Violência x Violência:
Violações aos
Direitos Humanos e Criminalidade no Rio de Janeiro
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I. INTRODUÇÃO E
RECOMENDAÇÕES
II. RIO DE JANEIRO:
O TRÁFICO DE DROGAS
E A VIOLÊNCIA OFICIAL
III. A
OPERAÇÃO RIO
IV. CONCLUSÃO
V. AGRADECIMENTOS
"Só
com sangue o problema do tráfico será resolvido. É a única linguagem que
eles entendem"
-Mário Azevedo,
delegado da 21a. Delegacia
Policial, Rio de Janeiro
"As
instituições policiais estão numa situação de tragédia para a sociedade.
As pessoas confiam mais no traficante que no policial"
-General Nilton Cerqueira,
Secretário de Segurança Pública
"Não
somos um batalhão de assistentes sociais; é impossível evitar um excesso ou
outro"
-General Roberto Jugurtha Câmara
Senna,
comandante das forças da
Operação Rio
I. INTRODUÇÃO E
RECOMENDAÇÕES
Uma das cidades mais bonitas do hemisfério, o
Rio de Janeiro é hoje freqüentemente descrita como uma cidade sitiada. Não
há dúvidas de que o crime violento aumentou significativamente durante a
última década. O índice de homicídios no Rio, por exemplo, triplicou nos
últimos quinze anos, passando de 2.826 casos em 1980 para 8.408 mortes em
1994.A preocupação da população cresceu na mesma medida. A imprensa, a
sociedade civil e políticos têm se preocupado especialmente com a violência
relacionada com as quadrilhas organizadas e o tráfico de drogas.
Infelizmente, os esforços para a aplicação da
lei e combate ao crime contaram com numerosas e flagrantes violações de
direitos humanos. Apesar das boas intenções de algumas autoridades, a maior
parte da polícia fluminense continua a ser violenta e corrupta, e a cometer
excessos. Neste relatório, a Human Rights Watch/Americas documenta casos de
brutalidade policial, incluindo dois massacres nos quais vinte e sete moradores
de uma favela foram assassinados. Também documentamos as violações de
direitos humanos ocorridas durante a maior campanha até agora posta em prática
contra as quadrilhas de traficantes de drogas do Rio de Janeiro: a Operação
Rio, realizada entre novembro de 1994 e meados de 1995.
Nos últimos anos, o Brasil se tornou uma rota
cada vez mais importante para a cocaína produzida nos países andinos e
destinada à Europa e aos Estados Unidos, assim como um importante mercado para
o consumo. Grande parte do tráfico de drogas no Brasil concentra-se no Rio de
Janeiro, onde os níveis mais baixos da hierarquia do tráfico são dominados
por quadrilhas organizadas entrincheiradas nas favelas.
Conflitos pelo controle de territórios entre as
quadrilhas são freqüentes e, graças a um próspero comércio ilegal de armas,
violentos. Confrontos entre a polícia e os traficantes são muitas vezes
marcados por tiroteios indiscriminados, que algumas vezes atingem transeuntes
inocentes: principalmente favelados, mas também moradores de bairros de classe
média e alta. A crescente indignação da população contra a violência
causada pelas quadrilhas de traficantes e por policiais e as manobras de
candidatos ao governo do estado, assim como a pressão constante da imprensa,
levaram a um convênio entre o estado do Rio de Janeiro e o governo federal para
trazer tropas militares federais para auxiliar a polícia, no final de 1994.
O convênio desencadeou um esforço conjunto, sem
precedentes, entre os militares e a polícia, para erradicar as quadrilhas
criminosas do Rio de Janeiro. A Operação Rio, como foi chamada, realizou
dezenas de ocupações - muitas com a duração de vários dias - nas favelas do
Rio e municípios vizinhos, incluindo a Baixada Fluminense e Niterói. Nos
primeiros dois meses e meio, período mais intenso da Operação Rio, os
militares e a polícia prenderam cerca de 200 pessoas, detiveram para
averiguação quase 400 e apreenderam perto de 300 armas de fogo, 74 quilos de
maconha e mais de sete quilos de cocaína. O tráfico de drogas nas favelas foi
temporariamente interrompido. A maioria dos observadores acredita, contudo, que
os traficantes retomaram seus negócios assim que as tropas se retiraram das
favelas.
