
Manifesto do Surrealismo
(André Breton - 1924)
Tamanha é a crença na vida, no que a vida tem de mais precário, bem
entendido, a vida real, que afinal esta crença se perde. O
homem, esse sonhador definitivo, cada dia mais desgostoso com seu
destino, a custo repara nos objetos de seu uso habitual, e que lhe
vieram por sua displicência, ou quase sempre por seu esforço, pois ele
aceitou trabalhar, ou pelo menos, não lhe repugnou tomar sua decisão (
o que ele chama decisão! ) . Bem modesto é agora o seu quinhão: sabe
as mulheres que possuiu, as ridículas aventuras em que se meteu; sua
riqueza ou sua pobreza para ele não valem nada, quanto a isso, continua
recém-nascido, e quanto à aprovação de sua consciência moral,
admito que lhe é indiferente. SE conservar alguma lucidez, não poderá
senão recordar-se de sua infância, que lhe parecerá repleta de
encantos, por mais massacrada que tenha sido com o desvelo dos
ensinantes. Aí, a ausência de qualquer rigorismo conhecido lhe dá a
perspectiva de levar diversas vidas ao mesmo tempo; ele se agarra a essa
ilusão; só quer conhecer a facilidade momentânea, extrema, de todas
as coisas. Todas as manhãs, crianças saem de casa sem inquietação.
Está tudo perto, as piores condições materiais são excelentes. Os
bosques são claros ou escuros, nunca se vai dormir.
Mas é verdade que não se pode ir tão longe, não é uma
questão de distância apenas. Acumulam-se as ameaças, desiste-se,
abandona-se uma parte da posição a conquistar. Esta imaginação que
não admitia limites, agora só se lhe permite atuar segundo as leis de
uma utilidade arbitrária; ela é incapaz de assumir por muito tempo
esse papel inferior, e quando chega ao vigésimo ano prefere, em geral,
abandonar o homem ao seu destino sem luz.
Procure ele mais tarde, daqui e dali, refazer-se por sentir que
pouco a pouco lhe faltam razões para viver, incapaz como ficou de enfrentar
uma situação excepcional, como seja o amor, ele muito dificilmente o
conseguirá. É que ele doravante pertence, de corpo e alma, a uma
necessidade prática imperativa, que não permite ser desconsiderada.
Faltará amplidão a seus gostos, envergadura a suas idéias. De tudo
que lhe acontece e pode lhe acontecer, ele só vai reter o que for
ligação deste evento com uma porção de eventos parecidos, nos quais
não toma parte, eventos perdidos. Que digo, ele fará sua
avaliação em relação a um desses acontecimentos, menos aflitivo que
os outros, em suas conseqüências. Ele não descobrirá aí, sob
pretexto algum, sua salvação.
Imaginação querida, o que sobretudo amo em ti é não
perdoares.
Só o que me exalta ainda é a única palavra, liberdade. Eu a
considero apropriada para manter, indefinidamente, o velho fanatismo
humano. Atende, sem dúvida, à minha única aspiração legítima.
Entre tantos infortúnios por nós herdados, deve-se admitir que a
maior liberdade de espírito nos foi concedida. Devemos cuidar de
não fazer mau uso dela. Reduzir a imaginação à servidão, fosse
mesmo o caso de ganhar o que vulgarmente se chama a felicidade, é
rejeitar o que haja, no fundo de si, de suprema justiça. Só a
imaginação me dá contas do que pode ser, e é bastante para
suspender por um instante a interdição terrível; é bastante também
para que eu me entregue a ela, sem receio de me enganar ( como se fosse
possível enganar-se mais ainda ). Onde começa ela a ficar nociva, e
onde se detém a confiança do espírito? Para o espírito, a
possibilidade de errar não é, antes, a contingência do bem?
Fica a loucura. “a loucura que é encarcerada”, como já se
disse bem. Essa ou a outra.. Todos sabem, com efeito, que os loucos não
devem sua internação senão a um reduzido número de atos legalmente
repreensíveis, e que, não houvesse estes atos, sua liberdade ( o que
se vê de sua liberdade ) não poderia ser ameaçada. Que eles sejam,
numa certa medida, vítimas de sua imaginação, concordo com isso, no
sentido de que ela os impele à inobservância de certas regras, fora
das quais o gênero se sente visado, o que cada um é pago para saber.
Mas a profunda indiferença de que dão provas em relação às
críticas que lhe fazemos, até mesmo quanto aos castigos que lhes são
impostos, permite supor que eles colhem grande reconforto em sua
imaginação e apreciam seu delírio o bastante para suportar que só para eles seja
válido. E, de fato, alucinações, ilusões, etc. são fonte de gozo
nada desprezível. A mais bem ordenada sensualidade encontra aí sua
parte, e eu sei que passaria muitas noites a amansar essa mão bonita
nas últimas páginas do livro. A Inteligência de Taine, se
dedica a singulares malefícios. As confidências dos loucos, passaria
minha vida a provoca-las. São pessoas de escrupulosa honestidade, cuja
inocência só tem a minha como igual. Foi preciso Colombo partir com
loucos para descobrir a América. E vejam como essa loucura cresceu, e
durou.
Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a hastear a
meio-pau a bandeira da imaginação.
O processo da atitude realista deve ser instruído, após o
processo da atitude materialista. Esta, aliás, mais poética que a
precedente, implica da parte do homem um orgulho sem dúvida monstruoso,
mas não uma nova e mais completa deposição. Convém nela ver, antes
de tudo, uma feliz reação contra algumas tendências derrisórias do
espiritualismo. Enfim, ela não é incompatível com uma certa
elevação de pensamento.
Ao contrário, a atitude realista, inspirada no positivismo, de
São Tomás a Anatole France, parece-me hostil a todo impulso de
liberação intelectual e moral. Tenho-lhe horror, por ser feita de
mediocridade, ódio e insípida presunção. É ela a geradora hoje em
dia desses livros ridículos, dessas peças insultuosas. Fortifica-se
incessantemente nos jornais , e põe em xeque a ciência, a arte, ao
aplicar-se em bajular a opinião nos seus critérios mais baixos; a
clareza vizinha da tolice, a vida dos cães. Ressente-se com isso a
atividade dos melhores espíritos; a lei do menor esforço afinal se
impõe a eles como aos outros. Conseqüência divertida deste estado de
coisas, em literatura, é a abundância dos romances. Cada um contribui
com sua pequena “observação”. Por necessidade de depuração o sr.
Paul Valéry propunha recentemente fazer antologia do maior número
possível de começos de romances cuja insensatez ele muito esperava. Os
mais famosos autores seriam chamados a participar. Tal idéia
dignificava também Paul Valéry, que, não há muito, a propósito dos
romances, me garantia que, ele, sempre se recusaria a escrever: “A
marquesa saiu às cinco horas.” Mas cumpriu ele a sua palavra?
Se o escrito de informação pura e simples de que a frase
precipitada é exemplo, tem emprego corrente nos romances certamente é
por não ir longe a ambição dos autores. O caráter circunstancial,
inutilmente particular, de cada notação sua, me faz pensar que estão
se divertindo, eles, à minha custa. Não me poupam nenhuma hesitação
do personagem: será louro, como se chama, vamos sair juntos no verão?
Outras tantas perguntas resolvidas decisivamente, ao acaso; só me
restou o poder discricionário de fechar o livro, o que não deixo de
fazer, ainda perto da primeira página. E as descrições! Nada se
compara ao seu vazio; são superposições de imagens de catálogo, o
autor as toma cada vez mais sem cerimônia, aproveita para me empurrar
seus cartões postais, procura fazer-me concordar com os lugares-comuns:
A salinha onde foi introduzido o moço era forrada de papel
amarelo: havia gerânios e cortinas de musselina nas janelas; o sol
poente jogava sobre tudo isso uma luz clara... O quarto não continha
nada de particular. Os móveis, de madeira amarela, eram todos velhos.
Um sofá com grande encosto inclinado, uma mesa oval diante do sofá, um
toucador, com espelho, entre as janelas, cadeiras encostadas às
paredes, duas ou três gravuras sem valor, representando moças alemãs
com pássaros nas mãos – eis a que se reduzia a mobília. (
Dostoievski, Crime e Castigo
Que o espírito se proponha, mesmo por pouco tempo, tais motivos,
não tenho disposição para admiti-lo. Podem sustentar que este desenho
clássico está no lugar certo e que neste passo do livro o autor tem
seus motivos para me esmagar. Perde seu tempo, pois não entro no seu
quarto. A preguiça, a fadiga dos outros não me prendem. Tenho da
continuidade da vida uma noção instável demais para igualar aos
melhores os meus momentos de depressão, de fraqueza. Quero que se
calem, quando param de ressentir. E entendam bem que não incrimino a
falta de originalidade pela falta de originalidade. Digo apenas
que não faço caso dos momentos nulos de minha vida, que da parte de
qualquer homem pode ser indigno de cristalizar aqueles que lhe parecem
tais. Esta descrição de quarto, e muitas outras, permitam-me, digo: passo.
