|           
  
        Trabalho Infantil no Brasil: Dilemas e Desafios Sven
        Hilbig*  
        
         Introdução 
        
         Nas periferias urbanas
        pobres e na zona rural a infância tem curta duração, ainda que as
        crianças sejam consideradas ‘meninos’ e ‘meninas’ (até 14
        anos). É nesta fase que são socializados no mundo do trabalho. Crianças
        e adolescentes trabalham em todas as esferas: Eles cortam cana, colhem
        café e laranjas, vendem doces e refrigerantes, vigiam carros, engraxam
        sapatos, ajudam as mães em casa, se prostituem e ganham dinheiro no tráfico
        de drogas. Trabalho infantil não
        é um fenômeno novo no Brasil. É quase tão velho como a própria história
        do país. Desde o início da colonização as crianças negras e indígenas
        eram incorporadas ao trabalho. Com o desenvolvimento socioeconômico do
        país a forma do trabalho infantil se modificou. Com a imigração
        crescente da Europa e Japão, pouco antes do final do século XIX, a
        revolução industrial chegou ao Brasil. As novas formas de divisão de
        trabalho facilitaram a próprio exercício do trabalho e possibilitaram
        a inclusão da mão-de-obra infantil a custos mais baixos,
        particularmente na industria têxtil. No século XX, o forte processo de
        migração, e conseqüentemente a urbanização, ampliaram mais uma vez
        os ramos de atividade para as crianças. Nas cidades as crianças e
        adolescentes ganham no setor informal, principalmente na oferta de serviços
        e nas atividades ilícitas (tráfico de drogas, prostituição, etc.). Em contraposição a
        essa milenar injustiça, os esforços no sentido de eliminar o trabalho
        infantil têm data recente. Só a partir do fim da década de 80 foram
        aprovadas medidas jurídicas, políticas e sociais no campo nacional e
        internacional. O mais importante nessas novas leis é que estas tinham
        por objetivo não apenas combater o trabalho infantil com sua proibição,
        mas reconheciam a cidadania das crianças e dos jovens. Com isso eles se
        tornam sujeitos de seus próprios atos com direitos a serem defendidos.
        O trabalho infantil torna-se, então, uma questão de direitos humanos.
        O objetivo deste artigo é mostrar junto com os dados estatísticos
        essas inovações.  
        
         A 
        apresentação de dados atuais O Brasil é um dos países
        que apresenta altos índices de trabalho infantil. Os dados da Pesquisa
        Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), realizada pelo Instituto
        Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que a população
        brasileira do grupo de idade de 5 a 17 anos era, em 19981 ,
        de 43 milhões de habilitantes. Deste total, 7,7 milhões trabalhavam, o
        que torna o Brasil um dos campões do trabalho infantil na América
        Latina. Apenas Haiti e Guatemala tinham mais crianças inseridas no
        mercado de trabalho. No entanto, destaca-se um aspecto positivo: em
        comparação com o ano 1992, onde 9,7 milhões das crianças e
        adolescentes trabalhavam, o número se reduziu 20% em termos absolutos. Dentro deste processo
        as crianças de mais idade têm maior participação no mercado de
        trabalho. Quase meio milhão de crianças trabalhadoras eram menores de
        9 anos, mas a grande parte (42 %) das crianças e adolescentes que
        trabalhavam tinha entre 16 e 17 anos de idade. Para o grupo de idade de
        17 anos, este universo representa 1,7 milhão de crianças, o que
        significa que a metade da população do país nessa idade trabalhava. A situação jurídica
        só é tema de um capítulo posterior. Mas anotar: a distinção entre o
        grupo de idade de 16 e 17 anos e os menores desta faixa é importante
        porque a Constituição Federal proíbe em geral o trabalho para as
        pessoas que são menores de 16 anos, enquanto que para os demais a
        proibição é limitada para algumas formas de trabalho.  
        
