2.
Apresentação
do problema
Este
relatório procura fornecer uma visão, ainda que parcial, das difíceis
realidades da defesa dos direitos humanos no Brasil. Para tanto,
buscou-se fornecer informações do contexto geral no qual ativistas
defendem direitos no Brasil, assim como contextos específicos nos quais
os abusos têm ocorrido com maior freqüência. O relatório documenta
cinqüenta e seis incidentes de várias formas de violação dos
direitos humanos às quais têm sido submetidos aqueles que defendem
esses direitos nos últimos cinco anos. O resumo dos casos apresentam não
só as violações mas também a resposta – ou o fracasso do governo
em responder adequadamente – tanto as ameaças de violência como as
violações consumadas.
É
necessário enfatizar aqui que este relatório não procura ser exaustivo, mas ao invés disso representa um esforço
de boa fé em pesquisar uma amostra significativa dos tipos de abuso
dirigidos a defensores dos direitos humanos em vários contextos em todo
Brasil. Tendo em vista este fim, nós procuramos incluir casos de
diferentes tipos de abuso (homicídios, ameaças de morte, ações
judiciais injusticadas), de diferentes contextos (conflitos rurais por
posse de terra, investigações urbanas da polícia, etc.) envolvendo
diferentes tipos de vítimas (defensores dos direitos humanos de ONGs,
organizações populares, grupos de direitos indígenas, ambientalistas,
etc.) nas várias regiões do Brasil. Os casos selecionados, com poucas
exceções, eram conhecidos pelas autoridades. Assim sendo, a impunidade
identificada e documentada na vasta maioria dos casos é o fator mais
preocupante.
2.1
Definindo
os defensores de direitos humanos
As
Nações Unidas têm manifestado em termos exatos que o trabalho dos
defensores de direitos humanos é de importância crucial para a promoção
dos direitos humanos através do mundo e, por esta razão, estes
defensores merecem proteção especial. A Assembléia Geral das Nações
Unidas, na Resolução 53/144, aprovou a Declaração dos Direitos e
Responsabilidades dos Indivíduos, Grupos e Órgãos da Sociedade para
Promover e proteger os
Direitos Humanos e Liberdades Individuais Universalmente Reconhecidos em
9 de dezembro de 1998, véspera do qüinquagésimo aniversário da
Declaração Universal dos Direitos Humanos. A Resolução 2000/61 da
Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, aprovada em abril de
2000, estabeleceu o mandato de Representante Especial da Secretaria
Geral sobre os Defensores de Direitos Humanos.
Ainda
que estes documentos enfatizem o papel fundamental dos defensores de
direitos humanos e criem meios de assegurar que os governos respeitem e
protejam seu trabalho, estas Resoluções não definem exatamente quem
é o defensor de direitos humanos. De forma similar, Hina Jilani,
Representante Especial da ONU sobre os Defensores de Direitos Humanos,
nomeada em decorrência da Resolução 2000/61 da Comissão de Direitos
Humanos, em seu relatório inicial sobre a situação dos defensores de
direitos humanos submetido à Assembléia Geral da ONU em 10 de setembro
de 2001, optou por não estabelecer uma definição estática do
defensor de direitos humanos.
A
Front line trabalha com a
seguinte definição de um defensor dos direitos humanos:
“Um
defensor dos Direitos humanos é uma pessoa que trabalha, de forma pacífica,
por qualquer dos direitos consagrados na declaração Universal dos direitos
Humanos.”
Esta
definição de fato abrange aqueles que defendem uma ampla variedade de
direitos, incluindo não somente os direitos humanos civis e políticos,
mas também os direitos econômicos, sociais e culturais. Neste relatório,
a Justiça Global enfatizou os assassinatos, ameaças de morte,
espancamentos, processos judiciais sem fundamento e outros meios de
intimidação dirigidos a defensores dos direitos humanos, conforme
acima definido, como resultado de seu trabalho na defesa dos direitos
humanos. O relatório também destaca casos de violações sofridas por
aqueles que defendem direitos ambientais e o direito à terra. Embora
este último direito não esteja explicitado na Declaração Universal
dos direitos Humanos, um
consenso crescente entre juristas internacionais de direitos humanos
afirma que o direito à terra para agricultura de subsistência
encontra-se implicitamente no direito à moradia e no direito à
alimentação. De qualquer forma, os defensores cujo trabalho se
concentra no direito à terra inevitavelmente defendem outros direitos básicos
dos sem terra, como o direito à vida, à integridade física e a um
devido processo legal, entre outros.
