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A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS
DIREITOS HUMANOS
50 ANOS

Patricia Helena Massa Arzabe*

Potyguara Gildoassu Graciano**

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, que comemora em 1998 seu cinqüentenário, é um documento novo, com conteúdo novo. Sua novidade reside no fato de constituir o primeiro documento internacional a trazer por destinatários não somente Estados, mas todas as pessoas de todos os Estados e territórios, mesmo os não signatários da Declaração. Seu conteúdo é novo, pelo conjunto de direitos que atribui, extravasando o campo dos direitos civis e políticos para especificar também direitos econômicos, sociais e culturais e pela universalidade, por postular a dignidade, a proteção e a promoção dos direitos de todos os humanos do planeta. O fato é que o discurso dos direitos humanos, que a Declaração proclama e institucionaliza, é um fator deste século. Até então, a preocupação com os direitos e a dignidade das pessoas independentemente de fronteiras era presente somente na filosofia e na religião.

Exatamente ao proclamar os direitos humanos para todas as pessoas, estabelecendo-os como uma meta a ser atingida por todos os povos e todas as nações, a Declaração Universal dos Direitos Humanos se manifesta como uma construção que vem abrir o espaço para o tratamento universalizante das questões relacionadas aos direitos humanos e às suas violações. É com a Declaração que o discurso dos direitos humanos toma forma e conteúdo mais precisos, passando a transitar cada vez com maior intensidade nos âmbitos político e jurídico. Por discurso de direitos humanos quer-se designar aqui todo o conjunto de instrumentos, técnicas, princípios e normas que, tanto na esfera política como na esfera jurídica, possibilitam modificar pacífica e racionalmente a realidade existente para a constituição de uma nova, em que as relações entre as pessoas e entre estas e os Estados se dêm com a observância dos elementos desse discurso.

Como um discurso novo, assentado no 'reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis' e tendo esse reconhecimento como 'fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo'(1), sua incorporação à praxis política e social apenas se inicia.

A dificuldade dessa incorporação explica-se pela natureza das relações de força que caracterizam as relações políticas atuais, que não são exatamente compatíveis com o respeito irrestrito aos primados da liberdade e da igualdade. Porém, devido à incontestável relevância dos princípios contidos na Declaração para as sociedades, é certo que sua incorporação no âmbito jurídico está consolidada em todo o mundo, estando presentes em quase todas as Constituições dos Estados.

Aproximação histórica

Os antecedentes remotos da Declaração da ONU de 1948 são encontrados, de um lado, no direito internacional e no direto humanitário dos séculos XVIII e XIX e, de outro em dois documentos relacionados, um ao processo histórico de mudança de poder da França e o outro, à instituição de poder ligada à formação do Estado norte-americano, a saber, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 e a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776.

O tempo da Declaração Francesa de 1789 coincide com o período da codificação das normas jurídicas, sendo pouco anterior ao Código de Napoleão. Elías Díaz recorda que é em fins do século XVIII que se opera a transformação do direito natural, universal e absoluto em direito positivo, vindo a criar um vazio valorativo, sob certo aspecto; visto que os ideais, uma vez positivados, tornam-se realidade (ao menos parcialmente), para, então, transformarem-se em ideologia(2). A Declaração Francesa veio afirmar como dado aspectos culturais que ainda deveriam ser construídos, qualificando como direitos naturais a liberdade, a propriedade e a igualdade em direitos. Tais direitos não eram, de fato, naturais, e eram acessíveis a uma minoria, posto que a estruturação da sociedade em estamentos apenas acabara de ser abolida.

Diferentemente da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que se estende a todas as pessoas, sem contudo, possuir originariamente caráter vinculante, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 efetivamente integra o direito positivo francês - vigorando até a atualidade, ao lado da Constituição francesa. Os traços comuns desta com a Declaração da ONU, como a afirmação da liberdade, da propriedade, da segurança como direitos inerentes ao homem, o princípio da legalidade, o princípio da reserva legal e o da presunção de inocência, a liberdade de opinião e de crença, dentre outros, são, sem dúvida, referências da linha comum que ligam os dois documentos. Deve-se, todavia, lembrar, com o historiador Hobsbawm, que as exigências do burguês é que foram delineadas na famosa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Segundo afirma, "este documento é um manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios da nobreza, mas não um manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária. ‘Os homens nascem e vivem livres e iguais perante a leis’, dizia seu primeiro artigo; mas ela também prevê a existência de distinções sociais, ainda que ‘somente no terreno da utilidade comum’. ... a declaração afirmava (posição contrária à hierarquia da nobreza ou absolutismo) que ‘todos os cidadãos têm o direito de colaborar na elaboração das leis pessoalmente ou por meio de seus representantes’. E a assembléia representativa que ela vislumbrava como órgão fundamental de governo não era necessariamente uma assembléia democraticamente eleita. ... Uma monarquia constitucional baseada em uma oligarquia possuidora de terras era mais adequada à maioria dos liberais burgueses do que a república democrática que poderia parecer uma expressão mais lógica de suas aspirações teóricas. De modo geral, o burguês liberal clássico de 1789 (e o liberal de 1789-1848) não era um democrata, mas sim um devoto do constitucionalismo, de um Estado secular com liberdades civis e garantias para a empresa privada e de um governo de contribuintes e proprietários."(3) As palavras de Hobsbawm permitem identificar que as intenções que nortearam a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão diferem em sentido e extensão da Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas, uma vez que o texto escrito se desprende de seu contexto, hoje lemos a Declaração Francesa de 1789 com os olhos do nosso tempo.

Se, por um lado, a Declaração Francesa, a Declaração de Direitos da Virgínia e a Declaração de Independência Americana foram importantes para o desenvolvimento dessas idéias especialmente dentro dos Estados, o mesmo não ocorre de maneira direta para o direito internacional dos direitos humanos. A origem da proliferação dos documentos internacionais de proteção de direitos humanos está, principalmente, nos tratados internacionais bilaterais e multilaterais para a abolição da escravatura e do comércio de escravos, assim como nas normas de direito humanitário para o banimento de armas cruéis e para a salvaguarda de prisioneiros de guerra, de feridos e de civis(4).

