A
Perícia
em casos de Tortura (*)
Genival Veloso de França (**)
Resumo: o autor além de
conceituar a tortura à luz da legislação brasileira vigente, fala da violência
institucional no Brasil, faz uma série de recomendações quando do exame das vítimas
de alegada tortura chamando a atenção para o exame clínico e as necropsias em
casos de morte por maus tratos sob a tutela policial ou judiciária
Preliminares
Toda e qualquer ação que tenha como destino as pessoas e o seu modo de
viver, implica necessariamente no reconhecimento de certos valores. Qualquer que
seja a maneira de abordar esta questão vamos chegar a um entendimento que o
mais significativo desses valores é sempre o próprio ser humano, no conjunto
de seus atributos materiais, físicos e morais. Se não for assim, cada um de nós
nada mais representa senão um
simples objeto, sem identidade e sem nenhum destino.
1. A vida humana como valor ético. O
valor da vida é de tal magnitude que, até mesmo nos momentos mais graves,
quando tudo parece perdido, dadas as condições mais excepcionais e precárias
– como nos conflitos internacionais, na hora em que o direito
da força se instala negando o próprio Direito, e quando tudo é
paradoxal e inconcebível -, ainda assim a intuição humana tenta protegê-la
contra a insânia coletiva, criando regras que impeçam a prática de crueldades
inúteis.
Quando a paz passa a ser apenas um instante entre dois tumultos, o homem
tenta encontrar nos céus do amanhã uma aurora de salvação. A ciência, de
forma desesperada, convoca os cientistas a se debruçarem
sobre as mesas de seus laboratórios, na procura de meios salvadores da
vida. Nas mesas das conversações internacionais, mesmo entre intrigas e astúcias,
os líderes do mundo inteiro tentam se reencontrar com a mais irrecusável de
suas normas: o respeito pela vida humana.
Assim, no âmago de todos os valores está o mais indeclinável de todos
eles: a vida humana. Sem ela, não existe a pessoa humana. Não existe a base de
sua identidade. Mesmo diante da proletária tragédia de cada homem e de cada
mulher, quase naufragados na luta desesperada pela sobrevivência do dia a dia,
ninguém abre mão dos seus direitos de sobrevivência. Essa consciência é que
faz a vida mais que um bem: um valor.
A partir dessa concepção, hoje, mais ainda, a vida passa a ser
respeitada e protegida não só como um bem afetivo ou patrimonial, mas pelo que
ela se reveste de valor ético. Não se constitui apenas de um meio de
continuidade biológica, mas de uma qualidade e de uma dignidade que faz com que
cada um realize seu destino de criatura humana.
2. A vida humana como valor jurídico. Vivemos sob a égide de uma
Constituição que orienta o Estado no sentido da “dignidade da pessoa
humana”, tendo como normas a promoção do bem comum, a garantia da
integridade física e moral do cidadão e a proteção incondicional do direito
à vida. Tal proteção é de tal forma solene que o atentado a essa integridade
eleva-se a condição de ato de lesa-Humanidade: um atentado contra
todos os homens.
Afirma-se que a Constituição do Brasil protege a vida e que tudo aquilo
que soa diferente é contrário ao Direito e por isso não pode realizar-se.
Todavia, dizer que a vida depende da proteção da Carta Maior é superfetação
porque a vida está acima das normas e compõe todos os artigos, parágrafos,
incisos e alíneas de todas as Constituintes.
Cada dia que passa, a consciência atual, despertada e aturdida pela
insensibilidade e pela indiferença do mundo tecnicista, começa a se
reencontrar com a mais lógica de suas normas: a tutela da vida.
Essa consciência de que a vida humana necessita de um imperiosa proteção
vai criando uma série de regras que vai se ajustando mais e mais com cada
agressão sofrida, não apenas no sentido de se criar dispositivos legais, mas
como maneira de estabelecer formas mais fraternas de convivência. Este sim,
seria o melhor caminho.
Tudo isso vai sedimentando uma idéia de que a vida de todo ser humano é
ornada de especial dignidade e que isto deve ser colocado de forma clara em
defesa da proteção das necessidades e da sobrevivência de cada um. Esses
direitos fundamentais e irrecusáveis da pessoa humana devem ser definidos por
um conjunto de normas possibilitando que cada um tenha condições de
desenvolver suas aptidões e suas possibilidades.
3. A defesa da pessoa e da vida e os direitos humanos. O mais efetivo marco em favor da defesa da
pessoa humana e conseqüentemente da sua vida vem da vitória da Revolução
Francesa, com a edição da Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão em 1789, onde já no seu artigo primeiro se lê: “todos
os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”. E no artigo 5º é
mais enfática quando diz: “ninguém será submetido à tortura, nem a
tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”.