Ora, cheguei à psicologia, e com este assunto nem penso em
brincar.
O autor pega-se com um personagem, e escolhido este, faz seu
herói peregrinar pelo mundo. Haja o que houver, este herói, cujas
ações são admiravelmente previstas, tem a incumbência de não
desmanchar, parecendo porém sempre desmanchar, os cálculos de que é
objeto. As vagas da vida podem parecer arrebata-lo, roda-lo, afunda-lo,
ele sempre dependerá deste tipo humano formado. Simples partida de
xadrez, da qual me desinteresso mesmo, sendo o homem, qualquer um, um
medíocre adversário para mim. Não posso é suportar estas reles
discussões de tal ou qual lance, desde que não se trata nem de ganhar
nem de perder. E se o jogo não vale um caracol, se a razão objetiva
prejudica terrivelmente, como é o caso, quem nela confia, não convirá
fazer abstração destas categorias? “É tão ampla a diversidade, que
todos os tons de voz, todos os passos, tosses assôos, espirros...” Se
um cacho de uvas não tem duas sementes iguais, como querem que lhes
descreva este bago pelo outro, por todos os outros, que dele faça um
bago bom para comer? Esta intratável mania de reduzir o desconhecido ao
conhecido, ao classificável, embala os cérebros. O desejo de análise
prevalece sobre os sentimentos. Disso resultam dilatadas exposições
cuja força persuasiva reside na sua própria singularidade, e que
iludem o leitor pelo recurso a um vocabulário abstrato, bastante mal
definido, aliás. Se as idéias gerais que a filosofia se propõe até
aqui debater, marcassem por aí sua incursão definitiva num domínio
mais extenso, seria eu o primeiro a me alegrar. Mas por enquanto é só
afetação; até aqui os ditos espirituosos e outras boas maneiras nos
encobrem à porfia o verdadeiro pensamento que se busca ele próprio, em
vez de se ocupar em obter sucessos. Parece-me que todo ato traz em si
mesmo sua justificação, ao menos para quem foi capaz de comete-lo, que
ele é dotado de um poder radiante que a mínima glosa, por natureza,
enfraquece. Devido a esta última ele deixa mesmo, de certo modo, de se
produzir. Não ganha nada com esta distinção. Os heróis de Stendhal
caem aos golpes deste autor, apreciações mais ou menos felizes, que
nada acrescentam à sua glória. Onde os encontraremos de fato, é onde
Stendhal os perdeu.
Ainda vivemos sob o império da lógica, eis aí, bem entendido,
onde eu queria chegar. Mas os procedimentos lógicos, em nossos dias,
só se aplicam à resolução de problemas secundários. O racionalismo
absoluto que continua em moda não permite considerar senão fatos
dependendo estreitamente de nossa experiência. Os fins lógicos, ao
contrário, nos escapam. Inútil acrescentar que à própria
experiência foram impostos limites. Ela circula num gradeado de onde é
cada vez mais difícil faze-la sair. Ela se apóia, também ela, na
utilidade imediata, e é guardada pelo bom senso. A pretexto de
civilização e de progresso conseguiu-se banir do espírito tudo que se
pode tachar, com ou sem razão, de superstição, de quimera; a
proscrever todo modo de busca da verdade, não conforme ao uso comum. Ao
que parece, foi um puro acaso que recentemente trouxe à luz uma parte
do mundo intelectual, a meu ver, a mais importante, e da qual se afetava
não querer saber. Agradeça-se a isso às descobertas de Freud. Com a
fé nestas descobertas desenha-se afinal uma corrente de opinião,
graças à qual o explorador humano poderá levar mais longe suas
investigações, pois que autorizado a não ter só em conta as
realidades sumárias. Talvez esteja a imaginação a ponto de retomar
seus direitos. Se as profundezas de nosso espírito escondem estranhas
forças capazes de aumentar as da superfície, ou contra elas lutar
vitoriosamente, há todo interesse em captá-las, capta-las primeiro,
para submete-las depois, se for o caso, ao controle de nossa razão. Os
próprios analistas só têm a ganhar com isso. Mas é importante
observar que nenhum meio está a priori designado para conduzir
este empreendimento, que até segunda ordem pode ser também considerado
como sendo da alçada dos poetas, tanto como dos sábios, e o seu
sucesso não depende das vias mais ou menos caprichosas a serem
seguidas.
Com justa razão Freud dirigiu sua crítica para o sonho. É
inadmissível, com efeito, que esta parte considerável da atividade
psíquica ( pois que, ao menos do nascimento à morte do homem, o
pensamento não tem solução de continuidade, a soma dos momentos de
sonho, do ponto de vista do tempo a considerar só o sonho puro, o do
sono, não é inferior à soma dos momentos de realidade, digamos
apenas: dos momentos de vigília ) não tenha recebido a atenção
devida. A extrema diferença de atenção, de gravidade, que o
observador comum confere aos acontecimentos da vigília e aos do sono,
é caso que sempre me espantou. É que o homem, quando cessa de dormir,
é logo o joguete de sua memória, a qual, no estado normal, deleita-se
em lhe retraçar fracamente as circunstâncias do sonho, em privar este
de toda conseqüência atual, e
em despedir o único determinante
do ponto onde ele julga tê-lo deixado, poucas horas antes: esta
esperança firme, este desassossego. Ele tem a ilusão de continuar algo
que vale a pena. O sonho fica assim reduzido a um parêntese, como a
noite. E como a noite, geralmente também não traz bom conselho. Este
singular estado de coisas parece-me conduzir a algumas reflexões:
1.º nos limites onde exerce sua ação ( supõe-se que a exerce
) o sonho, ao que tudo indica, é contínuo, e possui traços de
organização. A memória arroga-se o direito de nele fazer cortes, de
não levar em conta as transições, e de nos apresentar antes uma
série de sonhos do o sonho. Assim também, a cada instante só
temos das realidades uma figuração distinta, cuja coordenação é
questão de vontade. Importa notar que nada nos permite induzir a uma
maior dissipação dos elementos constitutivos do sonho. Lamento falar
disso segundo uma fórmula que exclui o sonho, em princípio. Quando
virão os lógicos, os filósofos adormecidos? Eu gostaria de dormir,
para poder me entregar aos dormidores, como me entrego aos que lêem,
olhos bem abertos; para cessar de fazer prevalecer nesta matéria o
ritmo consciente de meu pensamento. Meu sonho desta última noite talvez
prossiga o da noite precedente, e seja prosseguido na próxima noite,
com louvável rigor. É bem possível, como se diz. E como não
está de modo nenhum provado que, fazendo isso, a “realidade” que me
ocupa subsista no estado de sonho, que Lea não afunde no imemorial,
porque não haveria eu de conceder ao sonho o que recuso por vezes à
realidade, seja este valor de certeza em si mesma, que, em seu tempo,
não está exposta a meu desmentido? Por que não haveria eu de esperar
do indício do sonho mais do que espero de um grau de consciência cada
dia mais elevado? Não se poderia aplicar o sonho, ele também,
resolução de questões fundamentais da vida? Serão estas perguntas as
mesmas num caso como no outro, e no sonho elas já estão? O sonho terá
menos peso de sanções que o resto? Envelheço, e mais que esta
realidade à qual penso me adstringir, é talvez o sonho, a indiferença
que lhe dedico, que me faz envelhecer;
2.º.
retomo o estado de vigília. Sou obrigado a considera-lo um fenômeno de
interferência. Não apenas o espírito manifesta, nestas condições,
uma estranha tendência à desorientação (é a história dos lapsos e
enganos de toda espécie cujo segredo começa a nos ser entregue) mas
ainda não parece que, em seu funcionamento normal, ele obedeça a outra
coisa senão a sugestões que lhe vêm desta noite profunda das quais eu
recomendo. Por mais bem condicionado que ele esteja, seu equilíbrio é
relativo. Mal ousa expressar-se, e se o faz, é para limitar à
constatação de que tal idéia, tal mulher, lhe faz impressão.
Que impressão, seria incapaz de dize-lo, dando assim a medida de seu
subjetivismo, e nada mais. Esta idéia, esta mulher, o perturba,
predispõe-no a menos severidade. Ela tem a ação de isola-lo um
segundo de seu solvente e de deposita-lo no céu, como belo precipitado
que ele pode ser, que ele é. Em desespero de causa, invoca ele o acaso,
divindade mais obscura que as outras, à qual atribui todos os seus
desvarios. Que me diz que o ângulo sob o qual se apresenta esta idéia
que o afeta, o que ele ama no olho desta mulher não é precisamente
o que o liga a seu sonho, o prende a dados que ele perdeu por sua culpa?
