantas políticas públicas de redução da pobreza não obtêm o resultado esperado: suas premissas de ação são falhas, incompletas ou, por tratarem uniformemente destinatários tão diversos, são erradas.

Cabe notar que, pela forma com que Amartya Sen enfrenta a problemática da pobreza e a insere como o eixo em torno do qual devem girar das discussões acerca da desigualdade, a questão não se resolve com a simples fixação de uma linha hipotética de pobreza com base na renda mínima. O critério das 'capacidades', transcendente da visão limitada da renda, permite melhor apreender a complexidade da realidade social dos que vivem em condições abaixo do necessário para a realização eficiente das faculdades humanas na sociedade atual.

E sua análise, contextualizada à nossa realidade, não pode prescindir da premissa de que as causas que obstam o acesso ao mercado de trabalho, aos bens primários da sociedade e que aprofundam a desigualdade na distribuição da renda estão intimamente ligadas a preconceitos contra grupos sociais e a variadas formas de opressão, inclusive a violência.

Exclusão social

Se o termo pobreza pode ser construído a partir da definição que recebe, incluindo ou deixando de incluir grupos sociais, o termo recente 'exclusão social', ainda que tenha significação certamente difusa e polimorfa, tem o condão de iluminar justamente o espaço social, jurídico e político perdido frente ao estado de destituição de recursos de toda espécie - econômicos, sociais, jurídicos, culturais. A destituição se apresenta como um monstro tentacular, absorvendo qualquer possibilidade de atuação no espaço social às pessoas pobres, grupo em que se incluem as mulheres, os negros, deficientes, índios, velhos, crianças - e todos aqueles que não conseguem partilhar do controle do poder social. O estado de exclusão social oblitera a tal ponto esse espaço que mesmo a capacidade de insurgência e de organização contra os mecanismos que o originam são mirrados.

O termo 'exclusão social' surgiu na década de 60, mas a partir da crise dos anos 80 passou a ser intensamente utilizado, integrando discursos oficiais para designar as novas feições da pobreza nos últimos anos. A expressão, por ser relativamente recente, está longe de ser unívoca, mas está sempre relacionada às concepções de cidadania e integração social. Normalmente é empregado para designar a forma de alijamento dos frutos da riqueza de uma sociedade e do desenvolvimento econômico ou o processo de distanciamento do âmbito dos direitos, em especial dos direitos humanos.

Enquanto a pobreza constitui eixo temático das discussões anglo-americanas, a exclusão social passou a centralizar as discussões no continente europeu, particularmente na França. Há autores que entendem que a distinção entre os dois conceitos está relacionada ao modo de se abordar a questão da desigualdade. Segundo essa perspectiva, a noção de pobreza focaliza aspectos distributivos, como indica uma de suas definições mais comuns "a falta de recursos à disposição de um indivíduo ou de uma família". A idéia de exclusão social, por sua vez, está centrada nos aspectos relacionais, isto é, "na participação social inadequada, a ausência de proteção social, ausência de integração social e ausência de poder". Outros autores, por outro lado, passaram a perceber também a pobreza como resultado de certo padrão de relações entre as pessoas e não simplesmente uma acumulação insuficiente de produtos ou bens. Como Geneviève Azam aponta, "é sem dúvida por se esquecerem que a pobreza é o sintoma de uma relação entre os homens que as sociedades modernas esperaram poder erradicá-la por meio de uma produção frenética e ilimitada".

Portanto, a diferença específica entre os dois conceitos não reside neste ponto. A Comissão Européia aproximou a noção de exclusão social da idéia da realização inadequada ou insuficiente dos direitos sociais. Room aponta o trabalho do Observatório Europeu para o Combate à Exclusão Social, que tem por função analisar a efetividade das diferentes políticas locais, regionais e nacionais, a partir da constatação de que processos de investimento (não só financeiro) ou desinvestimento interferem e mesmo provocam fenômenos de exclusão ou de reinserção social, incluindo investimentos e desinvestimentos em recursos e equipamentos comunitários locais. Os obstáculos postos às pessoas ao exercício de seus direitos e as conseqüências daí decorrentes quanto à não participação nas instituições principais da sociedade são os aspectos-chave da exclusão social. O trabalho desse Observatório permite ver mais claramente a extensão do sentido dessa nova expressão, não só para identificar os processos geradores da exclusão, mas também para identificar as políticas mais adequadas à solução ou ao tratamento desses processos.