Mesmo que o mundo tenha assistido dois grandes conflitos internacionais
neste século e que algumas pessoas continuem mais e mais em busca de privilégios
e vantagens individuais, não se pode negar que algo vem sendo feito em favor
dos valores humanos. O que nos faz pensar assim é o crescimento de uma
significativa parcela da sociedade que já se conscientizou, de forma isolada ou
em grupos, que a defesa dos direitos humanos não é apenas algo emblemático,
mas um argumento muito forte em favor da sobrevivência do homem. Isto não quer
dizer que não haja por parte de alguns a alegação de que a defesa dos
direitos humanos seja um risco para a sociedade, uma subversão da ordem pública,
um jogo de interesses ideológicos ou uma ameaça aos direitos patrimoniais.
Outros, por ingenuidade ou má-fé, admitem que a luta em favor dos direitos
humanos é uma apologia ao crime e um endosso ao criminoso.
A partir da edição da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela
Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas em 1948, embora sem eficácia
jurídica, pode-se dizer que ela representa um momento importante na história
das liberdades humanas, não apenas pelo que ali se lê em termos do ideal de
uma convivência humana, mas pelas declaradas adesões dos países membros desta
Organização.
Espera-se que passo a passo a humanidade vá construindo um ideário onde
fique evidente a importância da valorização da pessoa e o reconhecimento
irrecusável dos direitos humanos. Não adianta todo esse encantamento com o
progresso da técnica e da ciência se não for em favor do homem. Se não, esse
progresso será uma coisa pobre e mesquinha.
Violência
institucional no Brasil
Os aparelhos do poder organizado em nosso país que disciplinam as relações
sociais e que administram a repressão (polícia), que julgam e aplicam
as sanções (justiça) e que executam a punição (prisão) não
deixam, de certo modo, de exercer ou tolerar a violência. O Estado constitui-se
sem dúvida na mais grave forma de arbítrio porque ela flui de um órgão de
proteção e contra a qual dificilmente se tem remédio.
Parte da estrutura policial tornou-se viciada pelo arbítrio e pela
corrupção, imbuída de uma mentalidade repressiva, reacionária e
preconceituosa, na mais absoluta fidelidade que o Sistema lhe impôs desde os
anos de repressão. Hoje tal fração desta estrutura não somente perdeu a
credibilidade da população, como lhe causa medo.
O aparelho policial mostra-se cada vez mais violento a partir da organização
dos movimentos coletivos de reivindicação e protesto. Dessa forma, com o
surgimento mais constante desses movimentos populares, o poder passou a prevenir
e controlar de forma agressiva o que ele chamou de “desordens públicas”.
Esse aparelho de poder autorizado legalmente a usar a violência contra os
trabalhadores sem terra e sem emprego, deixa claro que a garantia da “ordem
social” tem suas razões ditadas pelas classes dominantes que se sentem ameaçadas.
Esse modo de atuar do aparelho policial não deixa de ser uma fonte permanente
de conflitos, fazendo que essa corporação se constitua numa forma de violência
institucional.
De certa forma pode-se dizer que o aparelho judicial também constitui
numa modalidade de violência institucional, a partir do instante em que suas
decisões se inclinam obstinadamente para o lado do legalismo insensível,
deixando de agir pela equidade. Não é outro senão o próprio Presidente do
Supremo Tribunal Federal que diz: “necessitamos de um sistema que seja
processualmente célere, politicamente independente, socialmente eficaz e
tecnicamente eficiente” (Revista Veja, ano 32, n.º 12, 22/mar./1999, pag.
36).
O princípio da legalidade é o eixo da lógica da justiça criminal, mas
se olharmos para os presídios não é difícil entender que essa ideologia,
pelo menos na prática, favorece os interesses e as pessoas das classes
dominantes. Estes indivíduos, pertencentes a certa casta social, exageram o
limite da liberdade real, enquanto os outros, marginalizados pelo processo de
produção, estão submetidos às regras de sua categoria e, por isso, têm suas
liberdades condicionadas. Até porque as leis que são seguidas fielmente pelo
aparelho judicial são elaboradas a partir dos interesses que os legisladores
defendem e representam. E estes não têm nenhuma intimidade com aspirações da
população que mais necessita e anseia por justiça.
A violência do aparelho carcerário é certamente a mais impiedosa e
humilhante porque o presidiário, principalmente o de crimes comuns, representa
para o poder e para uma fração da sociedade, uma escória. Não passa pelos
critérios dessas pessoas que a pena seja uma medida de recuperação e de
ressocialização, mas tão-só um instrumento de vindita e de reparação. O próprio
sentido de intimidação e de excessivo rigor punitivo não deixam de constituir
uma modalidade de terrorismo oficial.
