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17/2 a 4/3  2000:
VISITA DE FREI JOÃO XERRI, OPA TIMOR LESTE
 

O padre Ernanne Pinheiro, que ia pela CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - e eu, que ia pela CRB - Conferência dos Religiosos do Brasil - saímos de SP para Buenos Aires, dia 17 às 19:00, e de Buenos Aires para Auckland, na Nova Zelândia. De lá fomos para Sidney, onde chegamos no sábado, dia 19 às 14:00 hora local.

Estava no aeroporto Aires Eddie de Almeida, irmão da Nancy de Almeida Ezequiel, timorense casada com um brasileiro: nós a conhecemos quando morava no Brasil, hoje mora em Sidney. Fomos para a casa do Aires, onde nos hospedamos e em seguida para o Centro: East Timor Cultural Center, fundado pelo Aires, onde a Nancy trabalha. Lá houve uma recepção para nós, com a presença da Nancy, sua irmã Filomena e irmãos, mãe, marido, filho e vários timorenses. A recepção foi muito calorosa e simpática: Nancy contou da ajuda da Igreja no Brasil e especialmente do "Clamor por Timor", por quem tem grande carinho.

Um dos costumes dos timorenses que me impressionou é o hábito de beijar a mão do sacerdote: no começo não queria permitir, mas o Aires me disse que se não deixasse, estaria ofendendo o povo. Assim, durante toda a visita a Timor tive minha mão beijada pelas pessoas a quem era apresentado. Inclusive se alguém não percebia que eu era sacerdote, ao saber disso voltava para se desculpar e beijar minha mão!  

O contato com Aires, Nancy e Filomena me mostrou que Timor Leste é uma "vocação", com diferentes características: Aires segue uma linha mais cultural, Nancy se pauta pela oração/promoção humana e Filomena, pela militância política e partidária, na Fretilin.  

O Centro se localiza numa paróquia, cujo vigário é maltês, mas foi criado na Austrália. Outro padre que trabalha na paróquia é filho de migrantes malteses: os pais foram primeiro para a Argélia e Egito, de onde foram expulsos e depois foram para a Austrália. Há na paróquia missas em várias línguas: polonês, espanhol, maltês, italiano, além do inglês; outro dos padres é filipino.  

Jantamos com Nancy, Aires e Filomena. A família foi muito marcada pelo pai, que foi da Índia para o Timor; tinha uma cabeça mais aberta, mandou as filhas estudarem, quando na sociedade timorense a mulher "não é nada". O pai queria que Filomena fosse médica, e mandou que estudasse em Lisboa, para depois ajudar o povo timorense. Daí vem a origem da  "vocação timorense" da família.

Nancy, desde nosso primeiro encontro, sempre quis que eu conhecesse seu irmão, que estudou e morou com padres em Goa (Índia). Aires, que é um dos líderes dos refugiados timorenses e sofreu muita perseguição inclusive do governo australiano, tem longa experiência de contato com clérigos, com quem discutia o futuro do Timor e naturalmente tem críticas ao nosso autoritarismo e elitismo.  

Domingo, dia 20: Aires pediu ao Ernanne e a mim que celebrássemos no acampamento dos refugiados timorenses. Eu preguei e foi uma das pouquíssimas vezes em que tive a oportunidade de falar com um grupo maior de timorenses: havia mais de 100 pessoas na missa. O acampamento é muito vigiado, fica numa vila militar, mas as condições são muito boas, tanto que muitos não queriam voltar para o Timor: além de moradia e comida, recebem 25 dólares australianos (uns R$25,00) por semana...  

De tarde fomos conhecer o Instituto Mary MacKillop, onde mora a irmã Josephine Mitchell, que conheci em Portugal. É um centro cultural muito importante, dirigido por 3 irmãs de congregações diferentes. Uma delas, especializada em línguas, fez estudo importante de uma das línguas dos aborígenes australianos, e agora está estudando o tetum, principal língua do povo de Timor Leste. Na verdade, o interesse pelo tetum foi incentivado por D.Carlos Ximenes Belo, bispo de Dili e Nobel da Paz de 96. O Concílio Vaticano II recomendou o uso da língua vernácula nas liturgias, o que inclusive fez com que várias línguas faladas só por povos pequenos não morressem. Em Timor Leste foi discutido qual seria a língua litúrgica: português, bahasa indonésio, inglês? e decidiram pelo tetum, língua mais falada no território, apesar de que há pelo menos mais 12 línguas nativas. O Instituto já publicou muitos textos sobre e em tetum, inclusive partes da Bíblia e histórias. A Nancy é uma das que escreve histórias em tetum.  

A irmã Josephine contou que todas as escolas em Timor Leste foram queimadas, e os livros que elas tinham conseguido publicar com enorme dificuldade foram também queimados, inclusive os originais, os clichês.

Só alguns livros escaparam, por exemplo em Baucau, lugar menos atingido pela violência. O depósito dos livros em Dili, onde tinham sido publicados, inclusive com ajuda de D.Belo, foi queimado, pois estava na Cúria, inteiramente destruída como praticamente toda a cidade de Dili.

Uma das irmãs que trabalha no projeto é enfermeira e tinha acabado de voltar de Timor Leste: contou-nos da destruição, da falta de roupas, de comida... Disse que o povo bem sabia que haveria matança se a independência ganhasse no plebiscito, tanto que houve gente da Igreja que disse ao povo que votasse pela integração, para evitar a violência. Isto me fez pensar na Nicarágua, onde estive acompanhando a eleição de 1990: o povo participou em massa dos comícios sandinistas, mas não votaram neles, pois sabiam que se os sandinistas ganhassem os "contra" continuariam a guerra civil, que já tinha matado muita gente.

O que houve em Timor foi mesmo uma vingança contra o povo; e os soldados indonésios, inclusive a última leva enviada para controlá-los, antes de regressar a seu país, saquearam o que puderam: com a participação dos milicianos timorenses, faziam o povo sair de suas casas, estacionavam um caminhão ao lado e o enchiam com tudo o que tinham roubado, antes de queimar as casas. A irmã descreveu uma miséria total em Timor Leste, muita fome, gente que não tem mais nada... era um relato pesado, cheio de emoção, de alguém que estava realmente ao lado do povo timorense! 

Segunda, 21: fomos de manhã para Darwin, no norte do país; no aeroporto nos recebeu um jesuíta, padre Maurice Harding. Ele trabalha com os aborígenes australianos e Aires e Nancy tinham pedido a ele que comprasse nossas passagens para Dili. Foram 2 horas num avião Brasília, velho...

O aeroporto de Dili está bem destruído e havia forte presença militar.

