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A Renda Mínima como Direito Fundamental


Duciran Van Marsen Faren

"Se um irmão ou irmã estiverem nus, e precisarem do alimento quotidiano, e algum de vós lhes disser: ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos, sem lhes dar o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? (Tiago 2, 15-16)

1. INTRODUÇÃO

A despeito da implantação, por vários municípios brasileiros, de Programas de Renda Mínima, e mesmo da edição da Lei n. 9.533/97 ( que prevê o auxílio federal aos municípios que instituirem Programas de Renda Mínima) ainda é escasso o debate sobre o tema, especialmente no plano jurídico.

Cumpre, de início, distinguir a renda mínima como direito e como política pública. Nesta última acepção, representa uma estratégia de governo, destinada a, através de mecanismos de transferência monetária a indivíduos ou famílias, garantir um patamar considerado mínimo para garantir o atendimento das necessidades básicas dos beneficiários.

Enquanto direito, a renda mínima pode ser definida como uma prestação do Estado a que faz jus todo aquele que não conseguir, com seu próprio esforço, "atingir o padrão social mínimo necessário à sua sobrevivência com dignidade". Nessa acepção, corresponde a um direito social, integrante dos direitos fundamentais, uma obrigação do Estado capaz de gerar direito subjetivo público.

Não é de hoje que a idéia da "posse do necessário" é reclamada como componente da dignidade humana. A renda mínima é produto de uma evolução que pode ser vista, de forma sintética, nas encíclicas sociais da Igreja Católica, a começar pela Rerum Novarum, quando traça um linha entre o necessário e o supérfluo:

"Mas, desde que haja suficientemente satisfeito à necessidade e ao decoro, é um dever lançar o supérfluo no seio dos pobres" .

Outro documento social, a Encíclica "Populorum Progressio" introduz a questão da satisfação das necessidades básicas dentro do desenvolvimento, a partir de uma redefinição do conceito deste:

"O verdadeiro desenvolvimento é, para todos e para cada um, a passagem de condições menos humanas a condições mais humanas (...)

Menos humanas: as carências materiais dos que são privados do mínimo vital ... Mais humanas: a passagem da miséria à posse do necessário".

Reconhece a igreja que a carência do necessário priva aos indivíduos a "possibilidade de agir por própria iniciativa e responsabilidade" incapacitando-os de se tornarem "artífices do seu próprio destino".

Surge, assim, o "paradigma do desenvolvimento humano" a se contrapor ao desenvolvimento "econômico", impermeável a fatores alheios à própria lógica de funcionamento do sistema econômico. Se a resposta "ambiental’ a este alheamento se deu através da teoria das externalidades (custo econômico da degradação ambiental), a resposta "social" veio através da formulação do conceito paralelo (para alguns) de desenvolvimento social ou desenvolvimento humano.

Nesta concepção, "o objetivo do desenvolvimento é criar um ambiente no qual todas as pessoas possam expandir as suas capacidades e no qual se ampliem as oportunidades da geração presente e das futuras....O universalismo dos direitos da vida é o fundamento da busca da satisfação das necessidades mais básicas do ser humano. Este universalismo torna as pessoas mais capazes, protege os mais elementares direitos humanos (econômicos, sociais, cívicos, políticos e ambientais), considerando sagrados direitos que vão desde a simples alimentação até o ato de votar".

Temos, assim, alguns pontos de partida teóricos para a formulação de um direito à renda mínima:

a) A definição de necessidades básicas objetivas, vale dizer, aplicáveis para qualquer ser humano;

b) a consideração da satisfação das necessidades básicas como fundamento do desenvolvimento humano (é com esta conotação que se fala de um "direito ao desenvolvimento");

c) enfim, a universalização dos direitos fundamentais, alistando-se o direito ao desenvolvimento, direito humano de terceira geração, com os mesmos graus de juridicidade, positividade e eficácia que os demais direitos fundamentais.

Uma palavra deve ser dita, antes de prosseguirmos com a análise dos fundamentos, sobre os dois conjuntos de referências empíricas que subjazem na justificativa dos programas (e, igualmente, do direito) à renda mínima, consoante a exposição de Sônia Miriam Draibe et alli, no Relatório "Acompanhamento e Avaliação da Implementação do Programa de Garantia de Renda Familiar Mínima (PGRFM) da Prefeitura Municipal de Campinas":

São elas "as grandes transformações que vêm ocorrendo na economia capitalista, com profundos rebatimentos no mundo do trabalho e a consequente desestruturação do Welfare State Keynesiano".

