O VOTO DA NOSSA
CONSCIÊNCIA, O VOTO PELA INDEPENDÊNCIA
Por José Ramos-Horta
Prémio Nobel da Paz 1996
No dia 30 de Agosto o povo de Timor Leste foi às
urnas votar e o seu calvário de 23 anos devia chegar ao fim. Mas o seu
sofrimento apenas aumentou. O povo votou a sua consciencia, votou pela
liberdade - e o exercito indonesio tentou esmagar esse desejo e sonho e
fez mais uma banho de sangue. O domingo da ressurreição não chegou.
No momento em que escrevo estas linhas, uma força
de intervenção multinacional está a apenas 48 horas para desembarcar
em Timor Leste. O Conselho de Segurança votou unanimemente pela
intervenção militar ao abrigo do capítulo 7 que autoriza o uso da
força. O Brasil apoiou essa decisão do Conselho de Seguranca. A
libertação do povo começa agora.
Em toda a história da humanidade houve sempre os
senhores feudais, os ricos e poderosos, houve sempre pobres e fracos,
imperadores e os escravos.
Mas a história da humanidade também nos conforta
com uma verdade. Os impérios assentes sobre a arrogância, a força e o
abuso do poder, os sistemas de governo que não resultam da vontade do
povo desmoronaram-se sempre perante a força do povo.
Desde o império romano ao Third Reich de Hitler,
da tirania de Mossulini à ditadura de Pinochet, da ditadura de Salazar
à de Franco na Espanha, desde o regime corrupto e autocrátco de
Ferdinand Marcos ao regime neo-colonial, arrogante, repressivo e
corrupto de Suharto, aquela verdade histórica repete-se.
Nas democracias o poder renova-se, os governantes
são eleitos e substituídos pela vontade popular. Os vencidos cedem o
poder com dignidade.
Nas ditaduras o poder não se renova, impõe-se
pela força, desgasta-se, corrompe-se e cai. Os ditadores têm quase
sempre um fim sem honra nem dignidade.
Quem com ferro mata, com ferro morre. A unidade e
integridade da República da Indonésia
Se os poderosos e ricos em Jakarta não querem o
desmembramento do seu império feudal terão que ter a coragem e
humildade suficientes para examinarem as suas consciências e
encontrarem as raízes dos problemas que abalam profundamente a unidade
da nação indonésia.
Os graves desafios que o poder central enfrenta em
Aceh, Irian Jaya e Ambon têm as suas raízes na própria história da
formação da República da Indonésia e em décadas de injustiça,
arrogância, repressão, humilhação e impunidade dos agentes do poder.
Violência gera ressentimento e resistência, o
abuso de poder e arrogância são sinais de fraqueza e decadência. A
ausência de democracia e do Estado de direito geram a prepotência,
impunidade e corrupção e corroem a sociedade e o Estado.
O papel do TNI
Mas as forças armadas indonesias (TNI) não
parece aprender com a sua própria história e a história dos outros
povos.
Quando o Presidente BJ Habibie anunciou a nova
política de Jakarta para o Timor Loro Sa'e, essa era a oportunidade
histórica para o TNI também mudar da política e estratégia de
violência, adoptar uma postura mais inteligente e mais humana.
Mas parece que nas academias militares
indonésias, os oficiais do TNI sóaprenderam as tácticas de violação
de mulheres, de massacres da população civil, de mulheres e crianças.
Aprenderam apenas a servir cegamente o ditador
durante mais de 30 anos e contribuindo assim para a corrupção dos
valores éticos e morais e a desagregação do Estado indonésio. Por
isso não apoiam a política da Nova Indonésia de post-Suharto.
O Presidente BJ Habibie revelou coragem, visão e
statesmanship ao anunciar a nova política de Jakarta em relação a
Timor Loro Sa'e. O voto pela "autonomia" é voto pela
integração Nós julgamos os homens e avaliamos as suas promessas pelos
seus actos. A Indonésia promete uma "autonomia especial" para
Timor Leste. Mas os defensores dessa "autonomia", os chefes
das milícias e os seus patrões, agem como sempre agiram durante 23
anos.
Ameaçam, torturam, raptam, violam, matam. Se os
defensores da "autonomia" têm a coragem de cometer tanta
violência sob os olhos de todo o mundo, podemos imaginar o que vai
acontecer ao nosso povo se a questão de Timor Leste for retirada da
agenda da ONU.
Os defensores dessa "autonomia especial"
sabem que muitos elementos "pro-integração" foram mortos
quando deixaram de ser útil. Sabem muito bem que se a maioria do povo
votar pela "autonomia" no dia 30 de
Agosto, o nosso povo será condenado para sempre.