Assim,
mesmo iniciando com uma ampla definição de defesa dos direitos
humanos, nós limitamos os casos documentados àqueles nos quais as evidências
demonstram um claro vínculo entre o assassinato, ameaça de morte ou
outra intimidação sofrida pela pessoa e sua defesa dos direitos
protegidos pela Declaração Universal. Como resultado, casos nos quais
a violação sofrida não é dirigida diretamente à vítima em virtude
de seu trabalho na defesa de direitos (como um dano adquirido durante
uma manifestação pública) não estão incluídos (a menos que a
manifestação em si seja vista como uma defesa dos direitos humanos).
2.2
Defesa
dos direitos humanos no Brasil: o contexto
Em
nenhum lugar, a defesa dos direitos humanos é uma tarefa fácil. No
Brasil, aqueles que defendem os direitos humanos nos contextos urbano e
rural enfrentam intensos desafios agravados pelos altos níveis de violência.
Em particular, no Brasil urbano, as taxas crescentes de crimes nas últimas
duas décadas levaram ao descontentamento popular com a ineficiência da
polícia e do sistema judiciário, e também com os defensores de
direitos humanos, que são freqüentemente vistos como defensores dos
interesses de criminosos e de suspeitos. No Brasil rural, nos últimos
anos, movimentos sociais organizados, em particular o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), têm pressionado as autoridades a
acelerar o processo de reforma agrária, que é extremamente necessário
devido à distribuição historicamente desigual de terra (e de
riquezas) do país. Aqueles que se opõem ao Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra e suas exigências têm procurado deslegitimar a defesa
da reforma agrária e da justiça no campo ao caracterizar o MST e seus
defensores como radicais violentos. Táticas similares têm sido usadas
pelos oponentes dos direitos indígenas e ambientais como um meio de
minar a promoção desses direitos e o trabalho daqueles que os
defendem. Ainda que o Brasil não imponha restrições formais à defesa
dos direitos, os defensores de direitos humanos com freqüência
trabalham em ambientes e condições extremamente hostis. Além disso,
como explicaremos abaixo, documentos tornados públicos em 2001
demonstram que agências de obtenção de informações secretas nas forças
armadas continuam a monitorar as atividades de defensores de direitos
humanos e movimentos sociais, depois da transição para um governo
civil.
2.3
O
contexto histórico
Em
31 de março de 1964, um golpe militar pôs fim ao governo civil do
presidente João Goulart e às campanhas de reforma social que ele havia
começado. Embora os militares tenham suspendido os direitos políticos
de muitos, os primeiros anos da ditadura não foram marcados por
massivas violações dos direitos. De fato, foi após a adoção do Ato
Institucional no 5 em dezembro de 1968 (que forneceu às
autoridades militares vários poderes e restringiu severamente os
direitos individuais) que se iniciou o pior período da repressão.
Durante os últimos anos da década de 60 e maior parte da década de
70, as violações de direitos se intensificaram e incluíram todas as
piores formas características das ditaduras do cone sul: tortura,
desaparecimento forçado, prisões e assassinatos políticos, assim como
outros graves, embora menos violentos, abusos (censura, restrições à
liberdade de expressão e de associação, etc.).
No
final da década de 70, os piores abusos diminuíram significativamente;
os militares haviam eliminado (brutalmente) a vasta maioria dos grupos
que defendiam ou praticavam a oposição armada, e haviam também
reprimido violentamente outras formas de oposição. Uma abertura
gradual começou neste período, levando à Lei de Anistia de 1979, que
"perdoou" os responsáveis por abusos de direito politicamente
motivados e permitiu o retorno de exilados políticos.
