Pobreza,
Exclusão Social e Direitos Humanos:
O Papel do Estado
Patrícia Helena Massa Arzabe
Procuradora
do Estado
Doutoranda em Direito pela Universidade de São Paulo
Muitas são as indagações
que podem ser trazidas à análise do tema da pobreza, da exclusão
social e da questão do acesso e exercício de direitos na sociedade
moderna, seja ela urbana e industrializada ou agrícola. O que
caracteriza a pobreza, o que faz dela um problema social, que
traços a diferem da pobreza de outrora, o que permite falar
em exclusão social, o que cabe à sociedade e ao Estado nesse
processo e, em particular, em que medida está associado o tema
da pobreza com o Direito e os direitos? Estas são algumas das
perguntas que este trabalho pretende responder para demonstrar
a importância do Estado nos processos que geram e mantêm a desigualdade
social e a necessidade dos direitos econômicos, sociais e culturais
para possibilitar aos 'menos iguais' o exercício ativo dos direitos
civis e dos direitos políticos relevantes para a democracia
efetiva.
As discussões acadêmicas
e políticas vêm proliferando neste campo, após se verificarem
que as questões de gênero, de raça, de origem, de idade, todas
constituintes de problemas sociais de séria gravidade convergem
ao problema da pobreza e da desigualdade econômica. É nestas
circunstâncias que mulheres, negros, índios, velhos, crianças,
deficientes, migrantes e imigrantes compartilham em geral de
desigualdades comuns à carência econômica e não raro à pobreza
absoluta: a desigualdade de saúde, de moradia, de ocupação social,
de bem-estar e, traço comum, a desigualdade política. A pobreza,
nas suas feições de desigualdade de renda e de acesso a recursos,
repercute claramente na participação política. Barreiras efetivamente
sólidas se acumulam, obstando a participação na democracia e
aprofundando os problemas que fazem dissolver a integração social.
O caso brasileiro
bem reflete as conseqüências da pobreza no acesso e no exercício
de direitos fundamentais. Como líder às avessas no processo
de distribuição de renda no mundo, campeão da concentração da
renda nas mãos de poucos, o Estado brasileiro distribui a mais
da metade de sua população doenças, ausência de moradia, educação
insuficiente que não permite trespassar a barreira do analfabetismo
funcional, desemprego e desagregação cultural. Largos extratos
da população sofrem não somente a ausência do Estado, mas a
omissão ativa, que privilegia parcelas reduzidas e aquinhoadas
da sociedade, caracterizando verdadeira violação dos direitos
humanos, em franca oposição aos fins legitimadores da razão
de constituição e de existência do Estado.
Nossos números
são efetivamente estarrecedores. A despeito de o Brasil ter
garantido sua posição de oitava economia do mundo no 22º Relatório
Mundial sobre o Desenvolvimento (1999), elaborado pelo Banco
Mundial e seu PIB per capita em 1998 ser de US$ 4.750,00 (o
da Bolívia foi US$ 1,00 e da Colômbia US$ 2,60) o Brasil permanece
líder na desigualdade de renda. Dos números citados, vê-se que
a renda nacional é suficiente para satisfazer as necessidades
mínimas de cada pessoa. Nossa pobreza deriva de mecanismos econômicos
e sociais perversos de distribuição extremamente desigual da
renda. Segundo estudo da economista Sonia Rocha, do IPEA, órgão
do governo federal, os 50% mais pobres do país detêm cerca de
13% da renda nacional, parcela equivalente ao que os 1% mais
ricos detêm. Em 1997, antes do país mergulhar na crise financeira
que resultou na adoção de políticas ainda mais recessivas, o
país contava 51,84 milhões de pessoas vivendo na pobreza absoluta,
na indigência.
O abismo na distribuição
nacional da renda continua aumentando. Só na região metropolitana
de São Paulo, em 1994 o extrato de 5% das famílias mais ricas
auferia renda mensal 37,4 vezes superior às 5% mais pobres.
Quatro anos depois, em 1998, essa mesma faixa ganhava 45 vezes
mais do que os 5% mais pobres. Isso em tempos de estabilidade
econômica. Lembremos que após outubro de 1998 o desemprego aumentou,
chegando a 19% em São Paulo e o nível da atividade econômica
se reduziu. Considera-se, então que São Paulo teria 24,5% de
sua população abaixo da linha de pobreza, enquanto o Rio de
Janeiro teria 35% e Minas Gerais 51%. Os outros Estados estão
em situação bastante pior para produzir a cifra nacional de
54% de pobres no Brasil. O Estado de São Paulo teria 10% de
sua população (3,4 milhões de pessoas) abaixo da linha de pobreza
absoluta, ganhando cada um menos de R$ 73,00. A linha da pobreza
relativa estaria até o limite de renda em torno de R$ 149,00,
por pessoa. Acima disso, deveria a pessoa ser considerada, pelos
critérios governamentais, não-pobre, ou seja, pertencente à
classe média. Entretanto, é difícil dizer que esse valor possa
satisfazer as necessidades mais elementares de alimentação,
saúde, moradia, vestimentas e lazer para atestar a existência
de uma vida digna em regiões urbanas com elevado custo de vida.
Pelas observações
acima, há que se ter bem claro que os números oficiais indicadores
da pobreza devem ser considerados como uma referência, e não
um espelho fiel da realidade. Não é imparcial a utilização de
critérios distintos para a aferição da distribuição da renda.
A seleção desses critérios presta-se exatamente a produzir resultados
ou imagens de realidade mais favoráveis à sua imagem. Destremau
salienta que o discurso público sobre a pobreza, incluindo a
manipulação das medições dos níveis e da extensão da pobreza,
constitui um ato político, que visa tanto à legitimidade quanto
ao controle. E pode desempenhar diferentes funções, como por
exemplo: um número elevado do pobres pode ser percebido como
falha do Estado em integrá-los e promover seu bem-estar, como
também pode contribuir para a construção da imagem de um "país
pobre" para estimular programas internacionais de doações
ou financiamentos a custo reduzido para iniciativas de combate
à pobreza.
