"Estamos
diante de um momento na história da Terra, numa época
em que a humanidade deve escolher o seu futuro." (Carta
da Terra - Preâmbulo)
Nesta semana
ocorreu, em Amsterdã (Holanda), o balanço dos
cinco anos de existência da Carta da Terra, documento
mundial que propõe uma série de princípios
para a construção da sustentabilidade da vida
no planeta Terra.
Trata-se de uma espécie de código
de conduta universal, estruturado em quatro princípios
fundamentais: respeito à vida; integridade
ecológica; justiça social e econômica;
democracia, não violência e paz.
A Carta da Terra poderá ser aprovada pelas
Nações Unidas, para que seja aplicada
como guia e referência para indivíduos
e países. “Os padrões dominantes
de produção e consumo estão
causando devastação ambiental, esgotamento
de recursos e uma extinção maciça
das espécies", afirma o texto em seu
preâmbulo. Este documento de 16 artigos
afirma que, para gerar uma sociedade sustentável
global baseada no respeito à natureza,
nos direitos humanos universais, na justiça
econômica e numa cultura da paz, é
imprescindível que todos os habitantes
do planeta declarem “responsabilidade uns
para com os outros, com a grande comunidade da
vida e com as futuras gerações”.
A Carta
da Terra teve suas discussões iniciais na Conferência
das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
(Eco-92). Em 1997, estabeleceu-se uma Comissão Internacional
da Carta da Terra, composta por 23 personalidades dos cinco
continentes, para acompanhar uma consulta mundial e redigir
o texto. Pela América Latina, integram a Comissão
Internacional Leonardo Boff e Mercedes Sosa. A coordenação
principal dessa iniciativa concentra-se basicamente no Conselho
da Terra, fundado pelo canadense Maurice Strong e sediado na
Costa Rica, e na Cruz Verde Internacional, fundada por Mikhall
Gorbachev e sediada em Genebra. Várias reuniões
e seminários foram feitos por países e continentes
antes que se chegasse à redação ?????tda Carta
da Terra a partir das diversas contribuições recebidas.
O texto
final ficou pronto em 2000, como resposta às ameaças
ao planeta como um todo e como forma de pensar articuladamente
os muitos problemas ecológico-sociais na Terra. Foi resultado
de discussões envolvendo entidades da sociedade civil,
universidades e centros de pesquisa de 46 países.
Em artigo
publicado pelo Jornal do Brasil no último dia 4 de novembro
(às vésperas do encontro em Amsterdã),
Leonardo Boff diz que a carta é “um dos mais completos
documentos que se tem escrito ultimamente, digno de inaugurar
o novo milênio. Recolhe o que de melhor o discurso ecológico
produziu, os resultados mais seguros das ciências da vida
e do universo”.
É urgente a adoção de princípios
e valores pregados pela Carta da Terra, na opinião de
Moema Viezzer, integrante da Comissão Internacional de
Educação da Carta da Terra e da Comissão
Nacional do documento. “A natureza está manifestando
de todas as formas sua reação ao desequilíbrio
na relação da humanidade com os demais seres:
nascentes e fontes que desaparecem; inundações
ocasionadas devido às mudanças climáticas,
?????t fruto de ações predatórias do ser humano;
estiagens em lugares nunca antes conhecidos; ar irrespirável,
pessoas envenenadas por produtos químicos e agrotóxicos;
mortalidade infantil acelerada por falta de saneamento etc.
Estes são alguns dos milhares de sinais que a natureza
está dando para dizer ‘basta’”, destaca.
Segundo
Moema Viezzer, há uma proposta de agregação
da Carta da Terra à Declaração Universal
dos Direitos Humanos, assinada pelas Nações Unidas
em 1948, porque ela complementa essa declaração
com princípios mais diretamente ligados aos direitos
sociais e ambientais.
Dificuldade
de consenso
A Carta da Terra deveria ter sido aprovada em
2002 pela ONU, que desde a Conferência de
Estocolmo em 1972, coloca a proteção
ao meio ambiente como uma de suas principais preocupações.
Na Conferência, constatou-se que o modelo
tradicional de crescimento econômico levaria
ao esgotamento completo dos recursos naturais,
pondo em risco a vida no planeta. No entanto a
aprovação da Carta pela ONU não
aconteceu até agora, por falta de consenso.
A Unesco foi a primeira instituição
ligada às Nações Unidas a
endossar o documento, em 2000.
Segundo
Moema Viezzer, é difícil prever a adoção
da Carta da Terra pela ONU como tal. “A aprovação
desse documento levaria a rever a maioria das estruturas atualmente
existentes de convívio entre as nações,
os seres humanos e demais seres que compõem a ‘comunidade
da vida’.”
Na 1ª
Conferência Continental das Américas, realizada
em Cuiabá, Mato Grosso, em 1998, ficou bastante evidente
a dificuldade de consenso entre os países, conforme conta
Carlos Alberto Maldonado, que coordenou a conferência
e a consulta brasileira sobre a Carta da Terra. O encontro,
que reuniu mais de dois mil participantes, permitiu a troca
de experiências entre as pessoas e instituições
de América Latina, Caribe e América do Norte que
trabalhavam com o documento até então. Buscava-se
ampliar as consultas nos países, para fundamentar a Carta
da Terra nos valores das diversas culturas, ampliar a conscientização
sobre os princípios do documento e promover uma ampla
apropriação pública da Carta da Terra.
“Reunimos 23 países, com um elenco de delegados
variado, desde ministros de Estado até representantes
de populações indígenas”, comenta.
