
Diálogo sobre a amizade
Cícero
Capítulo I
DAS RAZÕES QUE
DETERMINARAM A CÍCERO ESCREVER SOBRE A AMIZADE
Quinto Mucio, o
aúguro, costumava falar sem cessar de seu sogro, C. Lucio e, em
suas narrativas, fiéis e cheias de graça, não hesitava em lhe
dar o nome de sábio. Desde que vesti a toga viril, fui dedicado,
por meu pai, a Escévola, de modo que tanto quanto podia e
me era permitido, não me distanciava jamais deste velho. E por
isso, dissertações sábias, sentenças curtas e engenhosas, tudo
recolhendo de sua boca, gravava-o em minha memória, e procurava
enriquecer-me com a sua ciência. Após a sua morte, de
dediquei-me a Escévola, o pontífice, de quem não temo declarar
que era o homem mais eminente da nossa cidade, por suas luzes e
por sua justiça. Mas deste falarei depois. Voltemos ao áugure.
Lembro-me, entre
outras coisas, que assentado um dia, segundo o seu costume, em seu
hemiciclo, com alguns amigos, no número dos quais eu me
encontrava, veio a discorrer sobre um acontecimento que então
andava na boca de toda a gente. Lembrai-vos, Ático, e mais perlo
freqüente trato que mantínheis com P. Sulpicio, que surpresa e
que descontentamento explodiram em Roma quando este tribuno do
povo declarou ódio mortal a Q. Pompeio, então cônsul, com o
qual ele tinha vivido até então na mais estreita e mais viva
amizade.
Este fato deu a
Escévola ocasião de nos contar um entretenimento que Lelio teve
sobre a amizade com ele e com seu outro genro, F. Fanio, filho de
Marco, poucos dias antes da morte de Cipião o Africano. Retive os
pensamentos em minha memória, e os expus neste tratado, a meu
modo. Fiz calar os personagens mesmo, para não entrecortar
continuamente o discurso com estas palavras: eu disse e
ele disse e para que se possa crer na presença dos
interlocutores. Freqüentes vezes havei-mes premido, querido Ático,
para escrever sobre a amizade e este tema me parece igualmente
digno de atenção do público e da intimidade que reina entre nós.
Decidi-me, pois, sem esforço persuadido de que, cedendo às
vossas instâncias, faria ao mesmo tempo uma obra útil a muita
gente.
No Catão, o
antigo, que escrevi para vós e onde tratei da velhice, pus em
cena o velho Catão, porque nenhum personagem me parecia mais próprio
para falar desta idade do que aquele que tinha sido velho tanto
tempo, e que, na mesma velhice, ilustrou-me mais do que
qualquer outro. Assim, agora, amizade de Lélio e de Cipião
tendo sido, no dizer de nossos pais, mais que qualquer outra,
digna de memória, pareceu-me conveniente pôr na boca de Lélio
esta dissertação que Escévola recordava ter-lhe ouvido fazer.
Este gênero de discurso, assim sustentado pela autoridade dos
homens do passado e dos mais distintos, parece, não sei
como, adquirir mais gravidade. Por isso, quando releio a minha
obra, sou muitas vezes sustido na ilusão a tal ponto de crer que
é Catão quem fala e não eu.
Era então um
velho que sobre a velhice escrevia a um outro velho: assim hoje,
é um amigo muito dedicado que escreve sobre a amizade a seu
amigo. No primeiro, é Catão quem fala, porque é o homem mais sábio
e talvez mais velho de seu tempo. Agora, é Lélio o sábio
(porque este é o seu sobrenome) e o amigo célebre, quem trata da
amizade. Agora, imaginai, por um instante, não pensar em mim, e
crede ouvir o próprio Lélio. - C. Fanio e Q. Mucio Escévola vem
para a casa de sue avô após a morte do africano: ele começam a
palestra. Lélio lhes responde: todo o seu discurso refere-se à
amizade. Lendo-o, vós vos reconhecerei nele.
Capítulo II
EM QUE CONSISTIA A
SABEDORIA DE LÉLIO. O ELOGIO DE CATÃO
FANIO. Tendes
razão, Lélio. Nenhum homem foi melhor nem mais ilustre que o
Africano. Mas deveis pensar que agora todos os olhos se viraram
para vós: só a vós é que se olha como sábio, e só a vós que
se chama por este nome. Nos nossos dias, M. Catão obtém também
este título. Sabemos que, nos dias dos nossos pais, Atilio foi
chamado o Sábio. Mas ambos deveram este sobrenome a méritos
diferentes: Atilio deveu-o ao seu conhecimento profundo de direito
civil e Catão à sua imensa experiência. Que de vezes, com
efeito, no senado e no fórum, ele brilhou por sua admirável
previdência, por sua firmeza na ação e por suas vivas réplicas!
Citava-se-o por toda a parte e é assim que na velhice ele possuía
já, por assim dizer, o cognome de sábio. Porém, vós,
merecestes este título de outro modo: não somente por vossas
qualidades naturais e vosso caráter, mas, também, por vossos
estudos e princípios. Sois sábio, não como o entende o vulgo,
mas como o compreendem as pessoas instruídas e como mesmo na Grécia
nunca existiu (porque para esses juizes delicados os que se chamam
os sete sábios não contam no número de sábios.) Em
Atenas, não houve diz-se, mais do que um: é aquele que o oráculo
de Apolo declarou o mais sábio dos homens.
Vossa sabedoria,
para vós, tal como se julga, consiste em colocar todos os vossos
bens em vós mesmos e considerar a virtude como superior a todos
os acontecimentos humanos. Assim, pergunto-me, e a Scévola também,
creio, como suportais a morte do Africano, sobretudo porque
notou-se que nas últimas nonas, quando nos reunimos todos nos
jardins de Bruto o áugure, para as nossas conferências ordinárias,
estivestes ausente, vós que até então fostes o observador mais
exato desse dia e desse dever.
SCÉVOLA. Sim, Lélio,
muitas pessoas me interrogaram, como disse Fanio: e eu lhes
respondi o que já notei, que suportastes com moderação a dor
que vos causou a morte de um tão grande homem e de um amigo tão
caro.
Que não
pudestes ser afetado, o que foi contrário à sensibilidade do
vosso coração, e que se nas últimas nonas não pudestes
assistir à nossa conferências, é preciso atribui-lo à vossa saúde
e não ao excesso da vossa aflição.
LÉLIO. O que
dizei é verdade, Scévola, e tendes razão. Eu não podia, por
uma dor que me era pessoal deixar distrair-me de um dever que
sempre cumpri, tanto quanto a saúde me permitiu, e não penso
que, em qualquer caso, um homem firme possa ser autorizado a
interromper suas funções.
Para vós, Fânio,
quando me atribuís uma glória bem superior a que eu mereço e
reclamo, não ouvis senão a voz da vossa amizade por mim. Mas
parece-me que julgais mal a Catão. Ou jamais houve sábio neste
mundo, que é o que me inclino a pensar, ou se houve, foi
Catão. Para citar apenas um só caso, como suportou ele a morte
de seu filho! Ouvi falar de Paulo Emílio e vi Galo, mas
eles perderam filhos crianças e Catão perdeu em seu filho um
homem feito e já provado.
Guardai-vos,
pois, de considerar qualquer pessoa acima de Catão, mesmo aquele
que Apolo, segundo o vosso entender, declarou o mais sábio
dos homens, pois de Sócrates louvam-se as palavras, e de
Catão as ações. Quanto a mim, e agora dirijo-me a vós ambos,
eis o que deveis pensar.
Capítulo III
A MORTE NÃO FOI UM
MAL PARA CIPIÃO. AS VIRTUDES DESTE ROMANO.
Se eu disser que
não fui afetado pela perda de Cipião, ficará aos sábios o
resolver a que ponto tenho razão nisto. Mas, certamente,
mentiria. Com efeito sofro ser privado de um amigo como esse, a
meu ver, e como ouso dizer, nunca existiu até agora. Todavia a
minha dor não é sem remédio: encontro minha consolação em mim
próprio, e sobretudo no pensamento de que estou isento deste erro
que para tanta gente torna cruel a perda de seus amigos. Não
penso que tenha vindo mal nenhum a Cipião. Se há mal, é só
para mim. Ora, afligir-se de seus próprios males, não é de um
amigo, mas de um egoísta.
Quem ousaria
negar que o destino de Cipião foi admirável? A menos que ele não
quisesse pretender a imortalidade, o que nunca entrou em seu
pensamento, não obteve ele tudo o que a um homem é dado desejar?
As altas esperanças, que, desde a sua meninez fez que dele se
concebessem os seus concidadãos, ultrapassou-as, na sua
juventude, por uma virtude extraordinária. jamais pediu o
consulado, e foi duas vezes cônsul. Primeiro, antes da idade.
Depois, a seu tempo, e quase muito tarde para a República. Enfim,
para a ruína das duas cidades mais mortalmente inimigas do império
romano, ele sufocou não somente as guerras presentes, mas as
guerras futuras. Que dizer dos seus costumes tão chãos, da sua
piedade para com a sua mãe, da sua liberalidade para com suas irmãs,
da sua bondade para com os seus, da justiça para com todos? Tudo
isso vos é conhecido. O dó dos seus funerais fez ver quanto era
caro aos seus concidadãos. Que prazer, pois, podiam dar-lhe
alguns anos a mais na sua existência? A velhice, com efeito, sem
ser um fardo, como lembro-me que Catão o demonstrou a Cipião e a
mim mesmo, um ano antes de morrer, a velhice nos devolve esse
verdor de que Cipião gozava ainda.