Aqueles que têm dúvidas devem perguntar aos
Acehneses,
Irianeses, Molucanos ou mesmo aos nossos vizinhos
de Kupang o que pensam das promessas de Jakarta.
No plano económico, a Indonésia está em
bancarrota total. Ela depende de biliões de dólares em ajuda
internacional para a sua própria sobrevivência e desenvolvimento.
"Autonomia" significa partilhar as dificuldades e a miséria.
No novo quadro político na Indonésia, se o Timor
Loro Sa'e deixar de ser uma questão internacional, deixa de ser uma
prioridade para Jakarta porque para Jakarta Aceh, Irian Jaya e as
Molucas são estrategicamente muito mais importantes. As ajudas para
Timor Leste serão muito mais reduzidas.
Francisco Lopes da Cruz é "Embaixador"
para as questões de Timor Leste apenas porque existe uma questão
internacional chamada "Question of East Timor". Outros irmãos
pro-integração ou pro-autonomia (é exactamente a mesma coisa) viajam
pelo mundo fora, recebem um fato novo, muitos dólares em ajudas de
custo, para e defendem bom nome de TNI...
Ninguém os convida para as conferências
internacionais porque não têm qualquer credibilidade.
O voto pela independência, o voto da consciência
Independência é um direito e desejo naturais de todos os povos.
O povo indonésio lutou e conquistou a sua
independência aos colonialistas holandeses. Porquê é que então os
indonésios têm tanta dificuldade em compreender e aceitar o desejo do
povo timorense em ser livre e soberano?
No dia 30 de Agosto o povo timorense irá às
urnas para decidir o seu futuro. Sei que cada timorense que tem uma alma
timorense, que tem o sentido de dignidade e justiça, rejeitará essa
falsa "autonomia" e votará pela independência.
O Timor Loro Sa'e livre e soberano será um membro
orgulhoso da ONU ao mesmo pé de igualdade com Indonésia, Portugal,
Austrália e os EUA.
Teremos uma Constituição, uma bandeira e hino
nacionais, o nosso Parlamento e governo, eleitos democraticamente pelo
nosso povo.
Teremos jovens embaixadores que representarão com
orgulho o nosso jovem Estado em muitos países do mundo.
Teremos relações diplomáticas com todos os
países e relações especiais com Portugal.
Teremos relações directas com o Banco Mundial e
o FMI. Teremos os benefícios e pagaremos os custos das nossas decisões
soberanas. Numa relação de dependência com a Indonésia, as decisões
de natureza económica, financeira e fiscal que nos afectam são tomadas
em Jakarta, mas seremos nós a sofrer as consequências dessas
decisões.
A diplomacia da resistência tem 25 anos de
experiência. Ao longo desses anos desenvolvemos uma vasta de rede de
contactos e amigos em todo o mundo. Vamos precisar de ajuda para
reconstruir o Timor Loro Sa'e e vamos buscar essa ajuda directamente,
nós mesmos, sem passar por Jakarta. Não precisamos das esmolas e
percentagens de Jakarta.
No quadro de uma "autonomia", Jakarta
vai buscar ajuda internacional em nosso nome e nós receberíamos apenas
uma miserável percentagem dessa ajuda.
Alguns dizem que o Timor Loro Sa'e não consegue
sobreviver economicamente. Mas pergunto: será que a Indonésia é um
modelo de desenvolvimento e prosperidade, de independência económica?
Se a Indonésia fosse uma Singapura ou Nova
Zelândia talvez nos poderia dar algumas lições sobre economia...Mas
basta vermos o que se passa na Indonésia para pensarmos no filme
"Titanic"...
Quem é que quer saltar para dentro do
"Titanic" a afundar-se?
A transição para a independência sob a bandeira
da ONU O CNRT defende uma política moderada e prudente de transição
de três anos até a independência sob os auspícios da ONU. Durante
esse período de transição, o Secretário-Geral da ONU será a
Autoridade máxima de TL e administrará o território através de um
Representante Especial em parceria com os timorenses que forem
escolhidos.
Esse período de transição permitir-nos-á
consolidar a paz e a reconciliação nacionais, construir os alicerces
do novo Estado - as infra-estruturas económicas e as instituições
democráticas. O CNRT continuará a defender uma política de
reconciliação nacional, tolerância e inclusão. Os recursos naturais
de TL como a pesca, a agricultura, as florestas, o petróleo, o gás
natural, o potencial turístico, serão explorados e desenvolvidos
racionalmente de forma sustentável. O CNRT está a desenvolver um Plano
de Desenvolvimento Estratégico para a Transição.
É pela primeira vez em 500 anos da nossa
história que são os timorenses a pensarem e a conceberem um estudo
detalhado e multiforme. Esse PDE será a base de toda a nossa política
para os próximos anos.