As primeiras, referem-se a uma dupla dissociação: a ruptura da relação entre produção e emprego e ruptura da relação entre emprego e renda, provocadas pela alta produtividade, competitividade e globalização. A consequência deste fenômeno é a redução da necessidade do trabalho; surgem os "novos pobres", antes inseridos no mercado de trabalho, não mais se limitando a exclusão apenas aos grupos fragilizados em geral (incapazes, idosos, etc).

A segunda referência consiste na dificuldade dos sistemas burocratizados de proteção social em se adaptarem às novas realidades. A redução do trabalho traz a queda das contribuições dos trabalhadores; atender a desempregados, e assistir aos fragilizados torna-se insuficiente.

Na medida em que a produtividade dispensa o trabalho, a exclusão torna-se o fator predominante no mundo globalizado:

"Fato ainda mais importante nas sociedades modernas, a exclusão passou a liderar, superando a exploração. Os ricos já não precisam dos pobres. É provavelmente a razão por que tentam esquecê-los".

Nessas condições, as transferências monetárias diretas aos indivíduos incapazes de alcançar os patamares mínimos através do emprego (ou com ele) tornam-se inevitáveis, sendo mais ágeis que os programas tradicionais.

São, principalmente, fator de combate da exclusão social, que já não pode ser enfrentada apenas com as políticas tradicionais de assistência social, propriamente dita, e emprego.

Embora não seja possível reduzir a política pública a uma benesse ou favor do Estado, não comportando este trabalho maior análise sobre o tema, privilegiaremos a concepção da renda mínima como direito, nos três tópicos seguintes, para em seguida nos debruçarmos sobre a política pública consubstanciada na Lei n. 9.533/97.

A análise jurídica da renda mínima (enquanto direito) não dispensa uma incursão sobre seus fundamentos filosóficos e políticos. Como visto, o principal marco teórico é de natureza filosófica: a existência de necessidades básicas objetivas, começando, nesse nível, qualquer objeção que se queira antepor a um tratamento jurídico da matéria.

Desborda igualmente a análise para o plano político, envolvendo o problema da soberania, enquanto atributo do povo. Efetivamente, libertando o homem de suas carências mais imediatas, a suplementação de sua renda permite a expansão de sua personalidade, e, consequente, um maior grau de liberdade que há de se refletir no plano político, no âmbito da democracia representativa, a qual pressupõe a participação consciente do maior número de pessoas possível em seus atos.

Examinemos, pois, os fundamentos filosófico e político.

2. FUNDAMENTO FILOSÓFICO - AS NECESSIDADES BÁSICAS.

Sendo a objetivação das necessidades básicas o ponto de partida, é igualmente sob este ângulo que são apresentadas inúmeras objeções destinadas a descaracterizar a satisfação dessas necessidades como responsabilidade coletiva, e, consequentemente, a prestação da renda mínima como direito.

Procuram os críticos das necessidades básicas ora identificá-las com desejos ou aspirações (assim, não haveria diferença entre uma criança faminta que "deseja" um prato de comida e um empresário que sonha com um iate), ora demonstrar a impossibilidade de sua determinação objetiva. Doutra parte, fazem sobressair a "autonomia do indivíduo" sobre a "intervenção" do Estado, consistente em "impor" a uma pessoa aquilo que seria, apenas, a idéia subjetiva de um terceiro sobre o que o indivíduo livre realmente necessita (ou melhor, deseja). É o que PELÁEZ chama de "relativismo liberal", cuja primeira consequência é aliviar a responsabilidade coletiva - e do Estado - quanto à fome de enormes contingentes humanos.

Negando-se a objetividade das necessidades, estas acabam relativizadas. Conceber necessidades objetivas, válidas para todos os homens significaria impor um modelo preconcebido de felicidade, quando na verdade o desejo por um iate, um gole de cachaça ou um prato de comida não diferem entre si; qualquer bem, pois, pode ser objeto de sempre crescentes "necessidades"; mesmo os conceitos de fome e doença seriam relativos.

Vulgarmente afirma-se que um favelado prefere um televisor a um prato de comida; argumento cínico que, afinal de contas, remete a causa da miséria ao próprio miserável.

Esse argumento, no entanto, é contestado por PELÁEZ, que afirma a independência entre a necessidade e o desejo; aquela existe independentemente deste. Uma testemunha de Jeová que acaba de sofrer um acidente necessita urgentemente de uma transfusão, embora não a deseje.