A
abertura política continuou no começo da década de 80, levando ao
registro de partidos políticos e à eleição para governadores de
estado em 1982. Em 1985, através de um processo de eleição indireta,
Tancredo Neves foi escolhido para ser o primeiro presidente civil desde
o golpe de estado de 1964. Pouco tempo antes de assumir o posto, Neves
ficou seriamente doente – morrendo alguns meses depois – levando o
vice-presidente José sarney
a assumir o cargo. O período de governo de Sarney (1985-1989) culminou
com a adoção da Constituição de 1988 e eleições presidenciais e
legislativas em 1989.
2.4
Vestígios
da ditadura militar brasileira: vigilância do governo sobre cidadãos
Embora
a eleição de tancredo
Neves e a posse do presidente civil José Sarney tenham oficialmente
posto fim a duas décadas de ditadura militar no Brasil, certos vestígios
do regime repressivo militar persistem até hoje. Em particular, a
tortura
e a espionagem (o eufemismo usado por aqueles envolvidos nesta atividade
é “serviço de informações”) estão entre os mais perniciosos.
Em
junho de 2001, o Ministério Público Federal e a Polícia Federal,
revelaram documentos que demonstraram a continuidade destas práticas no
Brasil. Por solicitação
da Procuradoria Geral da República do Rio de Janeiro – através de
petição feita pelo Grupo Tortura Nunca Mais/RJ (GTNM) e outras
entidades de direitos humanos -- autoridades federais revelaram evidências
de uma operação secreta de espionagem mantida pelo governo em uma base
militar em Marabá, no estado do Pará. As forças armadas brasileiras
disfarçaram a base como uma falsa estação de notícias, e agentes
secretos do exército se faziam passar por jornalistas para colher
informações sobre moradores do local. Outros documentos revelaram
operações similares nas quais o exército usou escritórios secretos
para monitorar a área.
Marabá
é uma das 29 seções destinadas a operações secretas de informações
mantidas pelas Forças Armadas em todo o país. Uma portaria de 7 de
novembro de 1995 (Portaria No. 081-RESERVADA), criou sete Companhias de
Inteligência (Cias Intlg) e 22 Grupos Destacados, subordinados a sete
Comandos Militares Regionais, com a finalidade de monitorar entidades
livres e legais em pleno governo dos presidentes Itamar Franco e Fernado
Henrique Cardoso. As Companhias substituíram as SSOp (Subseções de
Operações, braços operacionais da área de Inteligência) e
praticamente repetem sua estrutura, que, por sua vez, havia sido herdada
dos DOI-CODI (Destacamento de Operações e Informações de Defesa
Interna), órgãos de informação e repressão do regime militar. São
cerca de 541 agentes, em sua maioria cabos e sargentos.
O
teor dos documentos descobertos pela Procuradoria Geral da República
foi revelado ao público em uma série de reportagens publicadas pela Folha de S. Paulo em agosto de 2001. Uma fonte do governo mencionada
nesta reportagem revelou que o exército conduziu suas operações
secretas para monitorar “forças adversas”, que na ampla definição
do exército abrangeriam movimentos populares e ONGs que segundo as forças
armadas “provocam
reflexos negativos para a segurança nacional”. A definição continua
equiparando os movimentos sociais ao crime organizado e ao narcotráfico.
Além disso, o exército prevê ainda a realização de “atos de
sabotagem” contra as instalações dessas organizações inclusive
através do uso de armamentos, munição e o recrutamento de informantes
(rede de informações).
Entre
os grupos sob espionagem secreta do exército estavam o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento de Luta pela Terra (MLT),
o Movimento dos Trabalhadores rurais
Brasileiros, o Movimento Muda Brasil dos Trabalhadores rurais Sem Terra (MMBTRST), a Comissão Pastoral da Terra
(CPT), o Comitê Rio Maria, o Greenpeace, Fédération Internationale
des Ligues de Droits de l’Homme (FIDH) e a Human rights
Watch.
Os
documentos revelados descreviam as seguintes operações especiais:
“Operação
Pescado” (1998) - Envolvia espionagem sobre o MST usando verbas públicas
ocultas, de duração indeterminada. Sua justificativa estava fundada no
qualificação que o Exército atribuiu ao MST como sendo uma força
revolucionária. Seu prosseguimento de forma indeterminada era defendido
como fundamental para a garantia da lei e da ordem, pois o MST tinha
como “objetivo definido tumultuar a ordem vigente e comprometer a
confiança nas instituições e no regime atual do governo”.