Assim, pois,
tais foram sua vida, sua fortuna e sua glória, que nada se lhes
pode ajuntar. A rapidez da sua morte forrou-lhe a mágoa. Quanto a
este gênero de morte, não se sabe muito o que dizer. Sabeis que
o público tem as suas desconfianças. Mas o que se pode dizer em
verdade, e que de tantos dias tão brilhantes e tão felizes para
Cipião, não foi mais glorioso nenhum que as vésperas de sua
morte, quando ao entardecer, após a sessão do Senado, ele foi
reconduzido à sua casa, os padres conscritos, os aliados e os
Latinos: também parece-nos que de um tão alto grau de glória
ele deveu mais brevemente subir aos céus que aos infernos.
Capítulo IV
AS ALMAS SÃO SUBSTÂNCIAS
DIVINAS, E DEPOIS DA MORTE ABREM UM CAMINHO PARA O CÉU.
Não penso como
os que recentemente se puseram a sustentar que a alma perece com o
corpo, e que tudo é destruído pela morte. Prefiro submeter-me à
autoridade dos antigos, à dos nossos pais, que rendiam aos mortos
honras religiosas (o que não fariam sem dúvida se acreditassem
que os mortos eram insensíveis). À dos filósofos que
viveram na Itália, e cujos preceitos e doutrinas introduziram na
Grande Grécia, hoje em decadência, mas outrora florescente. à
desse homem que o oráculo de Apolo declarou o mais sábio, e que
sob esta questão não dizia, como sobre a maior parte das outras,
ora uma coisa ora outra. mas sempre a mesma, isto é, que as almas
dos homens são divinas, e que à sua saída do corpo no retorno
para o céu este lhe fica aberto, retorno tanto mais fácil quanto
foram elas mais justas e mais puras.
Eram também a opinião de Cipião:
pouco antes da sua morte, como se dela já tivesse pressentimento,
em presença de Filo, de Manílio e de muitos outros, de vós também
Scévola, porque me haveis acompanhado, ele discorreu três dias
inteiros sobre a República: o fim deste entretenimento versou
quase todo inteiro sobre a imortalidade da alma e Cipião dizia
que nos referia às palavras do Africano que lhe havia aparecido
em sonhos: Se é verdade que a alma do mais virtuoso se eleve mais
facilmente, no momento em que a morte se destaca da prisão e dos
laços corpóreos, pensais que a volta dos deuses pode ser mais fácil
que a de Cipião? Temerei então, afligindo-me disto, mostrar mais
inveja do que amizade. Se é verdade, ao contrário, que um mesmo
fim afoga a alma e o corpo e que nenhum sentimento sobrevive, como
não há nenhum bem na morte, igualmente não há nenhum mal.
Porque o sentimento uma vez extinto, é, absolutamente, como se
nunca tivesse existido. Em todo caso, que Cipião haja nascido, é
o que faz a nossa felicidade e será para Roma, enquanto ela
existir, um tema de alegria.
Assim, pois,
como já tenho dito, o destino foi inteiramente favorável a Cipião.
Só foi cruel para mim. Fui o primeiro a entrar na vida e terei de
sair também por primeiro. Todavia, a lembrança da nossa amizade
é para mim tão grata, que tenho por felicidade o viver por haver
vivido com Cipião; com quem foi comum o meu cuidado nos assuntos
públicos e em coisas particulares, comum a paz em Roma e a milícia
nas Guerras, e um grande consentimento, no que consiste a maior
força da amizade, nos estudos, nos desejos e nos pareceres. E
assim não me lisonjeia tanto este conceito de sábio, de que
Fanio me falou, especialmente sendo sábio, como a esperança de
que a memória de nossa amizade há de ser eterna. E tanto mais a
tenho no coração, porque em todos os século mal se contam o número
de seis ou sete amigos verdadeiros. em cujo número espero que a
amizade de Cipião e de Lélio há de ser conhecida na
posteridade.
FANIO. E é
preciso que seja, Lélio. Mas já que fizeste menção da
amizade, e temos mais tempo, dar-me-ás o prazer, e creio também
a Scévola, de, como costumas sobre outras coisas quando te
perguntam, assim da amizade nos dizer que juízo fazes, qual julga
ser a amizade e as regras que sobre ela prescrever. Scévola: A
mim certamente me será de grande gosto, e querendo eu pedi-lo, me
antecipou Fanio a palavra. Por isso a nós ambos nos será muito
agradável.
Capítulo V
QUAL SEJA A FORÇA DA AMIZADE NÃO PODENDO ENCONTRAR-SE SENÃO
ENTRE OS BONS. OS QUE MERECEM ESTE TÍTULO.
LÉLIO. Não
teria dificuldade, se tivesse confiança em minhas forças, por
que é assunto que o merece, e estamos em ócio, como disse Fanio.
Mas que homem sou eu? Ou que faculdade há em mim para isso? Este
é o costume dos doutos e em especial dos gregos, o propor-se-lhes
do que dissertar, embora seja de sopetão. É tema importante e
necessita não pequena prática. E assim, nos que estão
acostumados a este gênero de discursos, julgo que deveis procurar
o que se pode dizer sobre a amizade. Eu só posso aconselhar-vos a
que a coloqueis sobre todas as conveniências da vida; porque
nenhuma coisa tão conforme à natureza, nem tão a propósito
para os casos favoráveis ou adversos. Mas em primeiro lugar sou
de parecer que não pode haver a amizade senão entre homens de
bem, e isto não vamos desfiar muito, com costumam fazer os que
discorrem sobre sutilezas. Que isso será verdade, mas não é o
que se encontra regularmente na vida humana. Dizem que não há
homem de bem senão o sábio. Ora, seja assim, mas entendem-no uma
sabedoria que nenhum homem conseguiu até agora. Havemos de olhar
ao que por experiência se acha na vida comum e não o que existe
só na idéia do desejo. Não me atreverei, a dizer que foram sábios,
segundo estas regras. C. Fabricio, M. Curio e T. Coruncano, a quem
houveram por tais os nossos antepassados. E assim bom proveito
lhes faça a sua fama de sábios, tão odiosa quão pouco inteligível
e conceda-se, ao menos, que esses foram homens de bem. Mas nem
isso. Dirão que esta qualidade não se pode reconhecer senão a
um sábio.
Vamos nós mais
ao corriqueiro (como se costuma dizer) e acreditemos que os que
vivem e se portam de maneira que experimentam a sua fidelidade,
sua integridade, sua bondade, e liberalidade, que neles não se
descobrem desejos, nem leviandades, nem atrevimentos, e que são
como os que acabo de nomear de grande constância, como foram
reputados por bons, assim se lhes deve chamar; porque seguem
(quanto é possível em homens) à natureza, que é a melhor
mestra da vida. A mim me parece que todos nascemos com certo vínculo
de sociedade, que a todos une, embora esta seja mais estreita na
proporção da conexão de uns com os outros. E assim, são
melhores para amigos os cidadãos que os estrangeiros, os parentes
que os estranhos; porque entre estes a amizade foi engendrada pela
própria natureza, embora não seja de grande constância, pois
nisto excede ao parentesco à amizade que nele dura, e permanece
ainda sem amor, e a amizade, não; porque, faltando o amor, se
desfaz. Mas quão grande é a força da amizade, pode-se coligir
de que uma infinita sociedade que compõe a natureza, compõem-na
a amizade, e a contrai de sorte que une todo o amor em dois ou
pouco mais indivíduos.
Capítulo VI
DEFINIÇÃO E EXCELÊNCIA DA AMIZADE
A amizade é uma suma harmonia nas
coisas divinas e humanas, com benevolência e amor. Dons tão
grandes, que não sei se os Deuses concederam (exceto à
sabedoria), outro maior aos mortais. Preferem uns a riqueza,
outros a boa saúde, outros o poder, outros as honras, e, muitos,
os prazeres. estes últimos são só muito próprios das bestas, e
o outro caduco e perecível, dependente não do nosso arbítrio,
mas da inconstante fortuna. E assim discorrem nobremente os que
constituem o sumo bem na virtude e esta mesma é a que engendra e
mantém as amizades, de modo que, sem ela, não pode existir
amizade de modo nenhum. Interpretemos, pois, a virtude, como
costumamos entendê-la, pelo uso comum da vida e não ameacemos
como alguns doutos por certa magnificência de palavras. Contemos
por bons aos que por bons são tidos, tais como os Paulos, os Catões,
os Galos, os Cipiões, com os quais se contenta o comum da vida, e
deixemos aqueles dos quais nos é impossível falar. Entre tais
sujeitos, tem a amizade tantas conveniências quantas não saberei
eu dizer.
Porque em
primeiro lugar, como pode ser suportável (como diz Enio) a vida
que não repousa na mútua benevolência de um amigo? Que coisa tão
doce como ter um com quem falar de todo tão livremente como
consigo mesmo? Seria porventura tão grande o fruto das
prosperidades, se não tivéssemos quem delas se alegrasse, tanto
quanto nós mesmos? E se poderiam sofrer as adversidades sem alguém
que as sentisse ainda mais que aqueles mesmo que as
experimentaram? Finalmente tantas quantas coisas se apetecem, cada
uma tem o seu uso particular: a riqueza, para o uso; o poder, para
a veneração; as honras, para o aplauso; os prazeres, para o
gozo; a saúde, para não sentir dores e ser expedito nos exercícios
culturais; a amizade abarca muitas cousas; para qualquer parte que
nos volvamos a encontrarmos solicita, em todos tem lugar, nunca é
impertinente, jamais molesta. De modo que não usamos mais da água
e do fogo, como dizem, que da amizade. E não falo agora de uma
amizade vulgar ou mediana (embora também esta deleite e
aproveite), mas da verdadeira e perfeita, como foi a daqueles
poucos que são tão afamados. Esta faz mais abundantes as
prosperidades e as adversidades, rompendo-as e unindo-as,
tornando-as mais suportáveis.