Logo a seguir ao anúncio do resultado da consulta
popular, o CNRT com a ONU e o governo português organizará uma
conferência internacional sobre o desenvolvimento de TL.
Humildade e tolerância
O nosso povo revelou uma coragem sem igual ao
longo de 24 anos de luta. Lutar de armas na mão, resistir à tortura
física e psicológica são actos de grande coragem. Mas grandes são
também os homens e mulheres que sabem perdoar. Perdoar exige coragem,
ser-se humilde exige coragem. A coragem que demonstramos durante os
piores anos de guerra vai ser necessária em tempo de paz.
Em primeiro lugar a resistência terá que ter a
coragem e humildade suficientes para admitir os seus próprios erros. O
nosso povo já sofreu de mais. Primeiro, por causa da imaturidade,
irresponsabilidade e arrogância de alguns dos nossos líderes. E sofreu
nas mãos do TNI. Vamos finalmente enterrar as armas e transforma-las em
enchadas para cultivar a terra sagrada que Deus e os nossos antepassados
nos doaram. Não há vencidos. Vamos celebrar a vitória da liberdade
com humildade e dignidade. Humildade perante Deus e perante o mundo.
Vamos atravessar a rua e abraçar o nosso irmão
"pro-autonomia" e convida-lo a celebrar a vitória da povo. O
transmigrante indonésio é nosso irmão Vamos atravessar a rua e
abraçar o transmigrante indonésio e convida-lo a ficar na nova grande
casa timorense. Ele é nosso irmão.
O nosso povo lutou, sofreu e morreu por uma
Pátria livre e digna, por uma sociedade tolerante e generosa. O grande
teste da nossa capacidade para constituirmos um Estado livre e soberano
está na nossa capacidade de sermos humildes e tolerantes, generosos e
solidários.
UNAMET
A UNAMET tem cumprido com a sua missão, uma
missão extremamente difícil, com total imparcialidade e dedicação.
As acusações lançadas contra a UNAMET de que a
mesma favorece a resistência era de esperar e são muito naturais.
Durante mais de 20 anos o povo timorense esteve
sempre sozinho, o território isolado, cortado do resto do mundo. O TNI
e os seus servidores reinavam como senhores feudais com poder absoluto.
A presença da ONU em TL perturba o "status
quo" que favorecia completamente o lado mais forte pois uma das
funções da UNAMET é precisamente criar condições de igualdade de
oportunidades e direitos, de liberdade de expressão e de associação
para todos os timorenses. Isto obviamente afecta os interesses daqueles
que tinham o monopólio do poder e actuavam com total impunidade. Por
isso a UNAMET é atacada.
Apelo a todos os elementos da resistência para
colaborarem totalmente com a UNAMET e a melhor forma de colaborar é
cumprirmos rigorosamente o Código de Conduta da UNAMET.
Agradecemos a todo o pessoal da UNAMET, aos
voluntários das ONGs assim como á Imprensa internacional, incluindo a
Portuguesa, por estarem no nosso país nestes meses tão difíceis. Que
Deus os abençoe.
A nossa Igreja
Conheci as primeiras letras em Soibada. Cresci com
a Igreja e os padres. A eles devo a minha educação. Ensinaram os
valores da humildade, generosidade, tolerância, honestidade e
disciplina. Durante 500 anos da colonização ibérica que moldaram a
identidade timorense, a nossa humilde igreja esteve sempre ao lado do
povo.
Foi ela que nos deu a nossa educação modesta e
nos ensinou a sermos dignos filhos da terra que nos viu nascer.
Durante a ocupação japonesa quando o mundo nos
abandonou foi a Igreja que esteve com o povo.
Durante os longos anos negros da ocupação
javanesa e quando fomos abandonados por todo o mundo, foi a Igreja que
protegeu o povo, recebeu as viúvas e os órfãos. Foi a Igreja que
procurou pelos desaparecidos e presos. A nossa Igreja foi a voz daqueles
que não podiam falar. Se alguma vez o Prémio Nobel de Paz foi
atribuído com toda a justiça foi quando em 1996 o nosso conterrâneo,
irmão, amigo e chefe espiritual Dom Carlos Belo foi contemplado com
esse prestigioso galardão.
Quando no dia 10 de Dezembro de 1996, na cidade de
Oslo, Dom Carlos subiu ao palco e perante os Reis da Noruega e milhões
de pessoas em todo o mundo recebeu o Prémio Nobel da Paz, ele
transportava nos ombros a gloriosa história da nossa igreja humilde e
do nosso povo mil vezes heróico.
Votar pela independência é votar a nossa
consciência, é honrarmos a nossa história e a nossa Igreja.
Texto preparado pelo
Dr. José Ramos Horta para o livro
"Quem está escrevendo o futuro? Reflexões sobre o Século
XX",
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