Enfatizando a objetividade das necessidades básicas, PELÁEZ afirma que "...declarar indiferentes (intercambiables) todas las preferencias individuales (con independencia de si corresponden o no a verdaderas necesidades) es un socorrido expediente intelectual que permite al ultraliberal escabullirse de la exigencia moral que proyecta sobre él la existencia de necesidades insatisfechas (pues sería absurdo afirmar que uno está obligado a satisfacer todos los deseos de los demás). Al ultraliberal le interesa difuminar la frontera entre las necesidades y los deseos, igularlos "por abajo" (al nivel de los deseos), pues así cierra el paso a la idea de la responsabilidad colectiva frente a las verdaderas necesidades y restablece el imperio del chacun pour soi. Este golpe bajo a la solidaridad social es, por supuesto, adecuadamente disfrazado por medio de brillantes apelaciones al relativismo cultural, a la "irreductible pluralidad de formas de vida", a la inadmisibilidad de los criterios axiológicos "trascendentes" o "absolutos" y a otros leitmotive de la cultura contemporánea, tan aficionada a lo ambíguo y lo flácido".

PELÁEZ, cujas lições estamos seguindo, define as necessidades básicas de forma instrumental, como meios para a consecução de certos objetivos. "Del problema de la universalidad de las necesidades se pasa al problema de la universalidad de los fines. Si existieran fines que "no pueden no ser deseados", las necesidades cuya satisfacción es una precondición para la consecución de esos fines quedarían automáticamente confirmadas como necesidades humanas básicas, objetivamente determinables". Afasta-se, desde logo, aquelas necessidades relacionadas com fins que só aparecem como desejáveis dentro de certa perspectiva moral, religiosa ou ideológica (como, por exemplo, a ablação do clitóris).

Assim, os planos de vida propostos pelas diferentes ideologias pressupõem o indivíduo vivo (as necessidades relacionadas com a continuação da vida são objetivas, a prova de relativismo); pressupõem, também, a imputabilidade moral, que exige um mínimo de folga vital (isto é, a energia pessoal não deve se exaurir apenas na luta pela sobrevivência), a justificar a objetividade de requerimentos acima do nível da mera sobrevivência física, como vivenda, trabalho, remuneração suficiente, descanso, etc; por sua vez, a educação é pressuposto da responsabilidade moral, e assim por diante. As necessidades básicas apresentam-se, assim, como "...un conjunto de medios racionalmente deseados por cualqueira, con independencia de cualesquiera otros que resulten necesarios (según su particular plan de vida). Por eso el discurso liberal de la "irreductible pluralidad de las estrategias felicitarias" no pone en peligro la objetividad de las necesidades básicas; la política de satisfacción de necesidades básicas no pretende proporcionar la felicidad, sino simplemente garantizar a todos los hombres un mínimo de condiciones previas em la "línea de salida" de la carrera hacia la felicidad. Las necesidades básicas aparecen así directamente conectadas con el manido concepto de "igualdad de oportunidades".

A admissão de que as necessidades básicas sofrem certo grau de mutabilidade e flexibilidade não compromete o enfoque objetivista, nem este enfoque exclui o debate democrático; "antes al contrario: la objetividad de las necesidades garantiza la posibilidad de un consenso popular estable en lo que se refiere a la política de bienestar".

Surge, pois, com relação àqueles cujas necessidades essenciais encontram-se insatisfeitas, a responsabilidade social por sua satisfação.

3 ) FUNDAMENTO POLÍTICO - A SOBERANIA DOS POBRES.

O artigo inaugural da Constituição de 1988 declara a soberania como um dos fundamentos do Estado Brasileiro; por sua vez, dispõe seu parágrafo único que: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição".

Poucos princípios, como a soberania, apresentam tanta riqueza de implicações. Efetivamente, com o termo soberania podemos estar nos referindo ao detentor do poder do Estado, ou à supremacia da ordem jurídica nacional sobre as demais, vale dizer, o poder de auto regulação e de edição de regras de direito.

Fábio Konder Comparato, cuja lição seguiremos, observa que a teoria moderna da soberania, originária dos legistas reais do século XVI, "representou o instrumento doutrinal de independência do monarca, tanto no plano interno - diante das prerrogativas feudais da nobreza -, quanto no plano externo, relativamente às pretensões hegemônicas do imperador e do Papa". Ressalta-se, assim, a soberania como poder ativo, de direção, situado acima de todos os demais poderes. Rompe-se a subordinação da lei positiva à lei divina; o direito e a soberania identificavam-se com os desígnios do soberano.

