
Amar, essa Palavra!
por
Washington Araujo
Amar. É a maior
dentre as três principais forças que animam a existência humana.
Nenhuma forma de vida pode ser chamada de vida se não estiver
impregnada desse sentimento mais elevado, sublime, terno, belo que
irrompe na superfície do ser. É o sopro que concede sentido,
significado, dimensão, altura, comprimento e largura. O amor está para
a vida humana assim como a força da gravidade está para o mundo do
universo. Sem ele, os demais sentimentos parecem flutuar à procura de
nexo, espaço, densidade. É o amor que concede a graça de se sentir
pertencente a algo maior que o Um, que concede a visão totalizadora,
completa, integral. É o amor que liga as várias partes que compõem
isso que costumamos designar como sendo existência. Se existe o
pensamento, ele somente se torna veiculo do espírito no momento em que
está permeado pelo amor. Se existe vontade, ela somente se manifesta em
sua totalidade se a força impulsionadora é o amor.
Sem o amor há o
vazio da existência. A solidão mais profunda e mais sofrida. É o amor
que ilumina os distante e longínquos espaços do ser. É ele que
percorre a maior distância que os grandes telescópios ainda não
conseguiram quantificar. A distância entre o coração e a razão. A
distância entre a intenção e o gesto.
Sem o amor as
palavras vagueiam nos dicionários das idéias à procura de
significados e definições. Os verbos se transmudam em substantivos, as
preposições deixam de unir, os artigos serão para sempre indefinidos.
Sem o amor, o mel das palavras se transforma em fel.
Sem o amor o
brilho do olhar das crianças atingem cores opacas e acinzentadas e os
olhos da mães se sentem condenados à insônia permanente e imutável
das expectativas irrealizadas.
Sem o amor as
águas dos rios e recusariam a ingressar no mar. E o mar seria ainda
mais salgado, impossibilitando por completo qualquer forma de vida
marinha.
Sem o amor seria
impossível apreciar adequadamente a tonalidade do céu ao amanhecer,
aquele momento em que a noite desaparecer e faz surgir o dia. E os tons
do crepúsculo ocorreria sem que vivente algum pudesse exclamara cisas
do tipo: Somente o Criador poderia encenar cada 24 horas tal
espetáculo.
Sem o amor a
realidade das coisas ficaria para sempre perdida em alguma galáxia há
bilhões de anos descrente de um dia vir a ser descoberta ou a compor
algum tratado de astronomia.
Sem amor não
existiriam as manhãs de setembro e nem haveria revoada de pássaros. As
próprias rotas das aves migratórias se transformariam em eternos
círculos concêntricos. Exaustas, as aves despencariam de cansaço no
vazio de seus sonhos alados.
Sem o amor o
sabor não poderia ser sentido. O olfato perderia a sensibilidade. A
visão estaria comprometida e somente poderia fixar o vazio do não-ser.
Sem o amor
Moisés não teria subido a montanha e dela não teria regressado com as
tábuas da lei. E assim ocorrendo nenhum código de leis teria sido
fornecido para ordenar a vidas das sociedades e produzir a cura das
nações.
Sem o amor os
cânticos de Davi poderiam conter um único coração, consolar uma
única alma através dos tempos e os provérbios de Salomão estariam
despidos de qualquer elevação espiritual. A nobreza e a coragem de
Rute ou Judite seriam apenas referidas vagamente nas páginas do Antigo
Testamento.
Sem o amor
Isaías e Daniel estariam privados da posição de profetas da Casa de
Israel e jamais teriam lançado as bases proféticas sobre a vinda do
Messias em 1844, haveriam previsto um tempo em que o cordeiro e o leão
beberiam água da mesma fonte e as espadas seriam transformadas em
arados.
Sem o amor não
teria existido um filho de um carpinteiro a inebriar alguns pescadores e
a lhes conceder a visão de um novo mundo, fundando a idéia de uma
civilização. Sem este jovem filho de carpinteiro não teria existido
um batismo nas águas do Jordão, nem ouvidos humanos teria apreciado um
discurso inflamado no Monte das Oliveiras, nem as mãos deixariam cair
no chão as pedras que proclamariam uma absolvição plena e total a
Maria Madalena. Também deixaria de existir uma cruz a simbolizar um
novo patamar de relacionamento entre a criação e o Criador.
Sem o amor
Francisco não teria irrompido em Assis, declarando amor ao sol, à lua,
ao céu, aos rios, às arvores. Clara jamais teria se dirigido ao seu
encontro e por onde passasse as flores não teriam brotado de suas
pegadas. Sem Francisco não existiria uma senhora chamada Pobreza e
nunca um coração compreenderia o significado de que é morrendo que se
vive para a vida eterna.
Sem o amor Santo
Agostinho jamais teria afirmado que bem-aventurado é o pecado que nos
trouxe tão grande Salvador e ‘Abdu’l-Bahá teria afirmado que a
maior prisão é a prisão do egoísmo. Attár não teria afirmado que
racha um átomo e encontrareis sóis e luas.
Sem o amor o
príncipe Sidarta teria continuado em seu palácio sem jamais ter
encontrado a morte, um velho moribundo e a companhia de uma bela mulher.
Esses fatos contribuiriam para um longo período de escuridão
espiritual e moral. E nenhuma flor seria oferecida ao Buda. E a mandala
óctupla seria apenas um círculo como tantos outros inscritos na
história dos povos.
Sem o amor não
haveria motivação para se convocar os crentes para as orações dos
minaretes das mesquitas que trouxeram brilho à intervenção islâmica
na História. Maomé não teria seguido de Medina para Meca e não se
conheceria o segredo da Pedra Negra, a Kaaba, atraindo como um magneto
os corações que ouviram a voz divina no Sagrado Corão.
Sem o amor Anís
não teria se jogado aos pés do Báb, suplicando-lhe a honra de com ele
morrer, em sinal de inquestionável amor pela pureza e verdade de Sua
Causa. O Báb não teria se encontrado com Mulláh Husayn e não teria
dado início à longa caminhada da humanidade por sua aguardada
maturidade.
Sem o amor
Tahirih, conhecida como "A Pura", jamais teria no Irã,
retirado o véu de seu rosto, finalizando doze séculos de dominação
das potencialidades da mulher e oferecendo a vida como um resgate por
uma nova história, revelando o rosto materno da divindade.