Não cabe aqui analisar
exaustivamente a racionalidade que faz mover o Estado de forma
a manter mecanismos de reprodução de desigualdade e a implementar
políticas e projetos que beneficiem agentes econômicos - muitas
vezes estrangeiros. Basta que se relacione o modo de funcionamento
do sistema capitalista brasileiro e internacional, os mercados
e o Estado. Autores como Habermas, Claus Offe e, entre nós,
Alaôr Caffé Alves e Eros Grau já estudaram e identificaram o
papel do Estado na constituição e reprodução dos mercados, por
meio da proteção institucional da propriedade e do contrato
para a viabilização da circulação mercantil. O Estado também
ampara o mercado oferecendo-lhe os meios e condições necessárias
à sua reprodução pelo estabelecimento das infra-estruturas,
como construção de estradas, ferrovias, portos, hidrelétricas,
além de formação e capacitação de mão-de-obra, subsídios, proteções
tarifárias, etc. Aliada a essa racionalidade de privilégio a
determinados setores produtivos, a corrupção e o nepotismo terminam
por macular a legitimidade que deu ensejo à consolidação do
Estado como guardião dos direitos e da liberdade de todos os
membros da sociedade.
Cabe-nos analisar
a racionalidade que deve nortear a identificação da pobreza
como uma disfunção relacional que viola a autonomia da pessoa,
a dignidade, o respeito e que impede pessoas situadas nesse
âmbito de se desenvolver plenamente como pessoa dentro da sociedade,
ou seja, dentro do jogo das relações e exigências sociais da
atualidade.
As faces de um
conceito
O termo 'pobreza'
traz significações diversas e é freqüente vê-lo acompanhado
de qualificativos que alteram seu sentido. Assim é que se lê
pobreza absoluta, pobreza relativa, pobreza estrutural, pobreza
urbana, pobreza rural, além da expressão nova pobreza, correlata
a 'novos pobres'.
Outras expressões
são empregadas como equivalentes a pobreza, como miséria, indigência,
carência e, mais recentemente, desigualdade, exclusão, destituição,
precariedade e vulnerabilidade.
A indagação do
que faz com que uma pessoa possa ser incluída dentro do grupo
de pessoas denominadas pobres não porta resposta simples.
José Bengoa observa
que "pobreza é um conceito difícil de definir, mas que
todo mundo entende quando se o menciona. Talvez porque cada
qual, cada indivíduo sabe perfeitamente o que seria para ele
e sua família uma situação de pobreza. Para um poderia ser não
comer; para outro, vestir-se pobremente, para um terceiro, baixar
seu nível de vida habitual. São muito imprecisas, portanto,
as definições habituais sobre a pobreza. Fala-se que a 'pobreza
absoluta' seria aquela em que a pessoa não pode alimentar-se
com o mínimo suficiente para sua manutenção fisiológica. A antropologia
demonstrou a relatividade destes mínimos fisiológicos, pois
que estão sempre determinados culturalmente. Por isso, quando
falamos de 'pobreza' poucas vezes nos referimos aos níveis absolutos.
Trata-se, pois, de um conceito essencialmente relativo. A pobreza
é, em geral, o olhar dos não-pobres sobre os pobres. É um olhar
estereotipado, cheio de temores, ansiedades, visões etnocêntricas
e, mais ainda, com uma proposta implícita de homogeneização
cultural e integração ao consumo. Esta conceituação é mais clara
na literatura que vê a pobreza como 'carência', isto é, como
ausência total ou parcial de bens, serviços, acesso à cultura
e à educação, enfim, à falta de integração à sociedade. Não
é por acaso que em todas as investigações realizadas, as pessoas
que tecnicamente poderiam ser denominadas 'pobres' não se reconhecem
como tais. Ao se lhes perguntar se são pobres, afirmam que não
o são, e que os pobres são outras pessoas mais próximas da 'pobreza
absoluta'. Ninguém quer ser estigmatizado com a definição de
carência. O pobre que reconhece sua pobreza e a aceita, renuncia
à sua superação e faz da mendicância seu ofício e da lástima
seu discurso".
Se por um lado
a avaliação da pobreza possui um caráter subjetivo e contingente,
variando em conteúdo ou intensidade conforme o 'outro' na comparação,
fazendo-nos pensar na pobreza somente como um conceito relativo,
por outro lado, devido à situação de extrema indignidade em
que elevada parcela da população mundial vive, pela falta de
recursos, pela ausência de políticas públicas, pela sujeição
étnica e social e pela absoluta destituição material de direitos,
passou-se a utilizar o conceito de pobreza absoluta para permitir
a aferição dos níveis de destituição, ainda que imperfeita,
para fins de desenvolvimento e implementação de políticas sociais,
permitindo, também, a possibilidade de comparação entre diferentes
regiões e países.
Relativamente equivalente
às idéias de indigência e miséria, a noção de pobreza absoluta
foi cunhada por Robert McNamara, quando presidente do Banco
Mundial, para diferenciar do tipo de pobreza verificado em países
desenvolvidos. Segundo ele, a extrema pobreza consiste "na
condição de vida caracterizada por má-nutrição analfabetismo,
doenças, entornos esquálidos, alta mortalidade infantil e baixa
expectativa de vida, tudo abaixo de qualquer definição razoável
de decência humana". Essa conceituação permite ver melhor,
por contraposição, as nuances da pobreza relativa, visto que
muitas vezes, aqueles qualificados como pobres em relação à
riqueza de seus próximos, podem estar em situação confortável
se comparados aos pobres de uma outra região ou de outro país.
Essa análise mostra a pobreza em seu sentido relativo, ou seja,
indicando o extrato de uma população que tem acesso aos bens
e serviços que garantem a sobrevivência e respeitam os limites
objetivos de uma vida digna, mas que vive em circunstâncias
e condições bastante inferiores aos que estão no outro extremo
da linha de riqueza.
Questão social
e pobreza
Pobreza e privação
são termos próximos, mas não exatamente sinônimos. Há uma distinção
entre a 'privação', em suas várias formas, conseqüências, sentimentos
e sofrimentos a ela relacionados e 'pobreza' como um discurso
construído, cuja forma lhe é dada pelas definições que recebe.
Assim, por exemplo, a definição de uma linha de pobreza estabelece
uma linha administrativa e artifical entre pobres e não-pobres.