A forma como essas instituições são administradas e o perfil dos seus
administradores não deixam dúvidas do verdadeiro sentido dessas prisões. Não
é nenhuma novidade afirmar que essas casas de custódia funcionam como desestímulo
arrasador aos programas de recuperação. E é nesse ambiente de trabalhos inúteis,
de degradação e coação disciplinar, de prática sistemática de torturas e
maus tratos que o regime carcerário propõe recuperar seus presos.
Tudo que existe de sórdido no sistema carcerário: a prepotência, a
falta de disciplina e a brutalidade
gratuita de alguns agentes do poder e o seu desdém pelas entidades que promovem
a defesa e a proteção dos direitos humanos, é com certeza a manifestação
mais abjeta da intolerância, da irreverência e do arbítrio. Esta “justiça
paralela”, amparada pela mesma inspiração de violência instituída, só
serve para desmoralizar a Justiça e aviltar a dignidade humana.
Desvinculação
dos IMLs da área da Segurança
Dentro deste quadro, um dos fatos mais graves e desalentadores, tem sido
a inserção dos Institutos Médico-Legais nos organismos de repressão, quando
deviam estar entre aqueles que são os verdadeiros arautos na defesa dos
direitos humanos. Isso infelizmente pode comprometer os interesses mais legítimos
da sociedade. Muitos desses Institutos estão subordinados diretamente a
Delegados de Polícia.
Por isso, pela incidência quase generalizada da violência e do arbítrio
dos órgãos de repressão, sempre defendemos a idéia da imediata desvinculação
dos Institutos de Medicina Legal da área de Segurança, não só pela
possibilidade de se estabelecer pressões, mas pela oportunidade de se levantar
dúvidas na credibilidade do ato pericial. A polícia que prende, espanca e
mata é a mesma que conduz o processo.
Como sempre, mas hoje muito mais, os órgãos de perícia são de importância
significativa na prevenção, repressão e reparação dos delitos, porque a
prova técnico-científica prevalece sobre as demais provas ditas racionais,
notadamente nas questões criminais.
Por isso a Medicina Legal não pode deixar de ser vista como um núcleo
de ciência a serviço da Justiça, e o médico nestas condições é sempre
um analista do Juiz, e não um preposto da autoridade policial. Desse modo,
sente-se a necessidade cada vez mais premente de transformar esses Institutos
em órgãos auxiliares do Poder Judiciário, e sempre com a denominação de
Institutos Médico-Legais, como a tradição os consagrou pelo seu mais alto
destino. Atualmente há uma tendência da tecnocracia estatal chamar esses
departamentos de Institutos de Polícia Científica ou de Polícia Técnica.
Nem se pode admitir Polícia como ciência nem Medicina Legal como polícia.
Lamentavelmente, por distorção de origem, quando as repartições médico-legais
nada mais representavam senão simples apêndices das Centrais de Polícia e os
legistas meros auxiliares subordinados à autoridade policial, permanece o
desagradável engano, ficando até hoje a idéia entre muitos que a legisperícia
é parte integrante e inerente da atividade policial. E o mais grave: isso fez
que se criasse, num bom número de legistas brasileiros, uma postura
nitidamente policialesca que se satisfaz com a exibição de carteiras de polícia
ou de portes de arma.
A Medicina Legal tem outra missão, mais ampla e mais decisiva dentro da
esfera do judiciário, no sentido de estabelecer a verdade dos fatos, na mais
justa aspiração do direito.
Foi com esse pensamento que a Comissão de Estudos do Crime e da Violência,
criada pelo Ministério da Justiça, propôs ao Governo a desvinculação dos
Institutos Médico-Legais e da própria Perícia Criminal, dos órgãos de polícia
repressiva. O objetivo era "evitar a imagem do comprometimento sempre
presente, quando, por interesse da Justiça, são convocados para participar de
investigações sobre autoria de crimes atribuídos à Polícia".
A solução apresentada pela Comissão, tendo como presidente o Professor
Viana de Moraes, era “que estes serviços técnicos hoje sujeitos à
Secretaria de Segurança Pública, passem a integrar o quadro administrativo das
Secretarias de Justiça”. Pessoalmente acho que pouco mudaria se os órgãos
de perícias fossem para tais Secretarias, ou mesmo para o Ministério da Justiça.
O local mais adequado seria o Ministério Público Estadual, a quem
constitucionalmente cabe o ônus da prova.