O único lugar em que vimos timorenses fazendo um trabalho de "certa categoria" foi no aeroporto: são eles que fazem o controle dos papéis, falando mais inglês, pouco português. Os outros timorenses que vimos trabalhando eram faxineiros, porteiros e motoristas da ONU...  

Foi um alívio quando soubemos que havia alguém nos esperando: Silvério, motorista de D.Basílio. Comemos num restaurante em Dili e tivemos nossa primeira visão da destruição; casas, escolas, banco, tudo foi queimado. Fomos depois para Baucau, mais de 2 horas pela estrada principal do país, com lindas vistas do mar e da serra, mas perigosa porque é muito estreita e cheia de curvas fechadas.

Passamos por vários povoados queimados; até a cidade de Manatuto, que era grande, foi totalmente destruída: só a igreja foi poupada.

Chegamos a Baucau mais ou menos às 18:00 e logo fomos falar com D.Basílio, que nos hospedou na casa de hóspedes da diocese, bastante confortável, pois cada um tinha seu quarto com banheiro privativo.  

Na terça, dia 22 conversamos de manhã com D.Basílio; foi então que notamos que não havia propriamente um programa organizado para nós, mas que íamos ter que aproveitar as ocasiões que se apresentassem. Por exemplo, D.Basílio disse que não poderia ficar conosco, pois ia dar posse ao novo vigário de Laleia; pedimos então para acompanhá-lo, o que nos proporcionou uma experiência interessante da vida timorense. Fazia muito calor e logo na entrada da cidade havia uma recepção do povo, uma guarda tradicional, vestida com as roupas locais, com bandeiras, crianças, tamborins... Receberam o bispo com um "tais": tradicional estola de acolhida. Apesar do calor, as autoridades estavam todas de terno e gravata. Havia soldados da ONU - hoje são 8000 em todo o território. Há soldados de vários países: Tailândia, Bangladesh, Austrália... Esses eram filipinos, católicos e participaram da missa.  

Na missa, o bispo ficou no "trono" e sacerdotes locais celebraram; Ernanne e eu concelebramos. Havia meninas coroinhas, não só lá, mas também em outras cidades. Notei a participação de mulheres, que fizeram as leituras em tetum, cantaram o salmo; houve um belíssimo coral de música gregoriana em tetum, dirigido por um leigo. No final da celebração, várias pessoas falaram, inclusive um dos chefes da comunidade; achei estranho não termos sido convidados a falar: D.Basílio limitou-se a nos apresentar. 

Após a missa, enquanto tirávamos os paramentos, o "salão", uma tenda, foi preparado para o almoço. Em primeiro lugar comeram as autoridades: bispo, sacerdotes, capitão da ONU... Havia 4 tipos de carne, 3 tipos de arroz: comida bastante abundante; Laleia não foi muito destruída e provavelmente por isso havia comida. Houve um show muito bonito, com danças; notei que não havia cantos de protesto. Havia bonitos enfeites feitos com palha de  milho e frutas. O povo - umas 500 pessoas - comeu depois, de modo muito ordeiro. Via-se bem que havia muita organização, embora discreta; apesar de ser uma Igreja clerical, o povo organizava a festa sem que o padre precisasse intervir, nem uma só vez.  

Por acaso apareceu Ramos-Horta, que tinha ido procurar o bispo; ele me reconheceu e conversamos um pouco. Seus seguranças são brasileiros e pude conversar bastante com eles, sobretudo com o sargento Antonio João Benites, que está cursando direito em Brasília e que me deu bastante informação. 

Quando estava na Austrália já tinha ouvido falar muito bem dos nossos soldados; o que vi e ouvi no Timor acabou por fazer com que eu mudasse minha opinião, de que era ridículo o Brasil mandar tão pouca gente. Conclui que afinal de contas foi bom mandar só 51 soldados. Eles fazem os serviços mais delicados, como monitorar os soldados indonésios logo antes de sairem, evitando que destruissem casas e bens. Fazem a guarda de Xanana Gusmão e Ramos-Horta, realizam patrulhamentos especiais, guardam os prisioneiros milicianos que cometeram crimes, inclusive os acusados de homicídio. São muito bem vistos pelo povo, pois brincam com as crianças, e têm iniciativas de bom-senso, em vez de se limitarem a cumprir ordens.

Timor está como que "invadido" por tropas estrangeiras, com uma presença massiva. O Brasil continua a ser muito querido, inclusive porque sua presença é mais discreta e simpática. Além dos soldados, há outros brasileiros como monitores desarmados da paz e funcionários da ONU.

O sargento me disse sua alegria ao ver o povo celebrando, dançando e cantando: quando chegou a Dili não se via ninguém nas ruas, nem cachorros...

À tarde voltamos para Baucau, onde dormimos.  

Na quarta, dia 23, participamos de uma reunião do clero da diocese.

Havia um assunto pendente, que era a atuação do padre Filomeno Jacob SJ, que é timorense e responsável pela educação em nome do CNRT: Conselho Nacional da Resistência Timorense, uma frente que abriga vários partidos políticos e organizações civis e que é atualmente o órgão que representa o povo. Filomeno morou durante muito tempo fora do Timor e é acusado de autoritarismo por alguns membros do clero. O problema principal é a questão da língua. A mais falada além do tetum, é o bahasa indonésio, mas o CNRT decidiu que a língua oficial será o português; o tetum é a língua nacional. Para o CNRT, esta é uma decisão político-estratégica. Entendem que português e religião católica são elementos fundamentais da história e identidade timorense. Se a língua oficial for o inglês, eles serão engolidos pela Austrália, sendo tratados como outros aborígenes. E naturalmente não querem que seja o bahasa indonésio, que é a língua do invasor... No entanto, tem gente que reclama dessa decisão.

 

A meu ver, existe também a questão de como lidar com o poder secular: antes o poder estava nas mãos do inimigo, os indonésios, com quem a Igreja  só se relacionava à distância e em nome do povo. Agora o poder civil começa a passar para as mãos dos próprios timorenses, inclusive um sacerdote...

E há também a questão de diferentes modelos de sacerdócio: tudo isso dificulta o entendimento. Ficava me lembrando do que aconteceu na Nicarágua, com os irmãos Ernesto e Fernando Cardenal, e no Haiti com o presidente Aristide: muitas vezes nós, Igreja, incentivamos os membros da Igreja a participar da política, mas quando fazem isto, nós os abandonamos... 

Como o padre Filomeno não foi à reunião, o único assunto ficou sendo a nossa visita, que seria o segundo assunto.Tínhamos preparado a reunião junto com D.Basílio, que traduziu o que dizíamos para o tetum. Havia uns 20 sacerdotes/religiosos e 10 religiosas. 