E se isso fosse de outro modo, do que não seria ele capaz, talvez? Eu
gostaria de dar-lhe a chave deste corredor;
3.º. o
espírito do homem que sonha se satisfaz plenamente com o que lhe
acontece. A angustiante questão da possibilidade não mais está
presente. Mata, vi mais depressa, ama tanto quanto quiseres. E se
morres, não tens certeza de despertares entre os mortos? Deixa-te
levar, os acontecimentos não permitem que os retardes. Não tens nome.
É inapreciável a facilidade de tudo.
Que razão, eu te pergunto, razão tão maior que outra, confere
ao sonho este comportamento natural, me
faz acolher sem reserva uma porção de episódios cuja
singularidade, quando escrevo, me fulminaria? E no entanto, posso crer
nos meus olhos, nos meus ouvidos: chegou o belo dia, esse bicho falou.
Se o despertar do homem é mais duro, se ele quebra muito bem o
encanto, é que o levaram a ter uma raça idéia da expiação;
4.º. do
momento em que seja submetido a um exame metódico, quando, por meios a
serem determinados, se chegar a nos dar conta do sonho em sua
integridade (isto supõe um disciplina da memória que atinge
gerações; mesmo assim comecemos a registrar os fatos salientes),
quando sua curva se desenvolve com regularidade e amplidão sem iguais,
então se pode esperar que os seus mistérios, não mais o sendo, dêem
lugar ao grande Mistério. Acredito na resolução futura destes dois
estados, tão contraditórios na aparência, o sonho e a realidade, numa
espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se pode
dizer.
Parto à sua conquista, certo de não consegui-la, mas bem
despreocupado com minha morte, vou suputar um pouco os prazeres de tal
posse.
Conta-se que todo o dia, à hora de dormir, Saint-Roux mandava
colocar à porta de seu solar em Camaret um cartaz onde se lia: O POETA
TRABALHA. Muito haveria ainda a dizer, mas de passagem, só quis aflorar
um assunto que, por si só, necessitaria um alongado discurso e um maior
rigor; voltarei a esse ponto. Desta vez, minha intenção era dizer a
verdade sobre o ódio ao maravilhoso que grassa em certos homens,
deste ridículo no qual o querem fazer cair. Falando claro: o
maravilhoso é sempre belo, qualquer maravilhoso é belo, só mesmo o
maravilhoso é belo.
No domínio literário, só o maravilhoso é capaz de fecundar
obras dependentes de um gênero inferior, como o romance, e de modo
geral, de tudo que participa da anedota. Uma prova admirável é O
Monge, de Lewis. O sopro do maravilhoso o anima por inteiro. Bem
antes de o autor ter libertado seus principais personagens de qualquer
coerção temporal, já se percebe que estão prontos para agir com
altivez sem precedente. Esta paixão da eternidade, que os exalta sem
cessar, confere inesquecíveis acentos a seu tormento e ao meu. Entendo
que este livro só exalta, do começo ao fim, e da forma mais pura do
mundo, aquilo que do espírito aspira a deixar o chão, e que, despojado
de uma parte insignificante de sua afabulação romanesca, à moda do
tempo, constitui um modelo de justeza, de inocente grandiosidade.
parece-me que não se fez melhor, e a personagem de Matilde, em
particular, é a criação mais comovente que se possa pôr ao ativo
deste modo figurado em literatura. É menos um personagem que uma
contínua tentação. E se um personagem não é uma tentação, o que
é? Tentação extrema aquela. O “nada é impossível a quem sabe
ousar” dá em O Monge
toda a sua convincente medida. As aparições aí têm um papel lógico,
pois que o espírito crítico não se apodera delas para contesta-las.
Também o castigo de Ambrósio é tratado de maneira legítima, pois é
finalmente aceito pelo espírito crítico como desenlace natural.
Pode parecer arbitrário que eu proponha este modelo, quando se
trata do maravilhoso, do qual as literaturas no Norte e as literaturas
orientais tiraram subsídios e mais subsídios, sem falar das
literaturas propriamente religiosas de toda a parte. É que a maior
parte dos exemplos que estas literaturas poderiam me fornecer estão
eivadas de puerilidade, pela boa razão de serem dirigidas às
crianças. Cedo elas são cortadas do maravilhoso, e mais tarde, não
guardaram suficiente virgindade de espírito para sentirem extremo
prazer com Pele de Asno. Por mais encantadores que sejam, o homem
julgaria decair ao se nutrir de contos de fadas, e concordo que estes
não são todos de sua idade. O tecido de adoráveis inverossimilhanças
requer mais finura, à medida que se avança, e ainda se está à espera
destas espécies de aranhas... Mas as faculdades não mudam
radicalmente. O medo, a atração do insólito, as chances, o gosto do
luxo são molas às quais não se apela em vão. Há contos a escrever
para adultos, contos de fadas, quase.
O maravilhoso não é o mesmo em todas as épocas; participa
obscuramente de uma classe de revelação geral, de que só nos chega o
detalhe: são as ruínas românticas, o manequim moderno
ou qualquer outro símbolo próprio a comover a sensibilidade humana por
algum tempo. Nestes quadros que nos fazem sorrir, no entanto sempre se
pinta a inquietação humana, e é por isso que os levo a sério, que os
julgo inseparáveis de algumas produções geniais, as quais, mais que
as outras, estão dolorosamente impregnadas dessa inquietação. São os
patíbulos de Villon, as gregas de Racine, os divãs de Baudelaire.
Coincidem com um eclipse do gosto que sou feito para suportar, eu que
tenho do gosto a idéia de um grande defeito. No mau gosto de minha
época, procuro ir mais longe que os outros. Para mim, se eu tivesse
vivido em 1820, para mim “a freira sangrenta”, a mim, não poupar
este sorrateiro e banal dissimulons de que fala o periódico
Cuisin, a mim, a mim, percorrer em metáforas, como ele diz, todas as
fases do “disco prateado”. Por hoje, penso num castelo, cuja
metade não está obrigatoriamente em ruína; este cabelo me pertence,
eu o vejo num sítio agreste, não longe de Paris. Suas dependências
não acabam mais e, quanto ao interior, foi terrivelmente restaurado, de
modo a nada deixar a desejar, em matéria de conforto. Junto à porta,
encoberta pela sombra das árvores, estão os automóveis, estacionados.
Alguns de meus amigos aí estão, em permanência: eis o Louis Aragon
que parte – ele só tem tempo para cumprimentar-nos; Philippe Soupault
se levanta com as estrelas Paul Eluard, nosso grande Eluard, ainda não
voltou. Eis Robert Desnos e Roger Vitrac, que decifram no parque um
velho edital sobre o duelo; Georges Auric, Jean Paulhan, Max Morise, que
rema tão bem, Benjamin Péret, em suas equações de pássaros; e
Joseph Delteil; e Jean Carrive; e Georges Limbour (há uma fileira de
Georges Limbour); e Marcel Noll; eis T. Traenkel que nos acena de seu
balão cativo, Georges Malkine, Antonin Artaud, Francis Gerard, Pierre
Naville, J. A . Boiffard, depois Jacques Baron e seu irmão, belos e
cordiais, tantos outros ainda, e mulheres deslumbrantes, palavra. Estes
jovens não podem se recusar nada, seus desejos são, para a riqueza,
ordens. Francis Picabia vem nos visitar e, na semana passada, recebeu-se
na galeria dos espelhos um tal Marcel Duchamp que ainda não se
conhecia. Picasso caça aí por perto. O espírito de desmoralização
ergueu domicílio no castelo, e é com ele que tratamos sempre que há
problema de relação com nossos semelhantes, mas as portas estão
sempre abertas, e sabeis, não se começa
“agradecendo” às pessoas. De mais a mais, a solidão é vasta, não
nos encontramos muito. Pois o essencial não é sermos senhores de nós
mesmos, das mulheres, do amor também?
Vão atribuir-me uma mentira poética; cada um vai dizer que moro
na Rua Fontaine, e que não vai beber desta água. Na verdade! mas este
castelo cujas honras lhe faço, tem ele certeza que seja uma viagem? E
se, não obstante, o palácio existisse? Meus hóspedes estão aí para
responderem por isso; seu capricho é a estrada luminosa que aí conduz.
Vivemos de fato à nossa fantasia, quando estamos lá. E como o
que um faz poderia incomodar o outro, ali, ao abrigo da procura
sentimental e dos encontros ocasionais?