         Tipo
        e gênero de trabalho infantil Os dados estatísticos
        indicam que os meninos trabalham em maior proporção que as meninas. O
        número de crianças e adolescentes trabalhadores se divide em quase 5
        milhões de meninos e 2,7 milhões de meninas. Ou seja, quase dois terço
        das crianças e adolescentes que trabalham são do sexo masculino.
        Existem duas explicações principais. Primeiro, maior dificuldade de
        incorporação da mão-de-obra feminina em setores não formais.
        Segundo, a maior utilização dela em atividades domésticas, muitas
        vezes não incorporadas às estatísticas oficiais. Nesta atividade
        trabalham quase vinte vezes mais meninas do que meninos. As meninas que
        trabalham como empregadas domésticas são prejudicadas em vários
        sentidos. Além do preconceito, elas sofrem com o grande esforço físico
        e com frequentes abusos físicos
        e sexuais.  
        
          Trabalho infantil nas zonas urbanas e rurais As estatísticas sobre
        as regiões urbana e rural demonstram, primeiramente, uma concentração
        do trabalho infantil nas áreas urbanas, da ordem de 57%. Mas isso não
        significa que as crianças e os adolescentes nas cidades tenham uma
        maior necessidade de trabalhar. Observando-se a relação entre as crianças
        e adolescentes trabalhadores com a quantidade da população infantil
        nessas duas regiões, a análise torna-se mais clara: enquanto no campo
        uma de cada três crianças trabalha, na cidade apenas 13% das mesmas
        fazem o mesmo. O trabalho infantil na
        região urbana se encontra principalmente no setor informal,
        representando 40 % dessas atividades, sendo que 16% do trabalho doméstico
        não é remunerado. Nas cidades, 77% das crianças entre 10 e 17 anos
        recebem remuneração. Já no meio rural, dois terços das crianças e
        adolescentes não recebem salário. Esse índice inclui as crianças que
        trabalham com suas famílias. Quanto mais jovens são as crianças e
        adolescentes no campo, maior o volume proporcional de trabalho sem
        remuneração. O índice de crianças de 10 anos não remunerado é mais
        do que o dobro (88%) do que o dos adolescentes de 17 anos (40%).  
        
         Trabalho
        infantil e as grandes regiões A diferenciação
        regional mostra que a obrigação de trabalhar é maior para as crianças
        do nordeste. Quase um quarto, ou 3,3 milhões de crianças nordestinas
        trabalham. Em termos absolutos o sudeste ocupa o segundo lugar, com 2,2
        milhões trabalhadores infantis, apesar de, proporcionalmente, esta ser
        a região com menos trabalhadores infantis, com 13% das crianças e
        adolescentes inseridos no mercado de trabalho. A renda média mensal das
        crianças no nordeste é de R$ 77,00, enquanto os trabalhadores infantis
        no sudeste ganham mais que o dobro, R$ 157,00. As crianças que
        trabalham para o tráfico de drogas representam um caso especial, pois
        recebem altos salários. Os “fogueteiros”, que soltam fogos de artifício
        para avisar que a polícia chegou, recebem em torno de R$ 50,00 por
        semana; os “soldados”, que fazem a segurança dos pontos-de-venda, e
        os “aviões”, que vendem cocaína e maconha, chegam a receber
        semanalmente R$ 200,00. 
        
         A jornada das crianças
        trabalhadoras de 5 a 9 anos é menor do que a das crianças mais velhas.
        Enquanto as crianças mais jovens têm uma jornada média de 12 horas
        semanais, as crianças de 10 a 13 anos trabalham 22 horas semanais e os
        adolescentes no grupo de 16 a 17 anos têm uma média de até 37 horas
        semanais. Nas cidades, a jornada média das crianças e adolescentes é
        de 27 horas por semana. Na área rural a jornada é de 34 horas
        semanais.  
        