A justificativa era baseada em trabalhos do juiz João de Deus Mena Barreto
e do criminalista Serrano Neves, documentado por vários crimes atribuídos
aos policiais, onde os laudos elaborados por peritos oficiais subordinados às
Secretarias de Segurança, segundo aqueles autores contestavam e negavam a
autoria, entre eles o da morte do operário Aézio da Silva Fonseca, servente do
Itanhangá Golf Clube do Rio de Janeiro e do operário Manoel Fiel Filho, este
último dado como suicida por estrangulamento, o que teoricamente e naquelas
circunstâncias era inaceitável.
Ninguém de bom-senso pode assegurar que dessa vinculação possa existir
sempre qualquer forma de coação. Mas, dificilmente se poderia deixar de
aceitar a idéia de que em algumas ocasiões possa existir pressão, quando se
sabe que os órgãos de repressão no Brasil estiveram ou estão seriamente
envolvidos no arbítrio e na violência. Pelo menos, suprimiria esse grave fator
de suspeição, criado pela dependência e pela subordinação funcional.
Enquanto o aparelho policial permanecer vinculado a esses lamentáveis episódios, e os cargos de direção das
repartições médico-legais forem distribuídos entre indivíduos da confiança
e da intimidade do partido oficial,
haverá, pelo menos, dúvidas em alguns resultados. Pelo menos foi assim que
decidiu o juiz Márcio José de Moraes sobre o laudo pericial do Jornalista
Vlademir Herzog.
Tortura
A Lei n.º 9.455, de 7 de abril de 1997, que regulamenta o inciso XLIII
do artigo 5º da Constituição do Brasil de 1988, define tortura como o
sofrimento físico ou mental causado a alguém com emprego de violência ou
grave ameaça, com o fim de obter informação, declaração ou confissão de vítima
ou de terceira pessoa, outrossim, para provocar ação ou omissão de natureza
criminosa ou então em razão de discriminação racial ou religiosa. Por sua
vez, a Declaração de Tóquio, aprovada pela
Assembléia Geral da Associação Médica Mundial, em 10 de outubro de
1975, define como: “a imposição deliberada, sistemática e desconsiderada de
sofrimento físico ou mental por parte de uma ou mais pessoas, atuando por própria
conta ou seguindo ordens de qualquer tipo de poder, com o fim de forçar uma
outra pessoa a dar informações, confessar, ou por outra razão qualquer”.
A Convenção da Organização das Nações Unidas contra a Tortura a
define como “um ato pelo qual são infligidos, intencionalmente, a uma pessoa,
dores ou sofrimentos graves, sejam eles físicos ou mentais, com o fim de obter
informações ou uma confissão, de castiga-la por um ato cometido ou que se
suspeita que tenha cometido, de intimida-la ou coagi-la, ou por qualquer razão
baseada em qualquer tipo de discriminação”.
A Convenção Interamericana para Prevenir e Sancionar a Tortura dá
definição mais avançada que esta da Convenção da ONU quando define a
tortura como “a aplicação, em uma pessoa, de métodos que tendem a anular a
personalidade da vítima ou diminuir sua capacidade física ou mental, embora não
causem dor física ou angústia psíquica”.
A verdade é que o fato de o ser humano sofrer de forma deliberada de
tratamento desumano, degradante e cruel, com a finalidade de produzir
sofrimentos físicos ou morais, é tão antigo quando a história da própria
Humanidade. Houve uma época, não tão distante, que a Igreja e o Estado usavam
a tortura como formas legais de expiação de culpa ou como forma legal de pena.
A Inquisição e a Doutrina de Segurança Nacional não são diferentes em seus
métodos, princípios e objetivos.
Na atualidade, malgrado um ou outro esforço, muitos são os países
que ainda praticam, ou toleram a tortura em pessoas indefesas, sem
nenhuma justificativa ou qualquer fundamento de ordem normativa. Muitas dessas
práticas têm por finalidade punir tendências ideológicas ou reprovar e
inibir os movimentos libertários ou as manifestações políticas de
protesto. Muitas dessas práticas cruéis
e degradantes nada tem que ver com a chamada “obtenção da
verdade”, mas uma estratégia do sistema repressivo que dispõe o Estado,
contra os direitos e as liberdades dos seus opositores, como estratégia de
manutenção no poder. Não é por outra razão que sua metodologia e seus
princípios estão nos currículos, como matéria teórica e prática das
corporações militares e policiais. Não quer dizer que não exista também a
banalização do instinto violento como maneira torpe de dobrar o espírito
das pessoas para o torturado admitir o que quer o torturador. No fundo mesmo o
que se procura com a tortura é o sofrimento corporal insuportável, levando a
uma fragmentação do corpo e da mente. Tais procedimentos, por razões muito
óbvias, são desconhecidas na maioria das vezes, pois sua divulgação, mesmo
em países ditos democráticos, é evitada de maneira disfarçada, e assim os
organismos internacionais que cuidam dos direitos humanos não têm informações
nem acesso aos torturados. Por outro lado, as próprias autoridades locais do
setor de saúde não incluem essas vítimas dentro de um programa capaz de
resgatá-las de suas graves seqüelas.