As normas de Direito Humanitário(5) começam a surgir no século XIX, para disciplinar o tratamento das vítimas em conflitos armados, a proteção humanitária aos militares postos fora de combate (feridos, doentes, náufragos, prisioneiros) e às populações civis(6), declarando limites ao uso da violência em guerras.

A Liga das Nações, materializada no Tratado de Versalhes, de 28 de junho de 1919, ao fim da Primeira Guerra Mundial, veio abrir caminho para a proteção, de forma mais ampla, aos direitos de pessoas, prevendo, também, o direito de petição à Liga, reconhecido às populações dos Estados membros(7). Segundo observa Louis Henkin, "com base nos precedentes do século XIX, Estados dominantes pressionaram determinados Estados a aderir a ‘tratados de minorias’ garantidos pela Liga, nos quais os Estados Partes assumiam obrigações de respeitar direitos de minorias étnicas, nacionais ou religiosas determinadas"(8).

Este é o período a partir do qual o direito internacional deixa de ter por objeto, com poucas exceções, a relação somente entre Estados, passando a tratar, também, das pessoas e de seus direitos relacionados à dignidade humana. Observa-se, entretanto, que os tratados sobre minorias celebrados sob os auspícios da Liga das Nações eram impostos seletivamente, em especial sobre nações derrotadas em guerras e sobre Estados recém criados ou ampliados. Tais documentos não previam, ao contrário do que se esperaria hoje, normas gerais impondo o respeito às minorias também por parte dos Estados com maior poder, assim como não exigiam que fossem respeitadas as pessoas que não pertenciam às minorias especificadas ou às pertencentes à maioria(9).

Muitas vezes esquecida no seu papel de fixação e promoção de direitos humanos, a Organização Internacional do Trabalho — OIT, constituída também por ocasião do Tratado de Versalhes, tem desempenhado papel importante na defesa e promoção de direitos relacionados ao trabalho, bem como de outros direitos econômicos, sociais e culturais, por meio de programas específicos e de suas convenções, estabelecendo definições e padrões mínimos sobre as condições de exercício dos direitos de que trata. É no âmbito da OIT que se vê os primeiros documentos internacionais de proteção à mulher, à criança, aos indígenas e povos tribais, ao trabalhador, documentos contra a discriminação racial, e de redução dos efeitos do desemprego, dentre outros.

Vale notar que a introdução de mecanismos internacionais de proteção de direitos humanos não se deveu à ‘conscientização súbita’ da relevância e necessidade de proteção desses direitos ou de um comprometimento ético dos Estados.

No caso da Liga das Nações, como visto, a proteção de minorias estava voltada, via de regra, à proteção daquelas que foram incorporadas a outros Estados ou que ficaram sem vínculo a um Estado, como os curdos e palestinos, não significando isto, por si, que outros grupos étnicos, lingüísticos ou nacionais existentes, estariam igualmente protegidos, como de fato não estavam, a exemplo dos ciganos.

No âmbito da OIT, pode-se dizer que, ao tempo de sua criação, o socialismo estava em expansão na Europa, justificando a implantação, nos Estados capitalistas, de medidas de proteção às condições do trabalho(10). Melhores condições sociais e de trabalho em todos os Estados significava, também, como ainda significa, melhores condições para a competição no mercado internacional, possibilitando minimizar os efeitos de países que, com menos direitos sociais garantidos, entram no mercado com preços mais baixos.

Porém, é com a criação da Organização das Nações Unidas — ONU, na Carta de São Francisco, em 1945, que a proteção e promoção internacionais dos direitos humanos se converte em princípio jurídico de direito internacional. A Carta de São Francisco ou Carta das Nações Unidas consiste em tratado internacional, vinculando juridicamente, portanto, todos os Estados que fazem parte da ONU. Desse modo, todos os Estados membros devem dar cumprimento ao princípio do "respeito universal aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção por motivos de raça, sexo, idioma ou religião". De fato, o artigo 1º da Carta coloca como propósitos das Nações Unidas, "conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais", sem qualquer distinção. Tratam da questão da proteção e promoção dos direitos humanos o artigo 1º, itens 2 e 3, artigos 13, 55 e 56. A importância dada pela Carta à matéria é revelada com especial força no artigo 55, que vem vincular o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e liberdades fundamentais como necessário à criação de condições de estabilidade e bem-estar, que, por sua vez, são necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as nações, estando tais relações fundadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos

Já quando da elaboração da Carta das Nações Unidas, grupos defendiam que ela deveria trazer uma declaração de direitos anexa. Isso não ocorreu. Entretanto, apesar de mencionar os direitos humanos de modo conciso e genérico, a Carta trouxe a valiosa contribuição de tornar a promoção dos direitos humanos uma finalidade da ONU e, sobretudo, expande a relação entre os Estados e seus habitantes para esfera internacional. Merece ser observado que, "no seio da ONU, programou-se, a partir de 1947, uma International Bill of Human Rights, que deveria ter sido constituída por uma Declaração universal, contendo a enunciação dos direitos humanos, por um Covenant contendo compromissos específicos jurídicos dos Estados no que toca ao respeito dos mesmos direitos humanos e um sistema de controle Measures of Implementation, voltado para a garantia desses direitos. A realização desse programa encontrou enormes dificuldades"(11).

A própria Declaração poderia ter tomado a forma de tratado, de modo a, após sua adoção pela ONU, vincular os Estados que a ratificassem à obrigação de proteger e promover os direitos humanos. Prevaleceu, entretanto, o entendimento de que a carta de direitos deveria tomar a forma de declaração, ou seja, de uma recomendação de maior solenidade, utilizada em raras ocasiões relacionadas a matérias de grande importância, em que se espera o máximo comprometimento moral e político dos partícipes.

A Declaração vem constituir, então, a especificação dos direitos que a Carta de São Francisco menciona apenas de maneira genérica, estabelecendo, como afirmado em seu Preâmbulo, uma compreensão comum do que sejam esses direitos para seu pleno cumprimento.