Eu me apresentei como dominicano, enviado pela CRB, mas enfatizei meu trabalho na Justiça e Paz e no Clamor por Timor. A pedido de D.Basílio, comentei como a questão do Timor Leste penetrou no Brasil e como foi sentida pelo povo e pela mídia. Acabei contando um pouco da caminhada do Grupo Solidário São Domingos, origem do projeto Clamor por Timor.

O padre Ernanne contou do projeto atual da Igreja no Brasil para ajudar o povo timorense. Um dos sacerdotes nos perguntou se não íamos agir como mais uma ONG, que promete muito, gasta rios de dinheiro, faz um belo relatório e o povo não recebe nada...

Os participantes descreveram a situação atual do Timor, a fome, a presença dos soldados da ONU.

(Uma ONG me disse mais tarde que se calcula que 30% dos soldados da ONU têm AIDS. Disseram também que durante a ocupação havia prostitutas indonésias, mas atualmente as prostitutas são timorenses.)

Os presentes reclamaram que a ONU é inoperante, ineficiente, que não cria empregos e que por isso há fome. Pediram coisas "pequenas", pontuais, do tipo sistema de água encanada para uma aldeia: acham importante conseguir uma pessoa do tipo "mestre-de-obras", que trabalhe junto com o pessoal, ensinando o povo para que depois faça por si mesmo.

A maioria do clero é jovem; é um clero autóctone que cursou o seminário na Indonésia. Não há uma articulação entre os religiosos, do tipo da CRB.

No final eu disse que acredito que este seja um kairós para eles, o momento de criar uma Igreja que seja fermento em um Timor livre.

Ao encerrar, o bispo disse aos presentes que, se quisessem, poderiam nos convidar para suas paróquias e comunidades, mas isto não aconteceu.

O único convite foi para visitar um grande colégio em Fatomaca, perto de Venilale, uma escola profissionalizante dos salesianos, com internato.  

Na quinta, dia 24, fomos para Dili com D.Basílio. Como a viagem demorou mais do que tinha sido previsto, ao chegar fomos direto almoçar. A casa de D.Belo foi quase toda destruída, só sobrou um pedaço onde mora hoje e onde comemos com ele. Entregamos a ele a carta da CNBB, convidando-o a participar da celebração dos "500 anos", em Porto Seguro. Também dei a ele uma Agenda Latino-Americana 2000 e uma imagem de N.Sra.Aparecida.

O almoço foi simpático, descontraído, com piadas e comentários sobre  política, até do Vaticano. Comentamos sobre o projeto de colaboração da Igreja no Brasil com a Igreja no Timor: disse que era muito importante. Lembrou-se logo da irmã Vera Camerotti, salesiana brasileira amiga nossa, que passou algum tempo no Timor e lamentou que ela tivesse voltado para o Brasil.

D.Belo disse que nossa presença era muito bem-vinda e enfatizou a necessidade de a Igreja no Brasil ajudar no ensino de português e no seminário maior conjunto, que as duas dioceses estão abrindo em Timor.

Notei que a questão das comunicações é complicada: não há um sistema de telefonia funcionando. Eu mesmo vi uma vez que D.Belo, para conversar com D.Basílio, foi até Baucau, uma viagem de no mínimo 2 horas para ir e outro tanto para voltar! 

Depois do almoço, fomos para a casa das irmãs canossianas, que fica ao lado, onde nos hospedamos por uma noite.

À tarde chegou Sergio Regazzoni, o suiço-italiano que iria apresentar para a diocese de Baucau o projeto conjunto do Centro Lebret, de Paris e do IRFED, onde trabalha Luís de Sena, brasileiro.

Nessa tarde estivemos na sede da ONU, em Dili, que era a sede do governo e que só foi destruída em parte. Havia dois pedidos que tinham vindo do Brasil, para que Sergio de Melo, "governador" de Timor Leste em nome da ONU, nos recebesse: um do Itamaraty e outro do deputado Euclides Scalco, do PSDB, amigo do Ernanne. Sugeriram que escolhêssemos uma de duas datas e decidimos ter a entrevista na terça, dia 29. Lá nos encontramos com o professor de direito Eugenio Aragão, da Universidade de Brasília, que estava no Timor para ajudar a organizar o sistema jurídico, os tribunais, formar novos juízes etc. Ernanne ficou conversando com ele, que por sinal tinha acabado de se demitir, enquanto eu fui conversar com Estanislau, membro da direção do CNRT e marido da Filomena de Almeida, a quem encontrei na sede da ONU.  

Em seguida, o professor Eugenio nos levou para a sede do CNRT, que fica perto da sede da ONU. No caminho ele fez comentários sobre a ineficiência das Nações Unidas. Na sede do CNRT encontramos Roque Rodrigues, nosso conhecido de muitos anos, membro do CNRT e atual chefe de gabinete de Xanana. Embora não tivéssemos marcado hora para falar seja com ele, seja com Xanana, ele nos levou para uma visita rápida com o presidente: havia uma fila de gente que tinha hora marcada para falar com Xanana.

Quando Roque disse a Xanana que éramos dois sacerdotes brasileiros, da solidariedade a Timor, Xanana nos cumprimentou calorosamente. Comentamos rapidamente sobre a próxima visita dele ao Brasil. Disse que entregaria para Roque dois presentes para ele: um do Clamor por Timor e o álbum dos 20 anos do PT, enviado por Lula.

Durante a conversa com Roque, comentamos sobre as dificuldades que o CNRT enfrenta neste período de transição; ele disse que os timorenses são muito gratos porque a ONU tinha feito algo de extremamente importante: tinha estabelecido segurança no país.  

No final da tarde participamos, a convite de D.Belo, de uma celebração de  de sétimo dia, chamada "flores amargas" em memória de uma timorense, religiosa canossiana, muito conhecida, que trabalhava na casa do bispo. É costume a família oferecer um jantar após a celebração: neste caso, D.Belo fez questão de oferecer o jantar ele mesmo. Nós ficamos em cima de um palanque, com as autoridades. Fiquei impressionado quando D.Belo nos pediu desculpas por isso, dizendo que sabia que não gostávamos de ser tratados de modo tão diferenciado, mas que era o costume local: ele foi muito gentil conosco. Havia muita gente no jantar, que foi bastante silencioso, mas meio festivo também. D.Belo falou no início, e ficou até o fim. A imagem que me ficou de D.Belo é a de um pastor muito próximo de seu povo.

