
Entrevista
do Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, ex-diretor do Instituto de
Pesquisa em Relações Internacionais (Ipri) do Itamaraty, concedida ao
jornal Correio Braziliense - "O inimigo número 1 da Alca"
19 de abril
de 2001
Samuel Pinheiro Guimarães
À medida que a sociedade começa a debater e a compreender
as conseqüências da Alca para a soberania brasileira ela pode chegar,
com tranqüilidade e maturidade, à conclusão de que não deve o Brasil
participar da Alca
Samuel Pinheiro Guimarães, 61 anos, dedicou mais de metade da sua
vida à diplomacia. Diretor do Instituto de Pesquisas em Relações
Internacionais (Ipri) do Itamaraty até a semana passada, ele foi
demitido do cargo pelo ministro das Relações Exteriores, Celso Lafer.
O motivo: as repetidas e enfáticas críticas contra a entrada do Brasil
na Área de Livre Comércio das Américas (Alca). O embaixador tem a
certeza — e os argumentos para sustentá-la — de que o projeto
continental é uma péssima escolha para o país. ‘‘O Brasil não
deve participar de blocos econômicos em condições de extrema
assimetria desfavorável’’, sentencia Guimarães em entrevista à
repórter Sandra Lefcovich, do Correio Braziliense. ‘‘Sofremos o
grave risco de incorporação subordinada e assimétrica ao sistema econômico
(e político) dos EUA’’. O embaixador viaja pelo país promovendo o
debate sobre os prós e os contras da Alca. Para ele, dar continuidade
às negociações hemisféricas — que terão seu ponto alto amanhã
com a abertura da Terceira Cúpula das Américas em Quebec (Canadá) —
decretará o fim do Mercosul. Leia, a seguir, trechos da entrevista.
Correio Braziliense — Por que o
senhor é contrário à Alca? Criar uma área de livre comércio nas Américas
não teria aspectos positivos para o Brasil? É preciso mudar a pauta
das negociações ou desistir da Alca? Não pode haver um ponto
intermediário?
Samuel Pinheiro Guimarães — A Alca colocaria em confronto direto,
ainda que gradualmente, as megaempresas multinacionais americanas e as
empresas brasileiras. Mesmo que algumas empresas brasileiras
conseguissem sobreviver à competição e até aumentar as suas exportações,
no conjunto as megaempresas americanas levariam vantagem nos EUA, no
Brasil e na América do Sul, acarretando a desindustrialização e o
aumento do déficit comercial brasileiro. As regras internacionais que
viriam a ser consagradas pela Alca levariam à impossibilidade prática
de o Brasil exercer políticas comerciais, industriais, tecnológicas,
agrícolas e de emprego indispensáveis à superação das extraordinárias
disparidades sociais e da crônica vulnerabilidade externa.
Correio — Quais as opções do
Brasil no mundo globalizado, no qual os países criam blocos econômicos
para sobreviver? O Brasil ficaria isolado se renunciasse a participar da
implementação da Alca?
Guimarães — O Brasil não deve participar de blocos econômicos
em condições extremas de assimetria desfavorável, pois isto sim seria
justamente renunciar à sobrevivência. As opções para o Brasil são
manter amplas e diversificadas relações comerciais, financeiras e
tecnológicas com todos os países; disciplinar os investimentos
externos para que expandam as exportações, transfiram tecnologia e
integrem as cadeias produtivas; controlar e reduzir o endividamento
externo, público e privado; promover ativamente a absorção e a geração
de tecnologia adequadas à constelação de fatores; fortalecer a
acumulação de capital e a empresa brasileira. O Brasil não ficaria
isolado, pois certamente poderia manter amplas relações econômicas
com os EUA, enquanto os países vizinhos continuariam tendo enorme
interesse em ter acesso ao mercado brasileiro.
Correio — Como o senhor definiria a
atual política externa brasileira? O que mudou com a saída de Luiz
Felipe Lampreia e a chegada de Celso Lafer ao Itamaraty?