Operação
“Tempestade” (2000) – Também espionava a atuação do MST. Seu
objetivo era o de “levantar a localização e a data de invasões,
manifestações e ocupações” do Movimento dos Trabalhadores
Sem-Terra.
“Operação
Poseidon” (1999) – Com o pretexto de proteger os interesses
soberanos da nação na região amazônica, o Exército espionava ONGs,
sobretudo dedicadas a preservação do meio ambiente e a questão indígena,
monitorando inclusive a origem de dinheiro que as sustentavam. Previa
também o acompanhamento dos dirigentes das ONGs, juizes, parlamentares
simpatizantes e grupos nacionais e internacionais que apoiassem essas
entidades. Essa operação durou um ano e foi retomada em seguida com o
nome de “Gavião”.
Os
documentos revelados em 2001 também continham uma tabela de preços
usada por matadores de aluguel (pistoleiros) operando no norte do
Brasil, onde consta que “a morte de um trabalhador rural pode não
valer mais do que uma dose de cachaça”.
“Se o trabalhador for ligado ao MST, o custo costuma ser de
R$5.000,00.” De acordo com a lista, a vida de um delegado da Polícia
Federal valia R$15.000,00, e a de um funcionário do Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA),
dependendo de seu cargo, poderia chegar a R$10.000,00. “Carros e
motos” poderiam representar “parte do pagamento” para um
assassinato. Os documentos também davam os preços para o assassinato
de comerciantes, vereadores e proprietários de terras, variando de
R$5.000,00 a R$10.000,00.
Estes
documentos demonstram a permanência de práticas autoritárias do
aparelho repressivo que continuaram agindo impunemente após a transição
de um regime autoritário para um regime civil. Enquanto acreditava-se
que o advento da democracia supostamente havia eliminado a espionagem do
estado sobre seus próprios cidadãos, fica claro que certos vestígios
destas práticas ditatoriais permaneceram.
A
natureza dos grupos considerados suspeitos – movimentos sociais
dedicados à reforma agrária e ONGs
de direitos humanos, indígenas e ambientais – demonstra, no mínimo,
a convergência de interesses da elite rural e dos serviços militares
de inteligência no Brasil. Apesar da condenação formal de práticas
autoritárias e dos avanços legislativos - como a classificação de
tortura como um crime em 1997, e a aprovação da Lei 9.140/95, sobre
assassinatos e desaparecimentos politicamente motivados -,
o uso de serviços de inteligência militares para minar o trabalho da
sociedade civil revela a fragilidade da democracia brasileira.
2.5
O
Brasil e a proteção internacional aos direitos humanos
Outra
conseqüência do extenso período de governo militar no Brasil tem sido
um significante atraso e resistência continuada tanto à ratificação
de normas internacionais de direitos humanos, como à aceitação da
competência ou de órgãos internacionais de supervisão.
Quase duas décadas depois da transição para um governo democrático,
o Brasil continua aquém de muitos de seus vizinhos latino-americanos a
este respeito.
Antes
de sua transição para um governo democrático, o Brasil ratificou
apenas um dos seis principais tratados de direitos humanos: a Convenção
Internacional para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação
Racial (International Convention on the Elimination of All Forms of
Racial Discrimination – CERD), em 27 de março de 1968. A próxima ratificação
de tratado, a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as
formas de Discriminação contra
a Mulher (International convention
on the elimination of All
Forms of Discrimination Against women,
CEDAW), ocorreu em 1984, durante o período de transição gradual para
um regime civil. Além destas duas exceções, todas as outras ratificações
de importantes tratados de direitos humanos nas Nações Unidas e nos
sistemas Interamericanos ocorreram após a transição para um governo
civil. Assim, depois de 1988, ano da nova Constituição democrática, o
Brasil ratificou:
a
Convenção Interamericana para a Prevenção e Punição da Tortura (20
de julho de 1989);
a
Convenção contra Tortura
e Outros tratamentos Cruéis,
Desumanos e degradantes,
CAT (28 de setembro de 1989);
a
Convenção sobre os Direitos da Criança (24 de setembro de 1990);
o
Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos 24 de janeiro de
1992);
o
Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (24 de
janeiro de 1992);
a
Convenção americana de Direitos Humanos (25 de setembro de 1992);
a
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra Mulheres (27 de novembro de 1995);
o
Protocolo para a Convenção Americana para a Abolição da Pena de
Morte (13 de agosto de 1996);
o
Protocolo para a Convenção Americana de Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais (Protocolo de San Salvador) (21 de agosto de 1996).