É por isso que
surgem problemas com a idéia de pobreza relativa, assim como
com a fixação do critério de estabelecimento da linha da pobreza
extrema ou absoluta, demonstrando que a questão não é simples
e as respostas que lhe são dadas podem trazer conseqüências
bastante significativas, positiva ou negativamente. Amartya
Sen observa que a privação relativa no âmbito da renda pode
significar privação absoluta no campo das capacidades de realização,
visto que em um país afluente, maior quantidade de renda pode
ser necessária para a aquisição de bens suficientes para a consecução
da 'mesma funcionalização social', como 'aparecer publicamente
com dignidade, sem envergonhar-se'. O mesmo vale para a capacidade
de 'tomar parte na vida da comunidade ".
O Brasil não foge
a esse panorama, em vista do custo de vida razoavelmente elevado
em comparação a outros países pobres. Para aqueles que ainda
estão incluidos no mercado formal de trabalho, a lei prevê patamares
mínimos de renda. Entretanto, o salário mínimo nacional, hoje
em torno do equivalente a US$ 65,00 não basta a suprir minimamente
as necessidades de alimentação de uma família vivendo em área
urbana, menos ainda se lembrarmos que, por norma constitucional
inscrita no artigo 7º, IV da Constituição Federal, seu valor
deveria bastar para satisfazer as necessidades de alimentação,
moradia, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte
e previdência social. A dificuldade de conversão da renda oriunda
de salário nesse valor em 'capacidade' de realização e ação
em sociedade é evidente. Todavia, os mesmos US$ 65,00 poderiam
satisfazer as necessidades mínimas acima elencadas em outro
país com custo de vida menor, como em alguns países vizinhos
ao nosso ou países do Oriente ou da África.
Outro aspecto que
cabe lembrar tange a importância de não se limitar a compreensão
da pobreza somente como falta ou insuficiência de renda. Como
Amartya Sen aponta, a pobreza é sobretudo, e na sua parte mais
sensível, uma questão de inadequação dos meios econômicos da
pessoa para a sua realização na sociedade (por realização podemos
também dizer sua expressão como pessoa, seu acontecimento, com
a possibilidade de efetivo desenvolvimento de sua personalidade).
Assim, por exemplo, uma pessoa que possui metabolismo alto,
ou é de grande compleição física, ou ainda sofre de alguma parasitose
que absorve seus nutrientes estará em desvantagem quanto à capacidade
de realizar-se em relação à outra pessoa que receba a mesma
renda, mas que não tenha essas peculiaridades. O mesmo vale
para mulheres grávidas, que demandam mais nutrientes, pessoas
doentes, que necessitam de cuidados especiais e de medicamentos,
pessoas que habitam bairros ou cidades que requerem gastos elevados
com transporte ou segurança, pessoas muito jovens ou muito idosas,
que têm necessidades próprias, famílias numerosas e outras circunstâncias
que, ainda que temporárias, afetam a capacidade de realização
e de exercício de direitos, especialmente em sociedades individualistas
onde a solidariedade e a mútua ajuda constituem exceções.
Características
pessoais, como a idade, doenças ou certas deficiências, que
interferem na obtenção de renda pela via normal de inserção
da pessoa na sociedade, o trabalho, afetam também a conversão
da renda em 'capacidades'. Em conseqüência, tem-se que a vulnerabilidade
das pessoas pobres é multifacetária. As causas que culturalmente
obstam o pleno acesso às atividades econômicas ou ao mercado
de trabalho - o preconceito - impedem também a conversão ótima
da renda em capacidades na sociedade. Dentre os pobres, os mais
pobres, aqueles outrora chamados miseráveis ou indigentes, são
os que menos possibilidade têm de, uma vez excluídos, serem
resgatados para dentro do pacto social.
É por isso que
o critério da baixa renda, por ser independente das condições
pessoais, não serve para avaliar coretamente o universo das
pessoas denominadas pobres. Mais apropriado a um conceito relevante
da pobreza é o critério da inadequação da renda para a geração
das capacidades minimamente aceitáveis. Falando de outro modo,
a renda é fundamental para afastar a pobreza, mas o estabelecimento
de um critério único e objetivo para fixação de quem pertence
ou não a essa faixa social conduz a resultados equivocados por
recusar o reconhecimento das diferenças pessoais que podem fazer
com que uma pessoa de maior renda, que hipoteticamente a situaria
fora da linha de pobreza, possa ser de fato mais pobre que outra
com menor renda, mas com menor demanda de determinados recursos
ou 'insumos'. Daí porque tantas políticas públicas de redução
da pobreza não obtêm o resultado esperado: suas premissas de
ação são falhas, incompletas ou, por tratarem uniformemente
destinatários tão diversos, são erradas.
Cabe notar que,
pela forma com que Amartya Sen enfrenta a problemática da pobreza
e a insere como o eixo em torno do qual devem girar das discussões
acerca da desigualdade, a questão não se resolve com a simples
fixação de uma linha hipotética de pobreza com base na renda
mínima. O critério das 'capacidades', transcendente da visão
limitada da renda, permite melhor apreender a complexidade da
realidade social dos que vivem em condições abaixo do necessário
para a realização eficiente das faculdades humanas na sociedade
atual.
E sua análise,
contextualizada à nossa realidade, não pode prescindir da premissa
de que as causas que obstam o acesso ao mercado de trabalho,
aos bens primários da sociedade e que aprofundam a desigualdade
na distribuição da renda estão intimamente ligadas a preconceitos
contra grupos sociais e a variadas formas de opressão, inclusive
a violência.
Exclusão social
Se o termo pobreza
pode ser construído a partir da definição que recebe, incluindo
ou deixando de incluir grupos sociais, o termo recente 'exclusão
social', ainda que tenha significação certamente difusa e polimorfa,
tem o condão de iluminar justamente o espaço social, jurídico
e político perdido frente ao estado de destituição de recursos
de toda espécie - econômicos, sociais, jurídicos, culturais.