O termo exclusão social é, portanto, mais do que um modismo, ou um simples sinônimo de algo já existente. Seu arco de sentidos é mais amplo que o do termo 'pobreza', pois abrange a idéia de direitos perdidos, não acessíveis ou exercíveis, ao menos nos mesmos moldes e extensão de outras pessoas consideradas 'incluídas'.

Esse enfoque sobre as relações que determinam a exclusão social permite que se afaste definitivamente a idéia, por vezes arraigada, de que a pobreza e a exclusão social decorrem naturalmente da vida em sociedade ou do inelutável progresso. Ou de que, por razões biológicas ou psicológicas, algumas pessoas não são capazes de se ambientar favoravelmente dentro das relações capitalistas. Ocorre que, quando metade da população do país é de tal modo pobre que não consegue exercer plenamente seus direitos humanos, algo não pode estar correto nesse tipo de raciocinar. Nessa linha, é como se, como bem observa Azam, as atividades econômicas tivessem o condão de, por si, criar uma sociedade harmoniosa. O naturalismo fatalista se estende, ainda, ao caráter das leis econômicas. A sociedade é apresentada como submetida às leis econômicas que não mais se originariam das escolhas humanas. A exclusão passa a ser vista como natural e mesmo inerente, reforçando a crença no progresso contínuo, sob uma racionalidade instrumental que faz das pessoas, assim como do meio ambiente, nada mais do que recursos ou meios para a obtenção do maior lucro, à margem das escolhas políticas e sociais.

Inclusão/exclusão e pobreza/riqueza são dicotomias relacionadas à desigualdade e, portanto, ao tema da igualdade. Por via de conseqüência, são relações e não estados, relações estas ligadas à oposição feita entre liberdade e igualdade, que estariam uma para outra como que numa gangorra. Esta oposição, no entanto, é indevida e encontra justificativa no modo individualista - e mesmo hedonista - de mirar a liberdade. Ocorre, porém, que as desigualdades sociais não se dão exclusivamente na esfera das relações privadas, isto é, entre particulares. Não estão situadas - e nem podem estar - fora da dimensão da esfera pública. É indevido associar-se a liberdade ao público e a igualdade ao privado, de forma a situar somente a liberdade no plano da regulação estatal para a sua proteção, especialmente pelo direito civil e pelo direito penal. Nada há no sistema jurídico que permita comparar o nível de proteção da liberdade com o nível de proteção da igualdade, em seu sentido material. A igualdade formal permanece somente como o eixo legitimador do sistema liberal de atribuição de direitos. Porém, exatamente porque o exercício da igualdade material está geneticamente ligado ao exercício da liberdade, torna-se a primeira (a igualdade) de fundamental relevância para a esfera pública, impondo a ação do Estado para sua proteção, especialmente com a implementação de políticas sociais e econômicas. Jamais se poderá falar, por conta do modo como opera o sistema capitalista - que faz maximizar o lucro com a desvalorização da mão-de-obra -, que a desigualdade existe por conta da preguiça ou da ausência de vocação para o trabalho e para a riqueza, mantendo certo número de pessoas na miséria. Este darwinismo social é argumento próprio dos que vêm a desigualdade na distribuição da riqueza como natural ao primado da liberdade - em sua acepção absoluta.

Ao se tratar um tema tão complexo, não se pode recorrer a simplificações que, conquanto facilitem a análise e, muitas vezes, possibilitem ver com clareza os aspectos mais agudos, de fato obscurecem a percepção e o tratamento de uma realidade rica e de múltiplas faces. A verdade é que a redução da complexidade de um problema - especialmente se social ou econômico - freqüentemente conduz ao desperdício de recursos com políticas públicas de escassa eficácia.

O dever de proteção contra todas as formas de destituição

O combate à pobreza e à exclusão social, como formas de desigualdade que repercutem em todas as dimensões da pessoa, constituem imperativos éticos e, como parte importante da questão social atual, repercutem nas políticas socialistas e mesmo nas neoliberais, interna e internacionalmente. Sendo assim, refletem nos sistemas jurídicos que trazem positivados como obrigação jurídica deveres de inclusão social e de erradicação das causas geradoras da desigualdade.