A transferência da soberania para o povo seria o primeiro "desvio semântico" do conceito. Ocorre, pois, o trânsito da vontade individual à coletiva. A indivisibilidade da soberania, requisito que nasceu com a idéia de vontade individual, compatibiliza-se com a vontade coletiva, recém introduzida no conceito, através do princípio majoritário.

Rousseau diferencia a vontade de todos (mero registro quantitativo, soma de vontades particulares) da vontade geral (expressão do interesse comum). Nessa concepção, a opinião de uma minoria pode ser tomada como expressão da "vontade geral". Esvazia-se, assim, o conteúdo popular da soberania ao mesmo tempo em que é preparado o terreno para o advento da democracia burguesa, que irá se servir copiosamente da idéia de soberania da nação - cuja formulação mais acabada consta do artigo terceiro da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Opera-se, assim, novo desvio semântico na idéia de soberania popular: "o soberano, agora, já não é o titular do mando, mas simplesmente, na melhor das hipóteses, o que consente no exercício do poder. Deparamo-nos, aí, com um singular soberano, que aceita submeter-se ao governo de outrem". Afastada a possibilidade de intervenção direta, recua a soberania popular, pela eliminação de todo "poder ativo" do soberano. A soberania popular é contida pela delimitação da cidadania, mediante mecanismos como o voto censitário, exclusão do voto das mulheres, dos analfabetos, indígenas, etc.

Compreende-se, assim, a observação aparentemente paradoxal de Aristóteles: salvo a monarquia, todos os demais regimes obedecem ao princípio majoritário. A referência, aqui, no entanto, é à maioria qualitativa, e não à numérica.

A democracia, para Aristóteles, "não é o regime da soberania popular, mas da soberania dos pobres, assim como a oligarquia se identifica pela atribuição do poder supremo aos ricos. Sem dúvida, segundo geralmente acontece, os pobres constituem a maioria da população, mas esse fato é meramente acidental e não substancial....A democracia é o regime em que o poder supremo pertence à maioria da população, na medida em que essa maioria é composta de pobres. Para estes, de fato, a única força se encontra no número".

"Na teoria democrática moderna, porém, não há nenhuma "opção preferencial pelos pobres". Soberano é o povo, entidade una, e não complexa, composta de indivíduos perfeitamente iguais entre si. Dentro dessa unidade coletiva, cuja delimitação concreta varia notavelmente segundo a definição constitucional de cidadania ...a vontade da maioria equivale à vontade do todo. É dogma político que o povo quer, quando a maior parte dos que participaram, efetivamente, da eleição popular pronunciou-se em determinado sentido; mesmo que essa maior parte seja uma minoria, em relação ao número de eleitores ou em relação ao número de votantes".

A noção simples e unitária de povo é irreal: "ele não é, nunca, uma coleção de indivíduos iguais entre si, mas um conjunto complexo de classes, raças, clãs, estamentos, grupos religiosos, cujo poder e influência variam enormemente, de época a época e de país a país. O mecanismo de atribuição do poder supremo a essa unidade global e abstrata, por meio da expressão do voto majoritário, mais esconde do que revela a realidade do poder efetivo na sociedade".

Não basta, assim, a afirmação de que "todo poder emana do povo", que se presta a fundamento teórico mesmo de um regime oligárquico.

"Seria preciso partir, claramente, da alternativa democracia-oligarquia, no sentido aristotélico de governo dos pobres, contraposto ao governo dos ricos. E é necessário optar, não menos claramente, pela soberania dos pobres. Duas razões fundamentais fortalecem essa opção. Em primeiro lugar, o fato de que os grupos destituídos de propriedade e poder econômico são os maiores interessados no estabelecimento de um regime de igualdade, em todos os níveis: igualdade de acesso ao poder, à cultura, às artes, à produção, ao consumo, ao lazer. A idéia de igualdade sempre esteve na base da justiça e exerce, nos tempos modernos, um papel preponderante na transformação das sociedades. Em segundo lugar, milita a favor da soberania dos pobres o fato óbvio de que eles formam a maioria esmagadora de nossa população, e que um regime político não é justo quando desatende ao interesse da maioria.

Tecnicamente, pode-se, portanto, traduzir o princípio da soberania dos pobres, em nosso país, como a atribuição do poder supremo à maioria..." .

Acrescenta ainda o insigne doutrinador que "propugnar a efetiva atribuição da soberania à fração majoritária do povo, composta dos economicamente fracos, significa alterar fundamente o esquema de poder. Os mecanismos de controle devem ser aplicados não ao soberano, mas aos detentores do poder ativo, tanto dentro do Estado, como fora dele, a começar pela empresa".