Este detalhamento de direitos humanos, que a Declaração Universal dos Direitos Humanos traz, constitui a primeira iniciativa de enumeração de direitos humanos no âmbito do direito internacional e institui, sobretudo, como aponta Flávia Piovesan(12), "extraordinária inovação, ao conter uma linguagem de direitos até então inédita .... Ao conjugar o valor da liberdade com o valor da igualdade, a Declaração demarca a concepção contemporânea de direitos humanos, pela qual esses direitos passam a ser concebidos como uma unidade interdependente e indivisível". A Declaração expressa, a um só tempo, o discurso liberal dos direitos civis e políticos, nos artigos 3º a 21, com o discurso social dos direitos econômicos, sociais e culturais, nos artigos 22 a 28.

Não é demasiado lembrar que a invocação de direitos econômicos, sociais e culturais, como decorrentes do princípio da igualdade, era politicamente relacionada ao socialismo e, portanto, a movimentos políticos de grande apelo popular. Recorde-se que já a Declaração Francesa de 1793 — incorporada como introdução à Constituição de 1793 — da República Jacobina do Ano I, conseqüência da segunda revolução em 1792, proclamava a igualdade por natureza e perante a lei (art. 3º), prevendo o dever da sociedade de colocar a educação ao alcance de todos (art. 22), proporcionar trabalho e seguridade social aos menos favorecidos (art. 21)(13). Mas essa Declaração, forjada no período do Terror de esquerda, vigorou somente por três meses(14).

Os direitos econômicos e sociais somente vêm tomar relevo jurídico neste século, com a Constituição Mexicana, de janeiro de 1917, a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado da URSS, de janeiro de 1918 e a Constituição de Weimar, de agosto de 1919.

Sobre as condições que impulsionam os direitos sociais, José Afonso da Silva alerta que "o desenvolvimento industrial e a conseqüente formação de uma classe operária logo demonstraram a insuficiência daquelas garantias formais, caracterizadoras das chamadas liberdades formais, de sentido negativo, como resistência e limitação ao poder. Pois a opressão não era, em relação a ela, apenas de caráter político formal, mas basicamente econômico. Não vinha apenas do poder político do Estado, mas do poder econômico capitalista. De nada adiantava as constituições e leis reconhecerem liberdades a todos, se a maioria não dispunha e ainda não dispõe, de condições materiais para exercê-las. Sintetiza bem a questão Juan Ferrando Badía, quando escreve: "A burguesia liberal aparenta conceder a todos a liberdade de imprensa, a liberdade de associação, os direitos políticos, as possibilidades de oposição política: mas, de fato, tais direitos e liberdades não podem ser exercidos senão pelos capitalistas, que são os que têm meios indispensáveis para que tais liberdades sejam reais. E, assim, no caso do direito ao sufrágio, este servia para camuflar diante dos olhos dos proprietários uma papeleta de voto, mas a propaganda eleitoral se encontra nas mãos das forças do dinheiro."(15) Desse modo, os direitos econômicos, sociais e culturais revelam-se essencialmente necessários para que direitos civis e políticos possam ser verdadeiramente efetivos, provando-se reciprocamente necessários.

Como visto na Introdução, a Declaração Universal dos Direitos Humanos se constitui numa construção, de matriz iluminista — a Declaração Francesa de 1789 se apresenta como sua fonte mais evidente — e como construção reflete as disputas de poder no âmbito internacional. Os direitos ali plasmados não se confundem com direitos naturais e absolutos que, segundo os jusnaturalistas, acompanhariam os seres humanos desde tempos imemoriais. Ou, segundo Celso Lafer, não são um dado, externo à polis; são um construído, uma invenção ligada à organização da comunidade política(16). Consistem, sim, em resultado de disputas entre grupos sociais e entre estes e o Estado, desenvolvidas no tempo. Os direitos humanos, nos dizeres de José Afonso da Silva, "são históricos, como qualquer direito. Nascem, modificam-se e desaparecem. Eles apareceram com a revolução burguesa e evoluem, ampliam-se com o correr dos tempos. Sua historicidade rechaça toda fundamentação baseada no direito natural, na essência do homem ou na natureza das coisas."(17)

A dimensão histórica dos direitos humanos está ligada, como não poderia deixar de ser, à noção de pessoa, em sua concreção social e histórica. Miguel Reale, ao tratar sobre o ser pessoa, aponta que "o homem é a sua história, mas também é a história por fazer-se. É própria do homem, da estrutura mesma de seu ser, essa ambivalência e polaridade de ‘ser passado’ e ‘ser futuro’, de ser mais do que sua própria história". Reale arremata: "e note-se que o futuro não se atualiza como pensamento, para inserir-se no homem como ato, — caso em que deixaria de ser futuro — mas se revela em nosso ser como possibilidade, tensão, abertura para o projetar-se intencional de nossa consciência, em uma gama constitutiva de valores."(18) Suas palavras permitem perceber como as pessoas não são meros pacientes da história, mas agentes possíveis de agir de forma ativa (o ‘projetar-se intencional da consciência’) — participar criativamente da vita activa, como dizia Hannah Arendt — constituindo novos valores.

Retomando a dimensão política da construção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, neste aspecto, coincide com a Declaração Americana de Direitos Humanos, verifica-se que liberdade e igualdade, no sentido que temos atualmente, não se encontravam, em meados deste século, no mesmo nível. Pugnar pela igualdade, muitas vezes, significava assumir-se comunista ou socialista, ainda que não o fosse. Defender a liberdade, por outro lado, significava, muitas vezes, defender a liberdade de ação e, por via de conseqüência, a possibilidade de sucesso dos melhores, dos mais capazes, em consagração ao liberalismo.