O homem põe e dispõe. Depende dele só pertencer-se por
inteiro, isto é, manter em estado anárquico o bando cada vez mais
medonho de seus desejos. A poesia ensina-lhe isso. Traz nela a perfeita
compensação das misérias que padecemos. Ela pode ser também uma
ordenadora, bastando que ao golpe de uma decepção menos íntima se
tenha a idéia de tomá-la ao trágico. Venha o tempo quando ela decrete
o fim do dinheiro e parta, única,
o pão do céu para a terra! Haverá ainda assembléias nas praças
públicas, e movimentos dos quais não pensaste participar. Adeus
seleções absurdas, sonhos de abismo, rivalidades, longas paciências,
a evasão das estações, a ordem artificial das idéias, a rampa do
perigo, tempo para tudo! Basta se Ter o trabalho de praticar a
poesia. Não é a nós que compete, que já vivemos dela, o esforço de
fazer prevalecer o que guardamos para nossa mais ampla inquietação?
Não importa se há desproporção entre esta defesa e a
ilustração que vai segui-la. Tratava-se de remontar às fontes de
imaginação poética, e mais ainda, ficar aí. Não tenho a pretensão
de ter feito isso. É preciso muito domínio sobre si, para querer se
estabelecer nestas recuadas regiões onde tudo parece andar tão mal, e
com maior razão, para querer aí conduzir alguém. E nunca se tem
certeza de aí estar em absoluto. Como não se vai gostar, fica-se
disposto a se deter em outra parte. A verdade é que agora uma flecha
indica a direção destes lugares e que alcançar a meta verdadeira só
depende de resistência do viajante.
Conhece-se, pouco mais ou menos, o caminho percorrido. Tive o
cuidado de contar, no decurso de um estudo sobre o caso de Robert
Desnos, intitulado: ENTRADA DOS MÉDIUNS, que eu tinha sido levado a “fixar
minhas atenções sobre frases mais ou menos parciais, que em plena
solidão, quase pegando no sono, ficam perceptíveis para o espírito,
sem ser possível descobrir-lhes uma determinação prévia”. Eu mal
acabara de tentar uma aventura poética, com o mínimo de chances, isto
é, minhas aspirações eram as mesmas de hoje, mas eu tinha fé na
lentidão de elaboração para fugir a contatos inúteis, contatos que
eu reprovava intensamente. Era o pudor do pensamento, de que me sobra
ainda alguma coisa. No fim de minha vida, com dificuldade chegarei a
falar como falam todos, culpa de minha voz e de meus gestos escassos. A
virtude da palavra (da escrita: bem maior) me parecia ligada à
faculdade de encurtar de modo marcante a exposição (pois era uma
exposição) de alguns poucos fatos, poéticos ou outros, substanciais
para mim. Em minha idéia, não era outro o processo usado por Rimbaud.
Eu compunha, e o meu empenho de variedade merecia melhor sorte, os
últimos poemas do Mont de Pieté, isto é, conseguia tirar das
linhas em branco desse livro um partido incrível. Essas linhas eram o
olho fechado sobre operações de pensamento, que, julgava eu, deviam
ser ocultadas do leitor. Não era trapaça, mas sim, gosto de precipitar
as coisas. Eu obtinha a ilusão de uma cumplicidade possível, cada vez
menos dispensável para mim. Eu pegara o vezo de afagar imoderadamente
as palavras pelo espaço admitido em torno delas, por suas tangências
com outras inumeráveis palavras não pronunciadas por mim. O poema
FLORESTA-NEGRA marca exatamente este estado de espírito. Passei seis
meses a escrevê-lo e, podem acreditar, não descansei um só dia. Mas
tratava-se da estima que eu então me dedicava, não é bastante,
compreendam. Adoro estas confissões estúpidas. Naquele tempo, a
pseudopoesia cubista procurava se implantar, mas saíra desarmada do
cérebro de Picasso, e quanto a mim, eu era tido como tão enfadonho
quanto a chuva (ainda sou). Eu desconfiava, aliás, que do ponto de
vista poético, eu estava no caminho errado, mas eu me safava como
podia, desafiando o lirismo, a golpes de definição e de receitas (os
fenômenos Dada não tardariam a se manifestar), e fingindo encontrar
uma aplicação da poesia na publicidade (eu sustentava que o mundo
acabaria, não por um belo livro, mas por uma bela propaganda do inferno
e do céu).
Na mesma época, um homem, tão ou mais enfadonho que eu, Pierre
Reverdy, escrevia:
A imagem é uma criação pura do espírito.
Ela não pode nascer da comparação, mas da aproximação de
duas realidade mais ou menos remotas.
Quanto mais longínquas e justas forem as afinidades de duas
realidades próximas, tanto mais forte será a imagem – mais poder
emotivo e realidade poética ela possuirá... etc.
Estas palavras, se bem que sibilinas para os profanos eram
indicadores muito fortes, e sobre elas meditei longamente. Mas a imagem
era fugidia. A estética de Reverdy, estética toda a posteriori,
fazia-me tomar os efeitos pelas causas. Entrementes, fui obrigado a
renunciar definitivamente a meu ponto de vista.
Certa noite então, antes de adormecer, percebi, nitidamente
articulada a ponto de ser impossível mudar-lhe uma palavra, mas bem
separada do ruído de qualquer voz, uma frase bem bizarra que me
alcançava sem trazer indício dos acontecimentos aos quais, segundo o
testemunho de minha consciência, eu estava preso, nessa ocasião, frase
que me pareceu insistente, frase, se posso ousar, que batia na
vidraça. Rapidamente tive a sua noção, e já me dispunha a passar
adiante quando o seu caráter orgânico me reteve. Na verdade, esta
frase me espantava; infelizmente não a guardei até hoje, era algo
como: “Há um homem cortado em dois pela janela”, mas não poderia
haver ambigüidade, acompanhada como estava pela fraca representação
visual de um homem andando, e seccionado a meia altura por uma janela
perpendicular ao eixo de seu corpo. Fora de dúvida era a simples
aprumação no espaço de um homem debruçado à janela. Mas esta janela
tendo seguido o deslocamento do homem vi que se tratava de uma imagem de
tipo bastante raro e logo pensei em incorporá-la a meu material de
construção poética. Assim que lhe concedi este crédito ela deu lugar
a uma sucessão quase ininterrupta de frases que não me surpreenderam
menos e me deixaram sob a impressão de uma tal gratuidade que me
pareceu ilusório o império que até então eu mantinha sobre mim
mesmo, e só pensei então em liquidar a interminável disputa travada
em mim (Knut Hamsun põe na dependência da fome este tipo de
revelação que me assaltou, e talvez não esteja ele errado (o fato é
que nessa época eu não comia todos os dias). Com toda certeza são de
fato as mesmas manifestações que ele relata nestes termos:
“No dia seguinte
acordei cedo. Estava ainda escuro. Meus olhos estavam abertos fazia
tempo, quando ouvi o relógio do apartamento inferior bater cinco horas.
Quis novamente dormir mas não consegui, eu estava completamente
desperto e mil coisas baralhavam na minha cabeça. De repente me vieram
uns bons trechos, próprios para utilização num esboço, num folhetim;
subitamente, por acaso, achei frases muito bonitas, frases como jamais
escreverei. Eu as repetia lentamente, palavra por palavra, eram
excelentes. E vinham mais outras. Levantei-me, peguei lápis e papel na
mesa atrás de minha cama. É como se eu tivesse rompido uma veia, uma
palavra seguia outra, colocava-se em seu lugar, surgiam as réplicas, em
meu cérebro, eu gozava profundamente. Os pensamentos me vinham tão
rapidamente e fluíam tão abundantemente que eu perdia uma porção de
detalhes delicados, porque meu lápis não podia andar tão depressa, e
entretanto eu me apressava, a mão sempre em movimento, eu não perdia
um minuto. As frases continuavam a brotar em mim, eu estava prenhe de
meu assunto”.
Apollinaire afirmava que os primeiros quadros de Chirico haviam
sido pintados sob a influência de distúrbios cenestésicos
(enxaquecas, cólicas).
Tão ocupado estava eu com Freud nessa época, e familiarizado
com os seus métodos de exame que eu tivera alguma ocasião de praticar
em doentes durante a guerra, que decidi obter de mim o que se procura
obter deles, a saber, um monólogo de fluência tão rápida quanto
possível sobre o qual o espírito crítico do sujeito não emita nenhum
julgamento, que não seja, portanto, embaraçado com nenhuma
reticência, e que seja tão exatamente quanto possível o pensamento
falado. Parecia-me, ainda me parece – a maneira como me chegara a
frase do homem seccionado o comprovava – que a velocidade do
pensamento não é superior à da palavra e que ele não desafia
forçadamente a língua, nem mesmo a caneta que corre. Foi com estas
disposições que Philippe Soupault, a quem eu comunicara estas
primeiras conclusões, e eu começamos a escrevinhar, pouco nos
importando com o que pudesse suceder literariamente. A facilidade de
realização fez o resto.