A Constituição Federal promulgada em 1988 ergue no artigo 3º a igualdade, em várias de suas manifestações, como objetivo fundamental da República. Os quatro incisos desse artigo são explícitos em determinar os aspectos que devem constituir a prioridade da atuação pública e privada para a consolidação do Estado Democrático de Direito. É o artigo 3º que, por oposição, se reconhecem as disfunções de nossa sociedade e se coloca como meta sua correção:

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Plasmados dessa maneira, tais objetivos revestem a razão de ser do Estado brasileiro, as cláusulas do nosso pacto social, para o qual os direitos fundamentais são os meios para sua consecução e o sistema jurídico, em sua inteireza, garante os modos para o seu necessário atingimento. Não se tratam, pois, de meras normas programáticas, destinadas simplesmente a pacificar o conflito social pela positivação, e cuja ausência de efetividade deve ser objeto de puro conformismo. Esses objetivos fundamentais da República constituem obrigações de resultado que o poder público e a sociedade devem conjuntamente buscar.

Com vistas à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, princípio dos quais os demais relacionados no artigo 3º são corolários diretos, a Constituição estabelece os direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, em todas as suas formas e meios descritos no artigo 5º; os direitos sociais como a educação, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, à proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, como previsto nos artigos 6º a 9º e em todo o Título VIII -Da Ordem Social (arts. 193 a 222). A Constituição também impõe aos agentes econômicos a obrigatoriedade de operar conforme os objetivos fundamentais mencionados, como decorre do artigo 170 e incisos III, VII e VIII. Quanto ao Poder Público, a Constituição explicitamente atribui no artigo 23, inciso X, competência comum à União, Estados, Distrito Federal e Municípios "combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos".

O artigo 23 traz cristalinamente caber aos três níveis da Federação não somente implementar medidas de redução ou alívio da pobreza, mas adotar e perseguir políticas efetivas que combatam as causas que a provocam, assim como os fatores que favorecem a marginalização, aliando a isso o dever de promover a integração social dos setores desfavorecidos.

No âmbito internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 estabelece que os direitos econômicos, sociais e culturais são indispensáveis à dignidade da pessoa e ao livre desenvolvimento da personalidade e que sua realização constitui direito de cada membro da sociedade (art. XXII). A Declaração prevê os direitos ao trabalho, ao lazer e ao repouso, à saúde e à instrução, sempre contextualizados para o livre desenvolvimento da personalidade das pessoas. É interessante notar que seu texto não coloca o trabalho como única forma de 'redenção' social, mas como um dos meios de proteção social. A leitura dos artigos XXIII e XXV o demonstram claramente:

Art. XXIII - 1. Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.

2. Toda pessoa que trabalha tem o direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.

Art. XXV - 1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços socais indispensáveis, o direito à segurança, em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.

O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos explicitam em preâmbulo de idêntica redação a relação entre a privação no âmbito econômico e o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais, ao dispor que os Estados-Partes reconhecem "que, em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o ideal do ser humano livre, liberto do temor e da miséria, não pode ser realizado a menos que se criem condições que permitam a cada um gozar de seus direitos econômicos, sociais e culturais, assim como de seus direitos civis e políticos."

Sem que entremos em considerações sobre as razões políticas que determinaram a elaboração de dois tratados ao invés de um único documento, o fato é que os direitos garantidos em cada um dos Pactos são completares recíprocos entre si. Ou seja, não é possível conceber o pleno exercício dos direitos civis e políticos se os direitos econômicos, sociais e culturais não estiverem garantidos e efetivados - e vice-versa. Como dito no preâmbulo aos Pactos, enquanto o ser humano não estiver liberto do temor e da miséria, permanecerá subjugado, não será livre e não terá meios de desenvolver livremente sua personalidade. Em uma palavra, não será pessoa.

