
Como
escrever sobre a Tolerância
Michael
Walzer
A
argumentação filosófica com frequência tem assumido nos últimos
anos uma forma procedimentalista: o filósofo imagina uma posição
original, uma situação ideal de discurso ou uma conversação numa nave
espacial. Cada uma dessas ocasiões é constituída por um conjunto de
restrições, de regras de compromisso, por assim dizer, para as partes
envolvidas. As partes representam os restantes de nós. Raciocinam,
negociam ou conversam atendo-se às restrições concebidas para impor os
critérios formais de qualquer moralidade: imparcialidade absoluta ou
algum equivalente funcional disso. Supondo que a imposição seja
bem-sucedida, é plausível considerar as conclusões a que chegam as
partes como sendo dotadas de autoridade moral. Estamos munidos, assim,
de princípios norteadores em todos os nossos raciocínios, negociações
e conversas concretas – na verdade, todas as nossas atividades econômicas,
sociais ou políticas – nas condições do mundo real. l)entro de nossas
possibilidades, devemos efetivar esses princípios em nossas próprias
vidas e em nossas sociedades1.
Nas páginas que
seguem, adotei uma abordagem diferente, que pretendo explicar e defender
nesta breve introdução. Não vou tentar uma argumentação filosófica
sistemática, embora no conjunto do ensaio todas as características
necessárias dessa argumentação devam aparecer pelo menos uma vez: os
leitores encontrarão algumas indicações e premissas metodológicas genéricas
aqui, e depois uma
ilustração ampliada com exemplos históricos, uma análise de
problemas práticos e uma conclusão experimental e incompleta, que é
tudo o que a abordagem permite. Meu tema é a tolerância – ou, talvez
melhor, a coexistência pacífica de grupos de pessoas com histórias,
culturas e identidades diferentes, que’ e o que a tolerância
possibilita. Começo pela proposição de que a coexistência pacífica
(de um certo tipo: não estou tratando aqui da coexistência de senhores
e escravos) é sempre uma coisa boa. Não porque as pessoas de fato sempre
lhe dão valor – é óbvio que muitas vezes não o fazem. O sinal de que
é boa é o fato de pessoas sentirem-se tão fortemente inclinadas a dizer
que lhe dão valor. Elas não conseguem justificar-se, nem para si
mesmas nem perante os outros, sem endossar o valor da coexistência pacífica
e da vida e liberdade a que ela serve2. Este é um fato sobre o
mundo moral – pelo menos no sentido limitado de que o peso da argumentação
recai sobre aqueles que rejeitariam esses valores. São os praticantes da
perseguição religiosa, da assimilação forçada, da guerra das
cruzadas ou da purificação étnica” que precisam se justificar, e
geralmente se justificam não defendendo o que fazem, mas negando que o
fazem.
A
coexistência pacífica, porém, pode assumir formas políticas muito
diferentes, com diferentes implicações para a vida moral cotidiana –
isto é, para as interações concretas e envolvimentos mútuos de
homens e mulheres. Nenhuma dessas formas é universalmente válida. Além
da reivindicação minimalista do valor da paz com suas regra implícitas
de transigência (que equivalem, grosso modo à descrição-padrão dos
direitos humanos básicos), não há princípios que regulem todos os
regimes de tolerância ou que nos obriguem a agir em todas as circunstâncias,
em todas as épocas e lugares, em nome de um conjunto particular de
arranjos políticos ou constitucionais. Argumentações procedimentalistas
não nos ajudam neste caso preciso por não serem diferenciadas pelo tempo
e pelo espaço. Não são propriamente circunstanciais. A alternativa que
pretendo defender é uma descrição histórica e contextualizada da
tolerância e da coexistência, que examine as diferentes formas que estas
assumiram na realidade e as normas do dia-a-dia próprias de cada uma
delas. Faz-se necessário observar tanto as versões Ideais desses
arranjos práticos quanto as suas típicas distorções historicamente
documentadas. Também precisamos considerar como os arranjos são
percebidos por diferentes participantes – quer se trate de grupos ou
de indivíduos, de quem se beneficia ou de quem é prejudicado – e
depois como são vistos por pessoas de fora, participantes de outros
regimes de tolerância.
Mas
será que isso não é simplesmente uma análise positivista ou, pior
ainda, relativista? Se não houver uma opinião superior ou um
participante autorizado, como poderemos chegar a um padrão critico? Como
poderemos classificar e ordenar os diferentes regimes? Não me proponho a
fazê-lo, e não sinto nenhuma ansiedade por causa disso. Não me parece
plausível que os vários tipos de arranjos políticos que vou considerar
– impérios multinacionais e Estados-nações, por exemplo, ou os seus
exemplos históricos (a Alexandria ptolemaica ou romana, o Império
Otomano, o Império Austro-Húngaro dos Habsburgos, a França, a Itália e
a Noruega da atualidade, e assim por diante) – possam ser classificados
numa série única, como se pudéssemos atribuir a cada caso uma
quantidade de valor moral:’ sete, dezenove, ou trinta e um e meio.