A destituição se apresenta como um monstro tentacular, absorvendo
qualquer possibilidade de atuação no espaço social às pessoas
pobres, grupo em que se incluem as mulheres, os negros, deficientes,
índios, velhos, crianças - e todos aqueles que não conseguem
partilhar do controle do poder social. O estado de exclusão
social oblitera a tal ponto esse espaço que mesmo a capacidade
de insurgência e de organização contra os mecanismos que o originam
são mirrados.
O termo 'exclusão
social' surgiu na década de 60, mas a partir da crise dos anos
80 passou a ser intensamente utilizado, integrando discursos
oficiais para designar as novas feições da pobreza nos últimos
anos. A expressão, por ser relativamente recente, está longe
de ser unívoca, mas está sempre relacionada às concepções de
cidadania e integração social. Normalmente é empregado para
designar a forma de alijamento dos frutos da riqueza de uma
sociedade e do desenvolvimento econômico ou o processo de distanciamento
do âmbito dos direitos, em especial dos direitos humanos.
Enquanto a pobreza
constitui eixo temático das discussões anglo-americanas, a exclusão
social passou a centralizar as discussões no continente europeu,
particularmente na França. Há autores que entendem que a distinção
entre os dois conceitos está relacionada ao modo de se abordar
a questão da desigualdade. Segundo essa perspectiva, a noção
de pobreza focaliza aspectos distributivos, como indica uma
de suas definições mais comuns "a falta de recursos à disposição
de um indivíduo ou de uma família". A idéia de exclusão
social, por sua vez, está centrada nos aspectos relacionais,
isto é, "na participação social inadequada, a ausência
de proteção social, ausência de integração social e ausência
de poder". Outros autores, por outro lado, passaram a perceber
também a pobreza como resultado de certo padrão de relações
entre as pessoas e não simplesmente uma acumulação insuficiente
de produtos ou bens. Como Geneviève Azam aponta, "é sem
dúvida por se esquecerem que a pobreza é o sintoma de uma relação
entre os homens que as sociedades modernas esperaram poder erradicá-la
por meio de uma produção frenética e ilimitada".
Portanto, a diferença
específica entre os dois conceitos não reside neste ponto. A
Comissão Européia aproximou a noção de exclusão social da idéia
da realização inadequada ou insuficiente dos direitos sociais.
Room aponta o trabalho do Observatório Europeu para o Combate
à Exclusão Social, que tem por função analisar a efetividade
das diferentes políticas locais, regionais e nacionais, a partir
da constatação de que processos de investimento (não só financeiro)
ou desinvestimento interferem e mesmo provocam fenômenos de
exclusão ou de reinserção social, incluindo investimentos e
desinvestimentos em recursos e equipamentos comunitários locais.
Os obstáculos postos às pessoas ao exercício de seus direitos
e as conseqüências daí decorrentes quanto à não participação
nas instituições principais da sociedade são os aspectos-chave
da exclusão social. O trabalho desse Observatório permite ver
mais claramente a extensão do sentido dessa nova expressão,
não só para identificar os processos geradores da exclusão,
mas também para identificar as políticas mais adequadas à solução
ou ao tratamento desses processos.
O termo exclusão
social é, portanto, mais do que um modismo, ou um simples sinônimo
de algo já existente. Seu arco de sentidos é mais amplo que
o do termo 'pobreza', pois abrange a idéia de direitos perdidos,
não acessíveis ou exercíveis, ao menos nos mesmos moldes e extensão
de outras pessoas consideradas 'incluídas'.
Esse enfoque sobre
as relações que determinam a exclusão social permite que se
afaste definitivamente a idéia, por vezes arraigada, de que
a pobreza e a exclusão social decorrem naturalmente da vida
em sociedade ou do inelutável progresso. Ou de que, por razões
biológicas ou psicológicas, algumas pessoas não são capazes
de se ambientar favoravelmente dentro das relações capitalistas.
Ocorre que, quando metade da população do país é de tal modo
pobre que não consegue exercer plenamente seus direitos humanos,
algo não pode estar correto nesse tipo de raciocinar. Nessa
linha, é como se, como bem observa Azam, as atividades econômicas
tivessem o condão de, por si, criar uma sociedade harmoniosa.
O naturalismo fatalista se estende, ainda, ao caráter das leis
econômicas. A sociedade é apresentada como submetida às leis
econômicas que não mais se originariam das escolhas humanas.
A exclusão passa a ser vista como natural e mesmo inerente,
reforçando a crença no progresso contínuo, sob uma racionalidade
instrumental que faz das pessoas, assim como do meio ambiente,
nada mais do que recursos ou meios para a obtenção do maior
lucro, à margem das escolhas políticas e sociais.
Inclusão/exclusão
e pobreza/riqueza são dicotomias relacionadas à desigualdade
e, portanto, ao tema da igualdade. Por via de conseqüência,
são relações e não estados, relações estas ligadas à oposição
feita entre liberdade e igualdade, que estariam uma para outra
como que numa gangorra. Esta oposição, no entanto, é indevida
e encontra justificativa no modo individualista - e mesmo hedonista
- de mirar a liberdade. Ocorre, porém, que as desigualdades
sociais não se dão exclusivamente na esfera das relações privadas,
isto é, entre particulares. Não estão situadas - e nem podem
estar - fora da dimensão da esfera pública. É indevido associar-se
a liberdade ao público e a igualdade ao privado, de forma a
situar somente a liberdade no plano da regulação estatal para
a sua proteção, especialmente pelo direito civil e pelo direito
penal. Nada há no sistema jurídico que permita comparar o nível
de proteção da liberdade com o nível de proteção da igualdade,
em seu sentido material. A igualdade formal permanece somente
como o eixo legitimador do sistema liberal de atribuição de
direitos. Porém, exatamente porque o exercício da igualdade
material está geneticamente ligado ao exercício da liberdade,
torna-se a primeira (a igualdade) de fundamental relevância
para a esfera pública, impondo a ação do Estado para sua proteção,
especialmente com a implementação de políticas sociais e econômicas.
Jamais se poderá falar, por conta do modo como opera o sistema
capitalista - que faz maximizar o lucro com a desvalorização
da mão-de-obra -, que a desigualdade existe por conta da preguiça
ou da ausência de vocação para o trabalho e para a riqueza,
mantendo certo número de pessoas na miséria. Este darwinismo
social é argumento próprio dos que vêm a desigualdade na distribuição
da riqueza como natural ao primado da liberdade - em sua acepção
absoluta.