Capítulo VII
VANTAGENS QUE TRAZ
CONSIGO A AMIZADE
Mas tirando-se
tantos e tão grandes proveitos da amizade, o maior de todos é o
que faz conceber belas esperanças, para tudo que possa sobrevir,
e não deixa que desfaleçam ou se acovardem os ânimos. Porque o
verdadeiro amigo vê o outro como a uma imagem de si mesmo. E,
assim, se fazem presentes ou ausentes, fartos ou necessitados,
poderosos ou fracos, e o que é mais difícil de crer, vivos ou
mortos. Tal é a honra, o desejo, a memória que sempre os
acompanha dos seus amigos. Deste modo, a morte de uns parece
ditosa e a vida dos outros digna de louvor. Mas si se desterra do
mundo a união da benevolência, nenhuma casa, nenhuma cidade
subsistirá, nem ainda o cultivo dos campos poderá permanecer; e
se por isto não se entende bastante quanta seja a força da
amizade e da concórdia, poder-se-à entender. Porque, que casa há
tão forte, que cidade tão estável, que os ódios e as discórdias
não possam derrubar? De onde se pode conhecer quanto bem se
encerra na amizade.
De certo homem,
douto agrigentino, conta-se haver deixado escrito em versos
gregos, que quantas coisas existem e se movem na máquina do
Universo, une-as e as contrai a amizade, e dissipa-as e as desfaz
a discórdia, e esta é uma verdade geralmente conhecida e
acreditada pela experiência. E assim, se alguma vez interpôs um
amigo os seus ofícios, oferecendo-se ao perigo, ou acompanhar a
outro no perigo que se encontra, nenhum deixa de aplaudi-lo com os
maiores louvores. Que gritos de aclamação não se moveram em
todo o teatro com a nova fábula do meu hóspede e amigo M.
Pacuvio, quando ignorado o Rei qual dos dois era Orestes, Pilades
dizia que era ele, para morrer em seu lugar e Orestes assegurava
mui deveras que ele é que era, isto como se fosse certo? Bem
mostrava sua inclinação a natureza, pois fazia perecer bem em
outros o que talvez não poderia neles fazer em caso semelhante.
Até aqui parece que vos declarei o meu sentir acerca da amizade.
Se alguma coisa resta (bem creio que será muito), podeis
perguntar, se vos parece, aos que falam sobre estes assuntos.
FANIO. Mas nós
melhor o queremos saber de vós, embora outras vezes o perguntasse
a esses que dizes e os escutasse não a contragosto. Porém outra
é a discussão que esperamos do teu discurso.
SCÉVOLA. Com
mais razão o direis, Fanio, se te houveras achado em dias
passados em casa de Cipião quando se falou da República. Que
grande patrono se declarou, então, da justiça, contra um
discurso muito estudado de Filo!
FANIO. Era coisa
muito regular em um homem tão justo defender a justiça.
SCÉVOLA. E da
amizade? não lhe será muito fácil quando por havê-la mantido
com tanta justificação, fidelidade, constância, mereceu tanta
glória?
LÉLIO. Isto já
é forçar a alguém. Porque, que importa que haja razão para
obrigar-me? Em verdade forçais-me. Porque aos desejos dos genros,
particularmente em um assunto por si tão honesto, é difícil e
também não é justo resistir-se.
Capítulo VIII
ORIGEM DA AMIZADE
Muitas vezes,
pois, quando paro a pensar na amizade, parece-me digno da maior
consideração, si se introduziu por fraqueza e necessidade, de
sorte que, por recíprocos ofícios, receba um do outro o que não
se alcança por si mesmo e o devolva mutuamente, ou se era isto próprio
e conseqüente da amizade, porém sua origem mais antiga, mais
honesta e mais filha da natureza. Porque o amor (que deu o nome à
amizade) é o principal motivo de conciliar-se a benevolência.
Pois as utilidades se costumas experimentar também daqueles a
quem se trata e respeita pelas circunstâncias do tempo. Porém na
amizade nada é fingido, nada dissimulado, tudo quanto nela há é
verdadeiro e tudo provém da vontade.
E assim, mais me
parece que a amizade é filha da natureza que da necessidade. E
mais da aplicação da alma com certo sentido de amar que do
pensamento das utilidades que poderá trazer. Como isto seja, é fácil
de notar em alguns animais, que de tal sorte ama e são amados de
seus filhos até certo tempo que manifestam bem o seu sentido.
Isso, nos homens, é mais evidente. Primeiro, por aquele amor que
há entre pais e filhos que não podem romper-se senão por uma
horrível maldade. Segundo, quando resulta igual inclinação para
amar, se encontramos alguém com quem se harmonize a índole e os
nossos costumes. Porque nele parece que olhamos como em um espelho
certo resplendor de bondade e de virtude, nem que mais concilie o
amor dos homens, pelo qual amamos também em certo modo ainda aos
que nunca vimos. Quem se recordará sem uma espécie de carinho e
benevolência de M. Curio e G. Fabrício, a quem jamais se viu? Ao
contrário, a Tarquinio o soberbo e aos espúrios Cássio e Melio,
quem poderá lhes pronunciar o nome sem aborrecimento? Na Itália
pelejou-se sob o Império com dos generais: Pirro e Aníbal. Com
um, por sua bondade, não está muito rancoroso o nosso ânimo.
Porém, o outro, por sua crueldade, o aborrecerá sempre esta
cidade.
Capítulo IX
A AMIZADE TIRA A SUA
ORIGEM DA NATUREZA E DA NECESSIDADE
Já que é tão
grande a força da bondade, que a amamos ainda naqueles indivíduos
que nunca vimos, e, o que é mais, nos próprios inimigos, que
muito que se movam os ânimos dos homens quando lhes parece que
conhecem bondade e virtude em outros com quem podem tratar
familiarmente? Verdade é que se confirma o amor recebendo benefícios,
experimentando a vontade e acrescido o trato. Dessas circunstâncias,
unidas ao primeiro movimento do ânimo e do amor, resulta uma
admirável grandeza de carinho, o qual, se alguns julgam que
nasceu da fraqueza e da necessidade (como se fosse o meio pelo
qual qualquer pessoa alcança o que precisa), por certo que
atribuem à amizade uma origem muito baixa e nada honrosa, por
assim dizê-lo, querendo que haja dimanado de escassez e da
pobreza. Se isto fosse certo, quanto menos faculdades, quanto
menos prendas achara um homem em si mesmo, seria por isso mesmo o
mais adequado para a amizade. Porém é isso muito ao contrário.
Por que aquele que mais confia de si próprio, que está tão bem
guarnecido de sabedoria e virtude, que de nenhum necessita e creia
ter todos os bens dentro de si mesmo, é o mais excelente e a propósito
para procurar e conservar a amizade. Para que tinha necessidade de
mim Cipião? Para nada. Nem dele eu, tampouco. Mas eu o amava,
admirando em certo modo, da sua virtude. E ele me estimava a mim
levado de alguma boa opinião sobre seus costumes. E acrescido o
trato, aumentou-se o carinho. Do qual, embora se deduzissem muitas
e grandes utilidades, não nasceram as causas do amor de esperança
alguma de consegui-las. Por que assim como somos bons e liberais,
não porque o exige o agradecimento, mas porque naturalmente somos
inclinados à liberalidade, do mesmo modo na amizade não cremos
que se tenha de desejar por nenhuma esperança de interesse, mas
porque no amor consiste o seu maior proveito.
São muito contrários
a este nosso modo de pensar os que, ao modo dos brutos, tudo
encaminham para os deleites. Não é maravilha, pois, porque
homens que fizeram o ídolo dos seus pensamentos de um objeto tão
vil e desprezível, nada possam conceber alta, magnifica, nem
divinamente. Deixemos tais homens fora do nosso discurso, e
acreditemos que naturalmente sem engendrar a inclinação de amar
e o amor da benevolência, quando se manifesta a bondade, e os que
a querem se aplicam e aproximam mais a gozar dos tratos e costumes
daquele a quem começaram a amar, a serem iguais neste amor,
e mais inclinados a servir o seu amigo do que ser gratificado por
ele. Esta honrosa concorrência é que há de existir entre os
amigos. Assim se tirarão da amizade grandes utilidades, e será
mais ilustre e mais certo sua origem da natureza que da
necessidade. Por que se o interesse que unisse as amizades, quando
viesse a faltar, desafizer-las-ia. Mas, porque não se pode trocar
a natureza, por isso são eternas as verdadeiras amizades. E fica
explicado com isto a origem da amizade, se não quereis outra
coisa.
FANIO.
Prossegue, Lélio, que eu, como de maior idade, tenho direito de
pedi-lo pelos dois.
SCÉVOLA. Dizes
bem, Fanio, e, assim, ouçamos.