A Operação Rio foi marcada por torturas,
prisões arbitrárias e buscas sem mandado judicial, além de pelo menos um caso
de uso desnecessário de força letal. Alguns desses abusos, tais como submeter
bairros inteiros a buscas casa por casa, foram expressamente autorizados e
inclusive exigidos pelos objetivos estratégicos da operação. Outros abusos,
como as torturas, não foram abertamente incluídos no projeto da Operação
Rio. Não obstante, a incapacidade das autoridades civis e militares de
responder rápida e decisivamente às denúncias de excessos no desenrolar da
Operação Rio, as declarações públicas de autoridades no sentido de
justificar os "excessos" cometidos durante a operação, e a ausência
até esta data de condenações por excessos praticados contra muitos favelados
sugerem uma indiferença aterradora das autoridades brasileiras para com a
violação dos direitos humanos. Sugerem, também, aquiescência tácita com
essas violações.
Durante a Operação Rio, o Exército foi
mobilizado para ajudar na luta contra o tráfico de drogas precisamente por
causa da violência e corrupção notórias da polícia fluminense.
Infelizmente, a Operação Rio não incluiu medidas, nem por parte do estado,
nem das autoridades federais, para combater as violações aos direitos humanos
cometidas pelos policiais fluminenses. Como consta desse relatório, a polícia
fluminense continua a violar direitos humanos fundamentais no desempenho de suas
tarefas rotineiras de combate ao crime. Se o governo federal do Brasil quer
contribuir significativamente para a luta contra o crime no Rio, sua atenção
deve se dirigir também para a violência fardada que reproduz a violência
particular. Deve também assegurar que os militares não se utilizem dos
métodos abusivos proibidos pelos tratados internacionais de direitos humanos
ratificados pelo Brasil.
A convicção de que a violência está fora de
controle no Rio e de que a cidade está infestada de criminosos alimentou uma
política pública irresponsável, que tolera a conduta policial abusiva e
estimula a violência oficial. Um ano depois do lançamento da Operação Rio, a
Human Rights Watch/Americas busca chamar a atenção pública para a falta de
cumprimento com as normas internacionais de direitos humanos por parte das
autoridades federais e fluminenses, especialmente durante a maior campanha
contra o tráfico já realizada no Brasil. O tráfico de drogas e a violência
que o acompanha se tornaram, sem dúvida, uma ameaça crescente para os
cidadãos do Rio e de outras áreas do Brasil, mas operações de combate às
drogas que não respeitam os direitos humanos subvertem o Estado de Direito. A
Human Rights Watch/Americas conclama os governos federal, estadual e municipal a
aderir às normas internacionais de respeito aos direitos humanos no desempenho
de suas políticas de combate ao crime. Recomendamos às autoridades que usem
sua força institucional e sua influência política e moral para incentivar o
respeito aos direitos humanos pela polícia e pelas forças armadas, para
condenar publicamente e de forma inequívoca a violência ilegal praticada por
agentes do poder público, e para assegurar que os agentes que violem a lei
sejam processados.
Baseados em nosso estudo da Operação Rio e em
nossos vários anos de pesquisas sobre a conduta da polícia fluminense, também
apresentamos as seguintes recomendações:
Recomendações
1. As estratégias de aplicação da lei devem
estar de acordo com as normas nacionais e internacionais que proíbem buscas e
prisões arbitrárias, normas que devem proteger os moradores das favelas tanto
quanto os de apartamentos de luxo. Buscas feitas casa por casa em vastas áreas
geográficas violam o direito dos moradores à liberdade e à privacidade;
nenhum lar deveria ser revistado sem a existência de evidências específicas
que apontem a conexão de seus moradores com uma conduta criminosa. No mesmo
sentido, as prisões devem ser realizadas de acordo com os requisitos
constitucionais e internacionais que regulam os mandados de prisão e as
prisões em flagrante. Prisões sem mandado não devem ser utilizadas como meio
de facilitar interrogatórios para a coleta de provas ou de intimidar os
moradores.
2. Os excessos cometidos por membros da polícia
e membros das forças armadas que estejam desempenhando funções policiais
devem ser rigorosa e prontamente investigados e punidos. Nem a importância dos
objetivos de combate ao crime, nem considerações políticas, nem o
envolvimento das forças armadas devem obstruir os esforços para assegurar que
todos os agentes do Estado que violarem os direitos humanos sejam processados.
Até a data da edição desse relatório, as investigações de numerosos casos
de torturas e homicídios praticados por policiais e militares foram proteladas,
arquivadas ou abandonadas. A Human Rights Watch/Americas conclama as autoridade
políticas, judiciárias e militares a tomarem medidas para responsabilizar
penalmente os que cometem excessos e assegurar que as investigações e
processos prossigam com presteza e com todos os recursos necessários.
3. A justiça militar facilita a impunidade para
os crimes cometidos por membros da polícia e das forças armadas contra civis.