Sem o amor Bahá’u’lláh
não teria sido confinado por longos meses em uma calabouço
subterrâneo de Teerã e teria deixado de contemplar a visão da Donzela
do Paraíso a pronunciar palavras em meio ao murmúrio de correntezas
que partindo de Deus alagavam os corações humanos. E também ele não
teria caminhado pelas margens do rio Tigre, anunciando palavras que
teriam permanecido ocultas na longa noite do tempo.
Sem o amor as
lágrimas estariam para sempre represadas como em um lago antártico em
pleno coração humano. Não haveria um único movimento a romper a
tranqüilidade do lago, nem a mais leve sensação de calor a produzir
algum sinal de aquecimento.
Sem o amor seria
impossível divisar o que é passado, presente ou futuro. Haveria apenas
o tempo próprio da ausência e serenidade continuaria a habitar no
leito dos séculos, avançando milênios afora.
Sem o amor os
braços jamais conseguiriam formar algo que lembrasse a silhueta do
abraço que acolhe, que enternece, que acalenta, que faz vibrar os
músculos dos sonhos e renascer as utopias.
Sem o amor não
se poderia encontrar algum significado de uma mão que acena à
distância ante o reconhecimento de um semblante carregado de memória e
recordações a se afastar na velocidade de um trem.
Sem o amor as
bússolas perderiam o encanto de conceder orientação às almas em
busca de guia, de inspiração, de direcionamento. A agulha giraria
incessantemente, incapaz de reconhecer o norte, o sul, o leste, o oeste.
Sem o amor a
alegria do encontro seria uma alegria qualquer, podendo significar tanto
o encontro de duas pessoas que se viram pela primeira vez em uma praça
ou em uma rua quanto a de duas pessoas que sempre estiveram próximas,
compartilharam espaço e memória, tempo e convivência.
Sem o amor as
pontes seriam intermináveis, sem nunca conduzir ao objeto da viagem,
eternos deslocamentos de átomos que jamais se avizinharam de seu
núcleo, embriagados de falta de sentido e de direção.
Sem o amor as
estações do ano se sucederiam de maneira imperceptível, como o
acumulo de dias, semanas, meses e anos. Não se poderia falar que a
primavera era propícia para o desabrochar das flores ou que o verão
traria consigo os rostos felizes, banhados de sol.
Sem o amor os
sonhos careceriam de símbolos nunca poderiam ser mencionados por sua
absoluta falta de conteúdo. Uma noite com sonho seria exatamente igual
a uma noite sem sonhos, a tranqüilidade da carne estaria completa,
envolvendo um espírito ternamente adormecido, inconsciente de produzir
o mais leve despertar.
Sem o amor o
fogo perderia sua característica de fonte de luz e de calor e seria uma
simples chama a tremular na escuridão da noite, incapaz de atrair a
presença de mãos em busca de aquecimento. A lembrança de uma chama de
fogo teria a mesma densidade de um leve piscar de uma estrela adormecida
em alguma galáxia à espera de um primeiro raio de sol.
Sem o amor as
Esfinges egípcias não estariam contemplando até hoje cinco mil anos
de história, o Monte Carmelo em Haifa não estaria em movimento e
portanto não ofereceria repouso aos olhos de uma humanidade cansada da
ausência de seu Bem-Amado.
Sem o amor não
existiriam espetáculos no Coliseu Romano anunciando almas santas em
meio a leões famintos. E não existiriam mártires e santos,
visionários e sonhados com o semblante da Divindade.
Sem o amor
caminhar pelas ruínas da Acrópole teria tanto significado quanto
enfrentar um final de tarde em uma cidade adormecida. Seria como estar
navegando em Veneza em uma gôndola que nunca chega a lugar nenhum,
estar diante da Pietá de Michelângelo sem o mais leve apaziguamento da
alma, o mínimo reconhecimento de que algo de transcendente poderia
estar se passando no intimo do observador atento.
Sem o amor Mahal
Khan jamais teria construído ao longo de vinte anos para abrigar o
corpo inanimado de Mumtaz Mahal o belo Taj Mahal, envolvendo futuras
gerações nas longas noites de vigília em busca do sentido de amar.
Sem o amor
Homero jamais teria escrito a Odisséia e a Ilíada e nunca teria
existido uma mulher como Helena de Tróia e jamais Ulisses teria o sonho
de voltar a encontrar Penélope e Isolda e Tristão suspirariam para
sempre em vão.
Sem o amor
Thomas Morus deixaria de delinear um lugar chamado Utopia, Dante
deixaria de declarar seu amor por Beatriz, Erasmo não faria nenhum
elogio à loucura e Shakespeare não colocaria na boca de Hamlet e
questão do ser ou não ser.
Sem o amor todos
o poemas estariam condenados a permanecerem velados nos corações dos
poetas, como mármore bruto, cujo cinzel deslizasse sob a superfície
incapaz de produzir um contorno, um talho, uma saliência.
Sem o amor os
versos de Rimbaud e de Baudelaire, de Tennyson e Schiller, Heine e
Goethe, seriam destinados aos fundos das gavetas, ao amontoado de
inéditos que o pó do tempo empilha e soterra à medida em que a areia
atravessa a segunda metade da ampulheta. Camões não nadaria grandes
distâncias protegendo com um dos braços Os Lusíadas e Pessoa não
teria tido tempo para recordar do rio que atravessa sua aldeia. Drummond
não teria dado vida a José e nem teria recordado que no caminho havia
uma pedra e Bandeira jamais sairia de sua cidade para ir a Pasárgada,
onde era amigo do rei.
Sem o amor a
literatura jamais teria personagens como Romeu e Julieta, Heloíse e
Abelardo, Manjou e Liai. E nem os arroubos de paixão da Dama das
Camélias, os tormentos apaixonados do jovem Werther. Não existiria
jamais o encontro de Robin Hood com Maryam e nem Hal deixaria rolar uma
lágrima em seu contato na nave que atravessa o espaço de Stanley
Kubrick.
Sem o amor não
existiriam moinhos de vento para o fidalgo Don Quixote lutar na defesa e
amorosa proteção de sua Dulcinéa. Sancho Pança seria um enlouquecido
a mais na longa galeria dos inúteis da terra.
Sem o amor
jamais Anne Frank encontraria tempo para viver o que escreveria nas
páginas de seus diários e jamais nenhum leitor deixaria rolar pelas
faces o sinal da compreensão.