A Declaração e o Programa de Ação de Viena traz expressamente que "a existência de situações generalizadas de extrema pobreza inibe o pleno e efetivo exercício dos direitos humanos" (I - 14). Afirma, também, que "a pobreza extrema e a exclusão social constituem uma violação da dignidade humana e que devem ser tomadas medidas urgentes para o conhecimento maior do problema da pobreza extrema e de suas causas, particularmente aquelas relacionadas ao problema do desenvolvimento, visando a promover os direitos das camadas mais pobres, pôr fim à extrema pobreza e à exclusão social e promover uma melhor distribuição dos frutos do progresso social. É essencial que os Estados estimulem a participação das camadas mais pobres nas decisões adotadas em relação às suas comunidades, à promoção dos direitos humanos e aos esforços para combater a pobreza extrema." Além destes, vários outros ítens mencionam situações de desigualdade jurídica, social, econômica e política de minorias étnicas e religiosas, mulheres, idosos, crianças e pessoas e grupos que se tornaram vulneráveis.

Esta breve descrição nos permite perceber o abismo existente no Brasil entre o ser e o dever-ser em sede de direitos humanos.

Desigualdade de direitos

As situações relacionadas à pobreza e à exclusão não constituem um bem, algo que se deseje de modo espontâneo. Intuitivamente, não é algo que se queira para si ou para outra pessoa, havendo alternativas dignas, pois, sabemos, ou ao menos intuímos, que a escassez de recursos a ela inerente não permite o acesso a numerosos bens imprescindíveis à sobrevivência pessoal e em sociedade ou valorizados socialmente como necessários para manter o respeito como pessoa frente aos outros. Dentre os bens imprescindíveis à subsistência elencam-se não somente aqueles necessários à própria existência física no mundo, mas também os necessários a que o ser humano possa ser reconhecido como uma pessoa, com direitos e com deveres face aos demais na comunidade, que tenha a possibilidade de, sempre que quiser, participar ativamente na conformação e confirmação das regras que governam a todos.

Se é algo que não se quer para si ou para os outros, decorre um dever ético de combatê-la, assim como aos mecanismos e processos que a geram. O Estado, na sua obrigação de dar a todas as pessoas acesso e meios de exercício dos direitos, e com especial ênfase dos direitos fundamentais expressos na Constituição Federal e nos Tratados Internacionais de Proteção de Direitos Humanos, estabelece garantias constitucionais para esse acesso e exercício - especialmente o mandado de segurança e o habeas-corpus - , assim como desenvolve e implementa políticas públicas sociais e econômicas.

Todavia, persiste nos três Poderes, inclusive nos tribunais - em reflexo da ideologia vigente por quem pode sustentá-la - o viés privatista que faz da propriedade e do contrato - direitos econômicos que sequer constaram do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - institutos mais sólidos do que todos os direitos sociais e do que grande parte dos direitos civis. O fato de se apenar o crime contra o patrimômio com pena privativa de liberdade evidencia o paradoxo - mais grave ainda é em países que mantêm a pena de morte para essa mesma hipótese.é o patrimônio valorado como superior à liberdade e mesmo à vida. A inexistência de limites à 'riqueza extrema' , assim como a possibilidade da propriedade desvinculada da atividade econômica de vários imóveis ou de grandes extrações de terra, ao lado de milhões de pessoas sem terra para cultivar ou sem meios de arcar com a própria moradia constitui outro paradoxo.

Práticas percebidas como normais à livre iniciativa, como encerramento da fábrica na qual trabalha a população economicamente ativa de toda uma cidade, a substituição de plantios de feijão por soja ou hortaliças por flores ou a aquisição de uma série de pequenas propriedades afetam negativamente os direitos e a qualidade de vida de grande número de pessoas. Henry Shue observa a propósito de práticas dessa espécie que a concepção, o desenvolvimento e a manutenção de instituições que protejam a subsistência das pessoas contra os maus ou insensíveis - ou simplesmente contra os mais fortes - está na mesma medida da concepção e execução de programas de controle de crimes violentos contra a pessoa. Mais ainda, ele salienta que as práticas que possam alterar a oferta de gêneros de que dependa a subsistência das pessoas devem ser controladas e acompanhadas. E, se necessário, o Estado deve fazer cumprir o dever da sociedade de proteção às pessoas contra a perda da capacidade da própria subsistência promovida por ação ou omissão dos outros. Se fossem implantados mecanismos jurídicos para a proteção da subsistência - integrante do direito à vida digna - a necessidade de políticas públicas para a compensação por privações seria menor.