O tempo da Declaração é também o tempo da consolidação da Guerra Fria. Segundo Lindgren Alves, "durante esse período, a disputa ideológica entre os dois sistemas antagônicos favorecia, pelo enfoque estritamente coletivista de um deles, a idéia de que a obtenção de condições econômicas adequadas teria prioridade sobre o usufruto dos direitos civis e políticos e das liberdades fundamentais"(19). Boaventura de Souza Santos, de outra parte, observa que "durante muitos anos após a Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos foram parte integrante da política da Guerra Fria, e como tal foram considerados pela esquerda."(20) A tensão entre o discurso liberal e o discurso socialista está presente na Declaração, quando se verifica que vinte um artigos tratam dos direitos civis e políticos, dos quais vinte referem-se a direitos civis e um refere-se unicamente a direitos políticos (a liberdade de opinião e de expressão, bem como a liberdade de associação e reunião pacíficas são relacionadas simultaneamente aos direitos políticos) e apenas seis estão relacionados aos direitos sociais. O artigo XXVIII já trata, de forma especialmente genérica da espécie de direitos que posteriormente veio a ser denominada direitos de solidariedade, ao prever que toda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades constantes da Declaração possam ser plenamente realizados. Este artigo não consubstancia, pois, quer direitos civis, políticos, econômicos, sociais ou culturais, tratando, sim, de um dos direitos de solidariedade.

O conteúdo da Declaração

A Declaração Universal dos Direitos Humanos traz, em seu Preâmbulo, sete consideranda, consolidando, em especial, (i) a dignidade humana inerente a todos como fundamento da liberdade, da justiça e da paz; (ii) o desrespeito aos direitos humanos como causa da barbárie; (iii) o direito de resistência à opressão como alternativa última à ausência de proteção e garantia dos direitos humanos sob o império da lei; (iv) a relação direta entre a efetividade dos direitos humanos e a construção do progresso social e de melhores condições de vida e (v) o estabelecimento de uma compreensão comum dos direitos humanos para seu pleno cumprimento.

Ao proclamar a Declaração, a Assembléia Geral a coloca como um ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações. Ela dirige seu campo de validade, portanto, a todas as pessoas, independente do Estado ou nação a que pertençam ou de qualquer outra especificidade. Ainda, ao dispor que cada pessoa e cada órgão da sociedade devam se esforçar para promover o respeito aos direitos humanos e para a adoção de medidas progressivas para assegurar seu reconhecimento e observância universais e efetivos, prevê, efetivamente, que não somente aos Estados incumbe cuidar para a proteção, não violação e promoção desses direitos, mas a todos os membros da sociedade, quer sejam pessoas, quer sejam empresas com fins lucrativos, quer sejam organizações não governamentais — já que todos são órgãos da sociedade. Nicola Matteucci alerta, a esse respeito, que "as ameaças podem vir do Estado, como no passado, mas podem vir, também da sociedade de massa, com seus conformismos, ou da sociedade industrial, com sua desumanização. É significativo tudo isso, na medida em que a tendência do século atual e do século passado parecia dominada pela luta em prol dos direitos sociais, e agora se assiste a uma inversão de tendências e se retoma a batalha pelos direitos civis."(21)

É interessante notar que, mesmo passados cinqüenta anos da Declaração Universal, o postulado nela contido que atribui a todos os agentes sociais a incumbência de não violar, de proteger e promover os direitos humanos pouco adentrou à praxis da Organização das Nações Unidas. A participação das ONGs nos procedimentos da ONU é demasiadamente restrito, a despeito da grande capacidade de mobilização da sociedade civil que algumas delas congregam e da sua proximidade com as situações de violação de direitos humanos, não só civis e políticos. Ainda, pelo que prevê a Declaração, cada pessoa poderia ou deveria cuidar para a proteção e promoção dos direitos humanos independente das fronteiras dos Estados e não apenas no âmbito de seu Estado nacional. Verifica-se a permanência da concepção de que a ONU somente pode relacionar-se com Estados, seguindo a matriz do direito internacional que vigorou até o início deste século.

Cumpre destacar que a Declaração não faz distinção de processo de efetivação ou de efetividade formal ou material entre direitos civis e políticos e direitos econômicos, sociais e culturais, diversamente do que expressam os dois Pactos Internacionais de Direitos de 1966. Os direitos previstos na Declaração devem, todos, ser implementados progressivamente pela educação e ensino e por políticas públicas que assegurem seu reconhecimento e observância. O sentido da expressão ‘progressivamente’ não deve significar ‘na medida da vontade política’, mas sim ‘iniciar-se de imediato e seguir continuamente avançando até sua integral implementação’. Ou seja, não será ‘na medida da existência de recursos’, mas na destinação contínua e prioritária de recursos públicos para a sua consecução, de modo a não se verificar, aí, qualquer margem para a discricionariedade administrativa(22).

A linguagem dos direitos humanos

A Declaração reconhece os direitos humanos considerados essenciais para garantir a dignidade de cada pessoa na sociedade em que vive, de forma a possibilitar a cada uma o desenvolvimento integral de sua personalidade e de sua capacidade de participação na sociedade. É de se observar, todavia, que a linguagem normativa de enunciação de direitos contida na Declaração Universal dos Direitos Humanos, e especialmente por se tratar de direitos humanos, vem permeada de palavras gerais e que, por sua generalidade e vagueza, apresentam um grau de incerteza alto. Termos como ‘liberdade’, ‘igualdade’ e mesmo ‘pessoa’ são polissêmicos, ou seja, comportam vários sentidos(23). A conseqüência disso redunda na seleção, ou eleição, de um sentido determinado para, no âmbito dos Estados, desenhar-se e implementar-se direitos e políticas públicas destinadas a satisfazer a pauta dos direitos humanos.

Estes termos ‘liberdade’, ‘igualdade’, ‘democracia’, ‘pessoa’, dentre outros que estão presentes em toda a Declaração, bem como em todas as normas jurídicas de direitos humanos, internas ou internacionais, são correntes na linguagem política e na linguagem comum, e possuem carga emotiva forte, sendo, por isso mesmo, imprecisas na linguagem jurídica.

Desse, modo, além de sua função descritiva, tais palavras ou expressões comportam uma função persuasiva. A conjugação dessas duas funções das palavras, especialmente as retiradas da linguagem política, a linguagem dos direitos humanos - e do direito, de forma geral - se converte, como colocado por José Eduardo Faria, num instrumento não só de compreensão, mas também de modificação e transformação das pautas valorativas em função das mudanças sócio-econômicas, possibilitando a formação de hábitos, a indução de comportamentos e a consolidação de crenças(24).

