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QUERO VER O QUE TEM DENTRO

Washington Araujo

O texto seguinte é um delírio estético e responde a
dois alunos que literatura que me pediram que
escrevesse sobre esse tema assim meio que "non sense".
Nasceu ontem (23/10/01) por volta das 17h45m.



Por pouco, muito pouco, cheguei perto. Bem perto.
Nunca antes havia me acercado tanto desse mistério
permanente em meio à mutação acelerada com que levo a
vida (ou será que ela é que me leva?) que é o
sentimento de estar quase a um salto da essência da
vida. Confesso que o desejo de ver o que tem dentro
falou mais forte. E se esgoelou tanto que minha
consciência ante o risco iminente de se perder nos
descaminhos da razão, essa coisa fria, com alto teor
de insalubridade a contaminar toda essa bela colheita
de afeição e de gozo interior que vez por outra,
quando estou prestes a ver o que tem dentro, irrompe
de forma assim tão caudalosa, se recolheu, abrindo
espaço.

Sou para mim a caixa preta do avião que despenca logo
após ter alcançado a velocidade de cruzeiro. E é dessa
caixa preta que tento me acercar desde que, garoto
ainda, senti aquela fisgada na alma que passou a me
torturar com requintes de rara crueldade: a incessante
busca de respostas para questões mais complexas do que
saber a exata escalação da seleção brasileira em seu
prõximo jogo com a Venezuela. É verdade que vale uma
vaga na próxima Copa. São questões miseráveis vestidas
de preto e com um formato assim de caixa. Questões
adolescentes tipo quem eu sou, de onde venho e para
onde vou. Eternas adolescentes questões fingindo que
não vão amadurecer nunca. E se brincar, não vão mesmo.

Mas desta vez foi demais. Primeiro me aproximei de um
denso nevoeiro, estava mais para um fog londrino que
para uma garoa paulista. Senti meu ser todo se abrasar
e logo se comover. Reconheci meu primeiro amor, aquele
que a gente beija meio desconfortável porque não sabe
ainda para que serve a língua, não o instrumento que
fala, mas esse membro que vez por outra assume rara
independência e fatura uns bons minutos de intenso
prazer. E logo em seguida vi que um pequeno vidro de
cristal translúcido continha um líquido muito alvo e
límpido. Senti o olho esquerdo se contrair mas
terminou dando uma disfarçada em forma de piscadela
espontânea. Eram minhas muitas lágrimas derramadas em
vão por amores que nem chegaram a tomar corpo, e que
lovo sumiram, apontando solene e inesperadamente para
a linha do horizonte. Essa sensação de voltar ao país
dos primeiros amores, esses mais belos e que para
sempre ficarão em algum lugar especial da memória de
um coração acelerado em demasia e sem nenhum pit stop
à vista me nocateou. Quando a emoção é grande demais a
gente não se atreve a olhar duas vezes.

Posicionei a alma para baixo e embiquei de vez.
Encontrei todas as estrelas dentro de mim e em cada
estrela um buraco imenso, escuro e... vazio. A boca
me traiu e senti o gosto do beijo não dado, aquele
beijo roubado que fornece matéria prima para os beijos
de toda uma futura existência. E então, quando estou
já sentindo na mão o peso da caixa preta, eis que ela
se volta em minha direção e me diz palavras, estranhas
palavras e sinto em sua voz um ranço acusatório. Ela
me diz que sou o culpado de tudo. Que desde aquele
momento em que a tirei da direção e resolvi tomar as
rédeas disso que passei a chamar de Vida tudo a
desandar, descarrilar, dar pra trás.

Lágrimas foram se juntando em algum lugar
onde elas ficam quando não querem ser choradas e de
repente me inundaram o coração e transbordaram com tal
ímpeto que toda a minha vida interior foi levada pela
enxurrada. Lá dentro de mim, uma meteorologia
anunciando incessantemente chuvas e trovoadas, geada e
frio, comunicações cortadas, energia cortada, tudo
cortado.

Fiquei sozinho dependurado em um fino galho
de aparente razão prestes a se quebrar. Estava sozinho
demais para entender a precariedade de minha
existência. Pedi ao bom Deus que uma vez mais me desse
uma chance, esbravejei com Ele. Disse-Lhe umas poucas
e boas e chorei até ficar tão encharcado que nem que o
sol ficasse acordado por uns cem anos a fio ainda
assim tinha a sensação de que iria permanecer molhado,
literalmente, afogado em mim.

E então senti um calafrio. Não um calafrio desses que
se tem quando se vê uma porcaria de filme como a Hora
do Espanto 13 ou a milionésima revanche do Krugger,
Freddie Krugger. Um calafrio daqueles que nos faz
tremer ao ver como alguém pode ser capaz de
desperdiçar toda uma seqüência de anos, preciosos anos
que jamais poderiam retornar, zerar, voltar a contar.

Lembrei então de quando tinha 9 anos e era
jovem demais para saber viver e mais jovem ainda, para
saber amar. Percebi que era um breve projeto de vida
pousado nos ramos gigantescos da existência humana. E
foi com 9 anos que senti pela primeira vez que a
semente da eternidade e da imortalidade haviam sido em
mim depositadas. Agora, ali, naquele misto de
perplexidade e serenidade eu me via como mais um do
velho clã McLeoad. A diferença era que somente poderia
morrer se arrancado fosse meu coração. A cabeça? Ah,
essa, poderia rolar a toda pelas ladeiras e
corredeiras e batucadas da vida.