Sem o amor as
canções teriam sons, mas não teriam ritmo, teriam letras, mas não
teriam conteúdos, estariam aprisionadas nas partituras imaginadas e
não apresentadas.
Sem o amor os
acalantos perderiam seus encantos e nenhuma criança adormeceria
abençoados com a doçura da voz materna a lhe guiar pelos misteriosas
cidades da infância, nos longínquos países dos sonhos.
Sem o amor
Haendel não teria composto o coro do Messias, não haveriam vozes a nos
dizer que Ele é o Consolador, o Maravilhoso, o Príncipe da Paz e
nenhum tijolo e parede de uma igreja gótica vibraria a sonhar ante os
primeiros acordes da Ave Maria de Gounod ou dos primeiros compassos de
Jesus, Alegria dos Homens, de Bach. Nenhum ouvido se comoveria ao
escutar o Adágio de Albinoni se o amor não existisse.
Sem o amor
Beethoven não teria composto, totalmente surdo, a Nona Sinfonia e
Mozart jamais teria encantado ouvidos humanos com o Requiem, a Flauta
Mágica. Estaríamos satisfeitos com os feitos musicais de Salieri.
Sem o amor
jamais existiria uma távola redonda para Arthur encontrar os seus
cavaleiros e animar suas existências com o projeto de um dia encontrar
o cálice sagrado, o Santo Graal. A lealdade e verdadeira amizade
daqueles cavaleiros estariam para sempre sepultadas nas brumas e névoas
de Camelot.
Sem o amor os
contos de fadas jamais existiriam. Nenhum beijo despertaria a bela
adormecida, nenhuma abóbora se transformaria em carruagem, nenhum dos
sete anões seriam beneficiados com a protetora imagem da Branca de Neve
e não existiria jamais um país das maravilhas para Alice.
Sem o amor
Nijinsky e Isadora Duncan jamais pisariam em um palco para encantar nos
palcos dos corações o Lago dos Cisnes, A Flauta Mágica, o
Quebra-Nozes. Os teatros seriam vãos e vazios em forma e conteúdo.
Sem o amor os
Xamãs de todos os tempos não invocariam os deuses, as curas não
seriam efetuadas após os rituais sagrados, as palavras santas seriam
impronunciáveis, os corações estariam para sempre condenados os mesmo
batimento, sem a mais leve palpitação.
Sem o amor não
existiriam em Teotihuacán as pirâmides do Sol e da Lua a acumular
energias, nem Machu Pichu guardaria o segredo dos Incas ao longo dos
séculos. Lhasa não teria belos mosteiros de cujas janelas poder-se-iam
avistar lindas pipas coloridas protegendo a Potala. Masada seria uma
montanha a mais na paisagem do mar morto. Jerusalém não possuiria as
ruínas de um Templo para onde acorreriam legiões de fiéis do mundo
judaico em suas lamentações que uma glória que passou.
Sem o amor os
povos indígenas teriam sucumbido ao colonizador e o que foi um
encobrimento de civilizações seria para sempre recordado como um
descobrimento. Sem este amor para sempre a flor cultivada nos corações
do nobres indígenas teria sido engolida pela flor dos que com a cruz e
a espada faziam a nova semeadura. Esquecidos, sem qualquer vestígio ou
traço de sua existência, os indígenas seriam apenas peças de
exposição catalogadas nos diversos museus da Europa.
Sem o amor
ninguém se atreveria a pronunciar o nome da liberdade e ninguém
morreria por algo tão indizível quanto o espírito que viesse a
significar a palavra justiça.
Sem o amor a
diversidade humana estaria condenada a uma meia dúzia de povos que
teriam inscritos seus nomes na História com a tinta fresca do sangue
derramado por milhões de indígenas nas longas extensões da América
Latina, negros enjaulados nos porões de milhares de caravelas singrando
os oceanos, ciganos expulsos sucessivamente de tantos países do velho
mundo, latinos escravizados nas minas de carvão bolivianas e peruanas,
judeus concentrados em Auschwitz, Treblinka e Sobibor, bahá’ís
enforcados, fuzilados e queimados nas ruas de Teerã, Yazd e Isfahán.
Sem o amor
Gandhi não teria sonhado com a independência da Índia, não teria
produzido a revolução da não-violência, não teria ensinado que a
dignidade humana está acima da luta pelo poder.
Sem o amor
Zumbi, Luther King, Enoch Olinga, Steve Biko e Louis Gregory jamais
teriam proclamado que a única coisa que pode tornar um homem superior a
outro é a nobreza do caráter. As ruas de Memphis, Kampala e Soweto
jamais teria escutado algo tão doce quanto a idéia da unidade racial,
de que estes povos espezinhados são as pupilas negras dos olhos da
humanidade.
Sem o amor o
agricultor passaria o tempo sem lançar a semente à terra por não
saber qual o momento exato para se produzir o milagre da germinação da
semente. E a fome avançaria por todas as regiões com seus rostos
sulcados e olhos fundos, como ocorre em grande parte do mundo, partindo
do continente-mãe, a África.
Sem o amor
ninguém se atreveria a dedicar tempo e esforço, muitas vezes
sobre-humano na educação das novas gerações. A ignorância seria
confundida com a sabedoria, o certo teria o mesmo aspecto do errado. O
livre-arbítrio seria uma simples máquina de moer homens e almas.
Sem o amor a
mão que salva de um médico tremeria no momento de aliviar a dor humana
e uma simples incisão seria um ato supremo de decisão e cálculo. Os
milhões de enfermos nos leitos dos hospitais teriam seus dias
abreviados sumariamente.
Sem o amor o
inverno seria o prenúncio de mortes, com um dia a peste negra assombrou
a vida na Idade Média, e todos estariam destinados a desaparecer
petrificados e imóveis, sem qualquer serenidade aparente nos rostos.
Sem o amor cada
ser humano nasceria fadado a ter como companhia apenas a sua própria
solidão. Uma solidão muda. E dolorosa. Tão profunda e progressiva
quanto o avanço dos dias. Com a mente vazia de tudo, nenhuma pergunta
seria formulada pela absoluta falta de alguém para responder.