Inverte-se, pois, a perspectiva tradicional no que tange aos direitos fundamentais. "Em sociedades desenvolvidas, eles representam, de fato, uma correção à onipotência majoritária, protegendo os indivíduos e os grupos minoritários. Em nosso país, ao contrário, os direitos fundamentais do homem são tão largamente desprezados, que o seu reforço e efetivo respeito correspondem ao próprio reconhecimento prático da soberania dos pobres. Nos países politicamente desenvolvidos, democracia significa lei da maioria, mais o respeito aos direitos fundamentais do homem. No Brasil, a autêntica democracia realizar-se-á com a atribuição do poder soberano à maioria, por meio do respeito aos direitos essenciais da pessoa humana. (destacamos)

Ora, esses direitos essenciais da pessoa humana (essenciais, porque correspondem à própria dignidade do ser humano) não são apenas individuais, mas também sociais. São também direitos dos grupos humanos fundamentais: familiar, racial, lingüistico, religioso, cultural, profissional". As prerrogativas que permitem a subsistência e prosperidade desses grupos não são outorgadas pelo Estado, mas devem ser por ele e pelos grupos dominantes respeitadas. .

Enfim, "a soberania dos economicamente fracos há de exercer-se, em nosso país, no sentido do desenvolvimento nacional".

Assim, para os pobres, a soberania reclama do desenvolvimento, em primeiro lugar, o direito a uma vida digna, independentemente de sua inserção no mecanismo econômico; e, em segundo lugar, sua inserção produtiva através do trabalho.

O primeiro passo, indispensável para essa inclusão, é assegurar o mínimo vital a todas as pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza, a libertação do homem da sujeição básica, da degradante necessidade diante da qual a liberdade e mesmo a "fração de soberania", na ilustração de Rousseau, torna-se uma verdadeira irrisão.

O segundo passo é, evidentemente, o trabalho. Efetivamente, "as políticas assistenciais, por necessárias que sejam, em face da miséria dos desempregados e excluídos, não bastam; mesmo assistido, um excluído continua excluído. Embora não haja como renunciar à política de redistribuição de renda, é a repartição inscrita no modo de produção que deve, em primeiro lugar, merecer nossa atenção".

4 – O DIREITO À RENDA MÍNIMA. A SATISFAÇÃO DAS NECESSIDADES BÁSICAS COMO CONTEÚDO MATERIAL DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA

Poucos princípios constitucionais apresentarão a riqueza significativa do Princípio da Dignidade, a tal ponto de constituir, em verdade, "uma norma legitimadora de toda a ordem estatal e comunitária, demonstrando, em última análise, que a nossa Constituição é acima de tudo a Constituição da pessoa humana por excelência. Neste sentido, costuma afirmar-se que o exercício do poder e a ordem estatal em seu todo apenas serão legítimas caso se pautarem pelo respeito e proteção da dignidade da pessoa humana. Assim, a dignidade constitui verdadeira condição da democracia, que dela não pode livremente dispor".

A dignidade corresponde a uma qualidade intrínseca da pessoa humana, elemento integrante e irrenunciável da natureza desta, pertencendo a todas as pessoas, não importando sua condição social, física, e mesmo social (inclusive os criminosos são titulares da dignidade) e também a uma norma (qualificada como princípio na Constituição Federal), sendo possível, sob esse ângulo, cogitar-se de uma pretensão à dignidade, sempre que esta for desrespeitada, por ação (tortura) ou omissão (carência do mínimo vital).

Tanto como qualidade da pessoa humana, quanto como norma, existem dois pressupostos básicos para a dignidade humana: a existência da vida e as condições materiais que permitem ao indivíduo o desenvolvimento suas capacidades, tornando-se "artífice do seu próprio destino". Não deve o ser humano ser objeto de outrem, nem tampouco escravo da absoluta carência do essencial, marginalizado por completo dos benefícios que a sociedade moderna poderia lhe oferecer, num patamar mínimo.

Assim, "uma outra dimensão intimamente associada ao valor da dignidade da pessoa humana consiste na garantia de condições justas e adequadas de vida para o indivíduo e sua família, contexto no qual assumem relevo de modo especial os direitos sociais ao trabalho, a um sistema efetivo de seguridade social, em última análise, à proteção da pessoa contra as necessidades de ordem material e à asseguração de um existência com dignidade".