A
Constituição de 1988 representou – e continua a representar – um
significativo avanço em termos legais, e em particular em termos do
reconhecimento formal de instrumentos internacionais de direitos
humanos. Embora nem todos os juristas brasileiros concordem, muitos
estudiosos acadêmicos defendem que as normas estabelecidas em tratados
de direitos humanos assinados pelo brasil
integram automaticamente a legislação nacional e podem ser invocadas
nas cortes brasileiras.
Apesar
desse reconhecimento formal, um lapso significativo tem permanecido
entre o reconhecimento legal das normas internacionais de direitos
humanos e sua implementação na prática. Além da existência
continuada de severos abusos de direitos humanos, as normas de direitos
humanos internacionais incorporadas às leis brasileiras raramente têm
sido aplicadas pelos tribunais brasileiros ou citadas por legisladores e
representantes do executivo em notas escritas, por exemplo. Em nível
internacional, a participação do Brasil nas estruturas criadas pelos
tratados internacionais de direitos humanos tem sido extremamente
limitada.
Uma
importante razão para a não participação do Brasil nas estruturas
internacionais de proteção dos direitos humanos tem sido a posição
excessivamente cautelosa do Itamaraty quanto ao reconhecimento da
jurisdição obrigatória dos
órgãos de supervisão internacionais. Dos seis tratados principais,
apenas dois não fornecem agora petições para indivíduos ou grupos
declararem violação de um ou mais dos direitos considerados sagrados
pelo tratado. O Acordo Internacional de Direitos Civis e Políticos,
através de seu Primeiro protocolo
Opcional, permite tais petições individuais. Tal também acontece com
a CERD, no artigo 14, e a CAT, no artigo 22. Um protocolo mais recente
da CEDAW, que entrou em vigor em 22 de dezembro de 2000, permite o
direito de petições individuais para o Comitê CEDAW. Infelizmente, até
esta data o governo brasileiro não reconheceu a competência de nenhum
destes órgãos para receber e processar queixas individuais, uma pré -
condição para acesso individual.
É
necessário notar que estes órgãos cumprem uma segunda função de
supervisão vital, além da recepção e processamento de petições
individuais contra aqueles estados que reconhecem sua jurisdição. Este
segundo tipo de supervisão envolve a revisão dos relatórios periódicos
dos estados, submetidos a estar de acordo com os termos dos tratados
principais. Aqui também o Brasil tem mantido um registro pobre. A
submissão de relatórios dentro do prazo, ou mesmo fora dele, tem sido
uma exceção, não a regra. Esta falta de colaboração tem também
contribuído para a falência geral da sociedade civil brasileira em
fazer uso dos mecanismos baseados em tratados.
2.6
O Brasil e os mecanismos especiais da Comissão de Direitos
Humanos das Nações Unidas
Apesar
da falência do Brasil em reconhecer a função de supervisão dos órgãos
convencionais das Nações Unidas, nos últimos anos o governo tem
demonstrado uma disposição crescente de cooperar com os mecanismos
especiais da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. Um
importante exemplo recente envolveu a visita do Relator Especial da ONU
sobre Tortura, Sir Nigel Rodley, ao Brasil entre agosto e setembro de
2000. Baseado nesta visita, Sir Nigel escreveu um amplo relatório sobre
tortura no Brasil, lançado em abril de 2001. O severo relatório do
Relator Especial conclui: “Tortura e formas similares de tratamento
cruel estão distribuídos numa base ampla e sistemática na maior parte
do país visitada pelo Relator Especial e, assim como sugerem
testemunhos de fonte segura apresentados ao Relator Especial, na maior
parte do restante do país”. Somado a estas conclusões, o relatório
incluiu 348 casos de tortura sobre os quais o Relator Especial colheu
informações durante sua visita.