Recomendações
em perícias de casos de tortura
1 – valorizar o exame esquelético-tegumentar.
2 – descrever detalhadamente a sede e as características dos
ferimentos.
3 – registrar em esquemas corporais todas as lesões encontradas.
4 – fotografar as lesões e alterações existentes nos exames interno e externo.
5 – detalhar em todas as lesões, independente do seu vulto, a forma,
idade, dimensões, localização e particularidades.
6 – radiografar, quando possível, todos os segmentos e regiões
agredidos ou suspeitos de violência.
7 – examinar a vítima de tortura sem a presença dos agentes do poder.
8 – trabalhar sempre em equipe.
9 – examinar à luz do dia.
10 – usar os meios subsidiários disponíveis.
Exame
clínico em casos de tortura
Além das lesões esquelético-tegumentares
e de suas características que serão descritas mais adiante para o exame
externo do cadáver em casos de morte por tortura, existe uma série de perturbações
psíquicas que devem ser registradas com certo cuidado, pois elas podem ser
confundidas com sintomas de outras manifestações.
Essas
perturbações psíquicas, conhecidas como síndrome pós-tortura, são
caracterizadas por transtornos mentais e de conduta, apresnetand0o desordens
psicossomáticas (cefaléia, pesadelos, insônia, tremores, desmaios, sudorese e
diarréia), desordens afetivas (depressão, ansiedade, medos e fobias) e
desordens comportamentais (isolamento, irritabilidade, impulsividade, disfunções
sexuais e tentativas de suicídio). O mais grave desta síndrome é a permanente
recordação das torturas, os pesadelos e a recusa fóbica de estímulos que
possam trazer a lembrança dos maus tratos praticados.
Necropsia em morte por tortura
Todas as mortes ocorridas em presídios, notadamente de indivíduos que
faleceram sem assistência médica, no curso de um processo clínico de evolução
atípica ou de morte súbita ou inesperada, devem ser consideradas a priori como “mortes suspeitas”. Com certeza essas mortes,
especialmente quando súbitas, são as de maior complexidade na determinação
da causa e do mecanismo da morte.
Quando da perícia em casos de morte súbita, onde se evidenciam lesões
orgânicas significativas e incompatibilidade com a continuidade da vida, além
da ausência de lesões ou alterações produzidas por ação externa, não há
o que duvidar de morte natural, melhor chamada de “morte com antecedentes
patológicos” ou de “morte orgânica natural”.
No entanto, se são diagnosticadas lesões orgânicas mas se essas alterações
morfopatológicas não se mostram totalmente suficiente para explicar a morte,
então com certeza estamos diante da situação mais complexa e difícil da perícia
médico-legal, ainda mais quando não existe qualquer manifestação exógena
que se possa atribuir como causa do óbito.
Pode excepcionalmente ocorrer uma situação em que o indivíduo é vítima
de morte súbita, não tem registro de antecedentes patológicos, nem lesões
orgânicas evidentes na necropsia, além, de não apresentar manifestações de
agressão violenta, registrada por aquilo que se chamou de “necropsia
branca”. Desde que se afaste definitivamente a causa violenta de morte,
tenha-se tomado os cuidados necessários na pesquisa anatomopatológica, não há
o que fugir da morte por causa indeterminada. Ainda mais se existe os fatores não
violentos de inibição sobre regiões reflexógenas, predisposição
constitucional e estados psíquicos inibidores.
Como última hipótese aquelas situações de morte inesperada onde se
evidenciam lesões e alterações típicas que justificam a morte violenta.
No primeiro caso, quando da chamada “morte súbita lesional”, onde o
óbito é diagnosticado e explicado de forma segura pela presença de
antecedentes patológicos, isso deve ficar confirmado de maneira clara, pois
dificilmente tal evento deixa de apresentar alguns constrangimentos pelas
insinuações de dúvida e desconfiança.
As causas das chamadas mortes naturais mais comuns são: cardiocirculatórias (cardiopatias isquêmicas, alterações
valvulares, cardiomiopatias, miocardites, endocardites, alterações congênitas,
anomalias no sistema de condução, roturas de aneurismas, etc.), respiratórias
(broncopneumonias, tuberculose, pneumoconioses, etc.), digestivas
(processos hemorrágicos, enfarte intestinal, pancreatite, cirrose, etc.),
uro-genitais (afecções renais, lesões decorrentes da gravidez e do parto); encefalomeníngeas
(processos hemorrágicos, tromboembólicos e infecciosos), endócrinas
(diabetes), obstétricas (aborto,
gravidez ectópica, infecção puerperal, etc.), entre outras.