Durante o jantar eu me encontrei com uma dominicana do Rosário, timorense, superiora de uma casa onde há mais uma irmã e várias postulantes. Convidou-me para celebrar com elas no dia seguinte. Encontrei-me também com uma salesiana, a irmã Carmen, para quem tinha levado carta da irmã Vera. Combinamos que eu visitaria as salesianas no dia seguinte: na verdade, todos as visitas e contatos foram assim, decididos em  encontros ocasionais...  

Depois do jantar, já bem tarde, foram conversar conosco 3 brasileiros: Flávio d'Amico, jovem diplomata do Itamaraty, nomeado por Sergio de Melo secretário do Conselho Consultivo que ele criou, para assessorá-lo, formado por 15 pessoas, sendo: 7 membros do CNRT, inclusive o próprio Xanana Gusmão, um membro da Igreja Católica: padre José Antonio Costa vigário geral da diocese de Dili; 3 membros dos grupos pró integração à Indonésia (leia-se "milicianos"...): só 2 vagas foram ocupadas; 4 membros da UNTAET (Administração Transitória das Nações Unidas em Timor Leste), incluindo o próprio Sergio Vieira de Melo.

Estava também Kywal de Oliveira, que foi cônsul do Brasil em Sidney e deve ser o representante oficial do Brasil em Timor Leste. E também Fabíola, que esteve na Bósnia a serviço da ONU, cuja atuação defendia. Já Flávio e Kywal concordaram com as críticas quanto à inoperância da ONU em relação ao Timor: disseram que a demora em ir pôr fim à violência das milícias se deve a seus mecanismos complexos e lentos. A ONU é muito centralizada, todas as decisões passam por Nova York; preocupa-se muito mais com os Estados, membros da ONU, do que com o cidadão, o indivíduo. Daí sua dificuldade em atender às necessidades concretas, prementes, dos timorenses, apesar de já se terem passado 6 meses.

Foi uma conversa muito interessante. Fabíola, a pedido meu, comparou a Bósnia com o Timor: depois de pensar um pouco, disse que Timor era pior, porque na Bósnia não se destruiu o Estado, toda a infraestrutura, todo o arcabouço legal, como aqui. Em Timor tudo tem que ser reconstruído.  

Na sexta, dia 25, fui então celebrar com as irmãs, às 6:30 da manhã, no bairro de Bidau. Lá me encontrei com uma irmã dominicana de Maryknoll, que mora na mesma comunidade e que me contou de seu trabalho com um grupo de mulheres. Lá também conversei mais uma vez com o padre Filomeno Jacob - com quem já tinha estado na véspera, durante o jantar - sobre sua ida ao Brasil.

Em seguida fui visitar as salesianas, no bairro de Balide, onde conversei com a irmã Carmen, mestra de noviças, que contou muito sobre a destruição. Elas esconderam os pais de Xanana: como o pai tinha "desaparecido", a casa deles tinha sido queimada e ele não estava nas montanhas com a guerrilha, foi dado como morto: estava na casa das irmãs! Apareceu lá um sacerdote anglicano, capelão das tropas australianas, que vai sempre rezar com as irmãs, cujo espírito ecumênico elogiou muito.  

Mais tarde voltei ao CNRT, para conversar com nosso amigo Mari Alkatiri, líder timorense que esteve no Brasil mais de uma vez. Ele me contou que foi encarregado de negociar o petróleo do Mar de Timor (Timor Gap) em nome do CNRT, pois o vergonhoso tratado anterior, entre Austrália e Indonésia, naturalmente caducou. Mari tem bem claro que o poder neste momento está com a ONU. Pensei, então, que a Austrália é um país anglo-saxão, grupo que praticamente domina a ONU; logo se houver uma negociação neste momento, a Austrália estaria negociando "consigo mesma"!

Mari me contou as dificuldades que o CNRT tem para discutir assuntos tão vitais para o povo, sem ajuda de assessores. Os únicos técnicos são os da ONU. Ele deixou escapar que recebeu ofertas de suborno... e disse que sua proposta é que o tratado mantenha os mesmos termos atuais por enquanto, até que o povo timorense possa negociar realmente por si mesmo, de modo soberano.  

Almocei na casa das canossianas; os outros 2 brasileiros: Sergio e Ernanne chegaram tarde, pois tinham ido à rádio da diocese de Dili. Existem 3 rádios no Timor: da ONU, da diocese - que é a  mais antiga - e do CNRT; as 3 só são ouvidas em Dili. Tinham também conversado com o vigário geral da diocese, padre José Antonio da Costa.

No final da tarde voltamos para Baucau.  

Sábado, dia 26/2: Na parte da manhã, conversamos com o senhor Henrique de Jesus, chefe de gabinete da Secretaria do governo português para Timor Leste, cujo coordenador é um frade franciscano. Henrique de Jesus é economista, tinha trabalhado no Timor no tempo da colônia. Tivemos uma conversa interessante sobre a atuação da ONU: sempre me incomodava ouvir dizer que ela é ineficiente por ser burocrática e porque existe muito carreirismo; essa explicação nunca me pareceu suficiente. A leitura dele é que a ONU vê em Timor uma Bósnia, Kosovo... 2 facções irreconciliáveis, em guerra civil; precisa separar os beligerantes e não pode contar com eles para administrar, tendo que trazer gente de fora para isto. As decisões da ONU são todas tomadas em Nova York e não no local. Disse ele que a visão de Portugal é a de que Timor é uma colônia, em processo de descolonização. Não existem duas comunidades, apenas um certo número de pessoas, como em toda colônia, que prefere continuar como está.

Só se pode esperar da ONU a construção de estradas, refazer a telefonia... Portugal quer criar estruturas econômicas para que, ao se tornar independente, Timor seja um país pobre, mas em ascensão e não como a maioria dos países da África, pobres, mas em descensão.

Segundo Jesus, a ONU acabará por sufocar o CNRT - aliás, Mari Alkatiri também tem medo disto. Fiz um paralelo com a Igreja: as instituições religiosas ricas podem vir a sufocar a Igreja do Timor.

Na minha opinião, a ONU deveria começar por pedir desculpas ao povo timorense, pois o massacre pós plebiscito se deu por culpa da ONU que aceitou que a Indonésia fosse responsável pela segurança...

Foi Jesus quem usou a expressão "Zé timorense", dizendo que ele não conta, mas que a situação não vai estourar porque a maioria do povo vive à margem do sistema e tem uma enorme capacidade de resistência.

Essa conversa me fez ver claramente que nós, a Igreja do Brasil, deveríamos  fazer projetos diretamente com o povo, mostrando assim publicamente que o reconhecemos como sujeito. Não vai ser fácil, porque na verdade tudo "tem" que passar pela ONU.  