Coloquei-me na ponta dos pés e ainda tentei dar uma
espiadela para ver o que tinha dentro. Havia escuridão. 
Gritei por mim, esquecido que não estava em casa. 
Havia saído para não mais voltar e não deixara
bilhete, sinal, rastro qualquer capaz de me devolver a
mim.

Queria urgentemente falar com alguma humana forma de
ser. Queria estar naquele momento com meu amigo que
acabara de receber os mágicos instantes de Borges e
que lamentavelmente não soubera adequadamente
apreciar. Resolvi me deitar e com poeira de estrelas
fui acumulando densidade. Com a argamassa do tempo
ressurgi como um Zumbi haitiano, sem memória, sem
história.

Assim foi que descobri que a história nós a fazemos,
no braço e no muque, tendo que matar um leão por dia e
já deixar um outro preso logo ali mais adiante para o
dia seguinte e mais uns três sob intensa vigilância
para assegurar o resto da semana. Isso se ainda
desejar continuar a lutar pela sobrevivência. E foi
com tantos leões rugindo pensamentos maus que vi
escapar de meus dedos rede de salvamento estendida, a
caixa preta.

As represas da dor se romperam, me soterraram e um
século depois eis-me ali, envolvido em estranha e
ritmada convulsão buscando seduzir minha vontade,
jogar k-ô para meu lerdo pensamento e quem sabe
resistir uma vez mais a esses imperativos que
transformam o paraíso em inferno abrasador e que faz o
suave cheiro do sândalo parecer enxofre de terceira ou
quarta categoria.
Esta foi minha penúltima tentativa de ver o que tinha
dentro. A verdade é que não sei aonde fui encontrar
forças para refazer o longo caminho do aprendizado do
amor. Só sei que comecei checando as muitas rasteiras
que ele, o amor, me pregara e tomei nota das muitas
vezes em que, em uma segunda chamada, havia mesmo
comparecido por inteiro a essa longa e difícil
disciplina, a disciplina do amor.

Eu não sei o que os outros viram lá dentro. Meus
olhos acostumaram-se a amar o invisível que há nos
seres amados e se sentem bem cansados quando têm que
corresponder a um olhar mais expressivo. Um olhar
desses que comprometem a gente por essa e pelas
gerações futuras, nos levando, sem escalar, direto ao
macro ambiente do Juízo Final.

Minha consciência, se é que ainda pode ser chamada
por esse nome de solteira, essa sucumbiu a todo tipo
de desdita e desilusão e como macaca velha não põe a
mão em cumbuca, ela faz o mesmo. Sente-se anestesiada
com a dor dos outros e faz de conta que não é nada com
ela. Mas finge o tempo inteiro porque o instinto de
sobrevivência fala mais alto e ela acha que amadureceu
fazendo as artes do camaleão. O seu ponto chave é que
ela sofre pra caramba. E sempre se sente diminuída
quando vê alguém sinceramente sofrer, não deixando de
usar todo ardil e também todo tipo de trapaça, jogando
todo tipo de jogo para ajudar os que no meio do calor
da luta estão prestes a tombar. É uma consciência
simpática, muito amadora, nada profissional.

Vejamos outro aspecto importante. Ele mesmo. O meu
coração. Pois não é que, por descuido, foi colocado na
caçamba de gelo junto com a água que preenchia os
demais vazios. E ficou lá congelando na longa noite do
tempo. O dono há muito se despediu dos bares e da
noite, das festas e seus DJs. Pudera. Quem, brindado
com um coração dessa espécie, precisaria de inimigos?
Ele se defende, porque julga em seus devaneios de
sabichão, tipo tudo pode, tudo faz, que é o Gêngis
Khan na flor dos 20 anos, pronto para destruir
impérios, aniquilar civilizações, dizimar exércitos e
então se sente bem à vontade quando o inimigo é apenas
um pobre coração que nem bate mais no ritmo,
resvalando constante-mente no campo da desafinação,
dançando sempre, com ou sem música, com ou sem ritmo.
O coração ao me falar nisso me faz um mal danado. Isso
me faz sentir bastante penalizado com sua dor: qual
coração gostaria de ser tão mal amado pela consciência
que, pelo menos em tese, deveria protegê-lo?

Decido, então, não querer ver o que tem dentro. É
melhor. Nâo tenho ainda construído tudo lá dentro e
ver canteiro de obras, francamente, não é dos melhores
programas. Mas fica sempre essa vontade de ver o que
tem dentro dos outros. Somos melhores para os outros
do que para nõs mesmos. E não faz muito tempo passou
um caminhão tipo Scania, carregado de tubos de conexão
Tigre, com dois tapetes movendo-se ao saber do vento.
Em um dos tapetes podia se ler o velho dístico: “a
grama do vizinho é sempre mais verde”. E no outro?
Dizia: “A galinha do vizinho é sempre mais gorda”
Desconfio que lá dentro estavam flanando esses dois
tapetes e toda essa filosofia popularesca e cheia de
significados e significantes.

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