Efetivamente, " ... onde não houver respeito pela vida e pela integridade física do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde a intimidade e a identidade do indivíduo forem objeto de ingerências indevidas, onde a igualdade relativamente aos demais não for garantida, bem como onde não houver limitação do poder, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana...".

A nosso ver, a pretensão à dignidade, representada em seu sentido material e primeiro da proteção contra a miséria aviltante, precede mesmo aos direitos sociais propriamente ditos, que pressupõem um mínimo de condições de autodeterminação. Está comprovado, que, dentre os pobres, as políticas públicas e serviços públicos tendem a favorecer os que têm melhores condições (ex: o seguro desemprego pressupõe emprego registrado, a previdência pressupõe contribuição, a saúde pública é buscada pelos que dispõem, ao menos, do necessário para o deslocamento e possuem a devida informação, etc.)

Em tempos de globalização, ao passo que decrescem as oportunidades de trabalho, avulta a importância de expandir o leque da proteção social àqueles que, privados da participação formal no mercado de trabalho, e da própria caracterização de sua personalidade na sociedade de consumo, onde o existir se confunde com o possuir, vêem ainda mais reduzidas suas perspectivas de ascensão social ou mesmo sobrevivência.

É com o direito à renda mínima que o princípio constitucional da dignidade humana, após superar os testes de positividade e vigência, encontra sua prova de eficácia social. A construção da eficácia social deste princípio representa uma linha de resistência contra a exclusão a que propende a sociedade globalizada.

A dignidade humana inscreve-se dentro da categoria dos princípios fundamentais da constituição brasileira, cuja positividade, enquanto direito prestacional, se expressa - na visão que a considera desprovida de eficácia plena - pelas seguintes propriedades:

"(1) - vinculação do legislador, de forma permanente, à sua realização (imposição constitucional);

(2) - Como directivas materiais permanentes, elas vinculam positivamente todos os órgãos concretizadores, devendo estes tomá-las em consideração em qualquer dos momentos da actividade concretizadora (legislação, execução, jurisdição).

(3) - Como limites negativos, justificam a eventual censura, sob a forma de inconstitucionalidade, em relação aos actos que as contrariam".

Assim, no momento em que o Estado viola a dignidade humana, coletiva ou difusamente, em seu sentido positivo de garantia do mínimo necessário, comete, sem dúvida, uma inconstitucionalidade por omissão, cuja reparação judicial padece das deficiências bem conhecidas pela doutrina (circunstância que, contudo, nenhum peso tem para descaracterizar a juridicidade da norma).

Em termos de direito individual indisponível, no entanto, entendemos, é perfeitamente cabível a proteção judicial, especialmente quando envolvidos como vítimas crianças e idosos, merecedores de especial proteção pela ordem jurídica.

Voltando nossa atenção agora para o quadro das políticas públicas, veiculadas necessariamente através de normas jurídicas, oferecem-se interessantes possibilidades para a concreção da garantia positiva entranhada no princípio da dignidade humana. É o que examinaremos a seguir.

5 - A LEI N. 9533/97.

Num Estado Federal, especialmente o brasileiro, marcado por agudas disparidades econômicas e sociais, o dever de "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais" (art. 3o., III, C.F.) é da União Federal, sendo a tarefa subsidiária do Estado e do Município tanto mais evidente na medida em que a atuação destes circunscreve-se ao próprio território.

Inviável, assim, cogitar-se da erradicação da miséria ou tampouco redução das desigualdades sociais e regionais atribuindo-se esta tarefa ao Estado ou ao Município.

No que tange à renda mínima, a implantação pelos Municípios e mesmo Estados de um programa eficiente teria como externalidade um efeito concentrador (habitantes das regiões desassistidas tenderiam a migrar para as assistidas para receber o benefício) que, na prática, tem sido superado (ou driblado) por uma norma nitidamente inconstitucional - a que estabelece a condição de residência na cidade por um tempo determinado. E isso independentemente de os recursos serem locais ou contar o programa com auxílio federal.

A despeito de tudo isso, a Lei n. 9.533/97, editada como alternativa governamental a propostas da oposição, não institui um programa nacional de renda mínima Estabelece, apenas, em bases insustentáveis, o auxílio financeiro federal (melhor seria denominado programa de verba mínima) aos municípios cuja renda familiar per capita e arrecadação sejam inferiores à média estadual que implantarem seu programa, visando o atendimento de famílias com filhos de 0 a 14 anos com renda per capita inferior a R$ 65,00.