A bem dizer, mecanismos jurídicos existem no próprio Código Civil, que poderiam ser utilizados para dar efetividade ao direito à vida digna, para que ações dos que detêm poder não degradassem as condições de vida dos não-ricos, sendo o artigo 159 o exemplo primeiro, quanto ao dever de indenizar que cabe àquele que causar dano a terceiro por ação ou omissão, intencionalmente, ou por negligência, imprudência ou imperícia. Além disso, não é demaisado lembrar que já Ruy Barbosa entendia adequado o uso do interdito possessório para a proteção de direitos pessoais - e não só para a posse de direitos reais. Porém, é exatamente esse privatismo propriamente elitista que impede a articulação do direito para a distribuição do poder político e econômico para todos as pessoas e, mais do que isso, opera para conservar a distribuição desigual do poder e da riqueza. Note-se que se é conservador o direito e se tem ele a função de atribuir forma às relações de produção da sociedade capitalista, intervindo na sua constituição, funcionamento e reprodução , são os operadores do direito, contrariando a letra expressa da lei, que fazem da propriedade valor superior à liberdade, em todas as suas formas, e superior aos direitos à saúde, à moradia, à educação, e tantos outros que são fundamentais para que a pessoa possa agir em sociedade, possa ser reconhecida como agente dotado de autonomia e possa ser respeitada como tal.

Vale ressaltar, é a leitura equivocada e parcial do princípio da liberdade - liberdade como livre iniciativa - que tem causado, mantido e aprofundado as desigualdades, em ofensa ao princípio gêmeo do primeiro, o princípio da igualdade.

Assim, se avanços existem, ainda há muitos outros a serem conquistados, mesmo no aspecto formal, do reconhecimento de direitos.

A privação dos recursos necessários a garantir e preservar a dignidade da pessoa importa a retirada da possibilidade do pleno desenvolvimento da personalidade da pessoa. Retira-lhe a possibilidade do desenvolvimento da essência humana por excelência, a criatividade. O agir criativo, que permite ao ser humano transformar o seu meio, sempre aprimorando-o, é faculdade que deve estar continuamente livre e acessível materialmente a todas as pessoas, e não somente a algumas. Hannah Arendt trata extensamente sobre esse tema em sua obra, demonstrando como os sistemas totalitários se articulam para cerrar a possibilidade da vita activa às pessoas.

O estado de destituição que decorre da desigualdade econômica implica necessariamente desigualdades que se estendem aos níveis social, cultural e político, como apontado no início deste trabalho. A desigualdade econômica conduz a outras desigualdades em virtude da racionalidade vigente nos espaços sociais da atualidade, em que valor maior é atribuído ao 'o que' se tem e 'quanto', ao invés do o que se é e como. Essa racionalidade consumista somente confere identidade ao ter e não ao ser. Ela é individualista e baseada na competição, na concorrência entre as pessoas, não contribuindo para a estabilidade dos liames de integração social que permitem o agir construtivo de cada um em sociedade. A solidariedade é de plano expurgada para o campo da moral, esta mais e mais fragilizada pelos ditames da dinâmica dos mercados. Em uma sociedade em que a racionalidade das relações é consumista, as relações entre as pessoas também passa a se pautar pelo consumo, ou seja pela relação desigual em que um dos lados pretende obter do outro tudo o que ele pode lhe oferecer de útil, até o seu esgotamento. Ocorre que, nesse quadro, as pessoas absolutamente pobres, de tudo destituídas, pouco ou nada têm a oferecer à outra parcela.