Os Conselhos de Sentença da justiça militar, tribunais de primeira instância,
no Brasil, compostos de quatro oficiais militares e um juiz togado (um civil,
bacharel em direito), raras vezes condenam militares responsáveis pelas
violações aos direitos humanos dos civis. Deve ser atribuída a tribunais
civis a competência para julgar todos os casos que envolvam assassinatos,
torturas ou outras violações sérias de direitos humanos cometidas por membros
da polícia ou das forças armadas.
4. O governo federal deve assumir
responsabilidade direta pela instauração e devido prosseguimento de processos
contra as violações de direitos humanos cometidas por membros da polícia e
das forças armadas. Como este relatório documenta, a justiça estadual tem
tradição em não julgar de forma satisfatória as autoridades que cometem
crimes. A justiça federal tem se mostrado menos vulnerável às pressões
políticas para ser mais rígida com a criminalidade.
5. É necessária uma nova legislação para
tipificar o crime de tortura, de acordo com as obrigações atribuídas ao
Brasil pela Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis,
Desumanas ou Degradantes. Atualmente, o único tipo penal aplicável à tortura
é o de lesões corporais, o mesmo utilizado quando uma pessoa esmurra
outra. Este crime acarreta penalidades mínimas e está sujeito a prescrição.
Tipificar o crime de tortura seria uma demonstração inequívoca da firme
determinação da nação em combater as violações de direitos humanos como
uma prática policial.
6. A legislação brasileira deve eliminar o
dispositivo legal que proíbe a "vadiagem" e modificar a lei que
permite a prisão temporária, de forma a evitar prisões arbitrárias que
violam as normas internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil.
A lei de contravenções penais prescreve até
três meses de cadeia para a "vadiagem", definida como
"entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o
trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou
prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita". Como ficou
demonstrado durante a Operação Rio, essa legislação discriminatória
presta-se a excessos em larga escala ao fornecer um pretexto para a detenção
de favelados que não têm comprovante de emprego, mesmo quando não existem
quaisquer indícios de conduta criminosa. Esta lei deve ser abolida.
A Human Rights Watch/Americas está preocupada
com uma lei de 1990 que permite a detenção durante trinta dias de suspeitos de
envolvimento no tráfico, além de outros crimes violentos, facilitando abusos
como a prisão arbitrária. A lei permite detenção por trinta dias sem direito
à liberdade provisória, mesmo sem acusações formais. Tal detenção pode ser
determinada por um juiz com o mínimo de provas. A Human Rights Watch/Americas
recomenda que o governo brasileiro avalie cuidadosamente a compatibilidade desta
legislação com os padrões internacionais dos direitos humanos.
7. Embora a Human Rights Watch/Americas
reconheça a importância de proteger os soldados e policiais envolvidos nas
operações contra as drogas, as medidas de segurança não devem impedir que
aqueles que pratiquem excessos sejam responsabilizados penalmente. Todo policial
ou militar uniformizado deve usar etiquetas de identificação. Todo policial ou
militar deve se identificar sempre que solicitado pelas pessoas que estão sendo
detidas, ou por familiares ou advogados que estejam buscando informações sobre
essas pessoas.
8. Ao longo dos anos, a Human Rights Watch/Americas
e outras organizações têm recomendado uma série de medidas para promover a
adesão da conduta policial aos tratados internacionais de direitos humanos e
para assegurar que os policiais que cometam excessos sejam responsabilizados
penalmente. Um número crescente de analistas e observadores da Polícia Civil
do Rio de Janeiro acredita que a corrupção e o uso da violência tornou-se
tão enraizada que é necessária uma reforma radical da instituição. A Human
Rights Watch/Americas acredita que as autoridades estaduais devem considerar
seriamente esta proposta. Na ausência de uma restruturação global da
polícia, continuamos a recomendar a adoção das seguintes medidas:
Controle da força letal. As autoridades
devem tomar medidas decisivas para assegurar que os agentes policiais usem de
força letal apenas como último recurso para proteger a vida: não deve ser
usada para eliminar pessoas simplesmente porque são vistas como indesejáveis
ou criminosas em potencial, nem deve ser usada quando, desnecessariamente, põe
em perigo a vida de terceiros.
Investigações Policiais. Mesmo nos casos
mais sérios de excessos policiais contra civis, como os que envolvem
assassinatos, por exemplo, as investigações são superficiais, incompletas e
freqüentemente realizadas de má-fé. O procedimento investigativo deve ser
alterado para assegurar que os membros de uma divisão ou distrito policial não
sejam designados para investigar abusos praticados por membros da mesma
divisão. Além disso, conselhos de direitos humanos compostos de representantes
da sociedade civil, organizações não-governamentais e outros grupos
independentes, devem ser criados para supervisionar a atuação da polícia e
receber denúncias de violações praticadas por policiais. As vítimas e seus
representantes devem ter acesso aos registros das investigações, e devem ser
mantidas a par da situação em que se encontram os processos contra policiais
acusados de abusos dos direitos humanos, de forma compatível com a eficácia da
investigação e os direitos dos policiais acusados.