As expressões de arco aberto desempenham papel decisivo na reprodução das formas de poder e dominação, podendo conduzir à alienação da realidade, conforme o grau de participação popular na esfera pública, ao firmar nos agentes sociais, individuais ou coletivos, a crença em uma ordem harmônica e equilibrada, mantidas intactas, todavia, as estruturas de poder preexistentes(25).

Verifica-se a necessidade, então, de incrementar-se as ações e mecanismos que permitam amplificar a participação ativa dos agentes sociais, especialmente pela via associativa, para que seja reivindicada a efetividade dos direitos proclamados na Declaração Universal, com apropriação ex parte populi da linguagem dos direitos humanos, com propostas concretas de políticas públicas que permitam o acesso material ao gozo desses direitos em todas as suas vertentes. Para um discurso eficiente dos direitos humanos, é necessário que a participação por meio de associações e entidades em favor desses direitos e de políticas públicas se dê também e cada vez mais, no âmbito internacional ou transnacional. Boaventura de Souza Santos salienta que as atividades cosmopolitas, que caracterizam as globalizações de baixo-para-cima, incluem entre outras, "diálogos e organizações Sul-Sul, organizações mundiais de trabalhadores (a Federação Mundial de Sindicatos e a Confederação Internacional dos Sindicatos Livres), filantropia transnacional Norte-Sul, redes internacionais de assistência jurídica alternativa, organizações transnacionais de direitos humanos, redes mundiais de movimentos feministas, organizações não governamentais (ONGs) transnacionais de militância anticapitalista, redes de movimentos e associações ecológicas e de desenvolvimento alternativo, movimentos literários, artísticos e científicos na periferia do sistema mundial em busca de valores culturais alternativos, não imperialistas, empenhados em estudos sob perspectivas pós-coloniais ou subalternas, etc."(26).

A Indivisibilidade dos Direitos Humanos na Declaração

Do que ficou dito acima, infere-se que a Declaração Universal dos Direitos Humanos ao combinar o discurso liberal e o discurso social da cidadania, associando o valor da liberdade ao valor da igualdade, traz para si, de fato, a tensão entre estes dois valores. Esta tensão é aparente e existe somente enquanto se mantenha a leitura de seus sentidos sob a forma do absoluto. É da tradição ocidental, acentuada com o cartesianismo, a oposição de valores, o maniqueísmo, que impede a visualização da miríade de possibilidades entre dois extremos, como existem entre o branco e o preto, o zero e o infinito. O zero pressupõe o infinito, assim como a liberdade deve pressupor a igualdade, uma conduzindo à outra, recíproca e simultaneamente. O equilíbrio entre estes dois valores é essencialmente necessário para que uma e outra existam no mundo real.

Segundo observa Domenico Losurdo(27) a partir da crítica efetuada por Marx, "o que está em discussão é a relação liberdade-igualdade. Além de certo limite, a desigualdade nas condições econômico-sociais acaba anulando a liberdade, por mais que esta esteja solenemente garantida e consagrada em nível jurídico-formal". E, cita esse autor uma passagem de Hegel de Fundamentos da Filosofia do Direito, p. 127: "quem sofre de fome desesperada, chegando a correr o risco de morrer de inanição, está numa condição de ‘total falta de direitos’, ou seja, numa condição que, em última análise, não difere substancialmente da situação de escravo". Por isso é que não é possível considerar-se direitos humanos simplesmente os direitos civis e políticos, pois, sem os direitos econômicos, sociais e os culturais, eles se desmancham no vazio, sem qualquer possibilidade de realização sequer parcial. A garantia e o acesso efetivos aos direitos econômicos, sociais e culturais, permite a todos alcançar — e manter — as condições econômicas e sociais necessárias para que possam se fazer concretos os direitos civis e políticos, como a liberdade de opinião com conteúdo opinativo, a liberdade de expressão possível de contribuir criativa e construtivamente para a comunidade política, com pleno acesso aos meios e modos para tal expressão — os meios de comunicação, etc.

As desigualdades não são privadas, isto é, não estão situadas — e nem podem estar — fora da dimensão da esfera pública. É indevido associar-se a liberdade ao público e a igualdade ao privado, de forma a situar somente a liberdade no plano da regulação estatal para a sua proteção, especialmente pelo direito civil e pelo direito penal. Nada há no sistema jurídico que permita comparar o nível de proteção da liberdade com o nível de proteção da igualdade, em seu sentido material. A igualdade formal permanece somente como o eixo legitimador do sistema liberal de atribuição de direitos. Porém, exatamente porque o exercício da igualdade material está geneticamente ligado ao exercício da liberdade, torna-se a primeira (a igualdade) de fundamental relevância para a esfera pública, impondo a ação do Estado para sua proteção, especialmente com a implementação de políticas. Jamais se poderá falar, por conta do modo como opera o sistema capitalista — que faz maximizar o lucro com a desvalorização da mão-de-obra —, que a desigualdade existe por conta da preguiça ou da ausência de vocação para o trabalho e para a riqueza, mantendo certo número de pessoas na miséria. Este darwinismo social é argumento próprio dos que vêm a desigualdade na distribuição da riqueza como natural ao primado da liberdade — em sua acepção absoluta.

A percepção da liberdade sob a perspectiva do confronto (a liberdade de um vai até onde se inicia a liberdade do outro) não é adequada à efetivação dos preceitos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, pois, para tal é necessário e inerente a colaboração — o labor com —, ou seja, a liberdade de um termina quando termina a liberdade do outro. O discurso dos direitos humanos não pode persistir associado ao parâmetro do direito subjetivo, pilar fundamental do direito privado. A titularidade dos direitos humanos, pelo que deflui da Declaração, não é ‘contra todos’ erga omnes, mas ‘com todos’, exercendo-se coletivamente.

Partindo desta concepção, o acesso aos direitos proclamados na Declaração não se dá de modo passivo, a mera recepção ou o simples reconhecimento desses direitos, mas de forma ativa, com a conjugação de todos os agentes sociais para a efetivação de todo o rol ali previsto, bem como dos direitos humanos que se somaram.