Importa explicitar que a desigualdade econômica grave e a destituição que lhe é correlata cerceiam o acesso material aos direitos fundamentais da pessoa, garantidos formalmente pelos instrumentos internacionais de proteção de direitos humanos, pela Constituição Federal e pelas leis e regulamentos infraconstitucionais. A situação de pobreza viola, a um só tempo, os direitos civis e políticos, assim como os econômicos, sociais e culturais. A pessoa destituída de recursos, que se encontra além do estado de vulnerabilidade ou de precariedade não tem elementos próprios e meios para dar início ao exercício de seus direitos fundamentais e, muitas vezes, sequer sabe de sua existência enquanto tal. Por isso, o pobre, expressão adjetiva que se substantivou, é vítima de numerosas violações de direitos humanos e sequer se dá conta disso, sobretudo quanto aos direitos econômicos, sociais e culturais. Quanto aos direitos civis e políticos, a despeito de sempre violados, existe ao menos a consciência da violação, sendo ela mais um elemento a confirmar na pessoa o sentimento de impotência e aniquilando ainda mais seu auto-respeito e o respeito que os outros poderiam - porque já não podem - ter por ela.

O reverso do jogo entre os níveis econômico e social também é produtor de destituições. A desigualdade social que decorre de preconceitos culturalmente arraigados também impõem à pessoa limitações na capacidade de auferir renda pelos meios normais de inserção e de convertê-la em realizações pessoais em sociedade. A questão de gênero é bastante conhecida e sabidamente o preconceito contra a mulher restringe-lhe as oportunidades de emprego e de ascensão, e ainda lhe nega iguais salários para iguais atividades. Considerando esses aspectos e somando-se ao fato que as atividades estereotipadas como femininas igualmente representam limitações ao desenvolvimento pleno da pessoa segue-se que as desigualdades sociais vêm passo a passo com a desigualdade econômica. O mesmo vale para a questão racial, para o problema da idade e para os deficientes. Preconceitos culturais produtores de desigualdades sociais aprofundam a desigualdade econômica e não raro, aniquilam as chances de inserção social, salvo poucas exceções. A possibilidade de resgate é tão mais difícil quanto maiores as desigualdades socialmente impostas. Assim, as chances de sair do estado de destituição para uma mulher são mais difíceis se ela for negra, mais ainda se também idosa.

Em virtude disso, conclui-se que a pobreza e a exclusão não surgem por geração espontânea e não contituem situações estáticas e autoreferenciadas, mas são resultado do modo de relação entre pessoas e grupos. A situação econômica desfavorável de uma pessoa ou de um grupo maior ou menor de pessoas se dá em virtude da natureza das relações presente numa sociedade e pelas racionalidades que a dominam, em especial quando presentes mecanismos e práticas de exploração econômica, social e cultural. Tais mecanismos se verificam concomitantemente nas três esferas e se acham entranhados na sociedade a ponto de serem considerados padrões normais de relacionamento entre os grupos, dificultando a transformação social e a emancipação pessoal de cada um desses membros submetidos ou excluídos.

Estado e políticas públicas

Se a exclusão social e a pobreza que a ela está associada decorrem de relações em sociedade e sendo o Estado o mediador por excelência dessas relações, segue-se cristalinamente que o Estado desempenha papel importante na própria existência da desigualdade, seja ela econômica, social ou política.

Ao analisar suas causas, Blandine Destremau lembra que a pobreza é produzida e reproduzida por meio de um processo de diferenciação social e econômica afetando a distribuição da propriedade, assim como de bens educacionais, sociais e simbólicos - seguindo o pensamento de Pierre Bourdieu. Daí segue que a pobreza é parte integrante de um sistema e de funções que são intrinsecamente moldadas por essas diferenciações e pela distribuição desigual de riquezas, renda, poder, valorização social e meios de atuação em sociedade.

O Estado desempenha, no presente jogo de forças sociais, papel fundamental para a manutenção da ordem e de algum tipo de estabilidade, de onde também extrái sua legitimidade. Nesse processo, o Estado assume o jogo - sujo - de manter em níveis administráveis e suportáveis as desigualdades e especialmente as tensões que surgem dessas desigualdades, a exploração do trabalho e a pobreza.

O Estado desempenha atividades inescapavelmente ligadas à manutenção e controle da pobreza, por meio de políticas que direta ou indiretamente, impedem o desenvolvimento livre das pessoas em sociedade, a curto ou médio prazos. Assim foi com a política educacional do regime militar, instituida pela Reforma do Ensino em 1971 que privilegiava o ensino fundamental somente dos 7 aos 14 anos - em tese até a 8ª série - e assim é com a política de saúde praticada, os projetos de habitação, que raramente alcançam os mais pobres e assim por diante.