No fim do primeiro dia podíamos ler umas cinqüenta páginas
obtidas por este meio, e começar a comparação de nossos resultados.
No conjunto, os de Soupault e os meus mostravam notável analogia: mesmo
vício de construção, falhas similares, mas também, de cada lado, a
ilusão de um estro maravilhoso, muita emoção, escolha considerável
de imagens de uma tal qualidade que não teríamos sido capazes de
preparar uma só delas, mesmo com muito empenho, um pitoresco muito
especial, e de um lado e de outro, alguma proposição de pungente
burlesco. As únicas diferenças entre nossos dois textos me pareceram
corresponder essencialmente a nossos temperamentos recíprocos, o de
Soupault menos estático que o meu, e se ele me permite esta leve
crítica, ao fato de Ter ele cometido o erro de distribuir, ao alto de
certas páginas, e sem dúvida por espírito de mistificação, algumas
palavras à guisa de títulos. Em compensação, devo-lhe a justiça de
dizer que ele se opôs sempre, com toda energia, a qualquer retoque, à
mínima correção ao curso de toda passagem desse gênero que me
parecia até descabida. Tinha ele toda razão nisso. É com efeito muito
difícil apreciar em seu justo valor os diversos elementos presentes,
diga-se mesmo, é impossível apreciá-los numa primeira leitura. A vós
que escreveis, estes elementos, na aparência, vos são tão
estranhos quanto a outro qualquer, e naturalmente desconfiais.
Falando poeticamente, eles se reconhecem sobretudo por um alto grau de absurdidade
imediata, sendo o próprio desta absurdidade, num exame mais
aprofundado, dar lugar a tudo que há de admissível, de legítimo no
mundo: a divulgação de certo número de propriedades e de fatos não
menos objetivos, em suma, que os outros.
Em homenagem a Guillaume Apollinaire, que morrera há pouco, e
que por diversas vezes nos parecia ter obedecido a um arrebatamento
desse gênero, sem entretanto ter aí sacrificado medíocres meios
literários, Soupault e eu designamos com o nome de SURREALISMO o novo
modo de expressão pura, agora à nossa disposição, e com o qual
estávamos impacientes para beneficiar nossos amigos. Creio não ser
mais necessário, hoje, repisar esta palavra, e que a acepção em que a
tomamos acabou por prevalecer sobre a acepção apollinairiana. Ainda
com maior razão poderíamos ter-nos apossado da palavra
SUPERNATURALISMO, empregada por Gerard de Nerval na dedicatória de Filles
de Feu. Com efeito, parece que Nerval possuiu às mil maravilhas o
espírito ao qual recorremos, enquanto Apollinaire não possuía
senão a letra, ainda imperfeita, do surrealismo, tendo sido
incapaz de lhe traçar um esboço teórico que valha a pena. Eis duas
frases de Nerval que acerca disso me parecem bem significativas:
Vou explicar-lhe, meu caro Dumas, o fenômeno que você citou
acima. Como você sabe, há certos contistas que não podem inventar sem
se identificarem aos personagens de sua imaginação. Você sabe com que
convicção nosso velho amigo Nodier narrava como ele tivera a desgraça
de ser guilhotinado na época da Revolução; ficava-se de tal modo
persuadido que se ficava querendo saber como ele conseguira recolocar
sua cabeça.
... E já que você teve a imprudência de citar um soneto
composto neste estado de devaneio onírico SUPERNATURALISTA, como diriam
os alemães, vai ouvi-los todos. Não são nada mais obscuros do que a
metafísica de Hegel ou as MEMORÁVEIS de Swedenborg, e perderiam
encanto se fossem explicados, se a coisa fosse possível, conceda-me ao
menos o mérito da expressão...
Só com muita fé poderiam nos contestar o direito de
empregar a palavra SURREALISMO no sentido muito particular em que o
entendemos, pois está claro que antes de nós esta palavra não obteve
êxito. Defino-a pois uma vez por todas.
SURREALISMO, s.m. Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe
exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra
maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na
ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda
preocupação estética ou moral.
ENCICL. Filos. O Surrealismo repousa sobre a crença na
realidade superior de certas formas de associações desprezadas antes
dele, na onipotência do sonho, no desempenho desinteressado do
pensamento. Tende a demolir definitivamente todos os outros mecanismos
psíquicos, e a se substituir a eles na resolução dos principais
problemas da vida. Deram testemunho de SURREALISMO ABSOLUTO os srs. Aragon, Baron, Boiffard,
Breton, Carrive, Crevel, Delteil, Desnos, Eluard, Gerard, Limbour,
Malkine, Morise, Naville, Noll, Péret, Picon, Soupault, Vitrac.
Parece que são, até agora, os únicos, e não haveria engano,
não fosse o caso apaixonante de Isidore Ducasse, sobre o qual me faltam
elementos. E certamente, não considerando senão superficialmente seus
resultados, bom número de poetas poderiam passar por surrealistas, a
começar por Dante, e, em seus melhores dias, Shakespeare. No curso
das diferentes tentativas de redução, em que empenhei, do que se
chama, por abuso de confiança, o gênio, nada encontrei que se possa
finalmente atribuir a outro processo que não seja este.
As NOITES de Young são surrealistas do começo ao fim;
infelizmente é um padre que fala, mau padre, sem dúvida, mas padre.
Swift é surrealista na
maldade.
Sade é surrealista no
sadismo.
Chateaubriand é
surrealista no exotismo.
Constant é surrealista
em política.
Hugo é surrealista
quando não é tolo.
Desbordes-Valmore é
surrealista em amor.
Bertrand é surrealista
no passado.
Rabbe é surrealista na
morte.
Poe é surrealista na
aventura.
Baudelaire é
surrealista na moral.
Rimbaud é surrealista
na prática da vida e alhures.
Mallarmé é
surrealista na confidência.
Jarry é surrealista no
absinto.
Nouveau é surrealista
no beijo.
Saint-Pol-Roux é
surrealista no símbolo.
Fargue é surrealista
na atmosfera.
Vaché é surrealista
em mim.
Reverdy é surrealista
em sua casa.
Saint-John Perse é
surrealista a distância.
Roussel é surrealista
na anedota.
Etc.
Insisto, eles nem sempre são surrealistas, neste sentido que
descubro neles um certo número de idéias preconcebidas, às quais, bem
ingenuamente, eles se apegavam. Apegavam porque ainda não tinham ouvido
a voz surrealista, a que continua a pregar à véspera da morte e
acima das tempestades, porque não queriam servir somente para
orquestrar a maravilhosa partitura. Eram instrumentos soberbos demais, e
por isso nem sempre produziram som harmonioso.
Nós, porém, que não nos dedicamos a nenhum trabalho de
filtração, que nos fizemos em nossas obras os surdos receptáculos de
tantos ecos, modestos aparelhos registradores que não se
hipnotizam com o desenho traçado, talvez sirvamos uma causa mais nobre.
Assim devolvemos com probidade o “talento” que nos atribuem.
Falem-me do talento deste metro de platina, deste espelho, desta porta,
e do céu, se quiserem.
Não temos talento, perguntem a Philippe Soupault:
“As manufaturas anatômicas e as habitações baratas
destruindo as mais importantes cidades”.
A Roger Vitrac:
“Recém-invocara eu o mármore-almirante (A Mesa de Mármore era um
Tribunal instalado no Palácio de Justiça em Paris, realizando suas
sessões numa imensa mesa de mármore, que lhe deu o nome; era de sua
alçada o julgamento de militares, e sua jurisdição tinha três
divisões: o almirantado, as florestas e águas, e a área do
condestável) quando este virou nos calcanhares como um cavalo que
se empina diante da estrela polar e me indicou no plano de seu chapéu
bicorne uma região onde eu devia passar a minha vida”.
A Paul Eluard:
“Conto uma história bem conhecida, releio um poema célebre:
estou apoiado a um muro, orelhas verdejantes, lábios calcinados”.
A Max Morise:
“O urso das cavernas e sua companhia que mia, o volante e seu
valete no vento, o grão-chanceler com sua mulher, o espantalho e seu
amigo alho, a fagulha com agulha, o carniceiro e seu irmão carnaval, o
varredor com o seu tapa-olho, o Mississipi e seu sapo, o coral e o
colar, o Milagre e seu santo por favor desapareçam da superfície do
mar”.
A Joseph Delteil:
“Ai de mim! Creio na virtude das aves. E basta uma pena para me
matar de rir!”.
A Louis Aragon:
“Durante uma interrupção da partida, quando os jogadores,
reunidos, rodeavam a poncheira escaldante, perguntei à árvore se ainda
tinha sua fita vermelha”.