Capítulo X
A AMIZADE ESTÁ
EXPOSTA A MUITOS PERIGOS
LÉLIO. Ouvi,
pois, varões esclarecidos, o que muitas vezes discorríamos Cipião
e eu a respeito da amizade. Ele assegurava não valer coisa mais
difícil do que durar uma amizade até os últimos dias de uma
vida. Por que sucede freqüentemente: ou que uma mesma coisa não
convenha aos dois amigos ou que não sejam de um mesmo parecer
acerca da República. E também porque costumam mudar os costumes
dos homens, já pelas adversidades, já pela maioridade. Disso
estabelece-se semelhança com a infância, pois os mais vivos
amores costumam largá-los as crianças juntamente com os traços
da puerícia. E se os levam mais para diante, costumam se
desfazer: ou por aspirarem ambos um mesmo casamento, ou por
qualquer outro proveito que os dois ao mesmo tempo não podem
conseguir. E ainda quando estejam mais adiantados na amizade,
chega esta a faltar si pretendem ambos um mesmo emprego honorífico,
pois nenhum mal há maior nas amizades que a cobiça do dinheiro
em muitos, e nos melhores, a competência em pontos de honra e glória.
Por estes motivos se originam muitas vezes inimizades muito
grandes entre os maiores amigos.
Dizia também
que nasce grave aborrecimento e queixa, embora justa algumas
vezes, quando se pretende dos dois amigos algo que não seja
justo como se sejam dominadores de suas paixões ou coadjuvem a
alguma injúria. Pois os que recusam, embora com razão, são
tidos por quebradores dos direitos da amizade, pelos outros com
quem não quiseram condescender. E os que se atrevem a pedir
qualquer coisa aos amigos manifestam nisto mesmo que nada
duvidariam fazer por eles. E por último que, por queixas destes,
não só costumam acabar-se amizades muito antigas, mas também,
engendrar-se ódios graves sempiternos.
Estes e outros
muitos, como fado das amizades, dizia Cipião, estão sempre
ameaçando. De modo que o evitá-los a todos, não só lhe parecia
prudência senão o que tinha por grande fortuna.
Capítulo XI
O QUE PODEM
LICITAMENTE PEDIR E CONCEDER OS AMIGOS
Vejamos antes de
mais nada, se vos parece, até onde deve estender-se o amor na
amizade. Diremos porventura que se Coriolano teve amigos, deveriam
tomar com ele as armas contra a sua pátria? Creremos que os de
Espulio, Melio, e Viscerino, estavam obrigados a lhes dar favor e
ajuda em seus ambiciosos desejos pelo Império. A fé que, quando
molestava a República Tibério Graco, desamparou-o Q. Tuberon e
os outros amigos seus iguais. Estando já assistindo no conselho
aos cônsules Lenato e Repulio, veio a suplicar-me Caio Blosio
Cumano, hóspede de vossa família, Scévola, e me dava por
desculpa, para que o perdoasse, e estimava tanto a Tibério Graco,
que lhe parecia que devia fazer quanto fosse a sua vontade. Então
lhe disse eu: e se fosse sua vontade que incendiaste o Capitólio?
Jamais, respondeu houvera ele querido tal coisa. E se o houvesse
querido? Eu o haveria obedecido. Estais vendo que resposta
malvada. E, em verdade, que assim o fez e ainda mais do que disse,
porque não só obedeceu a loucura de Graco, senão que foi o
executor e não foi tão somente companheiro de seu furor, mas
cabeça de todos. E assim, com esta loucura, amedontrado do novo
inquérito que se movia contra ele, se passou aos inimigos, fugiu
para a Ásia, onde pagou à República as justas e merecidas
penas. De modo que o haver pecado por servir ao amigo não é
escusa. Por que como seja a opinião de virtude a que concilia as
amizades, é sumamente difícil que a amizade permaneça
apartando-se da virtude.
E se nos propusermos por justo
conceder aos amigos tudo o que quiserem, e conseguir deles quanto
pretendermos, necessário é que seja perfeita a nossa sabedoria,
se tal condescendência não leva consigo algum defeito.
Falo daqueles
amigos que estão diante dos nossos olhos, a quem vemos, de quem
temos notícias e que comumente se acha na vida. Do número destes
temos de tirar exemplos e principalmente daqueles que se aproximam
mais da sabedoria. Vemos que Paulo Emílio e Caio Luscínio, que
eram, segundo ouvimos dizer, muito amigos, foram duas vezes
companheiros no consulado e outras duas depois na Censura. Também
temos notícia que M. Curio e T. Coruncano foram muito amigos
destes, sendo-o também entre si, dos quais, nem ainda por
suspeita podemos crer que um pedisse a outro coisa contrária a fé,
ao juramento e à República. Nem se pode tal dizer de homens como
aqueles. Embora o houvesse pretendido com muitas instâncias, sei
muito bem que não o houvera conseguido sendo eles varões tão
justificados. Assim cremos que é tão mau fazer coisa semelhante
ainda rogados, como o rogá-lo. Porém a Tibério Graco seguia
naquele tempo C. Carbon e C. Catão, porém não seu irmão Caio,
então dos mais temperados, e agora o seu mais acérrimo defensor.
Capítulo XII
DEVE-SE ROMPER COM
OS AMIGOS QUE ATENTAM CONTRA A PÁTRIA
Estabeleçamos,
pois, como lei primeira da amizade, não pedir nem conceder nada
de vergonhoso. É uma desculpa indigna de ser admitida em qualquer
pecado, e principalmente naqueles contra o Estado, confessar que
se agiu por um amigo. Com efeito, digo isto, Fannius e Scévola,
porque somos obrigados a prever de longe os perigos que ameaçam a
República. Nossos discípulos e nossos costumas já começam
a desviar-se do caminho seguido pelos nossos antepassados. Tibério
Graco tentou fazer-se rei: que digo? ele reinou até alguns meses.
Terá o povo
romano jamais visto ou ouvido dizer coisa semelhante? Mesmo após
a morte de Tibério, quantos males fizeram sofrer a Cipião Nasica,
seus amigos e parentes? Não posso lembrar-me sem lacrimejar.
Suportamos Carbon como pudemos, por causa do castigo recente de
Tibério. Que devemos esperar do tribunato de Caius? Não ouso
prever. O mal se expande pouco a pouco, e uma vez fixado, progride
rapidamente. Vereis todo o mal que já nos fez, por causa do
escrutínio, primeiro a lei Gabinia e, dois anos depois, a lei
Cassia. Parece-me que já vejo o povo separado do senado e os negócios
mais importantes decididos segundo os caprichos da multidão.
Porque haverá muito mais gente interessada em aprender como se
faz o mal, do que como se resiste a ele.
Mas porque estas
reflexões? Para que ninguém sem companheiros intente semelhantes
empresas. É preciso advertir as pessoas de bem que, se por
infelicidade, se encontrarem incautamente com tais amizades, não
creiam que estejam tão atados que não possam separar-se, quando
são culpadas de crimes contra o Estado. É necessário
estabelecer penas contra os maus e punir não menos severamente os
cúmplices que os chefes destes atentados ímpios. Que homem, em
toda a Grécia, foi mais ilustre e mais poderoso que Temístocles?
General na guerra Médica. salvou a Grécia da servidão; mais
tarde, exilado por inveja, não suportou a injustiça de sua
ingrata pátria. fez o mesmo que, há vinte anos, fizera
Coriolando conosco. Nem um nem outro encartou quem os ajudasse
contra sua pátria: assim ambos deram-se morte com suas próprias
mãos.
É por isso que
um tal acordo de mãos não somente deve ser coberto pela escusa
amizade, como deve ser punido por toda espécie de castigo, afim
de que ninguém julgue permitido seguir um amigo, ainda quando
declare guerra contra sua pátria. Pelo curso que tomam as coisas,
não sei se esta infelicidade sucederá à nossa pátria; e não
me interesso menos pelo futuro da República do que pelo seu
estado presente.
Capítulo XIII
NÃO SE DEVEM
ADMITIR CERTAS OPINIÕES ESTRANHAS SOBRE A AMIZADE
Que seja esta,
pois, a primeira lei da amizade, de não pedir nem fazer pelos
nossos amigos senão coisas honestas; mas não esperemos que
nos roguem; demonstremos sempre zelo, jamais desleixo: ousemos
também dar-lhes livremente nossos conselhos. Que a autoridade de
um amigo que aconselha o bem seja, na amizade, todo poderosa: que
ele a utilize para advertir com franqueza e mesmo, se for necessário,
com severidade: mas saibamos obedecer à sua voz.
Alguns homens, considerados sábios
na Grécia, professaram, segundo ouvi dizer, idéias bem estranhas
(mas nada escapa à suas argúcias) : segundo alguns, devem-se
evitar as amizades muito estreitas, porque não convém que um ser
somente se inquiete por muitos; a cada um lhe bastam seus próprios
cuidados e é cousa desagradável empenhar-se em negócios
alheios; o mais cômodo é manter bem frouxos os laços da
amizade, afim de poder firmá-los ou largá-los quando quiser. O
ponto capital para bem viver é a tranqüilidade, dizem eles; e
como poderá gozar a alma se está sempre preocupada com os
outros?
Outros ainda
professam uma doutrina mais desonrosa para a humanidade (já tive
oportunidade de tocar levemente neste ponto) : devem-se procurar
amizades, dizem eles, pelos auxílios e vantagens que possam
oferecer, e não por benevolência e afeição. Assim, aquele que
menos possui coragem e força é que deseja com ansiedade os
amigos: conclui-se que as benfeitorias da amizade serão mais
procuradas pelas mulheres que pelos homens, pelos pobres que pelos
ricos, pelos infelizes que por aqueles que passam por afortunados.