         Trabalho
        infantil e a educação 75% das crianças e
        adolescentes que trabalham também freqüentam regulamente a escola.
        Isso representa um enorme aumento em comparação aos anos anteriores:
        57% em 1992 e 64% em 1995. A evasão escolar, no entanto, aumenta de
        acordo com a idade. Enquanto 90% do grupo de idade de 5 a 13 anos freqüenta
        a escola, esse percentual diminui para 76% no grupo de 14 e 15 anos e,
        para 63% no grupo de 16 e 17 anos. Os dados também
        mostram que as chances de acesso à escola pioram em função das  
        circunstâncias de trabalho das crianças e adolescentes. Nas
        regiões urbanas a redução no acesso à escola era de 16% e, para a área
        rural, cerca de 7%. Isso gera um alto grau de analfabetismo – 20% das
        crianças na faixa de 10 a 14.  
        
         As causas para o
        trabalho infantil Existem diversos
        motivos para as crianças e adolescentes se incorporarem ao mercado de
        trabalho. A pobreza é o principal. Outra causa importante é a demanda
        do mercado de trabalho por mão-de-obra barata. Além do fato das crianças
        trabalharem por menos dinheiro, elas são mais facilmente disciplinadas
        e não estão organizadas em sindicatos. Uma outra causa é a
        tradição socioeconômica existente no Brasil. Mas é preciso
        diferenciar o trabalho infantil tradicional, como o dos descendentes dos
        imigrantes europeus, e os trabalhos infantis insalubres, perigosos ou
        penosos em carvoarias, plantações de cana-de-açúcar, de laranja ou
        pedreiras. A inserção no trabalho nas famílias de imigrantes
        italianos, alemães e poloneses do sul do país representa uma maneira
        de ensinar um ofício e ajudar na renda dos pais. Embora comecem o
        trabalho muito cedo, essas crianças não deixam de freqüentar a
        escola. Uma situação bem diferente é a das crianças que trabalham
        pesado, sem nunca freqüentar a escola. O que querem as crianças
        trabalhadoras?      A discussão entre
        afastar ou não as crianças das atividades de trabalho, ou se existem
        situações de trabalho aceitáveis para essas crianças, está sempre
        presente. O tema é debatido pelos próprios trabalhadores
        infanto-juvenis, pelos governos e organizações que lutam pelos
        direitos das crianças como a Organização Internacional do Trabalho
        – OIT e o Fundo das Nações Unidas pela Infância – UNICEF.  As crianças
        trabalhadoras, que estão organizadas desde os anos 80 em alguns países
        da América Latina, África Ocidental e Sudeste Asiático, questionam o
        fim do trabalho infantil. Elas fazem objeções contra a idade mínima
        legal para a admissão do trabalho. Primeiro, as leis se restringem à
        proibição do trabalho infantil, mas não chegam a abordar a principal
        causa do problema: a pobreza. Portanto, essas crianças dizem “sim
        para o trabalho com dignidade; e não à exploração.”  Essa discussão causou
        uma mudança de comportamento na OIT e na UNICEF, que já distinguem o
        trabalho explorador e pernicioso socialmente (child labour) do trabalho que não é econômico (child work). Enquanto o child
        labour deve ser proibido, o child
        work pode ser aceito por ter um papel na socialização infantil:
        “O trabalho pode ser bom e útil para o desenvolvimento físico, psíquico,
        social e a formação moral, se o mesmo não afetar a formação
        escolar, o descanso e repouso” (UNICEF, citado em Liebel, 1998). A OIT define child
        labour nas seguintes condições: “crianças muito jovens que
        trabalham nas fábricas; longas jornadas de 12 a 16 horas por dia;
        atividades que exigem demais das crianças no sentido físico e psíquico;
        trabalho na rua sob condições insalubres e perigosas; e atividades sem
        liberdade em condições que ferem os direitos humanos, como diversas
        formas de escravidão ou abuso sexual”. Os fundamentos jurídicos
        para combater o trabalho infantil A seguir,
        sistematizamos os principais Convênios internacionais ratificados
        pelo Brasil e os instrumentos legais de aplicação nacional que devem
        proteger as crianças contra a exploração econômica.  
        