A mim mesmo, que não pude me impedir de escrever as linhas
serpentinas, alucinantes, deste prefácio.
Perguntem a Robert Desnos que, dentre nós, foi talvez quem mais
se aproximou da verdade surrealista, aquele que, em obras ainda
inéditas e ao longo de múltiplas experiências às quais prestou,
justificou plenamente a esperança que eu depositava no surrealismo e me
intima a esperar muito dele ainda. Hoje em dia Desnos fala
surrealista à discrição. A prodigiosa agilidade de que ele
dispõe para seguir oralmente seu pensamento nos vale, quanto nos apraz,
discursos esplêndidos, e que se perdem, Desnos tendo mais que fazer do
que fixa-los. Ele lê em si como em livro aberto, e nada faz para reter
as folhas que se desvanecem no vento de sua vida.
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SEGREDOS DA ARTE MÁGICA SURREALISTA
Composição surrealista escrita, ou primeiro e
último jato
Mande trazer com que escrever, quando já estiver colocado no
lugar mais confortável possível para concentração do seu espírito
sobre si mesmo. Ponha-se no estado mais passivo ou receptivo, dos
talentos de todos os outros. Pense que a literatura é um dos mais
tristes caminhos que levam a tudo. Escreva depressa, sem assunto
preconcebido, bastante depressa para não reprimir, e para fugir à
tentação de se reler. A primeira frase vem por si, tanto é verdade
que a cada segundo há uma frase estranha ao nosso pensamento consciente
pedindo para ser exteriorizada. É bastante difícil decidir sobre a
frase seguinte: ela participa, sem dúvida, a um só tempo, de nossa
atividade consciente e da outra, admitindo-se que o fato de haver
escrito a primeira supõe um mínimo de percepção. Isto não lhe
importa, aliás; é aí que reside, em maior parte, o interesse do jogo
surrealista. A verdade é que a pontuação se opõe, sem dúvida, à
continuidade absoluta do vazamento que nos interessa, se bem que ela
pareça tão necessária quanto a distribuição dos nós numa corda
vibrante. Continue enquanto lhe apraz. Confie no caráter inesgotável
do murmúrio. Se o silêncio ameaça cair, por uma falta da inatenção,
digamos, que o leve a cometer um pequeno erro, não hesite em cortar uma
linha muito clara. Após uma palavra cuja origem lhe pareça suspeita,
ponha uma letra qualquer, a letra “l”, por exemplo, sempre a letra
“l”, restabeleça o arbitrário, impondo esta letra como inicial à
palavra que vem a seguir.
Para não mais se aborrecer acompanhado
É difícil. Não receba ninguém, e às vezes, quando
ninguém, e às vezes, quando ninguém tiver forçado sua porta para
interrompe-lo em plena atividade surrealista e cruzar seus braços,
pense: “É igual, certamente há coisa melhor para fazer, ou para não
fazer. O interesse da vida não se mantém. Simplicidade, o que se passa
em mim ainda me aborrece!” ou qualquer banalidade revoltante.
Para fazer discursos
Fazer-se inscrever, na véspera da eleição, na lista de
candidatos do primeiro lugar que ache bom proceder a esse gênero de
consulta. Cada um tem em si o material de orador: tangas multicores,
vidrilhos das palavras. Pelo surrealismo ele vai surpreender o desespero
em sua pobreza. Uma tarde, numa estrada, ele sozinho cortará em
pedaços o céu eterno, esta Pele do Urso. Vai prometer tanto, que se
cumprir mesmo uma insignificância será uma consternação. Dará às
reivindicações do povo todo uma entonação parcial e derrisória.
Obterá a comunhão dos mais irredutíveis adversários num desejo
secreto que acabará com as pátrias. E conseguirá isso com apenas se
deixando exaltar com a palavra imensa que derrete em piedade e rola em
ódio. Incapaz de um desalento, brincará sobre o veludo de todo sos
desalentos. Será mesmo eleito, e as mais suaves mulheres o amarão com
violência.
Para escrever falsos romances
Você, seja quem for, se é de seu agrado, faça queimar algumas
folhas de louro, e sem atiçar este fogo fraco, e comece a escrever um
romance. Você tem a permissão do surrealismo: basta você mudar a
agulha de “Tempo bom e estável” para “Ação” e a mágica está
feita. Eis aqui personagens com atitudes disparatadas: os nomes deles em
sua escritura são uma questão de maiúsculas e estarão tão a vontade
com os verbos ativos como na conjugação impessoal, os pronomes estão
subentendidos, em expressões tais como: chove, há, é
preciso, etc. Eles vão comanda-los, por assim dizer, e quando a
observação, a reflexão, e as faculdades de generalização não lhe
tenham ajudado nada, esteja certo de que eles vão lhe retribuir mil
intenções que você não teve. Assim dotados de poucas
características físicas e morais, estes seres, que em verdade lhe
devem tão pouco, não se desviarão de uma certa linha de conduta, com
a qual você não precisa se incomodar. Daí resultará uma intriga mais
ou menos hábil na aparência, justificando ponto por ponto esse
desfecho comovente ou tranqüilo, ao qual você não dá nenhuma
atenção. O seu falso romance imitará admiravelmente um romance
verdadeiro; você ficará rico, e todos concordam em dizer que você tem
“algo na barriga”, pois é aí mesmo que este algo está.
Bem entendido, por um processo análogo, e à condição de
ignorar o que você vai comentar, você poderá se aplicar com sucesso
à falsa crítica.
Para se exibir a uma mulher que passa na rua
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Contra a morte
O surrealismo vai introduzir você na morte que é uma sociedade
secreta. Ele vai enluvar sua mão, sepultando aí o “M” profundo por
onde começa a palavra Memória. Não deixe de tomar felizes
disposições testamentárias; por minha parte, peço que eu seja
conduzido ao cemitério num carro de mudança. Que meus amigos destruam
até o último exemplar, a edição do Discurso sobre o Pouco da
Realidade.
A linguagem foi concedida ao homem para fazer dela um uso
surrealista. Na medida em que lhe é insdispensável fazer-se
compreender, ele consegue, bem ou mal, exprimir-se e assim assegurar o
desempenho de algumas funções, das mais banais. Falar, escrever carta
não lhe oferecem nenhuma dificuldade real, desde que, fazendo-o, ele
não se proponha um objetivo acima da média, isto é, desde que se
limite a entreter-se (pelo prazer de entreter-se) com alguém. Ele não
fica aflito com as palavras que virão, nem com a frase que virá,
terminada a sua. Ele será
capaz de responder à queima-roupa a uma pergunta bem simples. À falta
de tiques contraídos no convívio com os outros, ele pode opinar
espontaneamente sobre alguns poucos assuntos: para isso não lhe é
preciso antes “contar até dez” nem ter fórmulas preparadas. Quem
poderá tê-lo convencido de que esta faculdade de “falar logo à
primeira” só serve para desserví-lo, quando ele se propõe
estabelecer ligações mais delicadas? Ele não deve se recusar a falar
ou escrever de improviso sobre nada. Ouvir-se, ler-se, não tem outro
efeito senão o de suspender o oculto, o admirável auxílio. Não conto
para me compreender (chega! sempre me compreenderei). Se esta ou aquela
de minhas frases me traz na hora uma leve decepção, confio na frase
seguinte para redimi-la, cuido para não recomeçá-la ou
aperfeiçoa-la. A mínima perda de ímpeto ser-me-ia fatal. As palavras,
os grupos de palavras que se sucedem exercem entre si a maior
solidariedade. Não me compete favorecer estas em detrimento daquelas.
Quem deve intervir é uma miraculosa compensação: e ela intervém.
Não só esta linguagem sem reservas que procuro tornar sempre
válida, que me parece adaptar-se a todas as circunstâncias da vida,
não só esta linguagem não me desfalca nenhum de meus recursos, mas
ainda me confere uma extraordinária lucidez justo no domínio onde eu
menos esperava dela. Posso até sustentar que ela me instrui, e com
efeito já me aconteceu utilizar surrealmente palavras cujo sentido eu
esquecera. Pude verificar depois que o uso feito por mim correspondia
exatamente a sua definição. Isto poderia fazer crer que não se “aprende”,
que sempre se “reaprende”. Há expressões felizes com as quais
assim me familiarizei. E não me referi à consciência poética dos
objetos que só pude adquirir pelo seu contato espiritual mil vezes
repetido.
É ainda ao diálogo que as formas da linguagem se adaptam
melhor. Aí, dois pensamentos se confrontam; enquanto um ser revela, o
outro se ocupa com ele, mas como? Supor que o incorpore a si seria
admitir que certo tempo lhe é possível viver inteiramente deste outro
pensamento, coisa muito improvável. De fato, a atenção que lhe é
dada é toda exterior; só tem ensejo de aprovar ou de desaprovar,
geralmente desaprovar, com toda a deferência de que o homem é capaz.