Eis uma admirável
sabedoria! Mas parecem remover o sol do universo aqueles que
afastam da vida a amizade, este dom, o melhor e o mais agradável
que nos oferecem os deuses imortais. Afinal, que é esta tranqüilidade?
Poderá seduzir à primeira vista, mas na realidade é condenável
por vários motivos. Pois não é razoável deixar de empreender
ou abandonar, uma vez empreendida, qualquer ação honesta, sob
pretexto de tranqüilidade. Se afastarmos qualquer solicitude não
é sem trabalho que a virtude poderá combater os vícios contrários
a ela: assim, a bondade combate a malícia; a castidade, a
devassidão; a coragem, a covardia, o homem corajoso; os
desregramentos, o sábio. É pois, próprio de uma boa alma,
rejubilar-se do bem e aborrecer-se do mal.
Se a alma do sábio é por vezes
exposta à dor (pois, para não sê-lo, é necessário que seja
despojada de todo e qualquer sentimento de humanidade), porque
banir inteiramente da vida o sentimento de amizade, na crença de
não sofrermos, por isso, nenhuma tristeza? Se suprimirdes as emoções
do coração, que diferença haverá depois, já não digo entre o
homem e o selvagem, mas entre o homem e uma pedra, um tronco de árvore,
ou algum outro objeto deste gênero?
Abandonemos,
pois, esses homens desejosos de que a virtude seja intratável e
dura como o ferro; em amizade, como em mil outras circunstâncias,
ela é terna e humana; a felicidade de um amigo dilata um coração
virtuoso, assim como o contrai uma desventura. Não renunciaremos
à amizade, unicamente pelos aborrecimentos que possam advir de
nossos amigos, assim como não renunciamos à virtude pelas
inquietações e angústias que a acompanham.
Capítulo XIV
AS AMIZADES NASCEM
DAS SEMELHANÇAS DE COSTUMES
Sendo a virtude,
como disse acima, que concilia as amizades, quando, pelos seus
primeiros clarões, a simpatia aproxima e une as almas, surge daí,
necessariamente, o amor.
Com efeito, que
há de mais absurdo que comprazer-se com outras cousas vãs, como
são as honras, a glória, a casa, as roupas e o adorno, e não
gozar a posse de um coração virtuoso, que pode amar-nos e, por
assim dizer, corresponder ao nosso amor? Porque, nada mais doce do
que esta troca de carinhos, e esta reciprocidade de zelo e de
afeto.
Bem mais, se
acrescentarmos o que é bem possível, que, de todas as seduções,
de todas as atrações, a mais poderosa é a semelhança de almas,
que convida à amizade, concederemos sem dúvida que os bons se
amam e se procuram entre si, como se fossem unidos por parentesco
e pela natureza. Pois nada existe que procure mais seus
semelhantes e que mais força tenha para atraí-los do que a
natureza. Assim, é a meu ver constante, Fannius e Scévola, que
entre as pessoas de bem existe necessariamente a afeição, e que
lá está o princípio da amizade indicado pela natureza. Porém
esta mesma afeição se estende a todos os homens; porque não é
inumana a virtude, nem exclusiva, nem desdenhosa; de todos cuida,
pois vêmo-la defender a povos inteiros, velar pela sua
felicidade, o que não faria certamente se desdenhasse do
carinhoso afeto da gente vulgar.
Parece-me também
que aqueles que almejam somente o interesse na amizade, afastam
dela o seu mais doce vínculo. O que nos agrada não é a
utilidade oferecida pelo nosso amigo, mas sim o carinho desse
amigo; e que tudo o que o que nos oferecido por ele, nos será
agradável, contanto que transpareça a dedicação. Tão longe
está que seja a indigência que cultiva as amizades que
justamente aqueles que, pelas suas virtudes, a mais segura das
garantias, tem menos necessidade dos outros, - que são os mais
generosos benfeitores. Não sei se será bom que os nossos amigos
mão necessitem de nós. Como poderia mostrar meu zelo por Cipião,
se ele não procurasse meus conselhos e meus serviços, seja na
paz, ou na guerra? Nossa amizade não nasceu pois, da utilidade,
mas a utilidade a seguiu.
CAPÍTULO XV
NÃO HÁ BEM
MAIS APRECIÁVEL QUE A AMIZADE; A FORTUNA DE MUITOS A EXCLUE ÀS
VEZES
Não devemos
ouvir esses homens perdidos de voluptuosidade, se alguma vez
vierem a falar sobre a amizade, pois eles não a conhecem, nem por
regras, nem pela experiência. Qual o homem, santo Deus! que se
sujeitaria a viver na abundância de todas as coisas, a
transbordar de riquezas, sob a condição de jamais amar nem ser
amado por ninguém? Tal é a vida dos tiranos, na qual não pode
haver segurança, nem carinho, nem confiança numa afeição durável,
onde tudo é inquietação e dúvida, onde nem há lugar para a
amizade.
Como querer a
quem tem medo ou a quem se julga inspirar temor? Cortejam-se,
entretanto, os tiranos, mas hipocritamente e por pouco tempo. Se
tombam, o que acontece quase sempre, então se verifica quão
pobres eram de amigos.
Tarquínio,
segundo contam, dizia que a o exílio lhe havia ensinado
distinguir os bons dos falsos amigos, quando já não podia
agradecer nem a uns nem a outros.
Duvido, no
entretanto, que este homem, soberbo e insolente como era, pudesse
ter tido um só amigo. Mas se o caráter daquele que acabo de
mencionar o impediu de adquirir um verdadeiro amigo, muitas vezes
também as fortunas de homens poderosos afastam os fiéis amigos.
Porque não somente a fortuna é cega, mas muitas vezes ela torna
cegos aqueles a quem favorece. Tomam-se quase todos de arrogância
e desdém: e nada é mais suportável do que um asno protegido
pela fortuna. É muito comum encontrarmos homens que, vindos
da simplicidade, transformam-se, pelas honras, poderes, e
prosperidade; desprezam os antigos e adquirem novos amigos.
Mas que loucura
a desses homens que, no cúmulo das riquezas, do crédito, da
fortuna, procuram tudo o que se pode obter com dinheiro (cavalos,
escravos, roupas luxuosas, vasos preciosos) e esquecem de procurar
amigos, o melhor e, se me permitem dizer, o mais lindo móvel da
vida. Quando se fazem esta provisão dos outros bens, saberão
para quem estão juntando, para quem trabalham? Todos esses bens
pertencem àquele que possui mais força; somente a posse de um
amigo é certa e durável. E mesmo quando conservássemos o gozo
desses dons de riqueza, a vida sem a amizade nos pareceria
inculta, deserta e desnudada de toda alegria. Mas basta sobre este
assunto.
Capítulo XVI
QUAIS SÃO OS LIMITES DA AMIZADE; TRÊS OPINIÕES A RESPEITO
Determinemos
agora quais são os limites e, por assim dizer, os termos da
amizade. Encontro aqui três opiniões diferentes, das quais não
aprovo nenhuma: a primeira deseja que sejamos para os nossos
amigos assim como somos para nós mesmos; a segunda, que a nossa
afeição por eles seja tal e qual a que eles tem por nós; a
terceira, que estimemos nossos amigos, assim como eles estimam a
si mesmo. Não posso concordar com nenhuma dessas três máximas.
Porque a primeira, que cada um tenha para com seu amigo a mesma
afeição e vontade que tem para si, é falsa. De fato, quantas
coisas fazemos por nossos amigos, que jamais faríamos por nós!
Rogar, suplicar a um homem que se despreza, tratar o outro com
aspereza, perseguí-los com violência, coisas que em causa própria
não seriam muito decentes, nos negócios dos amigos se tornam
muito honrosas. Quantas vezes um homem de bem abandona a
defesa de seus interesses e os sacrifica, em seu próprio
detrimento, para servir os de seu amigo!
A segunda opinião
é a que define a amizade por uma correspondência igual em amor e
bons serviços. E fazer da amizade ima idéia bem limitada e
mesquinha, sujeitá-la, assim, a um balanço entre a despesa e a
receita. Parece-me que a verdadeira amizade é mais rica e mais
generosa; não calcula com exatidão com medo de oferecer mais do
que recebeu. Não se deve temer na amizade que se vá dar demais
ou que se vá perder alguma coisa.
A terceira máxima
é a mais perniciosa de todas: quer que se estime ao amigo tanto
quanto ele se estima a si mesmo. Mas há bom número de pessoas,
cuja alma tímida e desalentada não ousa aspirar a uma melhor
sorte. Serão, então os amigos obrigados a pensar como eles? Não
deverão, ao contrário, esforçarem-se por encorajá-los,
sugerindo esperanças e doces pensamentos? É necessário,
portanto, prescrever outros limites para a amizade; antes de tudo,
porém, quero lembrar outra sentença que Cipião repelia com
indignação: "Jamais, dizia ele, se poderia encontrar uma
frase mais hostil do que esta para a amizade: "Amai como se
um dia deveis odiar". Não podia persuadir-se, segundo a
opinião comum, que estas palavras tinham sido de Bias,
colocado entre os Sete Sábios, a atribuía antes a algum homem
corrompido, a um vil ambicioso que só tratasse de seus
interesses. De que maneira podemos ser amigos de quem poderá ser
nosso inimigo? Deveríamos desejar, então, que esse amigo fizesse
o maior número possível de faltas, afim de dar maior valor as
nossas repreensões; bem mais, as belas ações, seus sucessos,
tornar-se-iam motivo de tristeza, de aflição, de ciúme.