Guimarães — A política externa brasileira se defronta com
desafios extraordinários e complexos, resultado da frustração das
expectativas otimistas de meados dos anos 90. Julgava então que o livre
ingresso de bens (a abertura) e de capitais estrangeiros (a
desregulamentação) modernizaria a estrutura produtiva e geraria
exportações suficientes para compensar as remessas de recursos.
Acreditava que a maior proteção aos proprietários de patentes levaria
à geração doméstica de tecnologia quando o que aumentou foram as
remessas de royalties. Hoje, nos defrontamos com a angústia da estagnação
comercial e o perigo, que se oculta, da crise de balanço de pagamentos.
O Mercosul era, então, o ‘‘bloco do futuro’’. Hoje, está
estagnado e sofre ataques de todos os lados. Nosso desarmamento
unilateral, pensava, colaboraria para o desarmamento das grandes potências.
Elas, porém, continuaram a se armar e a agir cada vez mais
arbitrariamente. Acreditava na imparcialidade de agências como a OMC e
o FMI e o que se constata é o seu viés pró Estados desenvolvidos. E,
agora, sofremos o grave risco de incorporação subordinada e assimétrica
ao sistema econômico (e político) dos Estados Unidos. A
responsabilidade é enorme e a História será a juíza das políticas
adotadas.
Correio — O Mercosul sobreviveria à
implementação da Alca? Qual seria o impacto para o Brasil do fim do
bloco do Cone Sul?
Guimarães — O Mercosul não sobreviveria à Alca. O Mercosul é
uma união aduaneira, com uma tarifa externa comum (TEC) e também uma
zona de livre comércio que privilegia com tarifa zero e com ausência
de barreiras as exportações intrazonais das empresas instaladas no
Brasil, na Argentina, no Uruguai e no Paraguai. Esta proteção e este
privilégio explicam a extraordinária expansão do comércio intrazonal
de 1991 até 1998. A Alca eliminaria a TEC para as empresas americanas,
canadenses, etc. na área do Mercosul e o Mercosul somente sobreviveria
em relação aos países extra-americanos. Caso viesse a ser negociada
como se pretende uma área de livre comércio com a União Européia (e
quiçá com o Japão), o Mercosul desapareceria. O impacto deste
desaparecimento seria muito importante e bastante negativo para as
exportações industriais brasileiras, afetaria muito as exportações
agrícolas da Argentina e eliminaria de vez a possibilidade de se criar
um bloco regional no Cone Sul.
Correio — O Brasil e os demais países
das Américas se comprometeram na Cúpula de Santiago a criar a Alca. O
Brasil pode desistir de um compromisso internacional?
Guimarães — O Brasil não assumiu nenhum compromisso
internacional de criar a Alca, já que não houve nenhuma manifestação
decisiva do Congresso Nacional neste sentido. O governo daquele momento
concordou em negociar uma área de livre comércio das Américas, desde
que tal não infringisse os interesses nacionais, à luz da evolução
das circunstâncias nacionais e internacionais. As circunstâncias e as
perspectivas nacionais e internacionais muito se modificaram de 1994
para cá e à medida que a sociedade começa a debater e a compreender
as conseqüências da Alca para a soberania brasileira ela pode chegar,
com tranqüilidade e maturidade, à conclusão de que não deve o Brasil
participar da Alca. Somente não se pode desistir da defesa dos
interesses nacionais, tais como descritos na Constituição.
Correio — O que acha da decisão do
ministro Celso Lafer de demiti-lo do cargo? Qual o significado de sua
demissão? Qual o impacto que pode ter nas discussões sobre a Alca?
Guimarães — Deve-se discutir temas e não pessoas. O tema da Alca
é o mais vital para a sociedade e para o Estado brasileiro, tanto para
sua política internacional como para sua política interna. O debate
sobre a Alca não pode ser apenas entre os que estão a favor, pois este
seria um pseudodebate.
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