Desta forma, torna-se evidente que a materialização dos direitos civis, dos direitos políticos, dos direitos econômicos, dos direitos sociais, dos direitos culturais, e também dos direitos de solidariedade — estes já desenhados no artigo 28 da Declaração —, estão indissoluvelmente ligados e interrelacionados, sendo verdadeiramente indivisíveis e interdependentes.

A Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento(28), que vem sendo considerada parte integrante da Carta Internacional dos Direitos Humanos, ao lado da Carta de São Francisco, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e dos dois Pactos Internacionais de Direitos de 1966, prevê expressamente (como já dispunha a Declaração de Teerã, de 1968) no artigo 6º, item 2 que "todos os direitos humanos e liberdades fundamentais são indivisíveis e interdependentes; atenção igual e consideração urgente devem ser dadas à implementação, promoção e proteção dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais."

A Declaração e Programa de Ação de Viena(29) igualmente afirma a indivisibilidade dos direitos humanos no item I.5: "todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e eqüitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Embora particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em consideração, assim como diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem seus sistemas políticos, econômicos e culturais".

A Universalidade dos Direitos Humanos na Declaração

O item reproduzido da Declaração e Programa de Ação de Viena afirma, também, a universalidade dos direitos humanos, que já estava prevista na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

De fato, a Declaração de 1948 é universal por seu título e por seu conteúdo. Vimos, no início deste trabalho, que a intenção primeira era elaborar uma declaração internacional. A mudança nos termos refletiu uma concepção intencional. A Declaração Universal dos Direitos Humanos se pauta pela generalidade na atribuição dos direitos e pela abstração de quaisquer diferenças entre pessoas ou grupos. Em contraposição aos documentos celebrados anteriormente a ela, em que se buscava a proteção de nacionais ou de minorias, a Declaração visou à proteção de todos os seres humanos. Conforme anota Rudolf Bystrický(30), a resolução da ONU A/C3/307 R ev. I/add. 1 apontou, em relação à universalidade da Declaração, não haver necessidade de proteção específica de minorias. De fato, elas sequer foram mencionadas e o argumento usado não justifica a omissão.

Dentre as formas de manifestação da universalidade na Declaração Universal dos Direitos Humanos, Bystrický aponta (i) o sentido pessoal: a Declaração utiliza as expressões ‘toda pessoa’, ‘ninguém’, ‘todos’, ‘homens e mulheres’, significando, assim, que os direitos humanos devem ser gozados por todos os seres humanos, independente de cidadania ou de domicílio; (ii) a validade sem fronteiras, conforme prevê o artigo 2º, item 2; (iii) a formulação de apelo não só aos Estados, mas a cada indivíduo e a cada órgão da sociedade para a cooperação integral. O autor tcheco observa, porém, haver várias concepções de mundo e de pessoa e que as noções de direito, justiça, democracia, liberdade, etc., são categorias históricas, cujo conteúdo é determinado pelas condições de vida de um povo e por suas circunstâncias sociais. À medida em que as condições de vida mudam, também podem mudar o conteúdo dessas noções e idéias. As idéias regentes de uma época são as idéias de sua classe dominante. Entretanto, o mesmo autor adverte que essa abordagem não nega a existência de ideais, princípios, noções que possuem, ao menos em certa medida, um caráter universal e uma espécie de denominador comum em certo período histórico(31).

O fato é que o próprio termo ‘universalidade’ possui acepções diversas no tempo e no espaço, confundindo-se, não raro, com ‘universalismo’.

Riccardo Scartezzini adverte que o caráter contraditório do universalismo é genético, salientando que o universalismo moderno se fundamenta em uma ideologia individualista que defende a autonomia e a liberdade do indivíduo, emancipado de crenças e de dependências coletivas. Em suas palavras, "o universalismo moderno não se conota como promoção universal das totalidades, mas sim de indivíduos concretos. Com efeito, diferentemente dos universalismos clássicos e monoteístas, o universalismo moderno fomenta o individual, o singular, a diferença."(32) Daí que falar-se em universalismo não pode jamais permitir que se tente evocar um modelo de homem universal. Modelos não existem no mundo real, assim como não há um ‘homem padrão’, uma ‘mulher padrão’ ou a ‘criança padrão’. Considerações dessa espécie só se prestam a afastar os princípios e as regras de direitos humanos da realidade, neutralizam alternativas, produzem a irrelevância das pessoas pelo nivelamento e produzem a desresponsabilização dos agentes públicos e dos agentes sociais.

É por isso que a universalidade não pode significar uniformidade. A universalidade da Declaração não deve levar ao equívoco, que ainda se vê, da desconsideração das diferenças específicas entre pessoas por razão de gênero, raça, procedência, credo, etnia, etc. Tratar como igual o que é diferente, ou seja, tratar igualmente homens, mulheres, crianças, indígenas, minorias, negros, brancos, produz, de fato, desigualdades muitas vezes severas, que se constituem em violações de direitos humanos. A proteção maior a tais grupos é necessária para a efetividade da Declaração.

Porém, nestes tempos de globalização, a diferença específica em razão das marcas culturais vem tomando relevo, sob o temor da pasteurização cultural. Não falamos aqui de aspectos que, sob a falsa proteção da cultura em seu aspecto positivo, significam, em verdade, mecanismos de opressão e desumanização ideológica de grupos ou segmentos da população(33), mas de diferenças entre culturas que, ao invés de atrapalhar, contribuem para esse chamado universalismo dos direitos humanos.