Apenas
um mês mais tarde, o Comitê Contra Tortura (Committee Against Torture,
CAT) reviu a submissão do Brasil conforme a Convenção durante suas
sessões em maio. Pela primeira vez, grupos da sociedade civil
brasileira acompanharam as sessões do Comitê das nações
Unidas sobre a revisão de uma submissão de seu governo. Uma coalizão
de ONGs brasileiras, incluindo o Centro de Justiça Global, submeteu um
relatório paralelo, participou em um encontro especial entre membros do
Comitê CAT e a sociedade civil e acompanhou as sessões. A conclusão
do CAT enfatizou muitos dos mesmos pontos destacados pelo Relator
Especial, Sir Nigel Rodley, inclusive a natureza recorrente de tortura e
impunidade, condições precarias de detenção e a falta de mecanismos
adequados para permitir aos detentos que registrem queixas.
Durante
as sessões do CAT, o governo brasileiro informou ao Comitê que estava
preparando uma campanha nacional contra tortura. De fato, em novembro o
governo federal lançou uma campanha, que consistia primeiramente em
linhas telefônicas de denúncia controladas por organizações não
governamentais em vários estados, assim como uma série de propagandas
na televisão buscando aumentar a consciência sobre o problema da
tortura. Embora inadequada em si mesma para responder ao problema da
tortura, a campanha representa um importante reconhecimento do governo
da necessidade de ações concentradas para abolir este horrendo e ainda
rotineiro abuso de direitos. A campanha também demonstra o impacto
importante que a supervisão internacional pode ter na formulação de
políticas nacionais no Brasil.
Em
março de 2002, o Relator Especial da ONU sobre o Direito à Alimentação,
Jean Zeigler, visitou o Brasil. Embora o governo brasileiro tenha
convidado a Relatora Especial da ONU sobre Execuções Extrajudiciais,
Sumárias, ou Arbitrárias, Asma Jahangir, a visitar o país em 2002,
uma data para a visita ainda não havia sido estabelecida quando este
relatório foi finalizado.
2.7
O
status legal da defesa de direitos humanos no Brasil
O
governo brasileiro não impõe restrições formais ao direito de
defender os direitos humanos. Mesmo assim, como analisamos acima na seção
2.4, sobre os vestígios da ditadura militar, forças de espionagem
continuam a controlar as atividades de grupos de direitos e outros
movimentos sociais.
De
qualquer forma, a falta de restrições por si só não é suficiente
para explicar o contexto legal da proteção de direitos. As leis
brasileiras não estabelecem normas específicas concernentes à defesa
de direitos. Ao invés disso o regime legal concernente ao trabalho dos
defensores de direitos humanos consiste na regulação das atividades
individuais que constituem a promoção e defesa dos direitos humanos.
Assim, para entender a estrutura legal em que os direitos humanos são
defendidos no Brasil, é necessário se referir à legislação
concernente ao acesso à informação e as repartições públicas (como
delegacias de polícia e centros de detenção), liberdade de expressão,
liberdade de imprensa, etc. A Constituição brasileira assegura o
direito à informação (Artigo 5 (XIV)) em termos gerais e garante a
liberdade de expressão: “é livre a expressão da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença”.
Uma
medida legal que constitui um sério obstáculo à defesa dos direitos
merece ser mencionada aqui. As leis brasileiras fornecem proteção da
honra individual através da criminalização do discurso ofensivo. O Código
Penal Brasileiro prevê o processo criminal por calúnia, difamação e
injúria. Cidadãos que acreditam que sua honra foi ofendida podem
registrar representações no
Ministério Público ou com a polícia local alegando o cometimento de
um ou mais destes três crimes por uma pessoa em particular. O crime de
calúnia envolve a falsa atribuição de comportamento criminoso a uma
pessoa. O crime de difamação consiste em atribuir a uma pessoa um ato
considerado moralmente ofensivo. O crime de injúria é definido como
atos (geralmente na comunicação falada ou escrita, embora gestos
possam constituir tais atos) que ofendem o decoro ou dignidade de uma
pessoa. Calúnia pode ser punida com um tempo de prisão de seis meses a
dois anos, difamação com uma pena de três meses a um ano de prisão e
injúria pode ser punida com uma pena de um a seis meses de prisão.