A conferência
concluiu que o documento-guia inicial deveria ter o foco ampliado.
“O foco era mais ambiental do que a versão atual.
Concluímos que não tinha como fazer uma separação
entre os direitos do homem e do meio ambiente e que o documento
deveria incluir novos aspectos, como a necessidade de fortalecer
a cultura de paz e a prática democrática e a preocupação
com questões como a concentração da riqueza
e o peso da dívida externa”.
Algumas
delegações oficiais, no entanto, apresentaram
resistência a essa mudança, alegando que o alargamento
do foco do documento dificultaria a aprovação
pela ONU e que os governos nacionais teriam dificuldade de aceitar
implicações daquele porte. Embora o documento
preveja a diversidade sociocultural, Carlos Alberto reconhece
a dificuldade do consenso. “A Carta da Terra se propõe
a ser uma plataforma ética aceita por todos os povos,
de todas as raças culturas e religiões. Isso não
é simples. Uma ética supracultural seria possível?”,
indaga.
Segundo Moema Viezzer, a Carta da Terra precisa
ser trabalhada com outros documentos que apontam
a necessidade de revisão de paradigmas
e que, por isso mesmo,
sofrem pressões e negações
por parte de países que não querem
mudar seus interesses. “O Protocolo de Quioto
é um exemplo disso”, observa.
A
Carta da Terra nos diversos espaços
Enquanto não é aprovada pelas nações,
a Carta da Terra tem sido trabalhada em diversas instâncias
para que haja mudanças básicas nos valores, no
comportamento e nas atitudes das sociedades, pois acredita-se
que a sustentabilidade dependerá das decisões
que os indivíduos tomarem com relação aos
estilos de vida que querem ter.
No Brasil,
participaram do processo da Carta da Terra ONGs e movimentos
sociais que, de diferentes formas, lidam com a questão
da sustentabilidade. Cada uma das pessoas envolvidas no processo
trabalha a Carta da Terra a partir dos espaços onde exercem
sua atuação ou estabelecendo novas parcerias.
“Não houve um movimento massivo na construção
da Carta. Hoje em dia, o texto é trabalhado em escolas,
ONGs, universidades, grupos e comunidades alternativas que revisam
princípios e valores para manter a vida das pessoas e
do planeta”, conta Moema Viezzer.
Como consultora de educação ambiental,
Moema trabalha atualmente na divulgação
dos princípios e valores da Carta da Terra
nos programas socioambientais da Itaipu Binacional,
junto às instituições parceiras
e às comunidades de 29 municípios
da Bacia do Paraná III. A Itaipu, aliás,
foi premiada em Amsterdã por seu programa
ambiental Cultivando Água Boa. A iniciativa
(única das concorrentes realizada por uma
empresa) ficou entre as quatro práticas
mundiais que aplicam e difundem corretamente os
princípios da Carta.
Por meio
de reuniões semanais com outros acadêmicos e pessoas
ligadas à questão ambiental, Othon Leonardos,
professor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da
Universidade de Brasília, levou para a universidade o
debate sobre os princípios da Carta da Terra. O professor
também participou da consulta nacional com o objetivo
de recolher contribuições para a Carta da Terra
brasileira, cuja redação final foi feita por Leonardo
Boff. Para o professor, a adoção dos princípios
da Carta da Terra se faz essencial nos dias de hoje. “Vivemos
num estado caótico, com corrupção desenfreada
no mundo inteiro. Busca-se o lucro e esquece-se de princípios
de sustentabilidade da vida”.
Segundo Flávio Boleiz Júnior, coordenador
do Grupo de Trabalho de Ecopedagogia da Faculdade
de Educação da Universidade de São
Paulo, a Carta da Terra representaria um avanço
para o mundo inteiro, se adotada e praticada por
todos. Sua aprovação na ONU poderia
servir como “suporte às ações
e decisões das nações mais
éticas, defensoras de idéias de
paz e de democracia, como argumento legal contra
as decisões bélicas e violentas”.
Flávio
milita desde 2001 no movimento pela ecopedagogia, que tem a
Carta da Terra como base ética. Ele explica que o movimento
pela ecopedagogia, promovido pelo Instituto Paulo Freire, procura
“disseminar os valores da Carta da Terra por meio da educação,
em todas as suas manifestações (escolar, formal,
informal, popular), de maneira democrática e baseada
nos valores da ética, dos direitos humanos, dos direitos
da comunidade de vida e da democracia”.
Socorro Gonçalves, coordenadora do GT Agenda
21 do Fórum Brasileiro de Organizações
Não-Governamentais e Movimentos Sociais
para o Meio Ambiente (FBOMS), diz que a Carta
da Terra serve como um documento referencial de
princípios que norteiam as ações
da Agenda 21 (documento aprovado na Rio-92 ; Conferência
Mundial sobre Meio Ambiente – que sugere
uma série de ações para o
desenvolvimento sustentável). “Os
princípios da Carta da Terra nos dão
uma sustentação teórica para
a construção de um projeto de implementação
da Agenda 21”, afirma. Desde 1999, o FBOMS
trabalha com a Carta da Terra, divulgando os seus
princípios para que as comunidades os incorporem
em suas agendas de luta e reflitam sobre o desenvolvimento
que desejam.
Socorro
espera que aumente o movimento de pressão para a incorporação
dos princípios da Carta da Terra pelos governos. “Não
basta reconhecer a crise. É preciso que haja compromisso
e responsabilidade com as gerações futuras”,
enfatiza.
Fonte: RITS
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