Ao se tratar um
tema tão complexo, não se pode recorrer a simplificações que,
conquanto facilitem a análise e, muitas vezes, possibilitem
ver com clareza os aspectos mais agudos, de fato obscurecem
a percepção e o tratamento de uma realidade rica e de múltiplas
faces. A verdade é que a redução da complexidade de um problema
- especialmente se social ou econômico - freqüentemente conduz
ao desperdício de recursos com políticas públicas de escassa
eficácia.
O dever de proteção
contra todas as formas de destituição
O combate à pobreza
e à exclusão social, como formas de desigualdade que repercutem
em todas as dimensões da pessoa, constituem imperativos éticos
e, como parte importante da questão social atual, repercutem
nas políticas socialistas e mesmo nas neoliberais, interna e
internacionalmente. Sendo assim, refletem nos sistemas jurídicos
que trazem positivados como obrigação jurídica deveres de inclusão
social e de erradicação das causas geradoras da desigualdade.
A Constituição
Federal promulgada em 1988 ergue no artigo 3º a igualdade, em
várias de suas manifestações, como objetivo fundamental da República.
Os quatro incisos desse artigo são explícitos em determinar
os aspectos que devem constituir a prioridade da atuação pública
e privada para a consolidação do Estado Democrático de Direito.
É o artigo 3º que, por oposição, se reconhecem as disfunções
de nossa sociedade e se coloca como meta sua correção:
Art. 3º. Constituem
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma
sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o
desenvolvimento nacional;
III - erradicar
a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais
e regionais;
IV - promover o
bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade
e quaisquer outras formas de discriminação.
Plasmados dessa
maneira, tais objetivos revestem a razão de ser do Estado brasileiro,
as cláusulas do nosso pacto social, para o qual os direitos
fundamentais são os meios para sua consecução e o sistema jurídico,
em sua inteireza, garante os modos para o seu necessário atingimento.
Não se tratam, pois, de meras normas programáticas, destinadas
simplesmente a pacificar o conflito social pela positivação,
e cuja ausência de efetividade deve ser objeto de puro conformismo.
Esses objetivos fundamentais da República constituem obrigações
de resultado que o poder público e a sociedade devem conjuntamente
buscar.
Com vistas à construção
de uma sociedade livre, justa e solidária, princípio dos quais
os demais relacionados no artigo 3º são corolários diretos,
a Constituição estabelece os direitos à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, em todas as suas formas
e meios descritos no artigo 5º; os direitos sociais como a educação,
o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, à proteção
à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados,
como previsto nos artigos 6º a 9º e em todo o Título VIII -Da
Ordem Social (arts. 193 a 222). A Constituição também impõe
aos agentes econômicos a obrigatoriedade de operar conforme
os objetivos fundamentais mencionados, como decorre do artigo
170 e incisos III, VII e VIII. Quanto ao Poder Público, a Constituição
explicitamente atribui no artigo 23, inciso X, competência comum
à União, Estados, Distrito Federal e Municípios "combater
as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo
a integração social dos setores desfavorecidos".
O artigo 23 traz
cristalinamente caber aos três níveis da Federação não somente
implementar medidas de redução ou alívio da pobreza, mas adotar
e perseguir políticas efetivas que combatam as causas que a
provocam, assim como os fatores que favorecem a marginalização,
aliando a isso o dever de promover a integração social dos setores
desfavorecidos.
No âmbito internacional,
a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 estabelece
que os direitos econômicos, sociais e culturais são indispensáveis
à dignidade da pessoa e ao livre desenvolvimento da personalidade
e que sua realização constitui direito de cada membro da sociedade
(art. XXII). A Declaração prevê os direitos ao trabalho, ao
lazer e ao repouso, à saúde e à instrução, sempre contextualizados
para o livre desenvolvimento da personalidade das pessoas. É
interessante notar que seu texto não coloca o trabalho como
única forma de 'redenção' social, mas como um dos meios de proteção
social. A leitura dos artigos XXIII e XXV o demonstram claramente:
Art. XXIII - 1.
Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego,
a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra
o desemprego.
2. Toda pessoa
que trabalha tem o direito a uma remuneração justa e satisfatória,
que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível
com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário,
outros meios de proteção social.
Art. XXV - 1. Toda
pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a
si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação,
vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços socais
indispensáveis, o direito à segurança, em caso de desemprego,
doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda
dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
O Pacto Internacional
dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais e o Pacto Internacional
dos Direitos Civis e Políticos explicitam em preâmbulo de idêntica
redação a relação entre a privação no âmbito econômico e o gozo
dos direitos econômicos, sociais e culturais, ao dispor que
os Estados-Partes reconhecem "que, em conformidade com
a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o ideal do ser
humano livre, liberto do temor e da miséria, não pode ser realizado
a menos que se criem condições que permitam a cada um gozar
de seus direitos econômicos, sociais e culturais, assim como
de seus direitos civis e políticos."
Sem que entremos
em considerações sobre as razões políticas que determinaram
a elaboração de dois tratados ao invés de um único documento,
o fato é que os direitos garantidos em cada um dos Pactos são
completares recíprocos entre si. Ou seja, não é possível conceber
o pleno exercício dos direitos civis e políticos se os direitos
econômicos, sociais e culturais não estiverem garantidos e efetivados
- e vice-versa. Como dito no preâmbulo aos Pactos, enquanto
o ser humano não estiver liberto do temor e da miséria, permanecerá
subjugado, não será livre e não terá meios de desenvolver livremente
sua personalidade. Em uma palavra, não será pessoa.
A Declaração e
o Programa de Ação de Viena traz expressamente que "a existência
de situações generalizadas de extrema pobreza inibe o pleno
e efetivo exercício dos direitos humanos" (I - 14). Afirma,
também, que "a pobreza extrema e a exclusão social constituem
uma violação da dignidade humana e que devem ser tomadas medidas
urgentes para o conhecimento maior do problema da pobreza extrema
e de suas causas, particularmente aquelas relacionadas ao problema
do desenvolvimento, visando a promover os direitos das camadas
mais pobres, pôr fim à extrema pobreza e à exclusão social e
promover uma melhor distribuição dos frutos do progresso social.