Explicitando os modos de atuação do Estado na função de gerenciamento da pobreza, identifica-se caber ao Estado a implementação de normas e práticas sociais e econômicas em vários níveis, em especial quanto à (a) definição da pobreza e conformação de atitudes sociais como parte de relações discursivas, inclusive dentro das relações econômicas; (b) quanto à distribuição e alocação de recursos; e (c) quanto às ações das instituições e dos agentes públicos que de algum modo lidam com a pobreza e com os excluídos.

Blandine Destremau observa acertadamente que as principais instituições vinculadas à produção da pobreza podem ser consideradas como sendo o poder judiciário, as instituições econômicas e as instituições de bem-estar social, todas instrumentalizadas pelo direito.

Nessa linha, como é o modo de funcionamento e como se materializa o acesso do sistema jurídico e seus institutos, entendidos não somente como sistema de direitos e obrigações, e também do Poder Judiciário aos pobres? O olhar simples permite evidenciar a existência de modos desiguais de acesso aos mecanismos jurídicos, em desfavor dos que não detêm poder econômico ou poder social. É também inquestionável a incipiência dos meios de proteção oferecidos aos grupos mais vulneráveis e mais fracos da sociedade; assim como das oportunidades oferecidas para a melhoria de sua qualidade de vida por meio de ações judiciais e para a ascensão econômica e social. Os meios oferecidos pelo sistema jurídico para o acesso e a realização do conjunto dos direitos humanos, civis, políticos, econômicos, sociais e culturais esse sistema jurídico é indubitavelmente mais frágil em relação aos mais pobres. As principais instituições econômicas também operam como produtoras e reprodutoras da exclusão: o modo de ordenação da propriedade, do sistema financeiro, do sistema tributário e da política monetária, tudo contribui para a consolidação da desigualdade sofrida por este país. A assistência social, um direito constitucional, ainda é tratada como caridade não só pela sociedade, como pelo Estado também. As dificulades de acesso aos benefícios instituídos pela regulamentação à Lei de Organização Assistência Social constituem prova contundente da exclusão promovida pelo próprio Estado.

As relações do Estado com a pobreza são, portanto, sistêmicas. Sendo assim, para que se possam desenvolver políticas públicas eficientes para a redução ou a erradicação da pobreza, que não sejam meramente assistencialistas, ou seja, compensatórias das disfunções do mercado, é necessário dar relevo e compreender as funções do Estado na produção, reprodução e administração/gerenciamento da pobreza. Sem essa compreensão e sem a percepção que as relações que produzem e reproduzem a pobreza são relações de poder entre grupos sociais mediadas pelo Estado, a implantação de políticas que permitam reduzir ou mesmo erradicar a pobreza não será factível. Partindo dessa premissa, do modo sistêmico entre Estado e pobreza, é que se poderá pensar adequadamente a regulação social, econômica - pela via do direito - das relações atinentes à pobreza, regulações estas envolvendo mecanismos e estruturas que permitem aos sistemas político, econômico e social se autoreproduzirem e de modo a evitar crises mais graves. Note-se que esta é a perspectiva que pressupõe e aceita a dinâmica capitalista e seu modo de produção - e exploração - e que vê necessidade na redução da pobreza para a própria continuidade do modo capitalista de produção.