Nas situações de morte súbita sem registro de antecedentes patológicos,
com alterações orgânicas de menor importância e ausência de manifestações
violentas, o caso é ainda mais complexo e pode ser explicada como “morte súbita
funcional com base patológica”. Exemplo: arritmia cardíaca. Quando isso
ocorrer, é importante que se examine cuidadosamente o local dos fatos, se
analise as informações do serviço médico do presídio ou do médico
assistente e se use os meios subsidiários mais adequados a cada caso, com
destaque para o exame toxicológico.
Mais cuidado ainda se deve ter quando não existe qualquer alteração
orgânica que justifique a morte, nem se encontram manifestações de ação
violenta, mas o indivíduo é portador de alguma perturbação funcional. Em
alguns casos pode-se justificar como “morte súbita funcional”. Exemplo: a
morte pós-crise convulsiva. Nesses casos deve-se usar de todos os meios
complementares disponíveis no sentido de afastar a morte violenta e, se possível,
confirmar a morte natural a partir da confirmação daquelas perturbações.
Por fim, os casos de morte violenta cuja perícia não deve apenas se
restringir ao diagnóstico da causa da morte e da ação ou do meio causador,
mas também ao estudo do mecanismo e das circunstâncias em que esse óbito
ocorreu, no sentido de se determinar sua causa jurídica.
Recomenda-se que em tais situações a necropsia seja realizada de forma
completa, metódica, sem pressa, sistemática e ilustrativa, com a anotação de
todos os dados e com a participação de no mínimo outro legista. Além disso,
deve-se usar fotografias, gráficos e esquemas, assim como os exames
complementares necessários.
A. Exame externo do cadáver. Nos casos de morte violenta, em
geral, o exame externo tem muita importância não só para o desfecho do diagnóstico
da causa da morte, como também para se considerar seu mecanismo, sua etiologia
jurídica e as circunstâncias que antecederam o óbito. Essa é a regra, embora
possa em determinada situação soar diferente. Nas mortes em que se evidencia
tortura, sevícias ou outros meios degradantes, desumanos ou cruéis, os achados
analisados no hábito externo do cadáver são de muita relevância. Os
elementos mais significativos nessa inspeção são:
A.1 –Sinais relativos à
identificação do morto. Todos os elementos antropológicos e
antropométricos,
como estigmas pessoais e profissionais, estatura, malformações congênitas e
adquiridas, além da descrição de cicatrizes, tatuagens e das vestes, assim
como a coleta de impressões digitais e de sangue, registro da presença, alteração
e ausência dos dentes e do estudo fotográfico.
A.2 – Sinais relativos às
condições do estado de nutrição, conservação
e da compleição física. Tal
cuidado tem o sentido não só de determinar as condições de maus tratos por
falta de higiene corporal higiênicas, mas ainda de constatar a privação de
alimentação e cuidados. Essas manifestações encontradas no detento podem
confirmar a privação de alimentos.
A.3 – Sinais relativos aos fenômenos
cadavéricos. Devem ser anotados todos os fenômenos cadavéricos abióticos
consecutivos e transformativos, como rigidez cadavérica, livores hipostáticos,
temperatura retal e as manifestações imediatas ou tardias da putrefação.
A.4 - Sinais relativos ao tempo
aproximado de morte. Todos os sinais acima referidos devem ser
registrados num contexto que possam orientar a perícia para uma avaliação do
tempo aproximado de morte, pois tal interesse pode resultar útil diante de
certas circunstâncias de morte.
A.5 – Sinais relativos ao meio
ou às condições onde o cadáver se encontrava. Estes são elementos
muito importantes quando presentes, pois assim é possível saber se o indivíduo
foi levado em vida para outro local e depois transportado para a cela onde foi
achado, como por exemplo, presidiários que morreram em “sessões de
afogamento” fora da cela carcerária.
A.6 – Sinais relativos à causa da morte. Mesmo que se considere
ser o diagnóstico da causa da morte o resultado do estudo externo e interno da
necropsia, podemos afirmar que no caso das mortes por tortura o exame externo do
cadáver apresenta um significado especial pela evidência das lesões sofridas
de forma violenta. Assim, devemos considerar:
A.6.1 – Lesões traumáticas.