Sem o amor o
teto da capela Sistina existiria com tal esplendor e a escultura
representando David jamais teria recebido o comando de Michelangelo:
"Fala!". E Florença deixaria de ter a marca da genialidade
permeando cada metro quadrado e formando o impressionante conjunto de
esculturas e telas que, ao bater do cinzel na pedra ou a precisa
pincelada fazem a matéria vibrar e sonhar.
Sem o amor Da
Vinci não teria feito brotar o enigmático sorriso no rosto da Mona
Lisa, os girassóis de Van Gogh não estariam vestidos de amarelo, e o
Cristo de El Greco não teria um tom tão esverdeado. Faltaria a Picasso
a imaginação de denunciar com o manuseio dos pincéis a tragédia que
interrompeu milhares de vidas na cidade basca de Guernika.
Sem o amor o
murmurejar das águas na Fontana di Trevi e das correntezas do Niágara
deixariam de existir, havendo apenas a circulação das águas em mudas
procissões. As águas sagradas do Gânges seriam apenas as águas de um
rio a mais na geografia indiana.
REFLETINDO O ROSTO
DE DEUS NO CORAÇÃO HUMANO
A fonte de onde
brota o amor é revestida de poder e grandeza. E remonta a um tempo que
não tem início. E, certamente, também não terá fim. Enquanto
existir o leve piscar de uma estrela na imensidão do oceano eterno de
planetas, satélites, firmamentos, meteoros e pó, haverá aí
entesourado este sentimento pelo qual brota a vida, se anima a matéria
e depois, como chama se extingue.
O amor para se
realizar em toda a sua plenitude necessita do espaço propício de um
coração puro, bondoso, radiante. A pureza que emana do início das
coisas, seja uma primeira manhã da vida, seja um primeiro passo em
direção à independência, seja a articulação de uma primeira
palavra, seja a leveza com que o pensamento nos conduz à doce memória
do que existiu um dia. A bondade dos que se descobrem íntegros, coesos,
e sempre aptos a dar início à semeadura que poderá levar toda uma
existência. A radiância dos que se sabem passageiros transportando
formas de vida e mesmo assim sentem que sem partilhar, compartilhar, a
existência terá transcorrido em vão. Quando estas circunstâncias
são cumpridas um prêmio seguro adornará cada ser vivente. Uma visão
da Beleza: antiga, imperecível e eterna.
Desde o
princípio dos tempos o amor mantém um caso com a justiça. Esta se
sente a virtude mais amada. E o é. Quando um coração ama, se sente
acariciado pelas expressões do que é justo. É a justiça uma causa
impulsora de atitudes. Ela concede ao amor o benefício da visão e
somente aceita aquilo que é visto com seus próprios olhos. Ela concede
o dom da compreensão que interliga os relacionamentos, que sedimenta a
teia de fios com é tecido o amor. A história humana está repleta de
vidas aguçadas com um sentimento de urgência. São vidas que não
hesitam em ser sacrificadas se perdem o gosto do bom combate pelo que é
justo, o que é certo, o que é correto. Vive-se com o coração na mão
e com a justiça no lado esquerdo do peito. Um coração que ama não
ama impunemente: a justiça é sua sentença. E para este sentenciado
nada de mais belo pode existir que trocar os nomes amor e justiça
quando se lhe pergunta porque estás vivendo ou porque estás morrendo?
O amor está na
essência de Deus. A criação só deu o ar de sua presença porque
antes sentiu-se na presença do amor de Deus. O momento indizível e
mágico em que o ser foi criado foi aquele primeiro momento em que a
Vontade de Deus movia-se no mundo. E dentro de cada ser humano foi
colocada a imagem de Deus. É desta imagem que decorrem todas os
pensamentos, as expressões, os gestos de amor. Uma vez revelada no ser
humano a Imagem, gerou-se este sentimento que atende pelo nome de
paixão. Revelou-se o que antes estava oculto em um Ser imemorial e
entesourado na eternidade antiga da Essência criadora.
A alma humana
seria um deserto se não estivesse destinada a ser inundada com o
espírito da vida. Esta inundação que traz-nos a imagem de águas em
movimento têm seu movimento graças às ondas de amor que fluem do
Criador à criatura e desta retorna a Ele. Impossível imaginar um amor
que desemboca em uma única e mesma direção. Flui e reflui. Seria o
amor completo se, por exemplo, no coração de Abelardo não existisse
um vazio a ser preenchido exatamente pelo amor de Heloísa? Teria
existido o teto da capela Sistina sem que o espírito da divindade
estivesse localizado no trono do coração de Michelangelo?
Cada ser vivente
está destinado a ter experiências humanas, embora tenha existência
divina. A falta dessa perspectiva divina da existência conduz ao
desespero, à solidão, à dor de se sentir só em meio a uma multidão
que avança na direção contrária. Sem um sentido mais elevado para a
vida o resultado não poderia ser outro que o vazio de todos e de tudo.
Como uma mãe que segura a mão da criança na estação deve estar
ciente que não convêm criar laços de amor com a estação, suas
paisagens e utilidades. Eles em breve não mais continuarão ali. Um
trem, um ônibus os aguarda para levar a um outro destino, a uma outra
meta. Tudo que causa infelicidade a um ser humano tem origem no apego e
atenção demasiada às coisas secundárias provenientes de nossa
tendência a fincar raízes no transitório, no mutável, no que não
tem existência absoluta. Ou seja, no ilusório. Como o paciente que
responde ao médico que trata de sua visão que a última lente
apresentada está ótima, embora esteja vendo apenas os contornos de um
ponto focal. O destino humano é encontrar-se com seu Criador. E para
isso poderá vagar pelo mundo tanto tempo quanto seja necessário. Estar
a caminho Dele é ter um propósito para a vida. Os trens e os ônibus
na estação teriam escrito no lugar onde se anuncia o nome da cidade a
que se dirigem, a palavra Deus. O paraíso é estar consciente disso e o
inferno, o oposto.
A história dos
santos pode ser entendida como sendo a história dos efeitos do amor que
arrebata corações, homens e mulheres, que se sobressaem em seu tempo.