Em seguida Ernanne e eu fomos a Venilale, enquanto Sergio ia para Dili buscar o Luis de Sena, que acabava de chegar. Em Venilale estive com a irmã Alma, salesiana, outra amiga da irmã Vera Camerotti, que viveu lá. As salesianas têm uma creche para órfãos da guerra e da miséria. Estivemos de novo com o padre João, salesiano que dirige o seminário. Na véspera do plebiscito, 29 de agosto, ele fez uma interessante homilia, durante uma extraordinária celebração de reconciliação. A irmã Alma traduziu as notas dele para o italiano e me entregou. Venilale não foi destruída.  

De tarde nós 4 conversamos novamente com o bispo; foi então que as formas de ajuda começaram a se definir. Vimos que era importante que a voz do povo surgisse, fosse ouvida; que se deveria trabalhar de instituição para instituição, que a ação da nossa Igreja deveria ser de "perfil baixo", nada impositiva. Concretamente, apoiar na formação do seminário, trazer gente de lá para se formar aqui. Foi então que D.Basílio nos deu a grande orientação: "precisamos de pessoas que animem nossos animadores de comunidade, para que o povo se sinta capaz"...  

No domingo, dia 27, celebramos cedo com o bispo, que fez em tetum uma homilia sobre a reconciliação a partir da verdade, da justiça; o evangelho era o do vinho novo em odres velhos. Ele falou da nossa presença, mas não tivemos oportunidade de falar com o povo.

Depois da missa fomos até o porto de Com , em 2 carros, junto com alguns diplomatas portugueses. Na estrada entre Baucau e Com passamos pelo local onde foram mortos 2 religiosas canossianas, uma das quais era italiana, 3 diáconos, o motorista e um jornalista indonésio: esse massacre foi um dos últimos atos das milicias, no dia em que a ONU ia chegar. Notei que D.Basílio tem dificuldade em reconhecê-los como mártires; no entanto, Ernanne e eu lembramos de vários mártires, reconhecidos pela Igreja, que foram mortos por piratas e saqueadores... Essas pessoas estavam levando comida para o povo da região de Laga; houve testemunhas do massacre, membros das Falintil. As Falintil denunciaram o massacre e no dia seguinte atacaram as milícias, matando muitos. Mais tarde os "gurkhas" (soldados ingleses do Nepal) da ONU estiveram lá e prenderam os demais assassinos. Esses criminosos agora estão presos em Dili, sob a guarda dos brasileiros. D.Basílio tinha conversado com esses presos, que disseram que tinham feito o massacre "para resolver nosso problema": havia 2 rotas de fuga do Timor Leste, por terra, pela fronteira com Timor Oeste, ou de barco, pelo porto de Com. Na área havia forte presença das Falintil e os milicianos queriam chamar a atenção da ONU, pois estava em jogo a segurança deles e de seus colaboradores, uma vez que tinham sido abandonados pelo exército indonésio. Outro padre João, de Laga, também salesiano, tinha nos contado que em certa ocasião havia intermediado a saída de milicianos, cercados pelas Falintil, pelo porto de Com.

Pensei em sugerir à CRB que ajudasse numa reflexão sobre o martírio, talvez junto às irmãs canossianas.

Os corpos foram enterrados em Lospalos, o carro foi jogado no barranco; no enterro houve uma grande celebração e no sétimo dia uma ainda maior.  

No caminho para Com visitamos uma aldeia paupérrima, que Portugal vai ajudar a reconstruir. Vimos as ruínas de casas "sagradas", típicas timorenses. Era um lugar de confluência de milicianos, que destruíram tudo.

Vimos lugares onde estão plantando arroz, pela primeira vez. Antes, os indonésios davam comida para o povo, não muita, para que não alimentassem os guerrilheiros, embora o povo tenha continuado a dividir suas rações com eles. Agora estão plantando e graças inclusive a boas chuvas, vão ter uma bela colheita. Chamou minha atenção ver que plantam cantando, em mutirão, em terras comunais.

É importante formar técnicos agrícolas, que ensinem técnicas modernas, que incrementem a agricultura. Alguém me contou, por exemplo, que não plantam côco, apenas o colhem; aparentemente não sabem que o côco precisa de sal na terra para dar uma boa produção: na realidade, só há coqueiros na parte da ilha que recebe o vento salgado do mar.  

Na segunda, dia 28/2 não tivemos nenhuma atividade especial. Sempre aproveitava essas ocasiões para falar com os/as professores portugueses: tivemos conversas muito interessantes. Eram 4, um homem e 3 mulheres, que estavam hospedados conosco, dando um curso de português para 100 professores timorenses, com duração de um mês, em regime de internato.

Gente muito dedicada e abnegada.

Conversamos também mais uma vez com D.Basílio.  

À tarde fomos para Dili: no dia seguinte, o Presidente da Indonésia, Abdurrahman Wahid, iria visitar Timor Leste e D.Basílio teria uma entrevista com ele; e eu queria estar com as irmãs. Tinha pensado em dormir em Aileu, com as irmãs Maryknoll: são 5, 3 dos EUA e 2 filipinas, sendo que uma destas, a irmã Charito Torrafranca, passa a semana em Dili, com as dominicanas do Rosário, para trabalhar com o centro de mulheres. Eu queria não só conversar com elas, mas conhecer o centro das Falintil em Aileu. Entretanto, quando cheguei à casa das irmãs dominicanas em Dili, a irmã Charito estava me esperando, para dizer que a coordenadora delas, irmã Dorothy McGouwan, estava em Dili a caminho de Darwin, para visitar uma das irmãs que estava doente. A proposta de Charito era que eu ficasse em Dili para conversar com elas e visitar o centro de mulheres. Decidi então ficar, enquanto os demais iam para Aileu.

À noite conversei com ambas, que me contaram que as Maryknoll tinham ido para a Indonésia trabalhar com saúde e educação, nos serviços públicos. Viviam numa área muçulmana. Disseram que foi uma experiência interessante, serem consideradas pagãs, se "sentir do outro lado". Nunca foram perseguidas, mas o povo achava "engraçado" como gente "boa" como elas podia ser tão atrasada: politeístas, adoradoras de imagens. Respeitavam sua crença, tanto que no Natal eram procuradas porque sabiam que era uma grande festa. Não conseguiam dar testemunho de sua fé, totalmente incompreensível para os muçulmanos. Nunca lhes perguntaram nada sobre sua fé. A única pergunta, constante, era a respeito do celibato. As irmãs comentaram que a educação indonésia era muito autoritária, tudo tinha que ser decorado, não se cultivava o espírito crítico e havia muito ufanismo nacionalista. O serviço público de saúde era muito paternalista, assistencialista.