É essencial que os Estados estimulem a participação das camadas
mais pobres nas decisões adotadas em relação às suas comunidades,
à promoção dos direitos humanos e aos esforços para combater
a pobreza extrema." Além destes, vários outros ítens mencionam
situações de desigualdade jurídica, social, econômica e política
de minorias étnicas e religiosas, mulheres, idosos, crianças
e pessoas e grupos que se tornaram vulneráveis.
Esta breve descrição
nos permite perceber o abismo existente no Brasil entre o ser
e o dever-ser em sede de direitos humanos.
Desigualdade de
direitos
As situações relacionadas
à pobreza e à exclusão não constituem um bem, algo que se deseje
de modo espontâneo. Intuitivamente, não é algo que se queira
para si ou para outra pessoa, havendo alternativas dignas, pois,
sabemos, ou ao menos intuímos, que a escassez de recursos a
ela inerente não permite o acesso a numerosos bens imprescindíveis
à sobrevivência pessoal e em sociedade ou valorizados socialmente
como necessários para manter o respeito como pessoa frente aos
outros. Dentre os bens imprescindíveis à subsistência elencam-se
não somente aqueles necessários à própria existência física
no mundo, mas também os necessários a que o ser humano possa
ser reconhecido como uma pessoa, com direitos e com deveres
face aos demais na comunidade, que tenha a possibilidade de,
sempre que quiser, participar ativamente na conformação e confirmação
das regras que governam a todos.
Se é algo que não
se quer para si ou para os outros, decorre um dever ético de
combatê-la, assim como aos mecanismos e processos que a geram.
O Estado, na sua obrigação de dar a todas as pessoas acesso
e meios de exercício dos direitos, e com especial ênfase dos
direitos fundamentais expressos na Constituição Federal e nos
Tratados Internacionais de Proteção de Direitos Humanos, estabelece
garantias constitucionais para esse acesso e exercício - especialmente
o mandado de segurança e o habeas-corpus - , assim como desenvolve
e implementa políticas públicas sociais e econômicas.
Todavia, persiste
nos três Poderes, inclusive nos tribunais - em reflexo da ideologia
vigente por quem pode sustentá-la - o viés privatista que faz
da propriedade e do contrato - direitos econômicos que sequer
constaram do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais - institutos mais sólidos do que todos os direitos
sociais e do que grande parte dos direitos civis. O fato de
se apenar o crime contra o patrimômio com pena privativa de
liberdade evidencia o paradoxo - mais grave ainda é em países
que mantêm a pena de morte para essa mesma hipótese.é o patrimônio
valorado como superior à liberdade e mesmo à vida. A inexistência
de limites à 'riqueza extrema' , assim como a possibilidade
da propriedade desvinculada da atividade econômica de vários
imóveis ou de grandes extrações de terra, ao lado de milhões
de pessoas sem terra para cultivar ou sem meios de arcar com
a própria moradia constitui outro paradoxo.
Práticas percebidas
como normais à livre iniciativa, como encerramento da fábrica
na qual trabalha a população economicamente ativa de toda uma
cidade, a substituição de plantios de feijão por soja ou hortaliças
por flores ou a aquisição de uma série de pequenas propriedades
afetam negativamente os direitos e a qualidade de vida de grande
número de pessoas. Henry Shue observa a propósito de práticas
dessa espécie que a concepção, o desenvolvimento e a manutenção
de instituições que protejam a subsistência das pessoas contra
os maus ou insensíveis - ou simplesmente contra os mais fortes
- está na mesma medida da concepção e execução de programas
de controle de crimes violentos contra a pessoa. Mais ainda,
ele salienta que as práticas que possam alterar a oferta de
gêneros de que dependa a subsistência das pessoas devem ser
controladas e acompanhadas. E, se necessário, o Estado deve
fazer cumprir o dever da sociedade de proteção às pessoas contra
a perda da capacidade da própria subsistência promovida por
ação ou omissão dos outros. Se fossem implantados mecanismos
jurídicos para a proteção da subsistência - integrante do direito
à vida digna - a necessidade de políticas públicas para a compensação
por privações seria menor.
A bem dizer, mecanismos
jurídicos existem no próprio Código Civil, que poderiam ser
utilizados para dar efetividade ao direito à vida digna, para
que ações dos que detêm poder não degradassem as condições de
vida dos não-ricos, sendo o artigo 159 o exemplo primeiro, quanto
ao dever de indenizar que cabe àquele que causar dano a terceiro
por ação ou omissão, intencionalmente, ou por negligência, imprudência
ou imperícia. Além disso, não é demaisado lembrar que já Ruy
Barbosa entendia adequado o uso do interdito possessório para
a proteção de direitos pessoais - e não só para a posse de direitos
reais. Porém, é exatamente esse privatismo propriamente elitista
que impede a articulação do direito para a distribuição do poder
político e econômico para todos as pessoas e, mais do que isso,
opera para conservar a distribuição desigual do poder e da riqueza.
Note-se que se é conservador o direito e se tem ele a função
de atribuir forma às relações de produção da sociedade capitalista,
intervindo na sua constituição, funcionamento e reprodução ,
são os operadores do direito, contrariando a letra expressa
da lei, que fazem da propriedade valor superior à liberdade,
em todas as suas formas, e superior aos direitos à saúde, à
moradia, à educação, e tantos outros que são fundamentais para
que a pessoa possa agir em sociedade, possa ser reconhecida
como agente dotado de autonomia e possa ser respeitada como
tal.
Vale ressaltar,
é a leitura equivocada e parcial do princípio da liberdade -
liberdade como livre iniciativa - que tem causado, mantido e
aprofundado as desigualdades, em ofensa ao princípio gêmeo do
primeiro, o princípio da igualdade.
Assim, se avanços
existem, ainda há muitos outros a serem conquistados, mesmo
no aspecto formal, do reconhecimento de direitos.