A história dos iluminados, aqui em uma visão oriental, é a mesma
história. O paraíso e o nirvana são designativos de um mesmo estado
da alma. Utopia para Morus ou Shangri-la para Hilton, nos dois o ideal
de amor e justiça se entrelaçam. Nunca se viu um santo que tenha
dedicado toda a existência a se autopromover, a buscar a felicidade
individual pura e simples, a se mostrar como um farol de luz a guiar os
errantes na longa noite da descrença. Os santos se destacaram por algo
muito simples: Não se prenderam a si mesmos. Buscaram cumprir a vontade
divina sabendo que para isso a primeira condição a ser sacrificada
seria a própria vontade humana. Presos no laço do amor de Deus se
elevaram a uma consciência toda-abrangente da liberdade. Quanto mais
nasciam em Deus mais morriam em si mesmos. Era necessário explodir o
reservatório dos desejos humanos para ter apenas um desejo: saciar a
fome de Deus. Quem foram os santos? Na maioria das vezes, gente comum,
simples, com as pequenas glórias e também as pequenas tragédias que
amanhecem ao longo da trajetória humana.
Este século,
corretamente designado por um sábio persa como o século da luz, tem
sido o século da busca desenfreada da paz. Busca-se paz de espírito a
qualquer preço. Surgem e desaparecem teorias, ginásticas para a alma,
massagens para os egos fragilizados, teorias para as mentes em busca do
autoconhecimento. Busca-se paz entre as nações, embora os que declarem
as guerras assim o façam com um pretenso objetivo de alcançar a paz.
Um século que viu duas grandes guerras mundiais e centenas de conflitos
internacionais é prova suficiente de que algo de muito errado ocorre na
essência da ordem jurídica mundial. Cada vida interrompida na
Alemanha, no Vietnã, na Bósnia ou no Kosovo, é um atestado
inquestionável de que não se construiu ainda um meio-ambiente adequado
para o estabelecimento de uma paz duradoura. Sendo uma nação o
somatório de indivíduos com determinadas características comuns -
como a língua, a história, a cultura - pode-se afirmar que como os
indivíduos estavam desde há muito construindo, muitas vezes sem o
saber, os conflitos, as guerras, a inabilidade para se ser feliz em
sociedade. Se um indivíduo não se sente motivado a renunciar a si
mesmo por algo maior, transcendente, que podemos esperar de uma nação
que comporta uma maioria esmagadora de indivíduos com este perfil de
compreensão da realidade da vida?
Nada é mais
descartável que o coração incapaz de discernir o que tem sabor de
eternidade e o que apresenta o gosto da transitoriedade. Em tempos de
comunicação global o acesso ao sentimento de pertencer ao mundo torna
necessária a figura do provedor. Para entrar na grande teia é
necessária, por sua vez, o atendimento a algumas condições do
provedor. Para se sentir plugado, conectado com o amor de Deus é
necessário acessá-Lo. Todas as condições atendem por um mesmo nome:
amor. É através do amor que se provê uma senha de acesso. Uma vez
impregnado desse amor pode-se dizer participante de uma grande família,
a humanidade. É a grande teia assumindo novos contornos, mas contornos
tão antigos quanto aquele momento em que se pronunciou "Sê"
e tudo veio à existência. Os que entram na grande teia divina, enviam
e recebem emanações poderosas de amor. Quem entrou se sente salvo e
seguro. Existiria maior aspiração? Quem não entrou se sente um
estrangeiro dentro de seu próprio lar. Um intruso dentro de seu
próprio coração. Existiria maior desconforto?
A proximidade da
alma amante com a Fonte de Amor é dependente da relação de confiança
existente entre ambos. Estamos seguros e protegidos quando o Objeto de
nosso amor é de longe muito superior a nós e ao somatório de nossas
forças e fragilidades. Reconhecer esta relação de puro amor é a base
de nosso edifício interior.
Como
reagiríamos se um dia nossa mãe nos olhasse nos olhos e nos dissesse
com ternura: "Ó Filho do Ser! Tu és Minha lâmpada, e Minha
Luz está em ti... ? Para que serve a luz senão para afastar sua
própria inexistência, a escuridão? Quem se levanta durante a noite
para nos acalentar, quem nos alimenta a qualquer momento com seu
próprio seio, quem nos conduz pela mão e amortece as primeiras quedas,
quem nos estimula a articular os primeiros sons com significados é esta
mesma mãe que um dia colocou sua luz dentro de nós. E agora, se Deus
continuasse estas palavras nos fitando nos olhos através dos olhos de
nossa mãe dizendo "...te criei rico e generosamente derramei
sobre ti as Minhas graças..." ? Que outra forma de vida na
natureza foi criada com tanto requinte, opulência, abundância de dons
e virtudes que o homem, a mulher? A luz da consciência não foi
concedida nem à pedra e todo o reino mineral e nem à planta e todo o
reino vegetal e nem ao pequeno bem-te-vi e todo o reino animal. Nenhum
desses reinos da criação receberam o aparato próprio para a
comunicação. Nenhum recebeu a idéia da divindade, as conseqüências
do uso do livre arbítrio, as concepções de moral, ética, justo, bem,
mal. E, ainda mais, nenhum dos reinos inferiores da criação de Deus
recebeu a capacidade de dizer: É tudo muito bonito e maravilhoso, mas
duvido que exista um Deus, um Criador.
Com que mãos
fomos criados? Hábeis, sem dúvida. E cheias de poder tão imensas são
as possibilidades da criatura. Se o corpo tem sido algumas vezes
mencionado como a mais perfeita máquina, com complexos sistemas - do
respiratório ao circulatório, da articulação dos sons à
articulação dos movimentos e assim por diante - que poderia ser dizer
sobre este laboratório que chamamos de mente? É neste laboratório que
Deus colocou a essência de sua luz. É de lá que se manifestam dons,
talentos, atributos. Quando bem utilizada gera genialidade. Quando pouco
utilizada ou mau utilizada gera mediocridade. Alguém consciente de tão
formidáveis poderes sem dúvida estaria sempre em estado de completo
contentamento e como a mariposa em volta da lâmpada estaria circulando
em êxtase de adoração a Deus, a fonte primeira, a antiga beleza.
Reconheceria também a perfeição com que fomos criados: nem mais nem
menos que à imagem e semelhança do próprio Criador.
A maior riqueza
consiste em se estar consciente dos muitos dotes com que viemos ao
mundo. E a maior pobreza é estar desatento à extensão dessa riqueza.