Ressaltando a importância da cultura para a construção dos direitos humanos, Boaventura de Souza Santos propõe uma concepção multicultural de direitos humanos. O autor observa que "concebidos como direitos humanos universais, os direitos humanos tenderão a operar como localismo globalizado — uma forma de globalização de cima-para-baixo. Para poderem operar como forma de cosmopolitismo, como globalização de-baixo-para-cima ou contra-hegemônica, os direitos humanos têm de ser reconceptualizados como multiculturais. ... O conceito de direitos humanos assenta num bem conhecido conjunto de pressupostos, todos eles tipicamente ocidentais, designadamente: existe uma natureza humana universal que pode ser conhecida racionalmente; a natureza humana é essencialmente diferente e superior à restante realidade; o indivíduo possui uma dignidade absoluta e irredutível que tem que ser defendida da sociedade ou do Estado; a autonomia do indivíduo exige que a sociedade esteja organizada de forma não hierárquica, como soma de indivíduos livres."(34)

Tratando dessa questão, Boaventura de Sousa Santos prossegue alertando que contra o universalismo uniformizante deve se proceder a ‘diálogos interculturais’ sobre ‘preocupações isomórficas’, de forma a se buscar por "valores ou exigências máximos e não por valores ou exigências mínimos (quais seriam tais valores mínimos? Os direitos fundamentais? Os menores denominadores comuns?). A advertência freqüentemente ouvida hoje com novos direitos ou com concepções mais exigentes de direitos humanos é uma manifestação tardia da redução do potencial emancipatório da modernidade ocidental à emancipação de baixa intensidade, possibilitada ou tolerada pelo capitalismo mundial. Direitos humanos de baixa intensidade como o outro lado de democracia de baixa intensidade."(35)

O estabelecimento de um verdadeiro diálogo intercultural voltado à conjunção dos valores máximos de cada cultura irá permitir a construção de um discurso dos direitos humanos hábil a implementar a efetividade da dignidade humana, conferindo conteúdo material aos direitos previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Um diálogo dessa espécie não pode se dar sem a compreensão da cultura do outro como uma cultura de igual valor, nem melhor nem pior. Deve ser, pois, um diálogo permeado pela solidariedade. Assim como são solidários entre si os direitos humanos, também devem ser solidárias as culturas entre si.

*Procuradora do Estado Assistente - Área da Assistência Judiciária, membro do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, doutoranda em Direito pela USP e Mestra em Direito Econômico pela USP.

** Procurador do Estado na Procuradoria de Assistência Judiciária, membro do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, Professor de Direitos Humanos na Academia do Barro Branco e mestrando em Direito Constitucional pela PUC-SP.

_________

(1) Estas referências iniciam o Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

(2) Ver Sociología y filosofía del derecho, Madrid, Taurus, 1984, p. 286.

(3) Eric Hobsbawn. "A Revolução Francesa", exerto de A Era das Revoluções, São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 19-20.

(4) Ver Louis Henkin, International Law: politics, values and functions - 216 Collected Courses of Hague Academy of International Law 13, v. 4, 1989, p. 208, in Henry J. Steiner e Philip Alston, International human rights in context: law, politics, morals. Oxford, Clarendon Press, 1996, p. 115-116.

(5) Para uma indicação dos tratados e convenções firmados nesse período, ver Enrique Ricardo Lewandowski, Proteção dos direitos humanos na ordem interna e internacional, Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 78-79.

(6) Flávia Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, São Paulo, Max Limonad, 1996, p. 133.

(7) Antonio Truyol y Serra, Los derechos humanos, Madrid, Tecnos, 1977, p. 24.

(8) Op. cit., p. 114.

(9)  Vide, a esse respeito, Louis Henkin, cit., p. 115.

(10)  Idem, ibidem.

(11) Paolo Mengozzi, Direitos Humanos II, Dicionário de política, org. Norberto Bobbio et alli, 4. ed., Brasília, UnB, 1992, p. 356.

(12) Op. cit., p. 156.

(13) Alguns exemplos de direitos econômicos e sociais previstos na Declaração dos Direitos do Homem de do Cidadão de 24 de junho de 1793.

Artigo 5º - Todos os cidadãos são igualmente admissíveis aos empregos públicos. Os povos livres não conhecem outros motivos de preferência, em

Artigo 17 - Não se pode impedir que os cidadãos se dediquem a qualquer tipo de trabalho, atividade ou comércio.

Artigo 19 - Qualquer pessoa pode contratar seus serviços e seu tempo, mas não pode se vender nem ser vendido; sua pessoa não é propriedade alienável. A lei não admite a escravidão; não pode haver mais do que um compromisso de serviços e retribuição entre o homem que trabalha e o que lhe dá emprego.

Artigo 21 - A beneficência pública é uma dívida sagrada. A sociedade deve assegurar a subsistência aos cidadãos menos favorecidos, seja proporcionando-lhes trabalho, seja garantindo-lhes os meios de existência aos que estão incapacitados para trabalhar.

Artigo 22 - A instrução é uma necessidade para todos. A sociedade deve favorecer com todo seu poder os progressos da razão pública e colocar a instrução ao alcance de todos os cidadãos.

Nota: Para o inteiro teor da Declaração, ver María José Añon Roig et alli, Derechos humanos - textos y casos prácticos, Valencia, Tirant lo Blanch, 1996, p. 25-28.

(14) Em 1795, instalado o Terror de direita, foi implantada outra Constituição, que suprimiu os direitos econômicos e sociais de 1793.

(15) Ver Curso de Direito constitucional positivo, 9. ed. revista, 4ª tiragem, São Paulo, Malheiros, 1994, p. 146.

(16) Ver A reconstrução dos direitos humanos - um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, São Paulo, Companhia das Letras, 1991, p. 134. Pode-se afirmar, como esclarecimento que entendemos a comunidade política como não adstrita simplesmente aos limites territoriais dos Estados. A justaposição indevida entre Estado e comunidade política é atualmente destituída de consistência material. Nestes tempos em que o capital é globalizado e graça sem regras, considerar os direitos como locais ou nacionais significa permitir a violação de todo o conjunto de direitos humanos.

(17)  Op. cit., p. 166.

(18) Cf. "Pessoa, sociedade e história", em Pluralismo e liberdade, São Paulo, Saraiva, 1963, p. 71.

(19) Ver Os direitos humanos como tema global, São Paulo, Perspectivas, 1994, p. 45, Série Estudos.

(20) Ver "Uma concepção multicultural de direitos humanos", em Lua Nova - Revista de Cultura e Política, CEDEC, n. 39, p. 105, 1997.

(21) Cf. Verbete Direitos Humanos, Dicionário de Política, cit., p. 355.

(22) Este entendimento deflui não somente da Declaração Universal, mas especialmente da Constituição Federal que, no seu artigo 3º, institui como objetivos fundamentais da República (I) a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, (II) garantir o desenvolvimento nacional, (III) a erradicação (e não simplesmente redução) da pobreza, da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais e (IV) a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Constituindo objetivos da República, todas as ações do Estado e da sociedade devem estar voltadas direta ou indiretamente à consecução material destes fins e não de modo meramente formal, para todos, e não somente para alguns grupos.