         a)
        Os Convênios internacionais: (i) A Convenção n°
        138 da OIT fixa como idade mínima para o trabalho infantil, em geral,
        15 anos. Em junho de 1999, a mudança de consciência dentro da OIT se
        manifestou na Convenção n° 182 (instituída em novembro 2000 e
        ratificada pelo Brasil em fevereiro 2001), se posicionando contra as
        atividades infantis mais penosas. Os estados-partes comprometem-se a dar
        passos imediatos para a prevenção e erradicação das diversas formas
        de escravidão; trabalhos forçados; prostituição infantil; atividades
        ilícitas; e atividades que ferem a saúde, a segurança e a moral das
        crianças, criando condições e promovendo o acesso a eduação básica. (ii) Em 1989 foi
        aprovado a Convenção das Nações
        Unidas sobre os Direitos da Criança. Enquanto as convenções
        antigas se restringiam a um caráter apelativo, essa convenção
        regulamenta pela primeira vez os direitos das crianças de uma forma
        obrigatória. O artigo 32 obriga os Estados-partes a proteger as crianças
        contra a exploração econômica, física e psíquica. Ao contrário dos
        antidos convênios, a Convenção da Criança não só insiste na
        necessidade de proteção especial 
        das crianças, mas também lhes assegura os direitos liberais clássicos,
        como por exemplo a liberdade de expressão e informação e a liberdade
        de reunião, passando a considerar as crianças como sujeitos autônomos
        de direitos, ou seja, como portadores de direitos e liberdades.   
        
         b)
        a legislação nacional Em 1891, foi promulgada
        a primeira lei para a proteção da infância. No entanto, no decorrer
        dos cem anos subseqüentes, ela não serviu efetivamente para proteger
        as crianças que trabalhavam. A Constituição Federal de 1988 e o
        Estatuto da Crianca e do Adolscente, promulgado em 1990, representaram
        uma inovação e uma importante brecha na luta pela erradicação do
        trabalho infantil. (i) A Constituição
        Federal2  proíbe o
        trabalho de menores de 16 anos, permitindo, no entanto, o trabalho a
        partir dos 14 anos de idade, desde que na condição de aprendiz. Aos
        adolescentes de 16 a 18 anos está proibida a realização de trabalhos
        em atividades insalubres, perigosas ou penosas, trabalho que envolva
        cargas pesadas, jornadas longas, e, ainda, trabalhos em locais ou serviços,
        que lhes prejudicam o bom desenvolvimento psíquico, moral e social. (ii) Inspirado na
        Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente3 
        valoriza os direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes. O
        Estatuto reservou um capítulo especial à questão do trabalho. Os seus
        regulamentos são similares as definições da Constituição Federal no
        tocante à idade mínima e às regulamentações para os aprendizes. No
        entanto, o Estatuto estabelece direitos básicos para as crianças e os
        adolescentes e exige a formação dos conselhos de direito e conselhos
        tutelares. Os conselhos de direito para as crianças e adolescentes
        devem ser constituir no nível municipal, estadual e federal, por
        entidades governamentais e não-governamentais. O objetivo desses
        conselhos é fortalecer e promover o controle social das políticas públicas
        em torno das crianças e dos adolescentes em todos os níveis de ação.  
        
          
        
         Bibliografia:  
        
         Liebel, Manfred;
        Overwien, Bernd; Recknagel, Albert. Arbeitende Kinder stärken, 1998. Schwartzman, Simon,
        Organização Internacional do Trabalho (Brasil), Trabalho Infantil no Brasil, 2001. Fundação Abrinq pelos
        Direitos da Criança: Trabalho
        Infantil (CD-ROM), 1997. Segundo a Companhia de
        Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), cerca de 600 mil pessoas
        moram em cortiços em São Paulo. Os movimentos de sem-teto, no entanto,
        acreditam que esse número seja bem maior. De acordo com dados da
        Secretaria Municipal da Habitação, metade dos habitantes de São Paulo
        mora em habitações irregulares. |