Tal máxima,
qualquer que seja o autor, serve somente para destruir a amizade.
Seria melhor recomendar cuidado na escolha de nossos amigos, para
que não começássemos a amar alguém que devêssemos odiar mais
tarde. Cipião ia mais além ainda: sustentava que se tivéssemos
feito uma escolha infeliz, deveríamos suportá-la com resignação
do que pensar no tempo da inimizade.
CAPÍTULO XVII
SINAIS PARA CONHECER
OS BONS AMIGOS, COISAS QUE SE OPÕES OU FAZEM ROMPER AS AMIZADES
Eis aqui os limites nos quais creio
poder encerrar a amizade. Que os costumes dos amigos sejam sempre
puros, que uma inteira comunhão de bens, de pensamentos, de
vontade, exista entre eles. E mesmo se, por infelicidade, um deles
necessita de auxílio do outro, em alguma empresa de justiça
duvidosa, mas de onde dependa a sua vida ou sua honra, pode-se,
neste caso, desviar um pouco o caminho certo, contanto que daí não
resulte a desonra. A amizade, com efeito, condescende até um
certo ponto. Todavia, não se deve negligenciar o desvelo de sua
reputação; a estima pública não é um medíocre instrumento de
sucesso para a gestão de negócios e é vergonhoso obtê-la por
condescendências e adulações; contudo, deve-se procurar o apoio
da virtude, que segue sempre o afeto.
Mas volto
novamente a Cipião, que fazia da amizade o ponto principal de
seus discursos. Muitas vezes se queixava de que os homens, tão
cuidadosos para com as coisas, a ponto de poder dizer quantas
cabras e ovelhas possuíam, não pudessem dizer o número de
amigos. Se se trata de comprar um rebanho, tomam a maior atenção,
mas, se se tratando de amigos, não tem o menor cuidado; não
conhecem sinais certos, marcar pelas quais possam reconhecer os
homens feitos pela amizade. É preciso escolher homens firmes, sólidos
e constantes; mas a espécie é rara e é difícil conhecê-los
antes de experimentá-los. Ora, esta experiência só poderá ser
feita dentro da amizade. Assim, a amizade precederá o julgamento;
tornará, pois impossível a experiência.
É próprio de
um homem prudente conter o primeiro ímpeto de seu afeto, como o
de um coche, que usamos, e experimentar os amigos, como se
experimenta um cavalo novo, afim de conhecer seu caráter por
todas as faces. Comumente um pouco de ouro basta para mostrar como
é frágil a amizade de alguns; outros, que puderam resistir a um
pouco de ouro; sucumbem diante de uma soma considerável. Se
encontrarmos quem prefira a amizade ao dinheiro, onde achar aquele
que não prefira as honras, as magistraturas, os comandos, o
poder, a autoridade? Colocai de um lado todos esses bens, do outro
os direitos da amizade, e contai os que se declaram por estes. A
natureza humana é fraca para resistir à tentação do poder, e
si para obtê-lo, precisamos sacrificar um amigo, acreditamos que
a falta se justifique pela grandeza do interesse.
Muito dificilmente encontraremos
amigos verdadeiros entre os homens que se ocupam dos negócios públicos
ou que procuram honras. Onde está o homem que prefere a sua, à
elevação de um amigo? E sem ir muito longe, porque a companhia
na desgraça parece à maioria dos homens, um fardo pesado e
penoso? Não é fácil encontrar quem consinta em repartir o
infortúnio! Ennio disse com razão: "O amigo fiel se
reconhece nas infidelidades da sorte". Entretanto duas coisas
acusam a fraqueza e a leviandade de quase todos os homens: A arrogância
na prosperidade e o abandono na infelicidade, ou melhor,
desprezam-nos quando se acham numa situação infeliz, ou nos
abandonam quando nos encotramos em má situação.
CAPÍTULO XVIII
FUNDAMENTOS DA CONSTÂNCIA
DA AMIZADE
Aquele que, numa
e noutra sorte, se mostrou firme, constante e inflexível, deve
ser considerado raro e quase divino.
O fundamento
desta estabilidade e desta constância que procuramos na amizade
é a confiança: sem ela, nada é estável. Escolhemos, pois, um
amigo de costumes simples e fáceis, que pense e sinta como nós:
tudo isto conserva a fidelidade. Uma alma dissimulada e tortuosa não
pode ser fiel. Aquele que não tem o mesmo gosto, nem os mesmos
sentimentos nossos, não pode ser um amigo certo e constante.
Acrescentemos ainda que um amigo não deve forjar nem ouvir com
satisfação acusações contra seu amigo: tudo isso faz parte
desta constância sobre a qual insisto há muito tempo. Assim fica
provado o princípio exposto anteriormente: de que a amizade não
pode existir senão entre pessoas pessoas de bem. Porque o homem
de bem (poderemos também chamá-lo sábio) sabe observar estas
duas regras na amizade: nada disfarçar ou dissimular, porque é
mais nobre odiar abertamente do que ocultar seu pensamento sob um
semblante enganador; a segunda, repudiar as acusações imputadas
contra seu amigo, sem ficar suspeitoso, desconfiado, e sempre
pronto a crer que o amigo faltou em alguma coisa.
Juntemos a tudo
isto uma certa amenidade de linguagem e de costumes: é o mais
doce condimento da amizade. Uma austeridade rígida, uma contínua
severidade pode ser de certo modo digno; mas a amizade deve ser
mais indulgente, mais franca, e mais doce; é mais inclinada para
a cortesia e a afabilidade.
CAPÍTULO XIX
QUE LUGAR DEVEM TER
OS AMIGOS ANTIGOS; A AMIZADE EXCLUE TODA A DISTINÇÃO ENTRE ELES
Apresenta-se
aqui uma questão embaraçosa: se devemos algumas vezes preferir
os amigos novos, dignos de amizade, aos velhos amigos, assim como
preferimos aos velhos os cavalos novos. Dúvida indigna de
um homem, porque a amizade não pode dar lugar ao fastio, à
saciedade, como acontece com outras coisas. As amizades antigas são,
como esses vinhos velhos, doces e agradáveis; e é verdadeiro o
dito comum de que, para serem perfeitos amigos, é necessário que
tenham comido juntos muitos alqueires de sal.
Não se deve porém, desprezar as
amizades novas, se dão esperanças e prenunciam, como as boas árvores,
frutos felizes; contudo, as amizades antigas devem conservar
o seu lugar, pois é muito grande a força e a antigüidade e do hábito.
E voltando à comparação feita há pouco não há ninguém que,
podendo escolher livremente, não prefira montar um cavalo com o
qual esteja habituado, do que um outro, ainda não experimentado.
Esta força do hábito não se observa somente para com os
animais, mas também com as coisas inanimadas: assim, os lugares
montanhosos, os mais primitivos, nos agradam após ter ali
permanecido por muito tempo.
Um ponto
essencial na amizade, porém, é a igualdade entre o superior e o
inferior. Existem freqüentemente superioridades incontestáveis,
como a de Cipião no nosso rebanho, por assim dizer. Entretanto,
jamais se preferiu a Filus, nem a Rupillius, nem a Mummius, nem a
qualquer de nossos amigos, mesmo inferior. Mas a Q. Maximus, seu
irmão, homem de raro mérito, ainda que inferior a ele, o
respeitava como seu superior, só porque era mais velho, e queria
que sua glória ressaltasse sobre todas as deles.
Eis o exemplo
que deve ser imitado por todos. Adquirimos superioridade de
virtude, de espírito ou de fortuna? Precisamos reparti-las com os
nossos, comunicá-la aos nossos parentes. Nascemos de uma família
obscura? Temos parentes menos favorecidos pelo talento ou pela
sorte? Devemos dar-lhes força, riqueza, honras e glória.
Conhecemos, através das fábulas, heróis que, por ignorância de
seu nascimento e raça, permanecem durante algum tempo como
escravos como escravos e que, após reconhecidos como filhos de
Deuses ou de reis, conservaram sempre amor àqueles que durante
muitos anos tiveram como pais, pois os mais doces frutos do gênio,
da virtude, de toda superioridade, são aqueles que repartimos com
os nossos.
Capítulo XX
VÁRIOS PRECEITOS SOBRE A AMIZADE
Assim como, no
trato íntimo da amizade, os superiores devem-se igualar aos
inferiores; assim, os inferiores não devem se preocupar de
verem-se sobrepujados pelos amigos em gênio, riqueza e dignidade.
Estes últimos, entretanto, sempre encontram razão de queixa e até
de censura, principalmente se podem fazer alarde de algum serviço
prestado e no qual demonstraram sua dedicação e zelo. Odiosa,
por certo, é a casta de homens que lançam em rosto seus serviços,
dos quase se devem lembrar aqueles que os recebem e não quem os
faz.
Não basta,
porém, na amizade, que os superiores se diminuam; é preciso que
elevem, por assim dizer, os inferiores à sua altura. Há muitas
pessoas que deturpam o encanto da amizade pela impressão de serem
depreciados; o que acontece somente àqueles que se crêem dignos
de desprezo. Precisamos curá-los desta apreensão com o auxílio
de palavras, e, sobretudo, de ações.
Devemos servir
ao amigo, primeiramente segundo nossa faculdade, e, em seguida,
conforme a capacidade daquele a quem quer se servir. Tivésseis
todo o poder do mundo, não poderíeis colocar todos os vossos
amigos nos lugares mais distinguidos; Cipião, por exemplo, pode
fazer cônsul a P. Rupillius; não fez o mesmo, porém, com seu
irmão Licius. Ainda que pudésseis oferecer tudo ao vosso amigo,
seria necessário verificar até onde iam suas forças.