Trata-se, na verdade, de mal enjambrado disfarce para a omissão que, como era de se esperar, nenhuma condição apresenta de efetividade, especialmente se considerado o artigo 2o, que estabelece a contrapartida financeira dos municípios:

Art. 2º: O apoio financeiro da União, de que trata o art. 1º, será limitado a cinqüenta por cento do valor total dos respectivos programas municipais, responsabilizando-se o município, isoladamente ou em conjunto com o Estado, pelos outros cinqüenta por cento.

Parágrafo único: A Prefeitura Municipal que aderir ao programa previsto nesta Lei não poderá despender mais do que quatro por cento dos recursos a ele destinados com atividades intermediárias, funcionais ou administrativas para sua execução.

Ora, essa solução é iníqua, porque faz tabula rasa das desigualdades econômicas e sociais entre os municípios, cuja erradicação é dever da União Federal. Os municípios mais carentes do país ficarão definitivamente alijados do auxílio federal, porque não poderão arcar com a sua contrapartida em dinheiro.

Dadas as disparidades regionais, os muncípios mais pobres dos estados ricos poderão, ao menos em tese, financiar sua parte, enquanto tal possibilidade não existirá para os municípios mais pobres dos estados pobres. O próprio MEC, em nota oficial, admitiu que os municípios sem recursos para implementar o programa "terão de criar soluções alternativas" ou ainda "mobilizar recursos em detrimento de outros programas" (conforme divulgado pelo Jornal O Globo). Resta saber quais são estas alternativas, ou os outros programas a serem sacrificados, em se tratando, por exemplo, dos municípios mais carentes do país.

Aliás, o mais provável é que o auxílio legal frustre-se por completo. Conforme noticiou a imprensa, Lena Lavinas, estudiosa do IPEA, "calculou quantos municípios teriam condições fiscais de pagar a metade do benefício, como exige a lei, sem comprometer mais do que 2% de sua receita".

"No caso da contribuição de R$ 15,00, só 252 dos 4.974 municípios teriam condições de adotar o programa de renda mínima. Com um hipotético benefício de R$ 65,00, o número de municípios com saúde financeira para arcar com a contribuição cairia a dez.

(...)

Até nos EUA, país onde a política social é descentralizada, quem banca os programas de renda mínima é o governo federal"

O "custo administrativo" do programa é outro empecilho. Pelos padrões mais econômicos, nenhum programa deste tipo poderia ser implementado com gasto inferior a 10% do custo total (os programas americanos semelhantes têm custo administrativo médio entre 11% e 12%, segundo Robert Greenstein, presidente do Centro de Estudos Orçamentários e Políticas Públicas do governo norte americano). No mínimo, deveria o governo federal demonstrar que não ultrapassa esse proporção nos seus próprios programas, como o Comunidade Solidária...

Tudo indica que se trata não daquelas leis que não pegam, mas da categoria de leis feitas para não pegar. Observou a imprensa que o auxílio federal, ao qual foram destinados R$ 200 milhões, menos do que o custo da duplicação da Rodovia Fernão Dias (240,9 milhões), não é prioritário nem no MEC: com a distribuição de computadores, o governo gastará 300 milhões.

Diante desse panorama, a única saída é submeter as normas que integram o auxílio federal ao controle de constitucionalidade, impugnando-as por contrárias ao princípio fundamental da isonomia (que consiste, em clássica lição, no tratamento desigual aos desiguais, na medida em que se desigualam).

Vulnerado resta, ainda, o dever constitucional da União de reduzir as desigualdades regionais, posto que, da forma como concebido o programa, conduzirá inevitavelmente ao agravamento destas e a uma cadeia de inconstitucionalidades (restrições aos migrantes).

Efetivamente, onde não houver condição de o município arcar com a sua contrapartida, deverá a União financiar a totalidade do programa.

Ingo Sarlet examina a jurisprudência do STF, observando que, em ação direta de inconstitucionalidade que impugnava, por insuficiente, o valor atribuído ao salário mínimo, a despeito de haver ser extinta a ação, não teria declarado a nulidade da lei porque isto não resolveria o problema. "cuidar-se-ia de hipótese relativamente à qual se advoga a possibilidade de uma declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, já que a ausência de lei ensejaria uma inconstitucionalidade ainda maior: em vez de um valor insuficiente, não teríamos valor nenhum".