Podemos agir como filhos pródigos: gastar tudo o que temos e depois
retornar ao pai. Podemos ser como outros filhos que ao longo da vida
conseguem multiplicar o que receberam ao nascer. A ausência de
nutrientes espirituais atrofiam a vida interior. Um desses nutrientes é
a oração. Outro, a meditação. Ainda outro, o jejum. Os três
nutrientes quando reunidos e colocados sob o fogo da vontade humana
produzem as ações inegoísticas, o sincero anseio de servir aos
demais. Nestes e em outros nutrientes encontram-se as vias de acesso à
divindade. É através dessas vias de acesso que se multiplica a riqueza
recebida no berço. O contrário é o desperdício, o empobrecimento da
alma humana, o apequenamento do espírito humano. Costuma-se pensar em
anjos como realidades exteriores. Eles são interiores, estão à flor
do coração prontos para voar pelos infinitos espaços do coração
humano. Nesses vôos descobrimos que o barro com que fomos criados não
era um barro qualquer. Era a argila do amor.
No oceano do
amor divino vagamos como peixes inebriados por sua luz. No entanto este
estado de inebriamento pode sustar ante o canto das sereias do efêmero,
do transitório, do que perece. Como o viajante que atravessou os sete
mares, às vezes, falta-nos cruzar apenas sete metros de uma ponte que
nos liga ao Bem-Amado. E caímos desfalecidos. É para este sete metros
que precisamos nos preparar: o cansaço da existência não deve ser
tão imenso quanto o desejo de encontrar o Objeto da busca, aquele que
nos guiou pelos sete mares, que animou-nos a existência com o simples
vislumbre de que estaria próximo de nós. Como os cavaleiros da Távola
Redonda, temos um compromisso de encontrar o Cálice Sagrado. Ele se
encontra em algum país de nosso ser interior, encastelado em alguma
fortaleza de nossa alma imortal, recluso em alguma masmorra de nossos
desejos, isolado em alguma fronteira que nos impede de ver todos com a
mesma luz da unidade. Em nenhum momento devemos deixar de lado a visão
do domínio de onde partimos, a candeia com a luz que nos levava nos
caminhos seguros, a glória que nunca se extinguiria como uma glória
que passou e nem poderemos deixar de lado a vestimenta que jamais se
desgasta. É o coração puro, bondoso e radiante o domínio
imperecível. É a luz do espírito a guardiã de nossos pensamentos e
ações. É a glória de Deus o alvo de nossa adoração. É a
vestimenta de um caráter nobre a roupagem que jamais se desgasta.
Todo esforço
humano só tem sentido se for direcionado para identificar os traços de
Deus ao longo da caminhada onde rostos se multiplicam e assumem
contornos familiares. Dedicar afeição a algo transitório, como uma
propriedade ou qualquer emanação do mundo da matéria é viver em
vão. O gosto de Deus é o gosto da eternidade. A visão de Deus é a
visão de um tempo que não tem princípio até um fim que não tem fim.
É voltar a bater insistentemente na porta do conhecimento de Deus e
quando Ele nos pergunta "Quem és?" a resposta não pode ser
"Sou eu" mas sim "És tu, Senhor!". Esta é a senha
que abre os caminhos místicos: o esquecimento de si mesmo, a
recordação refrescante de que Deus habita nosso coração.
Todo esforço
humano só tem sentido se for direcionado para identificar os traços de
Deus ao longo da caminhada onde rostos se multiplicam e assumem
contornos familiares. Dedicar afeição a algo transitório, como uma
propriedade ou qualquer emanação do mundo da matéria é viver em
vão. O gosto de Deus é o gosto da eternidade. A visão de Deus é a
visão de um tempo que não tem princípio até um fim que não tem fim.
É voltar a bater insistentemente na porta do conhecimento de Deus e
quando Ele nos pergunta "Quem és?" a resposta não pode ser
"Sou eu" mas sim "És tu, Senhor!". Esta é a senha
que abre os caminhos místicos: o esquecimento de si mesmo, a
recordação refrescante de que Deus habita nosso coração. A essência
do mandamento divino é o de que para comungar com o Espírito Divino é
necessário o completo esquecimento de tudo o mais: de si mesmo, do
mundo, de suas circunstâncias.
O prazer, a
satisfação, o sentimento de bem-estar, a plenitude do coração, a
tranqüilidade do corpo somente são completos se há o encontro entre o
buscador e o Objeto da busca, entre O que cria e aquele que é criado,
entre o amante e o Amado. Para saciar a sede nada mais adequado que a
água. Para saciar a sede que irrompe no espírito fatigado em busca de
meios para se satisfazer nada mais totalizador que o Próprio Deus. O
vazio da existência humana tem as exatas dimensões do tamanho de Deus.
E somente Ele tem a forma de chave mágica a abrir a porta do coração
e da felicidade humanos. Deus se torna insaciável à medida em que o
coração se dilata em crescente desapego do que existe na terra, no
céu e entre eles. É um amor multiplicador: quanto mais pede mais
recebe, quanto mais busca, mais encontra, quanto mais ama mais é amado.
E se desconhece algo como limitação, fronteiras e finitude,
Muito daquilo
que chamamos de vida ou de felicidade na vida parece ser uma sucessão
de desencantos e desilusões, de desacertos e de frustrações. Como a
criança pequena que pede ao pai que lhe entregue as chaves do carro
para sentir o que é estar dirigindo, a grande maioria de nossos pedidos
a Deus refletem nosso completo desconhecimento do verdadeiro propósito
da vida. E continuamos pedindo a Deus tudo o que Ele desde a nossa
criação classificou como indigno para a natureza humana. Poderia o que
é puro espírito se contentar com um breve traço de matéria? Somos
espírito e estamos no ápice da criação divina, dotados de Sua
semelhança. Tudo o que não contribui para aumentar tal similitude nos
será recusado pela Providência. E esta recusa chega a nós, muitas
vezes, no auge do desespero, na forma de lágrimas amargas de desilusão
com a divindade. A questão fundamental é somente suplicarmos ao nosso
Bem-Amado aquilo que nos foi ordenado por Ele que é, certamente, aquilo
que nos dará proveito e provará ser fonte de regozijo, júbilo e
contentamento ilimitados. É o amor que impulsiona nossa alma a acatar
com a vontade divina. Lembro que em nossa finitude e visão limitada de
criatura encontramos dificuldade em conviver, dia a dia, com o infinito
e irrestrito que é a ter a experiência do Sagrado.