As irmãs acabaram saindo de lá, devido a uma lei que exigia que assumissem a nacionalidade indonésia para poder permanecer. Depois de refletir decidiram ficar na região, escolhendo um lugar onde o povo estivesse passando por grande sofrimento. Escreveram então para os bispos de Dili e de Papua Ocidental (outra área ocupada pela Indonésia, que chamavam de Irian Jaya): como D.Belo respondeu em seguida, decidiram ir para lá, tendo chegado em fevereiro de 91. D.Belo sugeriu que fossem para Aileu, centro da guerrilha, local onde hoje mora Xanana, a uns 40 kms. de Dili por uma estrada péssima, mas linda. Elas não têm instituição própria, além de trabalhar na pastoral, trabalham com educação e saúde, sendo muito interessadas em saúde alternativa.

Perguntei depois como se ligaram ao grupo Fokupers (sigla em bahasa para Fórum de comunicação para mulheres de Timor Leste): Charito faz parte do conselho da entidade. Trata-se de uma ONG criada por uma indonésia muçulmana, que foi para Timor para ajudar a fundar um centro de ajuda à mulher, para conscientizá-las e sobretudo ajudar as que tinham sofrido violência: estupro, tortura, familiares de desaparecidos...  

Na terça, dia 29/2, fui cedo ao aeroporto para me despedir da irmã Dorothy e em seguida fui com a irmã Charito para a casa dos jesuítas, no bairro Taibessi. Na frente da casa existe um pequeno monumento - uma cruz - em memória do jesuíta alemão, Albrecht Arbe, que se nacionalizou indonésio com o nome de Karim; ele era como que o animador da vida religiosa da diocese e foi morto naquele local pelos milicianos, logo depois do plebiscito. Na véspera de sua morte ele tinha ido a Aileu perguntar para as irmãs se não queriam ser evacuadas. Os milicianos atiraram muita vezes e o superior dele teve que ficar deitado no chão, sem poder acudir por causa dos tiros.

Ele está enterrado no fundo do jardim, onde enterraram também um jovem jesuíta, que tinha sido enviado para uma paróquia do interior. Foi morto quando tentou conversar com milicianos e militares indonésios, que estavam ameaçando matar o povo, refugiado dentro de uma igreja. Fiquei impressionado com o caso, por ele não ter fugido, mas sendo indonésio - e ainda mais javanês - ter ficado para ajudar o povo. Trouxe 3 pedras do túmulo deles.  

De lá fui ao famoso cemitério Santa Cruz: no dia 12 de novembro de 1991, depois de uma missa em memória de Sebastião Gomes, morto pelos indonésios, os timorenses foram ao cemitério, conforme seu costume e foram massacrados pelas tropas indonésias. Esse massacre foi presenciado por um jornalista inglês, que fez um vídeo que ajudou muito a divulgar a tragédia de Timor Leste.

Várias irmãs tinham presenciado esse massacre, inclusive indonésias, que nesse momento mudaram completamente sua visão sobre a ocupação.

Quando chegamos, vimos que havia muita segurança do CNRT, além da ONU, porque o presidente Wahid ia visitar o cemitério. A ONU não organizou ainda uma polícia timorense, assim o CNRT procura suprir essa falta. Charito conseguiu que eu entrasse com 3 seguranças do CNRT, que me levaram ao túmulo de Sebastião Gomes.   

De lá fomos para o Fokupers; eu me apresentei e depois conversamos: felizmente algumas falavam português e até inglês! Elas estão documentando casos de violência contra a mulher, ocorridos por ocasião do plebiscito. Conhecem Fátima Guterres, timorense que esteve no Brasil há alguns anos e que deu depoimentos impressionantes, comoventes, sobre as torturas que sofreu nas mãos dos soldados indonésios. Deram-me uma cópia do livro em bahasa que documenta a violência contra a mulher no período após a invasão indonésia. Mostraram muito interesse em ter um intercâmbio com entidades brasileiras afins.

Estão documentando também a violência atual, pois há casos de mulheres  molestadas por soldados da ONU. Elas até fizeram uma manifestação, no barco-hotel em Dili, contra a prostituição. Esse barco-hotel foi levado para lá  pela ONU, para ter onde alojar seus funcionários.

Dei a elas o calendário da "Beleza Negra" e o das "Católicas pelo direito de decidir"; ambos foram muito apreciados. Mostraram um cartaz que diz que Timor Leste foi invadido primeiro pelo exército indonésio, agora pela ONU e pelas ONGs. O cartaz mostra as raízes da desigualdade da mulher: violência contra mulher, analfabetismo, desigualdades urbanas e rurais, discriminação de gênero na educação das crianças, no casamento, na herança. Quanto a este último fato, me explicaram que a mulher não tem direito a herdar nada: ao casar, é "vendida" a seu marido, que tem que pagar por ela para sua família; se ficar solteira, ao morrer o pai, não recebe nada, e sendo casada, ao morrer o marido também não herda. Se brigar com o marido e quiser voltar para casa, o pai faz de tudo para que não volte, pois nesse caso terá que devolver a quantia que tinha sido paga por ela pelo seu marido.

As irmãs disseram que quando chegam a alguma comunidade, precisam do apoio do padre para seu trabalho, mas a maioria dos padres não sabe trabalhar a questão de gênero. Dizem que se este problema não for assumido pela Igreja, nada vai mudar, pois elas não têm como chegar ao povo. Além de documentar os casos, estão procurando fazer um processo de cura das feridas psicológicas deixadas pela violência; aproveitei para contar a elas o que o sacerdote anglicano Michael Lapsley, neo-zelandês, faz na África do Sul. O estupro foi muito usado pelos milicianos e soldados indonésios, como vingança pelo resultado do referendo.

Elas têm um projeto interessante de organizar um encontro de mulheres violentadas, e tinham pensado em realizá-lo no Brasil. Disse a elas que, conhecendo a história da Guatemala, me parecia melhor fazer o encontro lá, pois a história das timorenses se parece mais com a das mulheres da Guatemala e de Chiapas.

Esta é, sem dúvida, uma experiência muito valiosa, cheia de possibilidades. Pena que elas sejam muito poucas, principalmente dado o tamanho do problema.  

Voltei em seguida para a casa, para esperar os outros. Eles me contaram como foi o encontro dos bispos com Wahid. Xanana tinha ido ao aeroporto para recebê-lo e também D.Belo.