Este modo de linguagem não permite, aliás, chegar ao fundo de um
assunto. Minha atenção, vítima de uma solicitação que não pode
decentemente repelir, trata o pensamento alheio como inimigo; na
conversação usual ela o “censura” quase sempre pelas palavras,
pelas figuras de que se serve; ela me põe em condições de tirar
partido delas, desnaturando-as. Isto é tão verdade que em certos
estados mentais patológicos, onde os distúrbios sensoriais afetam toda
a atenção do doente, limita-se este, que continua a responder às
perguntas, a pegar a última palavra pronunciada junto dele, ou o
último membro de frase surrealista que deixou vestígio em seu
espírito:
“Que idade você tem? “ – Tem (Ecolalia)
“Como você se chama?” – Quarenta e cinco casas (Sintoma
de Ganser, ou das respostas absurdas)
Não há conversa onde não entre algo dessa desordem.. O
esforço de sociabilidade aí reinante e a nossa grande prática é que
nos disfarçam esse fato, por pouco tempo. Também é a grande fraqueza
do livro entrar sempre em conflito com seus melhores leitores, quero
dizer, com os mais exigentes. No pequeníssimo diálogo que acima
improvisei, entre o médico e o alienado, é este, aliás, quem leva
vantagem: pois suas respostas o impõem à atenção do médico
examinador – e não é o mais forte? Talvez. Ele tem liberdade de não
se importar com seu nome nem com sua idade.
O surrealismo poético, ao qual consagro este estado, dedicou-se
até agora a restabelecer o diálogo em sua verdade absoluta, isentando
os dois interlocutores das obrigações de cortesia. Cada um deles
simplesmente prossegue em seu solilóquio, sem procurar tirar daí um
prazer dialético particular nem se impor a seu vizinho, de forma
alguma. Os conceitos emitidos na conversa não visam, como geralmente, o
desenvolvimento de uma tese, tão insignificante quanto se queira, eles
são tão desafetados quanto possível. Quanto à resposta que reclamam,
ela é, em princípio, totalmente indiferente ao amor-próprio de quem
falou. As palavras, as imagens não se oferecem senão como trampolim ao
espírito de quem escuta. É dessa maneira que devem se apresentar em Les
Champs Magnétiques, primeira obra puramente surrealista, as
páginas reunidas sob o título de Barrières
nas quais Soupault e eu nos mostramos como estes interlocutores
imparciais.
O Surrealismo não permite àqueles que
se entregam a ele que o abandonem a seu bel-prazer. Tudo leva a crer que
ele atue no espírito como os estupefacientes: como eles, cria um certo
estado de dependência e pode impelir o homem a revoltas
terríveis.Também é, se quiserem, um paraíso artificial, e o prazer
que nele se tem depende da crítica de Baudelaire ao mesmo título que
os outros. Assim também a análise
dos misteriosos efeitos e dos gozos particulares que ele pode produzir
– em muitos aspectos o surrealismo aparece como um vício novo,
que não deve ser apanágio de alguns homens apenas; como o haxixe, ele
pode satisfazer todos os delicados – e uma tal análise não pode
faltar neste estudo.
1.º Passa-se com as imagens
surrealistas como as imagens do ópio, não mais evocadas pelo homem,
mas que “se lhe oferecem, espontaneamente, despoticamente. Não pode
manda-las embora, porque a vontade não tem mais força e não mais
governas faculdades” (Ch.B.) Resta saber se alguma vez se “evocou”
as imagens. Se a pessoa se apóia, como eu faço, na definição de
Reverdy, não parece possível aproximar voluntariamente o que ele chama
“duas realidades distintas”. A aproximação se faz ou não se faz,
eis tudo. Nego, por minha parte, de maneira mais formal, que em Reverdy
imagens tais como:
No regato corre uma canção
ou
O dia se desdobrou como uma toalha branca
ou
O mundo esconde-se num saco
ofereçam o mínimo
grau de premeditação. Considero falso pretender que “o espírito
discerniu as relações” das duas realidades em presença. Para
começar, nada é discernido conscientemente. É da aproximação, por
assim dizer, fortuita dos dois termos que fulgiu uma luz especial, a luz da imagem, à qual
somos infinitamente sensíveis. O valor da imagem depende da beleza da
centelha obtida; é, por conseguinte, função da diferença de
potencial entre os dois condutores. Se esta diferença mal existe, como
na comparação, a centelha não se produz. Ora, não está, a meu ver
em poder do homem combinar a aproximação de duas realidades tão
distantes. O princípio da associação de idéias, tal como o
concebemos, opõe-se a isso. Ou então seria preciso voltar a uma arte
elíptica, condenada por Reverdy, como também por mim. É forçoso,
portanto, admitir que os dois termos da imagem não são deduzidos um do
outro pelo espírito em vista da centelha a produzir, que eles
são os produtos simultâneos da atividade que denomino surrealista,
limitando-se a razão a constatar e a apreciar o fenômeno luminoso.
E assim como a centelha aumenta quando produzida através de
gazes rarefeitos, a atmosfera surrealista criada pela escrita mecânica,
que fiz questão de colocar ao alcance de todos, presta-se especialmente
à produção das mais belas imagens. Pode-se dizer até que as imagens
aparecem nesta corrida vertiginosa como os guiões únicos do espírito.
Aos poucos o espírito se convence da suprema realidade das imagens.
Limitando-se no começo a lhes prestar sugestão, logo ele percebe que
lisonjeiam sua razão, aumentam, outrossim, seu conhecimento. Ele toma
conhecimento dos espaços ilimitados onde se manifestam seus desejos,
onde se reduzem sem cessar o pró e o contra, onde sua obscuridade não
o atraiçoa. Ele vai, conduzido por estas imagens que o seduzem, que
apenas lhe dão tempo para soprar os dedos queimados. É a mais bela das
noites, a noite dos
fulgores; perto dela, o dia é a noite.
Os tipos inumeráveis de imagens surrealistas reclamariam uma
classificação, que por hora não me disponho a tentar. Agrupá-los
conforme suas afinidades particulares me levaria longe; pretendo levar
em consideração, e essencialmente, sua virtude comum. Não escondo
que, para mim, a mais forte é a que tem o mais elevado grau de
arbitrário; a que exige
mais tempo para ser traduzida em linguagem prática, seja por conter uma
enorme dose de contradição aparente, seja por ficar um de seus termos
curiosamente disfarçado, seja por se apresentar como sensacional e
pareça se desenlaçar pouco (fechando bruscamente o ângulo de seu
compasso), seja porque retira dela mesma uma justificação formal
derrisória, seja por ser de ordem alucinatória, seja por ser de ordem
alucinatória, seja por atribuir com naturalidade ao abstrato a máscara
do concreto, ou inversamente, seja por implicar a negação de alguma
propriedade física elementar, seja por provocar o riso. Eis, por ordem,
alguns exemplos:
O rubi do champanhe . Lautréamont
Belo como a lei da parada do desenvolvimento do
peito nos adultos cuja propensão ao crescimento do peito nos adultos
cuja propensão ao crescimento não tem relação com a quantidade de
moléculas assimiladas pelo seu organismo. Lautréamont
Uma igreja erguia-se, estrepitosa como um sino. Philippe Soupault
No sono de Rose Sélavy um anão surgido de um
poço com ar soturno vem comer seu pão com um moço no horário noturno.
Robert Desnos
Sobre a ponte o orvalho com cara de gata se
embalava. André Breton
Um pouco à esquerda, em meu firmamento
imaginado, vislumbro – será apenas uma névoa de sangue e morte – o
brilhante fosco das perturbações da liberdade. Louis Aragon
Na floresta abrasada. Roger Vitrac
A cor das meias de uma mulher não está
obrigatoriamente à imagem de seus olhos, o que fez um filósofo
(inútil nomeá-lo) dizer: “Os cefalópodes têm mais razão que os
quadrúpedes para odiar o progresso:. Max Morise
1.º Que se queira ou não, há aqui
matéria para satisfazer a várias exigências do espírito. Todas estas
imagens parecem comprovar que o espírito está maduro para outra coisa,
diferente das benignas alegrias que ele geralmente se concede. É a
única maneira que ele tem de fazer virar a seu favor a quantidade ideal
de acontecimentos de que está carregado. Estas imagens lhe dão a
medida de sua dissipação ordinária e dos movimentos resultantes. Não
é mau que elas o desconcertar o espírito é coloca-lo no seu erro. As
frases que citei providenciam bastante para isso. Saboreando-as, o
espírito tira dessas frases a certeza de estar no caminho certo; para ele
próprio, ele não poderia condenar-se por argúcia; nada tem a temer,
pois, além de tudo, ele se sente capaz de alcançar tudo.