Para a erradicação da pobreza e das desigualdades, objetivo fundamental da República constitucionalizado no artigo 3º da Constituição Federal, é necessário modificar-se os padrões de relações culturais e econômicas que as provocam e que aprofundam a exclusão, inclusive as sustentadas pela atividade estatal na implementação de políticas públicas, na formulação de leis e no julgamento das demandas levadas aos tribunais. A adoção de ações afirmativas e de políticas compensatórias, como a renda mínima , são necessárias, mas apenas como parte de um conjunto maior de políticas públicas de fundo, que possibilitem transformar as relações de poder em sociedade. As medidas e políticas públicas destinadas a dar efetividade ao artigo 3º da Constituição, que necessariamente devem tocar o modo de ordenação da atividade econômica, não podem, ademais, ser paternalistas. O paternalismo anula a autonomia da pessoa e, em conseqüência, a possibilidade da ação criativa, da participação da pessoa na sua própria construção e na construção da comunidade social e política. Aristóteles aponta, na Política, o exemplo dos cartagineses que mantinham políticas de solidariedade entre ricos e pobres, em que os nobres proporcionavam aos pobres meios de trabalho e o exemplo de Tarentum, em que o povo compartilhava o uso de suas propriedades com os pobres. Na mesma passagem, Aristóteles observa que "a extrema pobreza diminui o caráter da democracia e que, portanto, medidas devem ser adotadas para lhes proporcinar prosperidade duradoura; e que é igualmente do interesse de todas as classes que os proventos das receitas públicas devem ser acumulados e distribuídos entre os pobres, se possível em quantidades que os possibilite adquirir um sítio ou, ao menos, iniciar um comércio ou plantação". Delmas-Marty bem observa que "não se trata mais de assistência, mas de integração à sociedade, com o estatuto de cidadão. Não se trata mais de sobreviver, mas de viver plenamente, com os outros e ser reconhecido como um semelhante". Sem que todas as pessoas possam agir com autonomia na esfera privada, nas relações sociais e com autonomia na esfera pública, na dinamização dos direitos políticos na participação da gestão da coisa pública, não se poderá falar em democracia. A permanência da exclusão, da pobreza e das demais formas de opressão social são inconciliáveis com a idéia de república e com a materialização da democracia.

BIBLIOGRAFIA

AZAN, Geneviève. "Economie sociale: quel pari?" em Economie et Humanisme, nº 347, décembre 1998 - janvier 1999

BARBOSA, Ruy. Posse dos direitos pessoais. Ed. Saraiva. 1986 (1900). São Paulo

Bengoa, José "Pobreza y vulnerabilidad", in Temas Sociales, n. 10, abril 1996

Cousins, Christine "Social Exclusion in Europe: paradigms of social disadvantage in Germany, Spain, Sweden and the United Kingdom", em Policy and Politics, vol. 26, nº 2.

DAL-ROSSO, Sadi e RESENDE, Mara Lúcia As condições de emprego do menor trabalhador, Ed. Thesaurus, 1986.

Delmas-Marty, Mireille Trois défis pour un droit mondial. Seuil. Paris, 1998.

DION-LOYE, Sophie. Les pauvres et le droit.Col. que sais-je? PUF. Paris, 1997.

JEAMMAUD, Antoine "Critica del derecho en Francia: de la búsqueda de una teoría materialista del derecho al estudio crítico de la regulación jurídica" em La critica jurídica en Francia. Universidad Autonoma de Puebla, 1986.

Massa Arzabe, Patricia H. e Graciano, Potyguara G. "A Declaração Universal dos Direitos Humanos - 50 anos" em Direitos Humanos: construção da liberdade e da igualdade, org. Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, Centro de Estudos PGE/SP, Série Estudos, São Paulo, 1998.

SEN, Amartya Inequality Reexamined. Oxford University Press, Oxford, 1992-1997.

____________ "Inequality, unemployment and contemporary Europe" in International Labour Review, vol. 136 (1997, n.2)

SINGER, Peter Practical Ethics. 2nd edition. Cambridge University Press. Cambridge, 1997

SHUE, Henry. Basic Rights: subsistence, affluence and US foreign policy 2ª ed. Princeton University Press. Princeton, 1996

Desde 1995 © www.dhnet.org.br Copyleft - Telefones: 055 84 3211.5428 e 9977.8702 WhatsApp
Skype:direitoshumanos Email: enviardados@gmail.com Facebook: DHnetDh
Busca DHnet Google
Notícias de Direitos Humanos
Loja DHnet
DHnet 18 anos - 1995-2013
Linha do Tempo
Sistemas Internacionais de Direitos Humanos
Sistema Nacional de Direitos Humanos
Sistemas Estaduais de Direitos Humanos
Sistemas Municipais de Direitos Humanos
História dos Direitos Humanos no Brasil - Projeto DHnet
MNDH
Militantes Brasileiros de Direitos Humanos
Projeto Brasil Nunca Mais
Direito a Memória e a Verdade
Banco de Dados  Base de Dados Direitos Humanos
Tecido Cultural Ponto de Cultura Rio Grande do Norte
1935 Multimídia Memória Histórica Potiguar