O presidente Wahid, quase cego devido a um atentado, é um grande líder muçulmano, um teólogo conhecido. Inspirado em sua visão religiosa, ele autorizou este ano pela primeira vez uma celebração pública do ano novo chinês na Indonésia, e ele mesmo participou. Acredita que o Ministério da Religião não pode definir o que é religião e o que não é, mas apenas facilitar o intercâmbio entre as religiões, coibindo fanatismos e perseguições. Começa a ser criada, de fato, na Indonésia uma separação entre Igreja e Estado.

Ouvi dizer que Wahid tem agido durante muitos anos como verdadeiro "evangelizador", pregando os valores islâmicos, como líder da maior organização muçulmana do mundo, mas sem autoritarismo.

Sergio Regazzoni disse, e eu concordo plenamente, que devemos prestigiar o Presidente Wahid, porque isto é muito importante para a democratização deste grande país, a Indonésia, e tudo isso terá influência no mundo muçulmano, pois a Indonésia é o maior país islâmico do mundo.

Em Dili, algumas das pessoas que tinham ido vê-lo começaram a vaiar, por causa dos massacres, embora tenha havido aplausos também. Xanana, que estava com as autoridades no palanque, desceu para pedir que parassem com as vaias. Ele me deu a sensação de assumir um papel de pai, como Mandela, que aconselha e cuida do povo; Xanana até tem apartado brigas de rua!

Em seu discurso, o presidente Wahid pediu desculpas ao povo timorense por toda a violência e disse que quer normalizar as relações com os timorenses, as comunicações, o comércio; desarmar as milícias e desmontar os acampamentos na fronteira de Timor Oeste até o fim de março.

Uma das reivindicações do povo timorense, e que apareceu nesta manifestação, é que a Indonésia pague uma indenização pela destruição feita.  

Almoçamos juntos e em seguida Ernanne e eu tivemos uma simpática reunião com D.Belo. Ele aceitou o convite da CNBB, confirmando sua presença em Porto Seguro dia 26/4, o que me pareceu muito interessante por abrir o leque da celebração dos "500 anos", incluindo outro país de língua portuguesa. Seria bom que, aproveitando o ensejo, a CNBB enfatizasse a importância da Comunidade de Países de Língua Portuguesa - CPLP. Afinal, a missa faz a memória do sangue derramado por todas as pessoas, por todo o mundo... Seria também um modo de a CNBB começar a se relacionar com a Ásia, através não do Japão, Singapura, China, mas de "Nazaré", isto é, Timor Leste. 

D.Belo aceitou que sua visita fosse co-patrocinada pelo Itamaraty. Concordou também em receber o título de doutor da PUCCAMP, que foi conferido a ele e a Ramos Horta, antes de receberem o Nobel da Paz.  

Às 17:00 Ernanne, Luiz De Sena e eu fomos falar com Sérgio de Mello; estava presente uma secretária brasileira para registrar a conversa e a encarregada do setor de educação, mas como não falava português acabou saindo. O embaixador foi muito simpático; disse que se alegrava com nossa visita. Comentou que tinha estudado filosofia em Friburgo, com os dominicanos; fiquei impressionado ao constatar que o nome "dominicano" tem muito peso. Ao tomar a palavra, eu disse a ele que tinha ouvido críticas à atuação da ONU e pedia que fizesse pelo menos alguns gestos de ajuda aos timorenses, ainda mais que ele tinha grande credibilidade, inclusive por ser brasileiro. Citei alguns dos "gestos" possíveis: ajuda da FIESP, pequenas iniciativas de reconstrução em vários pontos do país, para indicar que a ONU  está realmente comprometida com isso... Ida de artistas e jogadores de futebol: uma das atividades de D.Belo é patrocinar um jogo de futebol de crianças, ao qual muitas vezes assiste, na praia, num campo da diocese. Pensei então que um dos nossos times poderia enviar camisetas para esse time de crianças.

Falei da situação das mulheres e da falta de tato da comissão que foi investigar os estupros, que não teve nenhuma sensibilidade ao tratar com as vítimas de violência. Sergio de Mello concordou, mas disse que se a Igreja não ajudar, a situação da mulher não vai melhorar. Ele tem razão: mas em relação à discriminação das mulheres ninguém, nem ONU, nem Igreja, tem as mãos limpas, só que acusações mútuas não resolvem.

Sergio nos disse que o projeto da ONU é formar uma sociedade moderna, pluripartidária, baseada na economia de mercado, com uma classe média.

Já estão começando a cobrar impostos, pois todos os países do mundo cobram impostos, menos Cuba, que não é o modelo adequado para Timor Leste, segundo Sergio. Tive vontade de perguntar quem é que iria decidir qual o modelo certo para Timor: a ONU em Nova York, que não tem acertado em nada? Ora, hoje a sociedade timorense é horizontal: até os régulos do interior do país são plantadores de arroz como qualquer pessoa...  

Pedi ajuda para a distribuição das roupas - quase 14.000 peças - que as funcionárias de uma firma de São Paulo tinham conseguido com grande esforço, para doar aos timorenses e que o exército brasileiro tinha concordado em transportar para Timor. Sergio de Mello me respondeu que o departamento humanitário da ONU as receberia e entregaria a uma ONG para distribuir. Perguntei então porque não dar ao CNRT, mas ele disse que este distribui mal, privilegiando seus próprios membros. Fiquei pensando: por que exigir tanta "pureza", tanta perfeição das entidades timorenses e confiar tanto nas ONGs não timorenses? que base temos para isso? Na realidade, nós ouvimos muita reclamação sobre a distribuição de bens feita pela ONU e pelas ONGs credenciadas por ela. Estava preocupado porque um alto funcionário da ONU tinha me dito que, se fossem para a ONU, as peças de roupa iriam desaparecer, se perdendo na burocracia...  

Lamentei  que a reunião tivesse sido tão curta; embora tenha durado mais de uma hora não pude dizer tudo o que pretendia. Sergio de Mello tem certas atitudes muito boas; por exemplo, não realiza qualquer ato público sem a presença de Xanana, que age como Presidente do país, e Sergio o acompanha. O perigo é Xanana se tornar uma espécie de rei/rainha da Inglaterra e não mais comandante. O perigo é a ONU, com sua estrutura grande e pesada, e sedutora, sufocar o CNRT, algo que nem a Indonésia conseguiu fazer.  

Na viagem de volta a Baucau, comentei que estava aborrecido porque Sergio de Mello tinha dito que a Igreja em Timor Leste é conservadora, com exceção de D.Basílio, e não tinha tido tempo de protestar contra esse comentário. Na minha opinião, essa crítica a D.Belo não procede. Além disto, tenho a impressão de que a crítica vem do fato de que D.Belo tem criticado a atuação da ONU, em público. E eu disse que, entre D.Belo e Sergio de Mello, escolheria sempre D.Belo, porque sofreu por estar do lado do povo.