As sentenças podem ser acrescentadas em um terço se a parte ofendida
é um funcionário público, ou quando a ofensa é cometida em um lugar
público. A sentença pode ser dobrada quando a ofensa é cometida em
troca de pagamento. Enquanto os primeiros dois crimes geralmente
permitem uma defesa completa quando a acusação não é falsa, o último
crime, injúria, não permite esta exceção.
A
proteção legal da honra, em si, não constitui necessariamente um
problema para a defesa dos direitos. No entanto, esta proteção aliada
aos altos níveis de impunidade de violadores de direitos cria uma
combinação perigosa. Primeiro, porque o sistema legal freqüentemente
falha em investigar, processar e punir aqueles responsáveis por graves
abusos, os violadores de direitos humanos freqüentemente permanecem sem
punição por anos (ou para sempre) depois de cometerem seus crimes.
Como resultado, a atribuição de responsabilidade por um abuso de
direitos (atos geralmente classificados como criminais ou ofensivos) a
uma pessoa que não foi condenada por tal crime será geralmente
considerada como legalmente falsa. Assim a impunidade largamente
difundida dos ofensores de direitos humanos no Brasil, combinada à lei
criminal que protege a honra, citada acima, criam uma poderosa arma que
pode ser usada para intimidar os defensores de direitos humanos:
processo por difamação. Como este relatório demonstra, este artifício
legal é usado com freqüência como um meio de repressão ou intimidação
contra aqueles que denunciam abusos de direitos humanos.
2.8
Capacidade
de monitorar os direitos humanos
Um
elemento básico na defesa de direitos humanos é o direito de pesquisar
e documentar condições em contextos diferentes. Ao investigar potenciais
abusos cometidos em instalações controladas pelo estado, as restrições
de acesso nessas instalações podem tornar a defesa de direitos humanos
difícil ou impossível. A este respeito, a legislação e a prática
concernentes ao acesso aos centros de detenção são analisadas aqui.
As
leis brasileiras sustentam a fiscalização de centros de detenção por
seis diferentes órgãos: o Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária, o Departamento Penitenciário, o Ministério Público,
os Conselhos Penitenciários, e os Conselhos da Comunidade das várias
varas de execução penal.
Além disso, parlamentares são autorizados a entrar em prédios públicos,
inclusive centros de detenção. Na prática, contudo, estas corporações
raramente fazem uso de sua prerrogativa legal para visitar centros de
detenção. Quando o fazem, eles com freqüência encontram resistência
dos agentes penitenciários, diretores ou policiais encarregados da
supervisão dos centros de detenção.
O
acesso a centros de detenção para grupos da sociedade civil é
particularmente problemático. Na maior parte das jurisdições os
conselhos comunitários, requeridos pela lei de Execução Penal de
1984, não foram estabelecidos ou estão inoperantes. Na prática, os
grupos de direitos enfrentam grandes dificuldades em obter acesso aos
centros de detenção. Na verdade, até mesmo grupos internacionais de
direitos humanos bastante conhecidos, como Human Rights Watch e Anistia
Internacional, têm encontrado dificuldades no acesso aos centros de
detenção no Brasil. Um relatório de 1998 da Human Rights Watch sobre
prisões resumiu a questão de monitorar direitos humanos nestas condições:
O
Brasil, com sua estrutura política democrática e a política oficial
do governo de promoção dos direitos humanos, deveria apresentar um
ambiente favorável à fiscalização dos direitos humanos.
Percebemos, no entanto, que obter acesso às penitenciárias e
delegacias do país, para nossa surpresa, foi muito difícil. Nossos pesquisadores enfrentaram recusas claras e, mais freqüentemente,
procedimentos com obstáculos desnecessários que implicavam, na
verdade, em perda de tempo.
Os
problemas encontrados por grupos de direitos locais são com freqüência
ainda mais severos, minando sua capacidade de monitorar a situação dos
direitos em muitos centros de detenção.