A privação dos
recursos necessários a garantir e preservar a dignidade da pessoa
importa a retirada da possibilidade do pleno desenvolvimento
da personalidade da pessoa. Retira-lhe a possibilidade do desenvolvimento
da essência humana por excelência, a criatividade. O agir criativo,
que permite ao ser humano transformar o seu meio, sempre aprimorando-o,
é faculdade que deve estar continuamente livre e acessível materialmente
a todas as pessoas, e não somente a algumas. Hannah Arendt trata
extensamente sobre esse tema em sua obra, demonstrando como
os sistemas totalitários se articulam para cerrar a possibilidade
da vita activa às pessoas.
O estado de destituição
que decorre da desigualdade econômica implica necessariamente
desigualdades que se estendem aos níveis social, cultural e
político, como apontado no início deste trabalho. A desigualdade
econômica conduz a outras desigualdades em virtude da racionalidade
vigente nos espaços sociais da atualidade, em que valor maior
é atribuído ao 'o que' se tem e 'quanto', ao invés do o que
se é e como. Essa racionalidade consumista somente confere identidade
ao ter e não ao ser. Ela é individualista e baseada na competição,
na concorrência entre as pessoas, não contribuindo para a estabilidade
dos liames de integração social que permitem o agir construtivo
de cada um em sociedade. A solidariedade é de plano expurgada
para o campo da moral, esta mais e mais fragilizada pelos ditames
da dinâmica dos mercados. Em uma sociedade em que a racionalidade
das relações é consumista, as relações entre as pessoas também
passa a se pautar pelo consumo, ou seja pela relação desigual
em que um dos lados pretende obter do outro tudo o que ele pode
lhe oferecer de útil, até o seu esgotamento. Ocorre que, nesse
quadro, as pessoas absolutamente pobres, de tudo destituídas,
pouco ou nada têm a oferecer à outra parcela.
Importa explicitar
que a desigualdade econômica grave e a destituição que lhe é
correlata cerceiam o acesso material aos direitos fundamentais
da pessoa, garantidos formalmente pelos instrumentos internacionais
de proteção de direitos humanos, pela Constituição Federal e
pelas leis e regulamentos infraconstitucionais. A situação de
pobreza viola, a um só tempo, os direitos civis e políticos,
assim como os econômicos, sociais e culturais. A pessoa destituída
de recursos, que se encontra além do estado de vulnerabilidade
ou de precariedade não tem elementos próprios e meios para dar
início ao exercício de seus direitos fundamentais e, muitas
vezes, sequer sabe de sua existência enquanto tal. Por isso,
o pobre, expressão adjetiva que se substantivou, é vítima de
numerosas violações de direitos humanos e sequer se dá conta
disso, sobretudo quanto aos direitos econômicos, sociais e culturais.
Quanto aos direitos civis e políticos, a despeito de sempre
violados, existe ao menos a consciência da violação, sendo ela
mais um elemento a confirmar na pessoa o sentimento de impotência
e aniquilando ainda mais seu auto-respeito e o respeito que
os outros poderiam - porque já não podem - ter por ela.
O reverso do jogo
entre os níveis econômico e social também é produtor de destituições.
A desigualdade social que decorre de preconceitos culturalmente
arraigados também impõem à pessoa limitações na capacidade de
auferir renda pelos meios normais de inserção e de convertê-la
em realizações pessoais em sociedade. A questão de gênero é
bastante conhecida e sabidamente o preconceito contra a mulher
restringe-lhe as oportunidades de emprego e de ascensão, e ainda
lhe nega iguais salários para iguais atividades. Considerando
esses aspectos e somando-se ao fato que as atividades estereotipadas
como femininas igualmente representam limitações ao desenvolvimento
pleno da pessoa segue-se que as desigualdades sociais vêm passo
a passo com a desigualdade econômica. O mesmo vale para a questão
racial, para o problema da idade e para os deficientes. Preconceitos
culturais produtores de desigualdades sociais aprofundam a desigualdade
econômica e não raro, aniquilam as chances de inserção social,
salvo poucas exceções. A possibilidade de resgate é tão mais
difícil quanto maiores as desigualdades socialmente impostas.
Assim, as chances de sair do estado de destituição para uma
mulher são mais difíceis se ela for negra, mais ainda se também
idosa.
Em virtude disso,
conclui-se que a pobreza e a exclusão não surgem por geração
espontânea e não contituem situações estáticas e autoreferenciadas,
mas são resultado do modo de relação entre pessoas e grupos.
A situação econômica desfavorável de uma pessoa ou de um grupo
maior ou menor de pessoas se dá em virtude da natureza das relações
presente numa sociedade e pelas racionalidades que a dominam,
em especial quando presentes mecanismos e práticas de exploração
econômica, social e cultural. Tais mecanismos se verificam concomitantemente
nas três esferas e se acham entranhados na sociedade a ponto
de serem considerados padrões normais de relacionamento entre
os grupos, dificultando a transformação social e a emancipação
pessoal de cada um desses membros submetidos ou excluídos.
Estado e políticas
públicas
Se a exclusão social
e a pobreza que a ela está associada decorrem de relações em
sociedade e sendo o Estado o mediador por excelência dessas
relações, segue-se cristalinamente que o Estado desempenha papel
importante na própria existência da desigualdade, seja ela econômica,
social ou política.
Ao analisar suas
causas, Blandine Destremau lembra que a pobreza é produzida
e reproduzida por meio de um processo de diferenciação social
e econômica afetando a distribuição da propriedade, assim como
de bens educacionais, sociais e simbólicos - seguindo o pensamento
de Pierre Bourdieu. Daí segue que a pobreza é parte integrante
de um sistema e de funções que são intrinsecamente moldadas
por essas diferenciações e pela distribuição desigual de riquezas,
renda, poder, valorização social e meios de atuação em sociedade.
O Estado desempenha,
no presente jogo de forças sociais, papel fundamental para a
manutenção da ordem e de algum tipo de estabilidade, de onde
também extrái sua legitimidade. Nesse processo, o Estado assume
o jogo - sujo - de manter em níveis administráveis e suportáveis
as desigualdades e especialmente as tensões que surgem dessas
desigualdades, a exploração do trabalho e a pobreza.