O que Deus busca
em nós, já que todo o nosso ser busca por Ele? O reconhecimento
daquele sopro de Seu Espírito soprado sobre a argila do amor que se
animou, vibrou, sonhou e virou ser. O sopro de Deus na alma humana
contem todos os dias de nossas vidas, nossos sonhos, nossas percepções
desta e de outras realidades. É por causa deste sopro primordial que
saímos de nós mesmos em busca Dele. É por causa do mesmo sopro que
retornamos a nossos corações de onde jamais deveríamos Ter saído
para encontrá-Lo ali na soleira da porta nos aguardando. Partimos em
busca Dele mas Ele continuou onde sempre esteve: em nós, permeando
desejos e aspirações. Um homem e uma mulher podem percorrer o imenso
espaço entre Kathmandu no Nepal e Machu Pichu no Peru e no entanto
falhar em percorrer o mais extenso espaço entre o coração que ama e
aquele que não sabe o que é o amor, entre o que é Espírito e o que
não passa de matéria. Entre o que é imutável e eterno e o que é
mutante e perecível. Entre a mão que afaga e abençoa e aquela outra
que empunha a metralhadora a dizimar vidas. Sair em busca de Deus só
pode ser uma empreitada exitosa se Deus nos acompanha pois a qualquer
momento da viagem deve ser reconfortante sentir que Ele está conosco
desde nosso primeiro esforço, nosso primeiro passo, naquela direção.
O esquecimento
está cheio de memória. Podemos esquecer por Quem fomos criados mas a
realidade das coisas gravou aquele instante maior que nem a poeira dos
astros pode obscurecer ou a revolução dos séculos nublar. Uma vez que
Ele escolheu nosso coração para fazer sua morada: temos então um
Criador com endereço certo e conhecido. Ele não vaga em nossas
existências como uma carta em busca do destinatário. Cada sentimento
humano que é permeado com o amor de Deus eleva-se ao coração e lá
encontra a doçura da verdadeira comunhão. Como está a construção de
nossa catedral interior? E os minaretes de nossa mesquita espiritual e
os rolos contendo as escrituras sagradas de nossa sinagoga de
transcendência? Aos olhos mortais permanecerão ocultos mas para o que
descobriu sua maravilhosa visão é a única realidade palpável. Nunca
esteve velado desde o primeiro tijolo e desde a primeira pá de cal. A
luz que habita o coração que ama jamais será obscurecida porque é
plena a graça a nós concedida, mesmo que estejamos inconscientes
disso. O que é memória real jamais comportará um único sentido de
esquecimento.
A existência
humana pode ser comparada a uma árvore frondosa da qual pendem os mais
excelentes frutos. Em uma estação produzirá a maçã do amor, em
outra o pêssego da tolerância e em outra as goiabas da inocência.
Esta árvore está sempre florida e cheia de frutos. Os sabores são
únicos e inconfundíveis. Em todos se degusta a doçura do amor de
Deus. Por que buscar saborear outros frutos de árvores que nunca
alcançam o estágio da frutificação e nos apresentam apenas breves
momentos de ilusórias florações? A terra na qual foi lançada a
semente é a terra pura do ser. O adubo com que se aqueceu a semente
não foi outro que o calor dos braços do Criador a nos envolver até o
mais íntimo de nossa realidade maior, etérea, incontível. As águas
que jorraram para propiciar-lhe o crescimento não foi outra que as
emanações do Verbo divino. É assim que as ovelhas continuarão sempre
reconhecendo a voz de seu Pastor e apressando-se em sua direção.
Somos criados
para conhecer e amar a Deus. Qualquer outro objeto de nossa atenção e
de nossas ações terá sempre a marca do vazio e do secundário.
Elevar-se para cumprir com o propósito da criação é a única meta
possível. E a única certeza que podemos alcançar é a de que Ele é
realmente insaciável.
A vida passa
depressa demais ante nossos olhos. Esta pressa impede que vejamos uma
multidão de pessoas que em algum momento esperaram mais de nós do que
conseguimos dar. E certas instâncias da vida, quando pensamos que o
mundo interior está em ordem, equilibrado, somos tentados uma e mil
vezes a agir segundo outros padrões. O desejo de seguir os padrões dos
outros é sempre muito forte. Esquecemos (e depois teremos um bom tempo
para nos arrepender) que quando temos uma visão clara sobre nosso
destino espiritual os demais atalhos sofrem da doença própria do que
é efêmero. Uma voz nos chama do alto para o que é eterno. A nossa
resposta parece sinalizar na direção oposta. Prendemos o coração ao
que não vale a pena. Encantados com a doce melodia do flautista
parecemos dedicar amor à flauta. O flautista nos observa à distância,
aguardando uma nova tomada de posição. Um envelope existe para ser
rasgado tão logo a mensagem nele contida esteja nas mãos do
destinatário. A mensagem contem o gosto do que vai ficar instalado em
alguma parte da memória – afetiva, emocional, racional. Um é
atraído para o transitório e o outro para o senso de permanência. A
vontade humana está para o envelope assim como a vontade divina está
para a mensagem. E não há meio termo.
O sentido das
palavras assumem outras formas à medida que o tempo avança. O que é
liberdade? O que é amor? O que é ética? De uma certa maneira são
utilizados padrões de julgamentos que não transponham a natureza quase
sagrada que a ausência de limites impõe no ordenamento da vida em
sociedade. Liberdade passa a ter um componente do tudo é permissível
desde que me sinta bem e feliz. Amor é uma idéia razoável enquanto
não existir comprometimento, mais à sombra do deus grego Eros que à
visão milenarista judaico-cristã. Ético é um conceito que varia de
sociedade a sociedade, de cultura a cultura e pode ser visto como um
conceito-ônibus onde novos (e surpreendentes) significados podem vir à
tona a qualquer momento. Quando o ser humano transpõe seus limites algo
se perde dentro dele. Há uma inversão de valores em que a natureza
humana é nivelada por baixo. E perde-se o senso de dignidade. O amor a
Deus é o grande catalisador do senso de dignidade. O que é digno tem
uma relação direta com a compreensão do propósito e fim da vida
humana.