2.º O espírito que mergulha no surrealismo revive com
exaltação a melhor parte de sua infância. Para ele é um pouco como a
certeza de quem, a ponto de morrer afogado, repassa em menos de um
minuto todo o insuperável de sua vida. Dirão que é muito animador.
Mas não faço questão de animar quem me diz isso. Das recordações de
infância e de algumas outras, vem um sentimento de não abarcado, e
pois, de desencaminhado, que considero o mais fecundo que existe.
Talvez seja a infância que mais se aproxima da “vida verdadeira”; a
infância além da qual o homem só dispõe, além de seu salvo-conduto,
de alguns bilhetes de favor; a infância onde tudo concorria entretanto
para a posse eficaz, e sem acasos, de se si mesmo. Graças o
surrealismo, parece que estas chances voltam. É como se a pessoa ainda
corresse para sua salvação, ou sua perda. Revive-se, na sombra, um
terror precioso, Graças a Deus, por enquanto é só o purgatório.
Atravessa-se em sobressalto, o que os ocultistas chamam de paisagens
perigosas. Meus passos suscitam monstros que espreitam; eles não estão
ainda muito mal-intencionados a meu respeito, e não estou perdido, pois
os temo. Eis “os elefantes com cabeça de mulher e os leões voadores”
que Soupault e eu ainda há pouco tremíamos de medo de encontrar, eis o
“peixe solúvel” que ainda me assusta um pouco. PEIXE SOLÚVEL, não
serei eu o peixe solúvel, nasci sob o signo de Peixes e o homem é
solúvel em seu pensamento! A fauna e a flora do surrealismo são
inconfessáveis.
3.º Não creio que esteja próximo de se estabelecer um decalque
surrealista. Os caracteres comuns a todos os textos do gênero entre os
quais aqueles que acabo de assinalar e muitos outros que só poderíamos
entender com análise gramatical e análise lógica cerradas, não se
opõem a uma certa evolução da prosa surrealista no tempo. Vindo
depois de inúmeros ensaios
aos quais nesse sentido me dedico há cinco anos, e de que tenho a
fraqueza de julgar extremamente desordenados pela maior parte, as
historietas que formam a seqüência deste volume trazem-me uma
prova-flagrante disso. Nem por isso as considero mais dignas de figurar
aos olhos do leitor os benefícios que o subsídio surrealista é
susceptível de fazer sua consciência realizar.
Os meios surrealistas reclamariam, aliás, uma ampliação. Tudo
é bom para obter de certas associações a desejável subitaneidade. Os
papéis colados de Picasse e de Braque têm o mesmo valor que a
introdução de um lugar-comum num desenvolvimento literário do estilo
mais castiço. É até mesmo permitido intitular POEMA o que se obtém
pela agregação tão gratuita quanto possível (observemos, faz favor,
a sintaxe) de títulos e
fragmentos de títulos recortados dos jornais:
POEMA
Uma
risada
de safira
na ilha de Ceilão
As mais
belas palhas
Têm a
cor esmaecida
Na prisão
Numa
fazenda isolada
NO
DIA-A-DIA
agrava-se
O agradável
Um caminho carroçável
vos
conduz ao desconhecido
O Café
roga por
si mesmo
O
ARTESÃO QUOTIDIANO DE VOSSA BELEZA
Senhora,
um par
de meias
de seda
não é
Um salto
no vazio
UM CERVO
Antes de
tudo o amor
Tudo
poderia acabar tão bem
Paris é
uma grande aldeia
Vigial
o fogo
incubado
a
oração
Sabei que
os raios
ultravioleta
terminaram
seu trabalho
bom e
rápido
O
PRIMEIRO JORNAL BRANCO
DO ACASO
Vermelho
será
O cantor errante
ONDE
ESTARÁ?
na memória
em sua
casa
NO BAILE
DOS ARDENTES
Faço
dançando
O que se
fez, o que se fará
E os exemplos poderiam ser
multiplicados. O teatro, a filosofia, a ciência, a crítica ainda
conseguiriam encontrar-se aí. Quero logo dizer que as futuras técnicas
surrealistas não me interessam.
Bem mais graves me parecem ser, já suficientemente o dei a
entender, as aplicações do surrealismo à ação. Claro, não creio na
virtude profética da palavra surrealista. “O que digo é oráculo”:
Sim, enquanto eu quiser, mas o que é este mesmo oráculo? A devolução
dos homens não me engana. A voz surrealista que sacudia Cumes, Dodona e
Delfos não é senão a que me dita os meus discursos menos irados. Meu tempo
não deve ser o seu, porque iria ela ajudar-me a resolver o problema
infantil de meu destino? Finjo, por desgraça, agir em um mundo em que,
para chegar a ter em considerações suas sugestões, seria obrigado a
passar dois tipos de intérpretes, uns para me traduzirem suas
proposições, outros, impossíveis de encontrar, para impor a meus
semelhantes a compreensão que eu dele teria. Este mundo no qual eu
suporto o que suporto (e não queiram saber)m este mundo moderno,
afinal, diabo, que querem que eu faça nele? A voz surrealista se
calará talvez, perdi a conta dos desaparecimentos. Não entrarei mais,
nem um pouco, na discriminação maravilhosa de meus anos e de meus
dias. Serei como Nijinski, conduzido no ano passado ao Balet Russo, que
não compreendeu a que espetáculo assistia. Estarei só, bem só em
mim, indiferente todos os
balés do mundo. O que eu fiz, dou tudo para vocês.
Desde logo, me dá uma grande vontade de considerar com
indulgência o devaneio científico, afinal de contas, e a tantos
respeitos, tão inconvenientes. Os sem-fio? Não vejo malo nisso.
Cinema? Bravo! para as salas escuras. Guerra? Bem que nos ríamos. Telefone? Alô,
sim. Mocidade? Encantadores cabelos brancos. Procurem me fazer dizer “obrigado”.
“Obrigado” Obrigado... Se o vulgo dá valor ao que é, propriamente
falando, pesquisa de laboratório, é que isto levou ao lançamento de
uma máquina, à descoberta de um soro, com os quais o vulgo se acha
diretamente interessado. Ele não duvida, quiseram melhorar sua sorte.
Não sei quanto entra exatamente no ideal dos sábios de votos
humanitários, mas não me parece que isto constitua grande ato de
bondade. Falo, bem entendido, dos verdadeiros sábios e não dos
vulgarizadores de toda ordem que se fazem entregar um certificado. Creio
que neste domínio como num outro, na pura alegria surrealista do homem
que, advertido pelo fracasso sucessivo de todos os outros, não se dá
por vencido, parte de onde quer, e, por um caminho qualquer que não é
razoável, chega onde pode. Tal ou tal imagem, com que ele julgará
oportuno balizar sua marcha, e que talvez lhe valerá o reconhecimento
público, posso confessar que
me é indiferente em si. O material com o qual ele precisa se atravancar
tão pouco me impressiona: seus tubos de vidro, minhas penas
metálicas... Quando a seu método, para mim, troco pelo que vale o meu.
Vi em ação o inventor do reflexo cutâneo plantar: manipulava sem
descanso seus pacientes, o que praticava era bem outra coisa que não um
“exame”. era claro
que ele não confiava mais em plano nenhum. Daqui e dali, ele
formulava uma observação de modo distante, sem pôr de lado sua
agulha, enquanto seu martelo corria sempre. O tratamento dos doentes,
deixava ele ao cuidado dos outros esta tarefa fútil. Esava possuído
dessa febre sagrada.
O surrealismo, tal como o encaro,
declara bastante o nosso não-conformismo absoluto para que possa
ser discutido trazê-lo, no
processo do mundo real., como testemunho de defesa. Ao contrário, ele
só pode justificar o estado completo de distração da mulher em Kant,
a distração das “uvas” em Pasteur, a distração dos veículos em
Curie são a esse respeito profundamente sintomáticos. Este mundo só
relativamente está à altura do pensamento, e os incidentes deste
gênero são apenas os episódios até aqui mais marcantes de uma guerra
de independência, da qual tenho o orgulho de participar. O surrealismo
é o “raio invisível” que um dia nos fará vencer os nossos
adversários. “Não tremes mais, carcaça.” Neste verão as rosas
são azuis, a madeira é de vidro. A terra envolta em seu verdor me faz
tão pouco afeito quanto um fantasma. VIVER E DEIXAR DE VIVER É QUE
SÃO SOLUÇÕES IMAGINÁRIAS. A EXISTÊNCIA ESTÁ EM OUTRO LUGAR. |