Não se podem
julgar perfeitamente as amizades senão quando a idade fortificou
e amadureceu os caracteres; e se os moços, a quem anima um gosto
semelhante pela caça ou pelos louros, formam entre si certas ligações,
não são por isso amigos. A esse respeito, as amas e os pedagogos
reclamariam, a título de ancianidade, o primeiro lugar em nossa
amizade. Sem dúvida, não devemos esquecê-los; mas a afeição
que se lhes dedica é de outra natureza.
Sem a maturidade
da razão, não há, pois, amizade durável.
A diversidade
dos gostos, desune as amizades: e se os bons não podem amar
os maus, nem os maus amar os bons, é unicamente a dissemelhança
dos seus costumes e gostos que o determina.
Vem também a
propósito a recomendação de não prejudicar, por uma espécie
de intemperança e de afeição, aos interesses mais caros de seus
amigos: porque é um defeito muito ordinário. Assim, para citar
ainda a fábula, Neoptolemi não teria podido tomar Tróia, se
tivesse escutado Licomedi, na casa do qual ele havia sido educado,
e que lacrimoso se opunha à sua partida. Muitas vezes se
apresenta, graves circunstâncias, em que é preciso se separar
dos amigos. Querer se opor a isso por dificuldade em suportar os
aborrecimentos da ausência, é mostrar uma alma tíbia, fraca, e
por isso mesmo, injusta na amizade.
Em todas estas
coisas é preciso considerar o que podeis pedir a vosso amigo e o
que podeis conceder-lhe.
CAPÍTULO XXI
DEVE-SE AGIR DIGNAMENTE QUANDO SE ROMPEM AS AMIZADES. QUE É
AMIZADE NATURAL.
Sucede também,
como por calamidade, que algumas vezes é necessário romper uma
amizade: porque passo agora das amizades dos sábios às ligações
vulgares. Muitas vezes quando vícios se revelam num homem, seus
amigos são suas vítimas como todos os outros: contudo é sobre
eles que recai a vergonha. É preciso, pois, se desligar de tais
amizades -, afrouxando o laço pouco a pouco, e como ouvi dizer a
Catão, é necessário descoser antes que despedaçar, a menos que
se não haja produzido um escândalo de tal modo intolerável, que
não fosse nem justo nem honesto, nem mesmo possível, deixar de
romper imediatamente.
Mas se o caráter
e os gostos vierem a mudar, o que acontece muitas vezes; se algum
dissentimento político separar dois amigos (não falo mais,
repito-o, das amizades dos sábios, mas das afeições vulgares),
é preciso tomar cuidado em, desfazendo a amizade, não a
substituir logo pelo ódio. Nada mais vergonhoso, com efeito, que
estar em guerra com aquele que se amou por muito tempo. Por minha
causa, como sabeis, Cipião renunciou à amizade de Q. Popmeius;
por causa dos partidos que dividiam a Repúblicas separou-se de
Metellus, nosso colega. Nestas duas circunstâncias, ele se
conduziu com gravidade, com autoridade, sem mostrar nem azedume,
nem ressentimento.
Apliquemo-nos,
pois, antes de tudo, em afastar toda causa de ruptura: se contudo,
acontecer alguma, que a amizade pareça antes extinta do que
estrangulada. Temamos sobretudo que ela se não mude ódio
violento, que traz sempre consigo as querelas, as injúrias, os
ultrajes quanto forem suportáveis e prestemos esta homenagem a
uma antiga amizade, de modo que a culpa caiba a quem os faz e não
àquele que os sofre.
Mas o único
meio de evitar e prevenir todos os aborrecimentos é não dar
nossa afeição nem muito depressa, nem a pessoas que não são
dignas.
São dignos da
nossa amizade aqueles que trazem consigo diálogos de se fazer
amar. Homens raros! De resto, tudo que é bom é raro e nada é
mais difícil do que achar alguma coisa que seja em seu gênero
perfeita em tudo. Mas a maior parte dos homens não conhece
nada de bom nas coisas humanas senão o que lhes interessa e
tratam seus amigos como aos animais, estimando mais aqueles de
quem esperam recolher mais proveito.
Também são
eles privados dessa amizade tão bela e tão natural, por si mesmo
tão desejável; e o seu coração não lhes faz compreender qual
é a natureza e a grandeza de tal sentimento. Cada um ama a si
mesmo, não para exigir prêmio da sua própria ternura, mas
porque naturalmente a sua própria pessoa lhe é cara. Se não
existe alguma coisa de semelhante na amizade, não se achará
nunca um verdadeiro amigo, é um outro nós mesmos.
Se se vê nos
animais aprisionados ou selvagens, habitantes do ar, da terra ou
das águas, primeiro amarem a si mesmos (porque este sentimento é
inato em toda criatura), em seguida desejar e procurar seres da
sua espécie, para se unir a eles (e, nessa procura mostram um afã
e um ardor que não deixa de ser semelhante ao nosso amor), quanto
mais essa dupla inclinação na natureza do homem que se ama e que
busca um outro homem, cuja alma se confunde de tal modo com a sua
que de suas não se faça mais do que uma.
CAPÍTULO XXII
NÃO É RAZOÁVEL
PROCURAR NOS AMIGOS QUALIDADES QUE NÃO TEM QUEM AS PROCURA. CONDIÇÕES
DA AMIZADE VERDADEIRA.
A maioria dos
homens, em sua injustiça, para não dizer em sua imprudências,
quer possuir amigos tais como eles próprios não seriam. Exigem o
que não tem. O que é justo é que, primeiro sejamos homens de
bem e em seguida procuremos o que pareça sê-lo. Só entre homens
virtuosos se pode estabelecer essa conveniência em amizade, sobre
a qual insisto há muito tempo. Unidos pela benevolência,
guiar-se-ão nas paixões a que se escravizam os outros homens.
Amarão a justiça e a equidade. Estarão sempre prontos a tudo
empreendem uns pelos outros, e não se exigirão reciprocamente
nada que não seja honesto e legítimo. Enfim, terão uns para os
outros, não somente deferências e ternuras, mas, também,
respeito. Eliminar o respeito da amizade é podar-lhe o seu mais
belo ornamento. É pois erro funesto crer que a amizade via livre
as paixões e a todos os gêneros de desordens. A natureza deu-nos
a amizade, não como cúmplice do vício, mas como auxiliar da
virtude. Afim de que a virtude - que sozinha não poderia chegar
ao ápice - pudesse atingi-lo com o auxílio e o apoio de tal
companhia. Aqueles para quem esta aliança existe, existiu ou
existirá, deverão vê-la como a melhor e a mais feliz que se
possa fazer para atingir o soberano bem.
E, digo, numa
tal sociedade que se encontram todos os bens desejáveis, a
honestidade, a glória, a tranqüilidade e a alegria da alma,
todos os bens, em uma palavra, que tornam a vida feliz, e que sem
a qual ela não poderia sê-lo. Se quisermos esta felicidade
suprema, apliquemo-nos à virtude, sem a qual não poderíamos
adquirir a amizade, nem um outro objeto dos nossos desejos. Os que
a negligenciam, e que todavia imaginam ter amigos, reconhecerão
afinal o seu erro, quando, nas horas adversas, forem forçados a
experimentá-los.
Assim, não será demais insistir,
é preciso conhecer antes de amar e não amar antes de conhecer. A
negligência, funesta em tantas circunstâncias, é-o sobretudo na
escolha e no comércio dos amigos. As reflexões vem sempre mui
tardiamente e, como diz o antigo provérbio, o que está feito,
feito está. Ligue-se de qualquer maneira, seja por um comércio
diário, seja mesmo por serviços, depois, repentinamente, a
menor ofensa, amizade se quebra no meio do caminho.
CAPÍTULO XXIII
TODOS CONVÉM NAS
VANTAGENS DA AMIZADE
Não se pode
vituperar muito o descuido num negócio tão importante. Neste
mundo, a amizade é a única coisa cuja utilidade é unanimamente
reconhecida. A própria virtude tem muitos detratores, que a
acusam de ostentação e charlatanismo. Muitos desprezam as
riquezas e, contentes de pouco, agradam-se da mediocridade. As
honras, à procura da qual se matam tantas pessoas,
quantos outros as desdenham até olhá-las como o que há de mais
fútil e de mais frívolo? E, assim, quanto ao mais! o que a uns
parece admirável, ao juízo dos outros nada é. Mas quanto à
amizade, toda a gente está de acordo: os que se ocupam dos negócios
públicos, os que se apaixonaram pelo estudo e pelas indagações
sapientes, e os que, longe do bulício, limitam seus cuidados aos
seus interesses privados: todos enfim, aqueles mesmos que se
entregaram todos inteiros aos prazeres, declaram que a vida nada
é sem amizade, por pouco que queiram reservar a sua para algum
sentimento honorável.
Ela se insinua,
com efeito, não sei como, no coração de todos os homens e não
se admite que, sem ela, possa passar nenhuma condição da vida.