2.9
Impunidade
Um
fator fundamental para a continuidade dos abusos contra ativistas de
direitos é o alto nível de impunidade gozado por aqueles que ameaçam,
intimidam e violam a integridade física dos defensores de direitos
humanos. Enquanto a impunidade, temperada por uma condenação eventual,
é a regra para aqueles que cometem abusos diretamente (geralmente
capangas), a falência uniforme em investigar e processar é mais
ultrajante no que diz respeito aos autores intelectuais de crimes contra
defensores de direitos humanos. Como mostra este relatório, dos cinqüenta
e seis incidentes documentados, em quarenta e seis, mais de 80% do
total, nossos registros indicam que nenhum avanço significativo, como
identificação, prisão ou implicação dos responsáveis, ocorreu. Dos
dez casos com algum avanço, em sete os suspeitos foram presos. Nós não
recebemos informação alguma indicando alguma condenação em nenhum
dos casos.
Talvez
mais preocupante sejam as estatísticas concernentes às respostas
oficiais a ameaças de morte. A este respeito, não temos conhecimento
de um único caso em que as ameaças de morte contidas neste relatório
– e que foram todas reportadas às autoridades estaduais e federais
sem atraso – tenham resultado em prisão, julgamento e condenação
daqueles responsáveis. De fato, em apenas um incidente (contra a
vereadora Cozete Barbosa) entre trinta e dois casos de ameaça de morte,
houve algum avanço significativo registrado (indiciamento de cinco
suspeitos). A falência geral em investigar ameaças de morte pode ser
mais condenável que o pobre desempenho das autoridades em casos de
homicídio por pelo menos duas razões. Primeiro, as ameaças de morte
ocorrem com muito mais freqüência que o assassinato de ativistas de
direitos humanos. Segundo, em quase todos os casos de homicídio de
defensores de direitos registrados, o assassinato é precedido por ameaças
de morte. Assim, quando as autoridades respondem efetivamente a ameaças
contra defensores, a chance de aumento dos eventuais danos infligidos é
largamente reduzida.
Infelizmente,
as autoridades brasileiras têm respondido timidamente a ameaças de
morte contra ativistas de direitos. Mesmo naqueles casos em que pressões
internas e internacionais forçam as autoridades a tomar medidas
concretas, estas são limitadas à proteção da pessoa ameaçada.
Embora essa proteção seja claramente bem-vinda e represente um avanço
por parte do governo federal, ela não responde às principais causas
das ameaças. A este respeito, o caso de Roberto Monte e Plácido
Medeiros de Souza é ilustrativo. Como explicamos na análise do caso no
capítulo sobre Defesa dos Direitos Humanos no Brasil Urbano, ameaças
de morte e um clima de medo levaram os ativistas, com a assistência do
Centro de Justiça Global, a requerer da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos e da Representante Especial da ONU sobre os Defensores
de Direitos Humanos, Hina Jilani, medidas preventivas para sua situação.
No caso de Monte e Plácido, os ativistas forneceram às autoridades e
às corporações internacionais não apenas detalhes sobre as ameaças,
mas também informações sobre os prováveis responsáveis pelo risco
de suas vidas. De qualquer forma, embora em dezembro de 2001 a Comissão
Interamericana tenha autorizado o requerimento de medidas preventivas
(que envolviam etapas para assegurar a detenção segura de um dos possíveis
responsáveis pelas ameaças), o governo, até a data em que este relatório
foi escrito, tinha falhado em implementar as medidas requisitadas. A
resposta do governo tem sido oferecer inclusão num programa de proteção
às testemunhas, ao invés de investigar completamente e deter aqueles
responsáveis pelas ameaças.
A
dinâmica se repete através dos casos analisados neste relatório.
Quando o governo responde, o que tende a ocorrer apenas em casos
excepcionais nos quais uma pressão significativa é aplicada, o foco é
a proteção por um curto período de tempo, ao invés da investigação
e julgamento daqueles responsáveis pelas ameaças. Em casos que
resultam em morte ou ferimentos graves, o foco da investigação é
invariavelmente sobre aqueles diretamente responsáveis – ou seja,
capangas e assassinos de aluguel – ao invés dos autores intelectuais
dos crimes. O resultado desse padrão de respostas ineficientes do
governo é permitir a persistência de um clima de medo e intimidação
para aqueles que levantam suas vozes contra os abusos cometidos por
interesses poderosos em todos os contextos examinados neste relatório.
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