(23) Sobre os conceitos e conceitos jurídicos indeterminados, ver Eros Roberto Grau, Direito, conceito e normas jurídicas, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1988, p. 55-84, especialmente p. 72 e ss. Genaro Carrió, em suas Notas sobre derecho y lenguaje, 4. ed. corrigida e aumentada, Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1965 (1990), alerta que "Es corriente presuponer que los criterios que presiden el uso de las palabras que empleamos para hablar acerca de la realidad están totalmente determinados. Pero eso no és más que una ilusión. Si se nos pide que hagamos explícito el criterio de aplicación de una palabra podemos indicar un cierto número de características, o propiedades definitorias, y creer que todas las otras propiedades posibles no incluidas entre aquellas están, por ello, excluidas como no relevantes. Esta creencia es equivocada. Sólo pueden ser excluidas como irrelevantes las propiedades o caracterísitcas posibles que han sido consideradas, pero no las que no lo han sido. Estas últimas no están excluidas; cuando se presenta un caso en el que aparece una o más de ellas es perfectamente legítimo que sintamos dudas que no puedem ser eliminadas por un proceso de pura deducción a partir del significado corriente de la palabra. El uso puede estar, a esse respecto, totalmente "abierto". Es decir, no decidido o, en otros términos, dispuesto a admitir extensiones o reducciones." (grifo nosso). Quer-se salientar com esta lição de Genaro Carrió que a textura aberta da linguagem não permite que, de antemão ou por pura dedução, sejam determinados sentidos excluídos quando de sua aplicação.

(24) José Eduardo Faria ( O modelo liberal de direito e Estado. In: Direito e justiça,: função social do judiciário, São Paulo, Ática, 1989, p. 20-21) observa a esse respeito que "graças à alta carga emotiva dessas palavras, como ‘liberdade’ e ‘igualdade’, elas permitem a defesa de valores abstratos por aqueles que as invocam - o que explica a razão pela qual o liberalismo jurídico-político, partindo da noção de liberdade formal, se converte num eficiente recurso retórico de que se vale uma dada classe para, num dado momento da história, agir hegemonicamente numa dada formação social. Ao mascarar a presença de significados emotivos pela aparência de conteúdos informativos, esses expedientes retóricos abrem caminho para a conquista de unanimidade de um conjunto de atitudes, hábitos e procedimentos. Ou seja: produzem reações de aprovação/desaprovação e amor/ódio, não propriamente por meio de indagações sobre a realidade, mas por meio de predeterminações ideológicas disfarçadas como dados inquestionáveis sobre o mundo. A força operativa desses expedientes retóricos é que faz, do liberalismo jurídico-político e de sua ênfase à noção de liberdade tutelada pela lei, um dos mais importantes estereótipos políticos do mundo moderno e contemporâneo. Vinculado aos conflitos de interesse e à luta pelo poder, o estereótipo político é um termo que as aparências descritivas envolvem, manipulam e escondem emoções, permitindo aos governantes conquistar a adesão dos governados aos valores prevalecentes pela força mágica dos elementos significantes, em detrimento das significações. As expressões estereotipadas na linguagem política cumprem, assim, um papel decisivo na reprodução das formas de poder - e é nesse sentido que o estereótipo ‘liberalismo’, produzindo o efeito de distanciamento e o conseqüente espaço ideológico no qual o Estado moderno monopoliza a produção do direito e manipula os instrumentos normativos e políticos necessários à manutenção de um padrão específico de dominação, provoca uma alienação cognoscitiva entre "cidadãos" formalmente "iguais": afinal, ao serem levados a acreditar na possibilidade de uma ordem legal equilibrada e harmoniosa, na qual os conflitos socio-econômicos são mascarados e "resolvidos" pela força retórica das normas que regulam e decidem os conflitos jurídicos, tais "cidadãos" tornam-se incapazes de compreender e dominar as estruturas sociais em que eles, enquanto indivíduos historicamente situados, estão inseridos".

(25) Patricia Helena Massa, Algumas observações sobre direito ambiental e mercado, Dissertação de Mestrado, FD-USP, 1995.

(26) Op. cit., p. 110.

(27) Ver "Marx, a tradição liberal e a construção histórica do conceito universal de homem" em Educação e Sociedade, Revista Quadrimestral de Ciência da Educação - CEDES, n. 57, Campinas, 1996, p. 687.

(28) Adotada pela Resolução n. 41/128, da Assembléia Geral das nações Unidas, de 4 de dezembro de 1986. Vide, para o texto integral, Instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado - Série Documentos, n. 14, dez. 1996, p. 55-60.

(29) Adotada consensualmente, em plenário, pela conferência Mundial dos Direitos Humanos, em 25 de junho de 1993. Vide Instrumentos ..., cit., p. 61-99.

(30) Ver The universality of human rights in a world of conflicting ideologies, p. 84.

(31) Op. cit., p. 84-88.

(32) Ver "Las razones de la universalidad y las de la diferencia" em Universalidad y diferencia, Salvador Giner e Ricardo Scartezzini (eds.), Madrid, Alianza Universidad, 1996, p. 24.

(33) A mutilação genital feminina praticada por muçulmanos e, em especial por cristãos coptas em boa parte da África, é o exemplo limite, sempre citado. Mas, também, o tratamento outorgado a delinqüentes e a presos em nosso país e em muitos outros países se deve, igualmente, a razões culturais, não sendo nem mais nem menos defensável do que o primeiro exemplo. Como bem aponta J. A. Lindgren Alves, "a violação deliberada de direitos humanos, do ponto de vista dos perpetradores, freqüentemente se dá, em toda e qualquer cultura, a partir de uma postura coletiva, mais ou menos assumida, que denega a humanidade da vítima." (cf. A fotografia de um conceito, Boletim Juízes para a Democracia, v. 4, n. 13, p. 10, jun./jul. 1998).

(34) Op. cit., p. 112.

(35) Cit., p. 114.

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