Em outra ocasião, o Supremo Tribunal, apreciando ADIN que teve como objeto a declaração de inconstitucionalidade de lei que condicionou a concessão do benefício previsto no artigo 203, inciso V, da C. F. às pessoas cuja família possuísse renda per capita inferior ao salário mínimo, entendendo ser o referido dispositivo "norma constitucional não auto-aplicável (de eficácia limitada), denegou a medida cautelar pleiteada, argumentando que a declaração de nulidade do dispositivo legal redundaria numa situação ainda mais gravosa".

No caso da Lei n. 9.533/97 temos uma situação diferenciada, posto que se cuida apenas de um dispositivo, cuja supressão não trará uma situação mais gravosa, mas, apenas, a obrigação federal de arcar com as despesas do programa, sempre que o município não disponha de recursos suficientes.

6 - A TÍTULO DE CONCLUSÃO

Quase dois anos depois da edição da Lei n. 9533/97, verifica-se que seu maior pecado não são suas incongruências ou inconstitucionalidades. É sua total ineficácia – jamais foi feita para valer.

Efetivamente, em 1998, a despeito da intensa propaganda, nada foi gasto com o programa. Em 1999, uma verba orçamentária mínima de 200 milhões de reais foi cortada para 54 milhões. E pior – desse total, em outubro deste ano, somente 14,08% haviam sido gastos.

Percebe-se, assim, que jamais houve compromisso algum do Governo com a renda mínima.

A questão da miséria, contudo, já chegou às preocupações de quem menos se poderia esperar – o FMI. Em 26 de setembro de 1999, anunciou este organismo novos critérios para o desembolso de empréstimos, condicionando-os à performance dos governos interessados na área social. Pretendia-se responder aos críticos que reiteradamente denunciam os efeitos perversos dos ajustes econômicos sobre os mais pobres.

E qual foi a voz dissonante? A do Brasil, por seu Ministro Pedro Malan, contra quem seria injusta a acusação de insincero. Segundo ele, em econômes característico, "Deve-se evitar ... introduzir metas estruturais ou um critério de performance quantitativa (do Governo) na área social em todos os programas apoiados pelo FMI". Frisou, ainda, no discurso perante o FMI, que não aprova " a idéia de que o Fundo deva identificar instrumentos e questões de política social nas suas avaliações periódicas dos países".

Também não pode ser condenado o Ministro por sua falta de lealdade ao Governo. Efetivamente, nos últimos cinco anos nada tem o país a oferecer nessa área, exceto o discurso sobre os benefícios da estabilidade cambial para os pobres, que, convenhamos, perdeu um pouco o sentido, e cortes e mais cortes de verbas sociais. Seria, portanto, o principal prejudicado pelos novos critérios.

A nova visão do desenvolvimento, que as nossas autoridades resistem em aceitar, também está presente no Banco Interamericano de Desenvolvimento cujo Diretor do Instituto de Desenvolvimento Social, Bernardo Kliksberg, escreveu:

"Numerosas pesquisas recentes mostram que o aumento da igualdade favorece a estabilidade política e macroeconômica, é decisivo para que um país atraia novas tecnologias (por requerer mão de obra qualificada) e pode ampliar a poupança interna, além de muitos outros efeitos positivos.

Birdsall, Pinckney e Sabot (BID, 96) ressaltam que suas análises de poupança e investimento "sugerem que os pobres podem ser um motor de crescimento". Também destacam que assegurar o crescimento a partir "de baixo" (melhorando as condições dos setores desfavorecidos) "não é uma questão de altruísmo, e sim de auto interesse inteligente". (...)

Essas conclusões indicam que a redução das desigualdades, além de ser fundamental para uma sociedade e básica para a democracia, é estratégica para a obtenção de desenvolvimento real e sustentado" (destacamos).

Chegamos, assim, à preocupante conclusão de que organismos internacionais falam mais pelo miserável brasileiro do que o próprio governo nacional, que ainda se empenha em fazer prevalecer sua política – do completo abandono do despossuído (a pretexto da invasão da soberania nacional? Soberania que permanece incólume quando as metas são de outra ordem?).

Diante desse panorama trágico, é nula a esperança de que esse "auto interesse inteligente" seja compreendido pelas autoridades nacionais, que parecem globalizar-se para trás, em atos e declarações que seriam difíceis de conceber mesmo nos momentos mais negros que atravessou a nação.

Resta a esperança de que possam os operadores do Direito, utilizando os instrumentos disponíveis na ordem jurídica, oferecer seu quinhão, por pequeno que seja, para a efetivação dos direitos econômicos e sociais – especialmente o mais básico, do mínimo vital.

São Paulo, 29 de setembro de 1999.

O autor é Procurador da República em São Paulo e Doutor em Direito Econômico pela USP.

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