É muito importante que as lesões esquelético-tegumentares, que são as mais
freqüentes e mais visíveis, sejam valorizadas e descritas de forma correta,
pois na maioria das vezes, em casos dessa espécie, elas contribuem de forma
eloqüente para o diagnóstico da morte e as circunstâncias em que ela ocorreu.
No estudo das lesões externas do cadáver em casos de morte por tortura
deve-se valorizar as seguintes características: multiplicidade,
diversidade, diversidade de idade, forma, natureza etiológica, falta de
cuidados e local de predileção.
Quanto a sua natureza, as lesões podem se apresentar com as seguintes
características:
a)
Equimoses e hematomas são as lesões mais comuns, localizando-se mais
comumente na face, tronco, extremidades e bolsa escrotal, apresentando processos
evolutivos de cronologia diferente, pelas as agressões repetidas em épocas
diversas;
b)
Escoriações generalizadas, também de idades diferentes, mais
encontradas na face, nos cotovelos, joelhos, tornozelos e demais partes
proeminentes do corpo;
c)
Edemas por constrição nos punhos e tornozelos, por compressão vascular, em
face da ectasia sangüínea e linfática;
d)
Feridas, na maioria contusas, nas diversas regiões, com predileção pelo rosto
(supercílios e lábios)¸ também de evolução distinta pelas épocas
diferentes de sua produção, e quase sempre infectadas pela falta de
higiene e assistência;
e)
Queimaduras, principalmente de cigarros acesos no dorso, no tórax e no ventre,
ou outras formas de queimaduras, as quais quando bilaterais têm maior evidência
de mau trato, sendo quase sempre infectadas pela falta de cuidados. As lesões
produzidas por substâncias cáusticas são muito raras devido seu aspecto
denunciador;
f)
Fraturas dos ossos próprios do nariz que, após sucessivos traumas, podem
produzir o chamado “nariz de boxeador”, quase sempre acompanhado de fratura
do tabique nasal, com hematoma bilateral ao nível do espaço subcondral, além
das fraturas de costelas e de alguns ossos longos das extremidades, sendo mais
rara a fratura dos ossos da coluna e da pélvis;
g)
Alopécias com zonas hemorrágicas difusas do couro cabeludo pelo arrancamento
de tufos de cabelo;
h)
Edemas e ferimentos das regiões
palmares e fraturas dos dedos pelo uso de palmatória;
i) Lesões oculares que vão
desde as retinopatias e cristalinopatias até as roturas oculares com
esvaziamento do humor vítreo e cegueira consecutiva;
j)
Lesões otológicas como rotura dos tímpanos e otorragia provocadas por uma
agressão de nome “telefone”;
l)
Fraturas e avulsões dentárias por traumatismos faciais;
m)
Sinais de abuso sexual de outros presidiários como manobra de tortura e humilhação
da própria administração carcerária;
n)
Lesões eletroespecíficas produzidas pela eletricidade industrial, como técnica
de tortura utilizada para obtenção de confissões, sempre em regiões ou órgãos
sensíveis, como os genitais, o reto e a boca; ou pelo uso de uma cadeira com
assento de zinco ou alumínio conhecida como “cadeira do dragão”.
Aquelas lesões são reconhecidas como “marca elétrica de Jellineck”,
na maioria das vezes macroscopicamente
insignificante e podendo ter como características a forma do condutor causador
da lesão, tonalidade branco-amarelada, forma circular, elítica ou estrelada,
consistência endurecida, bordas altas, leito deprimido, fixa, indolor, asséptica
e de fácil cicatrização. Tudo faz crer que esta lesão é acompanhada de um
processo de desidratação, podendo se apresentar nas seguintes configurações:
estado poroso (inúmeros alvéolos
irregulares, juntos uns aos outros, com uma imagem de favo de mel), estado
anfractuoso (tem um aspecto parecido com o anterior, mas com alvéolos
maiores e tabiques rotos) e estado cavitário
(em forma de cratera com apreciável quantidade de tecido carbonizado). As lesões
eletroespecíficas (marca elétrica de Jellinek) não são muito diferentes das
lesões produzidas em “sessões de choque elétrico”, a não ser o fato
destas últimas não apresentarem os depósitos metálicos face os cuidados de não
se deixar vestígios. Todas essas lesões são de difíceis diagnóstico quanto
à idade, podendo-se dizer apenas se são recentes ou antigas, mesmo através de
estudo histo-patológico;
o) Lesões produzidas em ambientes de baixíssima temperatura conhecidos
como “geladeira”, podendo ocorrer inclusive gangrena das extremidades ;
p)
Lesões decorrentes de avitaminoses e desnutrição em face de omissão de
alimentos e por falta de cuidados adequados e de higiene corporal;
q)
Lesões produzidas por insetos e roedores.