Quem ama
encontra em cada semelhante uma porção do sagrado, um traço do
Bem-Amado, uma centelha da divindade. E esse amor detona a idéia de
superioridade social, racial, étnica, cultural. Ante Deus ninguém há
que O rivalize. Com diz a oração: "Todos são seus servos e todos
aquiescem ao seu mandamento." A mais elevada condição no reino
humano é a da completa servitude ao próximo e aquele que serve não
ousa se sentir superior a quem busca servir. Somente com o olho do
espírito pode se contemplar o olho de Deus no próximo. Essa
compreensão assimilada impede o enaltecimento de um em relação a
outro pois implica em arrogância e orgulho ante o próprio Criador.
A carência de
procedimentos de autoavaliação impede-nos de nos ocupar com nossa
própria evolução neste mundo de contingências. Nesse vácuo
instala-se a cultura do julgamento, onde uma pessoa se sente motivada a
emitir juízos de valor sobre outrem. Com os agricultores aprendemos que
somos responsáveis pelo nosso arado e este para poder seguir na trilha
certa em que foi lançada a semente necessita de atenção e esforço
contínuo e concentrado. À medida em que alguém deixa de estar atento
ao seu arado para se ocupar com o arado alheio a sua própria vida perde
em substância, uma vez que não há quem diga se o arado continua no
sulco correto, fazendo o que tem que ser feito. Quem ama esquece as
faltas dos demais e concentra-se nas suas próprias. É um seguro contra
a idéia do faça o que digo mas não faça o que eu faço.
Uma palavra
proferida com amor tem um poder celestial e transcendente. A palavra que
tem influência é aquela que se articula mediante um pensamento prévio
de amor. É esta palavra que devemos manter sagrada. As palavras
sagradas têm o poder de infundir uma nova vida no coração humana e
elas estão recolhidas nos grandes tratados de amor que são os Livros
Sagrados da humanidade. Com o Bhagavad-Gita e o Antigo Testamento uma
nova canção acalentou a infância do mundo em seis mil anos de
história escrita. Com o Novo Testamento e o Alcorão, o primeiro amor
foi revelado a uma humanidade adolescente, em busca da maturidade. Com o
Tri-Pitakas e o Kitáb-i-Aqdas um novo patamar de relações entre o
Criador e a criatura foi introduzido. Em todos estes Livros uma palavra
permanece imutável como um oceano movido pelas brisas de um atento
Criador: o amor. E o amor como oceano se prepara para receber todas as
demais virtudes: são afluentes de rios se dirigindo a ele e comungando
da experiência da vida. Cada coração que mantem sagrada a sua palavra
encontra um novo alento para a existência.
Amar é viver
eternamente. Para os que não possuem o consolo de uma fé, a morte é o
fim de tudo. Pensando assim, devemos aproveitar ao máximo tudo que
estiver ao nosso alcance, ultrapassando os limites, considerando o bem
individual superior ao bem coletivo. Se a morte é o fim de todas as
coisas e se a vida é, "a arte seja longa e a vida breve",
parece ser razoável assumir a função do experimentador contumaz. Há
sempre a esperança de que tudo o que se experimenta pode ser colocado
de lado, sem maiores danos a nossa vida interior, espiritual, emocional.
Quem ama vê com alegria e júbilo a possibilidade de não mais estar
limitado a um corpo físico e se sente tentado a empreender novos vôos
em busca de plenitude e felicidade. Para esse últimos a morte é apenas
o rito de passagem de um estado de consciência para um outro, mais
elevado e mais pleno. Podemos agir como o homem da caverna (de Platão)
que não suporta o esplendor da luz tão acostumados estiveram seus
olhos à escuridão e no qual a claridade em excesso cega tanto quanto a
mais densa escuridão ou optar por ser como aquele que consente em
sentir o desconforto do excesso de claridade por acreditar em uma nova
forma de ver. A morte do cego anuncia o nascimento daquele que realmente
vê. Nada mais patético que chorar a morte de uma aparente forma de
vida enquanto ao mesmo tempo ouve-se o som do novo ser que renasce.
Todo amor tem um
certo aroma de santidade. A união e a fusão é o fim dos que amam. A
união de afinidades, a fusão de sentimentos. É o amor que se exercita
na lapidação das diferenças e na criação do ponto de equilíbrio
entre duas almas, entre dois espíritos, entre duas vontades, entre dois
amantes. O amor genuíno espera transcender a alegria do encontro para
estabelecer uma conexão com o sagrado que o ser humano traz consigo.
Há um grito silencioso irrompendo do coração que ama. Há uma
porção de santidade respondendo do coração amado. Quando estão na
mesma freqüencia, a comunicação além de perfeita é feita de ondas
cheias de alegria e êxtase, um segundo tem a duração do século, um
século tem a duração do segundo. Se somos chamados à corte da
santidade, apressemos o passo: é esta a direção.
O semblante de
Deus é todo esplendor, é todo luz, é todo brilho. Um esplendor que
não se esvai, uma luz que jamais se extingue, um brilho de infinitos
olhos sobre a criação. Com este semblante sinalizando as trajetórias
humanas torna-se imperativo não se desviar e muito menos se privar da
luz. Na longa noite da solidão humana Deus tem velado à espera da
resposta daquele coração que continua a emitir pedidos de socorro,
busca de refúgio, abrigo em meio às tempestades. Quando as orações
explodem em súplicas e cânticos nos lábios há sempre um Deus
generoso a atendê-las antes mesmo que sejam formuladas. Antes de serem
pronunciadas as orações tornam-se reféns do amor e as ondas amorosas
nos corações chegam a Deus antes da articulação das sílabas e dos
sons. Por isso Ele responde a todas as orações. E a resposta pode ser
um claro não, um benfazejo sim ou um simples aguarde.
Se somos
impelidos a decidir entre o céu e o inferno, optamos com rápida
determinação pelo céu. São os dois estados d’alma. Estão os dois
ao nosso alcance. Terminam sendo os prêmios que recebemos por nossa
intenções e gestos. O céu, o paraíso, o nirvana é em essência o
lugar em se encontra nossa alma em relação a Deus, nosso Mais Amado. O
inferno, a depressão, a solidão mais profunda da alma, são em
essência a distância com que temos nos afastado de Deus, o Mais Amado.
Quanto mais avançamos para Deus mais o céu chega perto de nossos
espíritos e protegem nossas vidas. Quanto mais nos afastamos de Deus
mais mais se distancia o céu e esta distância e o inferno que se
aproxima de nós. A ausência do céu é o inferno. A ausência do Bem
é o Mal. A ausência do amor é o vazio como a ausência da vida é a
morte.
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