Podemos
afirmar, sem dúvida, que um arranjo que tende a degenerar em perseguição
e guerra civil é pior do que outro mais estável. Mas não podemos
afirmar que um arranjo que favoreça, por exemplo, a sobrevivência de
grupos em detrimento da liberdade dos indivíduos seja sempre inferior a
outro que favoreça a liberdade em detrimento da sobrevivência grupal –
pois os grupos são constituídos de indivíduos, muitos dos quais,
decerto, escolheriam livremente o primeiro tipo de arranjo, preterindo o
segundo. Também não podemos dizer que a neutralidade do Estado e a
associação voluntária, segundo o modelo da “Carta sobre a tolerância”
de John Locke, seja a única ou melhor maneira de lidar com o pluralismo
religioso e étnico. É uma maneira muito boa, que foi adaptada à experiência
das congregações protestantes em certos tipos de sociedade, mas sua
eficiência fora dessa experiência e daquelas sociedades precisa ser
provada; não pode ser simplesmente presumida. Ataques radicais à
liberdade individual e aos direitos de associação podem ser facilmente
condenados assim como acontece com as objeções militares e políticas
(mas não intelectuais) à sobrevivência de um determinado grupo: são
incoerentes com a coexistência mínima. Além disso, comparações
entre vários tipos de arranjos são moral e politicamente úteis quando
consideramos onde estamos e quais são as alternativas de que dispomos,
mas elas não produzem juízos dotados de autoridade.
O
valor de uma descrição cuidadosa e circunstanciada dos diferentes
regimes de tolerância, tanto em sua versão ideal quanto na concreta,
reside simplesmente nessa utilidade. Pois, embora os regimes constituam
totalidades políticas e culturais, com suas vantagens e desvantagens
intimamente interligadas, não são totalidades orgânicas. Isso não quer
dizer que, se algumas de suas ligações internas fossem rompidas ou
rearranjadas, o regime estaria condenado à morte política. Nem todas as
reformas são transformações, e mesmo as transformações podem ser
realizadas de modo gradativo, no decorrer de longos períodos de tempo.
Conflitos e problemas são características fatais de qualquer processo
dessa natureza, mas não as rupturas e colapsos. Se este ou aquele aspecto
de um arranjo ali parece ser útil aqui, feitas as devidas modificações,
podemos trabalhar para uma reforma nesse sentido, visando o melhor para
nós, levando em conta os grupos a que damos valor e os indivíduos que
somos.
Não
é possível, porém, tomar todas as características mais “bonitas”
de cada um dos diferentes arranjos e combiná-Ias entre si – supondo
que, dada a sua semelhante beleza (o apelo que exercem a nossos olhos),
elas de fato se ajustarão no conjunto, criando uma unidade eficaz e
harmoniosa. Algumas vezes pelo menos, e talvez até com muita frequência,
as coisas que admiramos num determinado arranjo histórico estão
funcionalmente relacionadas às coisas que tememos ou de que não gostamos3.
É um exemplo do que poderíamos chamar de utopismo ruim” imaginar que
podemos reproduzir ou imitar as primeiras e evitar as segundas. A
filosofia deve ser historicamente informada e sociologicamente
competente se quiser evitar o utopismo ruim e reconhecer as duras escolhas
que muitas vezes se exigem na vida política. Quanto mais duras forem as
escolhas, tanto menor será a probabilidade de que uma solução, e
apenas uma, tenha sua aprovação filosófica garantida. Talvez devêssemos
escolher desse modo) aqui e daquele outro ali, desse modo agora e
daquele outro) em algum momento) futuro. Talvez todas as nossas escolhas
devessem ser provisórias e experimentais sempre sujeitas a revisão ou
até reversão.
A
idéia de que nossas escolhas não são determinadas por um único princípio
universal (ou um conjunto) de princípios interligados), e de que a
escolha certa aqui talvez não seja igualmente certa ali, é,
rigorosamente falando, uma idéia relativista. O melhor arranjo político
é relativo á história e cultura do povo cujas vidas ele irá arranjar.
Esse ponto me parece óbvio. Mas não estou defendendo um relativismo
irrestrito, pois nenhum arranjo, nenhum traço típico de um arranjo, é
uma opção moral se não oferecer alguma versão de coexistência pacífica
(e assim sustentar os direitos humanos básicos). Escolhemos dentro de
limites, e minha suspeita é a de que a verdadeira dissensão entre os
filósofos não está em saber se tais limites existem – ninguém
acredita seriamente no contrario – mas sim em saber até onde se
estendem. A melhor maneira de avaliar essa extensão é descrever uma
gama de opções e mostrar a plausibilidade e as limitações de cada uma
dentro de seu contexto histórico. Não tenho muito a dizer sobre os
arranjos que ficam inteiramente excluídos – os monolíticos regimes
religiosos ou de caráter político totalitário. Basta mencioná-los e
chamar a atenção dos leitores para a sua realidade histórica. Comparada
com essa realidade, a coexistência pacifica é sem dúvida um princípio
moral importante e substantivo.