O Estado desempenha
atividades inescapavelmente ligadas à manutenção e controle
da pobreza, por meio de políticas que direta ou indiretamente,
impedem o desenvolvimento livre das pessoas em sociedade, a
curto ou médio prazos. Assim foi com a política educacional
do regime militar, instituida pela Reforma do Ensino em 1971
que privilegiava o ensino fundamental somente dos 7 aos 14 anos
- em tese até a 8ª série - e assim é com a política de saúde
praticada, os projetos de habitação, que raramente alcançam
os mais pobres e assim por diante.
Explicitando os
modos de atuação do Estado na função de gerenciamento da pobreza,
identifica-se caber ao Estado a implementação de normas e práticas
sociais e econômicas em vários níveis, em especial quanto à
(a) definição da pobreza e conformação de atitudes sociais como
parte de relações discursivas, inclusive dentro das relações
econômicas; (b) quanto à distribuição e alocação de recursos;
e (c) quanto às ações das instituições e dos agentes públicos
que de algum modo lidam com a pobreza e com os excluídos.
Blandine Destremau
observa acertadamente que as principais instituições vinculadas
à produção da pobreza podem ser consideradas como sendo o poder
judiciário, as instituições econômicas e as instituições de
bem-estar social, todas instrumentalizadas pelo direito.
Nessa linha, como
é o modo de funcionamento e como se materializa o acesso do
sistema jurídico e seus institutos, entendidos não somente como
sistema de direitos e obrigações, e também do Poder Judiciário
aos pobres? O olhar simples permite evidenciar a existência
de modos desiguais de acesso aos mecanismos jurídicos, em desfavor
dos que não detêm poder econômico ou poder social. É também
inquestionável a incipiência dos meios de proteção oferecidos
aos grupos mais vulneráveis e mais fracos da sociedade; assim
como das oportunidades oferecidas para a melhoria de sua qualidade
de vida por meio de ações judiciais e para a ascensão econômica
e social. Os meios oferecidos pelo sistema jurídico para o acesso
e a realização do conjunto dos direitos humanos, civis, políticos,
econômicos, sociais e culturais esse sistema jurídico é indubitavelmente
mais frágil em relação aos mais pobres. As principais instituições
econômicas também operam como produtoras e reprodutoras da exclusão:
o modo de ordenação da propriedade, do sistema financeiro, do
sistema tributário e da política monetária, tudo contribui para
a consolidação da desigualdade sofrida por este país. A assistência
social, um direito constitucional, ainda é tratada como caridade
não só pela sociedade, como pelo Estado também. As dificulades
de acesso aos benefícios instituídos pela regulamentação à Lei
de Organização Assistência Social constituem prova contundente
da exclusão promovida pelo próprio Estado.
As relações do
Estado com a pobreza são, portanto, sistêmicas. Sendo assim,
para que se possam desenvolver políticas públicas eficientes
para a redução ou a erradicação da pobreza, que não sejam meramente
assistencialistas, ou seja, compensatórias das disfunções do
mercado, é necessário dar relevo e compreender as funções do
Estado na produção, reprodução e administração/gerenciamento
da pobreza. Sem essa compreensão e sem a percepção que as relações
que produzem e reproduzem a pobreza são relações de poder entre
grupos sociais mediadas pelo Estado, a implantação de políticas
que permitam reduzir ou mesmo erradicar a pobreza não será factível.
Partindo dessa premissa, do modo sistêmico entre Estado e pobreza,
é que se poderá pensar adequadamente a regulação social, econômica
- pela via do direito - das relações atinentes à pobreza, regulações
estas envolvendo mecanismos e estruturas que permitem aos sistemas
político, econômico e social se autoreproduzirem e de modo a
evitar crises mais graves. Note-se que esta é a perspectiva
que pressupõe e aceita a dinâmica capitalista e seu modo de
produção - e exploração - e que vê necessidade na redução da
pobreza para a própria continuidade do modo capitalista de produção.
Para a erradicação
da pobreza e das desigualdades, objetivo fundamental da República
constitucionalizado no artigo 3º da Constituição Federal, é
necessário modificar-se os padrões de relações culturais e econômicas
que as provocam e que aprofundam a exclusão, inclusive as sustentadas
pela atividade estatal na implementação de políticas públicas,
na formulação de leis e no julgamento das demandas levadas aos
tribunais. A adoção de ações afirmativas e de políticas compensatórias,
como a renda mínima , são necessárias, mas apenas como parte
de um conjunto maior de políticas públicas de fundo, que possibilitem
transformar as relações de poder em sociedade. As medidas e
políticas públicas destinadas a dar efetividade ao artigo 3º
da Constituição, que necessariamente devem tocar o modo de ordenação
da atividade econômica, não podem, ademais, ser paternalistas.
O paternalismo anula a autonomia da pessoa e, em conseqüência,
a possibilidade da ação criativa, da participação da pessoa
na sua própria construção e na construção da comunidade social
e política. Aristóteles aponta, na Política, o exemplo dos cartagineses
que mantinham políticas de solidariedade entre ricos e pobres,
em que os nobres proporcionavam aos pobres meios de trabalho
e o exemplo de Tarentum, em que o povo compartilhava o uso de
suas propriedades com os pobres. Na mesma passagem, Aristóteles
observa que "a extrema pobreza diminui o caráter da democracia
e que, portanto, medidas devem ser adotadas para lhes proporcinar
prosperidade duradoura; e que é igualmente do interesse de todas
as classes que os proventos das receitas públicas devem ser
acumulados e distribuídos entre os pobres, se possível em quantidades
que os possibilite adquirir um sítio ou, ao menos, iniciar um
comércio ou plantação". Delmas-Marty bem observa que "não
se trata mais de assistência, mas de integração à sociedade,
com o estatuto de cidadão. Não se trata mais de sobreviver,
mas de viver plenamente, com os outros e ser reconhecido como
um semelhante". Sem que todas as pessoas possam agir com
autonomia na esfera privada, nas relações sociais e com autonomia
na esfera pública, na dinamização dos direitos políticos na
participação da gestão da coisa pública, não se poderá falar
em democracia. A permanência da exclusão, da pobreza e das demais
formas de opressão social são inconciliáveis com a idéia de
república e com a materialização da democracia.
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