A.6.2 – Processos patológicos
naturais. Embora aparentemente de interesse mais anatomopatológico, esses
achados podem oferecer respostas para o diagnóstico de causa mortis e de
algumas circunstâncias, como também ajudar a compreender algumas manifestações
quando do exame interno do cadáver, como: desnutrição, edemas, escaras de decúbito,
conjuntivas ictéricas, processos infecciosos agudos ou crônicos, lesões dos
órgãos genitais, entre tantos.
B. Exame interno do cadáver. Alguns chamam essa fase da perícia
como a necropsia propriamente dita, mas já dissemos que há ocasiões ou tipos
de morte onde o exame externo tem uma contribuição muito valiosa.
Aqui também o exame deve ser metódico, sistemático, sem pressa, com o
registro de todos os achados e, como se opera em cavidade, deve-se trabalhar à
luz do dia, sem as inconveniências da luz artificial. Todos os segmentos e
cavidades devem ser explorados: cabeça, pescoço, tórax e abdome, coluna e
extremidades, com destaque em alguns casos para os genitais.
As lesões internas mais comuns em casos de morte por tortura são:
B.1 – lesões cranianas: a) hematomas sub ou extradural não são raros
em sevícias com traumatismos de cabeça; b) hemorragias meningeas; c)
meningite; lesões encefálicas; micro-hemorragia cerebral.
B.2 – Lesões cervicais: a) infiltração hemorrágica da tela subcutânea
e da musculatura; b) lesões internas e externas dos vasos do pescoço; c)
fraturas do osso hióide, da traquéia e das cartilagens tireóide e cricóide;
d) lesões crônicas da laringe e da traquéia por tentativas de esganadura e
estrangulamento.
B.3 – lesões tóraco-abdominais: a) hemo e pneumotórax traumático;
b) manifestações de afogamento como presença de líquido na árvore respiratória,
nos pulmões, no estômago e primeira porção do duodeno, além dos sinais clássicos
como enfisema aquoso subpleural e as manchas de Paltauf, em face de imersão do
indivíduo algemado em tanques de água em processo chamado “banho chinês”
ou introdução de tubos de borracha na boca com jato de água de pressão,
devendo-se valorizar o conteúdo do estômago e dos intestinos; c) manifestações
de asfixia, micro-hemorragias do assoalho do 3º e 4º ventrículo, edema dos
pulmões, cavidades cardíacas distendidas e cheias de sangue, presença de lesões
eletroespecíficas e ausência de outras lesões, falam em favor de morte por
eletricidade industrial, mesmo que se diga não existir um quadro anatomopatológico
típico de morte por eletricidade; d) roturas do fígado, do baço, do pâncreas,
dos rins, estômago e dos intestinos; e) desgarramento dos ligamentos
suspensores do fígado; f) hemo e pneumoperitônio; g) rotura do mesentério.
B.4
– lesões raquimedulares: a) fraturas e luxações de vértebras; b) lesões
medulares.
LEI Nº 9.455, DE 7 DE ABRIL DE 1997
Define os crimes de tortura e dá outras providências.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Faço saber que o
Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Artigo 1º - Constitui crime de tortura:
I - constranger alguém com emprego
de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental; a)
com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de
terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c)
em razão de discriminação racial ou religiosa.
II - submeter
alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave
ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo
pessoal ou medida de caráter preventivo.
Pena: reclusão, de dois a oito anos.
§1º- Na mesma pena incorre quem
submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou
mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não
resultante de medida legal.
§2º - Aquele que se omite em face
dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na
pena de detenção de um a quatro anos.
§3º -Se resulta lesão corporal de
natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se
resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.
§4º - Aumenta-se a
pena de um sexto até um terço:
I - se o crime é cometido por agente
público; II - se o crime é cometido contra criança, gestante, deficiente e
adolescente; III - se o crime é cometido mediante seqüestro.
§5º - A condenação acarretará a
perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício
pelo dobro do prazo da pena aplicada.
§6º - O crime de tortura é inafiançável
e insuscetível de graça ou anistia.
§7º - O condenado por crime
previsto nesta Lei, salvo a hipótese do §2º, iniciará o cumprimento da pena
em regime fechado.
Artigo
2º - O disposto nesta Lei aplica-se ainda quando o
crime não tenha sido cometido em território nacional, sendo a vítima
brasileira ou encontrando-se o agente em local sob jurisdição brasileira.
Artigo
3º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Artigo
4º - Revoga-se o art. 233 da Lei nº 8.069, de 13 de
Julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente.
Brasília, 7 de Abril de 1997; 176º da
Independência e 109º da República.
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
Nelson
A. Jobim
|