Argumentar
que se deve permitir a coexistência pacífica de grupos e ou indivíduos
diferentes não é argumentar que se devem tolerar todas as diferenças
concretas ou imagináveis. Os diferentes arranjos que vou descrever são
de fato diferentemente tolerantes em relação a práticas que a maioria
de seus participantes acham estranhas ou repugnantes – e também, é óbvio,
diferentemente tolerantes em relação aos homens e mulheres que as
praticam. Podemos, portanto, classificar os diferentes arranjos, os
diferentes regimes de tolerância, coma sendo mais ou menos tolerantes, e
até estabelecer (com muitas ressalvas históricas) uma classificação
em ordem crescente. Mas, quando observarmos com cuidado algumas das práticas
em questão, logo ficará evidente que não se trata de uma classificação
moral. A tolerância de práticas problemáticas varia entre os
diferentes regimes de forma complexa, e os juízos que formulamos sobre a
variação tendem a ser igualmente complexos.
Pretendo
demonstrar essa complexidade em minhas descrições dos diferentes
regimes e dos problemas que enfrentam – e depois, novamente, nas especulações
sobre os Estados Unidos de hoje, com o que termina este ensaio. As formas
de coexistência nunca foram tão amplamente debatidas quanto nos dias
atuais, porque a proximidade da diferença, o encontro diário com a
alteridade, nunca foi tão amplamente sentida. Vendo televisão ou lendo
os jornais, poderíamos ter a impressão de que essa experiência é cada
vez mais parecida pelo mundo afora. Talvez sejamos tentados a formular uma
única resposta. Todavia, até mesmo encontros e transações muito
semelhantes são necessariamente diferenciados quando envolvem grupos
diferentes de pessoas e quando afetam homens e mulheres com histórias e
expectativas diferentes. A experiência é sempre fatalmente mediada
pela cultura, e procurei respeitar a diferença causada por essa mediação.
Sugiro portanto minha própria visão de como as coisas deveriam ser, como
a convivência pacífica poderia ser mais bem estruturada, apenas fazendo
referência ao meu tempo e lugar, â minha realidade norte-americana. No
fim deste ensaio, entro de modo tentativo e experimental no debate sobre o
“multiculturalismo”4. Mas não creio que esse debate
tenha uma importância universal ou histórico-mundial ou que suas conclusões
tenham mais do que um valor heurístico. No mundo de hoje, todos podem
aprender com este engajamento particular com a diferença, mas ninguém
aprenderá bastante se não se Familiarizar com muitos outros
engajamentos.
Uma
observação final: minha familiaridade com outros engajamentos é
limitada, como a de todo o mundo. A argumentação deste ensaio foi
elaborada sobretudo através de exemplos da Europa, da América do Norte
e do Oriente Médio. Terei de contar com outras pessoas para saber se, ou
em que medida, a argumentação serve para as realidades da América
Latina, da África e da Ásia.
Notas:
1.
Escrevi
sobre essa abordagem de maneira crítica em “A Critique of Philosophical Conversation”, em Michael Kelly (org.),
Hermeneutics and Critical Theory in
Ethics and Politics (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1990), pp. 182-96. Cf.
a réplica de Georgia Wanke em “Reply”, pp. 197-203 do mesmo livro, que apresenta uma defesa
parcial da teoria de Jürgen Habermas.
2.
Thomas
Scalon explica por que opiniões dessa natureza são importantes em
“Contractualism and Utilitarianism”, em Amartya Sen e Bernard Williams
(orgs.), Utilitarianism and Beyond (Cambridge:
Cambridge University Press, 1982), esp. P.
116.
3.
Stuart Hampshire, Morality
and Conflict (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1983), pp.
146-8.
4.
Talvez
seja proveitoso elencar aqui algumas das contribuições para este debate
nas quais meu trabalho se inspirou: John Higham, Strangers
in the Land: Patterns of American Nativism 1860-1925, 2ª ed. (New
Brunswick, N.J.: Rutgers University Press (1988); Orlando Patterson, Ethnic
Chauvinism: The Reactionary Impulse (Nova York: Stein and Day, 1977);
Stephen Steinberg, The Ethnic Mity:
Race, Ethnicity, and Class in America (Boston: Beacon, 1981); Arthur
M. Schlesinger, Jr., The Disuniting
of America (Nova York: Norton, 1992); David Hollinger, Postethnic
America (Nova York: Basic Books, 1995); Todd Gitlin, The Twilinght of
Common Dreams (Nova York: Henry Holt, 1995); e Charles Taylor, Multiculturalism and “the politics of Recognition” (Princeton,
N. J.: Princeton University Press, 1994). Taylor é um vizinho muito próximo,
e sua defesa da “diversidade profunda” no Canadá ocupa um lugar
central em minha análise dos Estados Unidos.
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