Na minha visão, as posições da ONU em geral são colonialistas: o povo está sendo marginalizado. Toda a verba da ONU está sendo gasta na infraestrutura da própria ONU; nada foi feito ainda para o povo, nem estradas, nem reconstrução de escolas e casas, nem telefones, luz elétrica, sistema de água encanada... Outro exemplo disto é a maneira como os projetos são apresentados. Quando a ONU apresenta ao Conselho Consultivo um projeto, por exemplo, para a construção de portos, como fica a posição do CNRT, que é membro do conselho? Eles têm dificuldades, inclusive financeiras, em conseguir uma assessoria técnica para fazer uma avaliação do projeto, e, se fizerem essa avaliação própria, isso aparecerá como falta de confiança na "boa intenção" da ONU...

O CNRT é alvo, naturalmente, de críticas e cobranças; tenho consciência de que não são perfeitos, mas são o único órgão que tem legitimidade para representar o povo. No fundo, meu medo é que ocorra o mesmo que no Haiti e na Nicarágua: o povo ganha mas não leva... Se, depois de tanto sofrimento, Timor se tornar um paraíso turístico, com uma pequena elite rica às custas do petróleo e o "Zé timorense" só ficar com migalhas, será mesmo uma grande derrota!...  

Na quarta, dia 1/3 aproveitamos para fazer algumas reuniões, inclusive com D.Basílio, para ver como dar continuidade aos projetos. Recebi a visita de uma brasileira, Selene Carvalho, membro do comitê de solidariedade a Timor Leste em Brasília, amiga do Pádua, que tinha dito a ela que fosse me procurar. Luís de Sena aproveitou para conversar com o motorista que a tinha levado: ele lhe deu boas informações sobre o estado da agricultura no país. Luís me disse que nesta área há muito o que fazer e com urgência.  

Na quinta, dia 2/3 fizemos as malas e fomos para Dili, onde chegamos em cima da hora para almoçar e pegar o avião para Darwin. Lá chegando, fomos de táxi para o Jesuit Refugee Center, onde mora o padre Maurice Heading SJ, que tinha nos recebido na ida e nos hospedou novamente. Jantamos na casa dele com mais 3 pessoas: as irmãs Barbara Tippolay AD, indígena australiana e Robyn Reynolds Olsh, australiana branca, que trabalha com Maurice, e Peter Smith, indígena australiano leigo.  

Na conversa, Barbara disse algo que me chamou a atenção: comentou que como Ernanne não fala inglês, só tem possibilidade de reagir ao que é traduzido, mas não pode colocar um tema, se torna impotente. Começamos então a falar sobre a situação do indígena australiano e do timorense: eles também têm esse problema com a língua do "grande". Por isso muitas vezes são marginalizados, ficando à mercê de tradutores. Falamos como é importante dar atenção a mecanismos de discriminação por gênero e raça.  

Comentei com Maurice minha impressão sobre a ONU; ele concordou, dizendo que ela é burocrática e só sabe colocar coisas em pastas e nichos. Quanto ao Timor, disse que minha visão era que o sofrimento seria praticamente incurável, mas ele discordou. Afirmou que nos últimos 25 anos o povo timorense conseguiu vitórias enormes, ainda mais se compararmos sua história com a de povos indígenas, seja da Austrália ou até do Brasil. No decorrer de uma única geração, fizeram uma guerra pela independência, foram invadidos por uma grande potência, apesar do enorme sofrimento não desistiram e acabaram conquistando sua liberdade...    

Havia em Darwin um acampamento de refugiados timorenses. Maurice contou que depois da chegada da ONU em Timor Leste, todos os que podiam, voltaram para sua terra, mesmo sabendo da destruição.

Antes de partir, fizeram uma grande celebração, com a presença do bispo, do chefe militar e inclusive de um chefe indígena local. Este chefe disse aos timorenses: "ao partir levem o espírito desta terra, que ele seja de vida, de reconciliação, de cura".  

No dia 3/3 partimos para Sidney, onde fomos recebidos por Aires e  Filomena. Aires nos hospedou de novo e conversamos muito com eles e com Nancy. Estavam bem descontraídos, pedindo notícias, querendo saber nossas impressões. Falamos muito sobre política e sobre a Igreja.

Uma pergunta que eu ainda me fazia era: se não havia trabalho político interno no Timor, antes de 74, nem discussão política, nem partidos, como é que houve uma guerra civil e em seguida se criou uma guerrilha, tudo isso em menos de um ano? Filomena comentou que o governo português não tinha apoiado a Fretilin, mas que até hoje apoia a UDT. E como a UDT - União Democrática Timorense - perdeu a eleição, provocou a guerra civil com o apoio do governo colonial português. Antes de 74 não havia partidos propriamente ditos, mas muita discussão política nos cafés; as tropas timorenses estavam descontentes por serem tratados como inferiores pelos portugueses. Havia uma elite que tinha estudado fora do país e estava voltando, conscientizada; havia um jornal da Igreja, dirigido por um jesuíta, onde Ramos-Horta escrevia. Existia muita discussão anti-colonial, mas a maioria dos funcionários timorenses, que trabalhavam para o governo português, eram da UDT. Foi feito um pacto para unir os partidos, mas ao se ver minoritária, a UDT rompeu o pacto e provocou a guerra civil.

A maioria dos soldados timorenses se uniu à Fretilin e assim se criou a guerrilha. Declarada a independência, os líderes pediram a Portugal que voltasse, para conduzir a transição, mas este não deu atenção, dando-se então a invasão da Indonésia.  

- No dia 4/3 tomamos café na casa do Aires com toda a família: Nancy, Luís, Ângelo, Filomena, todos foram ao aeroporto nos acompanhar.

A volta para o Brasil levou novamente mais de 24 horas, mas chegamos no mesmo dia 4, sábado, devido aos fusos horários...  

Durante toda a visita, o padre Ernanne, que foi um grande companheiro, e eu ficamos nos perguntando que propostas poderíamos fazer para a CNBB/CRB, que realmente cumprissem o "mandato" que D.Basílio tinha nos dado, sobre enviar pessoas que animassem os animadores.

É sempre muito mais fácil analisar e observar que encontrar iniciativas rápidas, viáveis e que de fato socorram o povo, que já esperou de mais...

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São Paulo, 28 de março 2000  

NB - 2 de maio de 2000: Acabo de rever este relatório/diário, tendo feito algumas correções. Assim sendo, esta se torna a versão "oficial".

  Frei João Xerri, op

Tel:5072.5062; fax:853.6830

 
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