Bem mais, se é um homem de natureza selvagem, muito feroz para
odiar seus semelhantes e fugir do seu contato, como fazia, diz-se,
não sei mais que Timon de Atenas. É preciso ainda que este homem
procure um confidente no seio do qual possa verter o seu veneno e
o seu ódio. A necessidade da amizade será ainda mais evidente,
se ele puder admitir que um Deus nos tirasse do seio da sociedade
para nos colocar numa solidão profunda, onde, fornecendo-nos em
abundância tudo o que a natureza nos pode propinar, nos subtraísse
ao mesmo passo a esperança e os meios de ver jamais qualquer face
humana.
Qual é a alma
de ferro que suportaria uma tal existência e a quem a solidão não
tornaria insípidos todos os gozos? Assim tenho por verdadeiras as
palavras de Arquitas de Taranto, que entendi recordar a velhos que
as ouviram eles próprios de seus pais: " se alguém subir ao
céu, e de lá contemplar a beleza do universo e dos astros, todas
essas maravilhas deixá-lo-ão indiferente, quanto que o
embasbacarão de surpresa se tiver de contá-las a alguém."
Assim, a natureza do homem se recusa à solidão, e parece sempre
procurar um apoio: e não o há mais doce que o coração de um
terno amigo.
CAPÍTULO XXIV
ENTRE AMIGOS SE HÁ DE DIZER E SE HÁ DE DAR OUVIDOS À VERDADE
Mas quando esta
mesma natureza nos declara por tantos sinais o que ela quer, o que
procura e o que deseja, não sei como sucede que fechemos as
orelhas e não queiramos escutar suas advertências.
A amizade penetra nos menores
detalhes de nossa vida, o que torna freqüentes as ocasiões de
ofensas e melindres: o sábio deve evitá-las, destruí-las ou
suportá-las quando necessário for. A única ocasião em que não
devemos deixar de ofender um amigo, é quando se trata de lhe
dizer a verdade e de lhe provar assim a nossa fidelidade. Porque não
devemos deixar de sobreavisar os nossos amigos, ainda quando se
trate de reprimendá-los. E nós mesmos devemos levar isto em boa
vontade, quando tais reprimendas são ditadas pelo bem querer.
Todavia, sou forçado
a confessá-lo, como disse o nosso Terencio no seu Adriana:
" A benevolência gera a amizade; a verdade o ódio".
Sem dúvida a verdade é molesta se produz o ódio, este veneno da
amizade. Mas a magnanimidade é-o ainda mais, porque para a indulgência
culpável, pelas faltas de um amigo, ela deixa-o precipitar-se em
suas ruínas. Mas a falta mais grave é a que despreza a verdade e
se deixa conduzir ao mal pela adulação. Este ponto reclama toda
a nossa vigilância a atenção. Afastemos o ácido das
nossas advertências, a injúria dos nossos reproches; que a nossa
complacência (sirvo-me voluntário da expressão de Terencio )
seja farta de urbanidade; mas longe de nossa baixa adulação,
este auxiliar indigno de um amigo e mesmo de um homem livre.
Lembremo-nos que se vive com um amigo diferente de como se vive
com um tirano.
Quanto àqueles cujos ouvidos se
fecharam à verdade ao ponto de não entender mesmo a boca do
amigo, é preciso desesperar da sua salvação Conhece-se a frase
de Catão que, entre outras ficou proverbial: " A amargura
dos nossos inimigos, serve-nos bem mais do que a doçura dos
nossos amigos: aqueles nos dizem quase sempre a verdade, estes
jamais" O que há de desarrazoado é que os amigos que se
advertem não se encolerizem do que deve causar-lhes pena, e o façam
ao contrário do que deve não lhes causar nenhuma. Em lugar de se
encolerizar de haver mal agido, eles o são por ser repreendidos.
Enquanto que, ao contrário, eles deveriam se afligir da falta e
alegrar-se da censura.
CAPÍTULO XXV
NÃO HÁ COISA MAIS PREJUDICIAL NA AMIZADE QUE
A ADULAÇÃO
Pois que é próprio
da verdadeira amizade dar e receber conselhos, dá-los com
franqueza e sem azedume, recebê-los com paciência e sem repugnância,
persuadamo-nos bem de que não há defeito maior na amizade que a
lisonja, a adulação, as baixas complacências. Com efeito, não
se poderia dar bastante nomes aos vícios desses homens frívolos
e enganadores, que falam sempre para agradar, e jamais para dizer
a verdade.
A dissimulação é funesta em
todas as coisas (pois corrompe e altera em nós o sentimento da
verdade) mas é, sobretudo, contrária à amizade. Destrói a
sinceridade, sem a qual não se subsiste mesmo o próprio nome da
amizade. Se a força da amizade consiste em fazer de várias almas
uma só, como seria assim, se em cada homem a alma não é a
mesma, não é constante, mas variável, mutável, tomando mil
formas? De fato, que há de mais mutável, de mais versátil que a
alma daquele que se transforma não apenas segundo o sentimento e
a vontade dum outro, mas a um pequeno sinal deste, a um mínimo
gesto seu? "Ele diz não? Eu digo não; ele diz sim: eu digo
sim: numa palavra, eu me impus a obrigação de tudo
aplaudir", como disse Terencio sobre a máscara de Gnathon.
Seria inconcebível leviandade ter relações com gente desta espécie.
Mas encontram-se
muitos Gnastons mais possantes pela linha, pela fortuna e pelo crédito;
e tanto mais perigosos são estes lisonjeadores, pois a sua
autoridade faz pesas as suas lisonjas mentirosas.
Entretanto, com
atenção, pode-se distinguir o verdadeiro amigo do lisonjeador, tão
facilmente quanto se distinguem as coisas fantasiadas e
artificiais das que são naturais e verdadeiras. Uma assembléia pública,
composta de multidão ignorante, sabe reconhecer a diferença que
existe entre o homem frívolo, adulador do povo, e o homem grave,
constante, severo. Que de carícias C. Papirius prodigalizava
outrora à assembléia popular! Como ele procurava insinuar-se nos
espíritos para fazer passar a lei sobre a refeição dos
tribunos! Eu, no entretanto, combatia a sua proposta.
Mas não falemos
de mim: mais gostosamente falarei de Cipião. Deuses imortais! Que
gravidade, que majestade no seu discurso! Como se reconhecia nele
o chefe do povo romano e não apenas um simples cidadão! Mas vós
estáveis presentes e tendes o seu discurso entre as mãos. Esta
lei também, apesar de popular que era, foi rejeitado pelo sufrágio
do povo. Para voltar à mim, vós vos lembrais da lei sobre a eleição
dos pontífices, lei que C. Licinius Grassus queria fazer passar
durante o consulado de Q. Maximus, irmão de Cipião e de L.
Mancinus; vós sabeis quanto essa lei parecia popular, pois
transferia ao povo a eleição dos colégios; e foi o próprio
Crassus quem, primeiro, deu o exemplo de falar ao povo voltado
para o fórum. Entretanto a religião dos deuses, por nós
defendida, facilmente superou os artifícios da sua eloquência.
Isto se passou quando eu era pretor, cinco anos antes de ser cônsul.
Assim, o triunfo da causa foi devido menos à autoridade do autor
que à força da verdade.
CAPÍTULO XXVI
PRECAUÇÃO PARA COM
OS ADULADORES; VÁRIAS ESPÉCIES DE ADULAÇÃO
Assim, se sobre
o próprio palco, pois desta forma podemos chamar a assembléia
popular, onde se dá tanta importância à ilusão e ao prestígio,
a verdade guarda ainda tanta força, por pouco que seja mostrada e
exibida à luz, que força não terá ela na amizade, que toda
inteira repousa sobre a verdade? Na amizade onde se deve, de parte
a parte, agir, como se diz, de coração nas mãos, sob pena de
perder toda a segurança e toda confiança, onde não se pode amar
ou ser amado desde que se conserve qualquer dúvida sobre o amigo?
Confessemos, entretanto, esta lisonja de que há pouco eu falava,
apesar de perniciosa só prejudica àquele que a recebe e que com
ela se compraz. Também ninguém recebe mais voluntariamente a
lisonja que aquele que a si mesmo se lisonjeia com a maior complacência.
Sem dúvida, a
virtude se estima bastante; pois ela se conhece perfeitamente e
sabe o quanto é amável. Também eu já não falo de virtude, mas
da reputação da virtude, pois de fato muita existe que timbra
mais em parecer virtuoso do que em sê-lo. Estes amam a lisonja:
quando se lhes dirigem palavras de louvor, do alto de sua vaidade
eles tomam essas frases mentirosas por um brilhante testemunho dos
seus méritos. Não há, portanto, amizade entre dois homens dos
quais um não quer ouvir a verdade e outro está sempre disposto a
mentir. Nas próprias comédias, as lisonjas dos parasitas não
nos pareceriam tão interessantes se não fossem dirigidas à
soldados fanfarrões. "Thais, segundo me dizes, me agradece
mil vezes?" seria suficiente responder-lhe: "sim, muitas
vezes"; mas o lisonjeador diz : "um milhão de
vezes", exagerando tudo, para satisfazer a vontade daquele
que escuta.
Estas doçuras
fingidas só podem seduzir os que as procuram e as provocam;
entretanto, deve-se recomendar aos homens graves e sérios que se
resguardam contra lisonjas mais bem feitas. Um lisonjeador que não
procura se esconder, só engana aos bobos. É preciso que se
desconfie dos que, mais espertos, se escondem aos olhares para
mais secretamente se insinuarem ao vosso espírito. Nem sempre é
fácil reconhecê-lo; que muitas vezes ele contradiz para melhor
aprovar, e para mais seguramente lisonjeá-la ele combat
Tradução de José
Perez
Extraído da edição da Editora Cultura Moderna
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