Proteção às testemunhas. Muitas
testemunhas dos abusos policiais têm medo de testemunhar temendo retaliações.
Um programa nacional abrangente para proteger as testemunhas, alterando suas
identidades e permitindo sua mudança para outras áreas do país, é essencial.
Procedimentos especiais, como o uso de testemunhos filmados ou gravados, devem
ser admitidos para acelerar as investigações e proteger as testemunhas do
confronto direto com seus agressores.
Coleta e publicação de dados. Conforme
as recomendações feitas anteriormente pela Human Rights Watch/Americas, os
órgãos do poder público começaram a compilar e tornar disponíveis dados
sobre os homicídios cometidos pela polícia fluminense. A supervisão da
atuação da polícia seria facilitada, contudo, se os dados fossem reunidos e
organizados de forma a facilitar a inspeção da conduta policial dentro de cada
distrito. As autoridades devem também informar periodicamente o público sobre
o número de investigações criminais e administrativas em curso contra
policiais, bem como a situação em que se encontram essas investigações.
Disciplina administrativa. Além do
processo criminal formal, as autoridades policiais devem realizar inspeções
internas rigorosas para identificar e disciplinar policiais que cometam
violações ou que deixem de tomar as medidas apropriadas para prevenir ou
tornar pública a conduta criminosa de outros policiais. Os policiais acusados
de homicídio devem ser no mínimo remanejados para postos onde não manipulem
armas de fogo, até que a investigação termine.
II. RIO DE JANEIRO: O TRÁFICO
DE DROGAS E A
VIOLÊNCIA OFICIAL
A polícia fluminense tem tradição em
violação de direitos humanos. Embora o uso de tortura possa ter declinado nos
últimos anos, o uso ilegal de força letal continua demasiado freqüente.
Conforme mencionado em relatórios anteriores da Human Rights Watch/Americas, as
tentativas realizadas pelas autoridades para combater os abusos da polícia não
conseguiram reprimir os homicídios de pessoas suspeitas, crianças de rua e
outros "socialmente indesejáveis" realizados por policiais em
serviço e por grupos de extermínio muitas vezes formados por ex-policiais ou
por policiais de folga. Segundo cifras fornecidas à Human Rights Watch/Americas
pelo Secretário Estadual de Segurança Pública do Rio de Janeiro, nos
primeiros sete meses de 1995 a polícia do Rio matou 191 civis, classificados de
"meliantes". Comparados com outras cidades com níveis semelhantes de
criminalidade, o número de civis mortos pela polícia fluminense é alarmante.
Em Nova Iorque, por exemplo, a polícia matou vinte e quatro civis em 1992 e
vinte e cinco em 1993.
Os excessos cometidos pela polícia estão cada
vez mais ligados ao tráfico de drogas no Brasil. As quadrilhas de traficantes
fizeram das favelas fluminenses seu domínio. Os esforços da polícia para
eliminar essas quadrilhas fortemente armadas têm se caracterizado por
execuções sumárias e pelo uso desnecessário e negligente da força letal.
Antes da década de 80, a droga ilegal de mercado
no Brasil era principalmente a maconha, uma droga de importância econômica
limitada cuja venda - principalmente através de pontos de distribuição em
favelas - e uso eram em grande medida ignorados pela polícia. Com o surgimento
de um mercado internacional para a cocaína, a natureza e o impacto do tráfico
de drogas transformou-se significativamente. O Brasil funciona hoje
principalmente como rota de passagem: a cocaína produzida na Colômbia,
Bolívia e Peru entra no país por terra, pelo ar e pelos rios; é então
enviada através de grandes centros de distribuição como o Rio de Janeiro e
São Paulo para os mercados consumidores da Europa e Estados Unidos. Existe
ainda um importante mercado interno para a cocaína, composto em grande parte
pelas classes médias e altas urbanas, e por turistas.
Embora não existam cifras confiáveis, é ponto
pacífico que o tráfico de drogas no Brasil é um negócio que envolve muitos
milhões de dólares e continua a crescer. Em 1994, a Divisão de Repressão a
Entorpecentes da Polícia Federal apreendeu 11,8 toneladas de cocaína,
superando as apreensões de sete toneladas em 1993 e 1,7 toneladas em 1989. Os
lucros derivados do tráfico de cocaína foram estimados em US$ 4.000 por dia em
uma favela comercialmente ativa, e em US$ 1 milhão por dia arrecadado em todo o
estado do Rio de Janeiro por um chefão do tráfico. Um estudo estima em 9.000
os empregos gerados pelo tráfico carioca. A Segunda Seção da Polícia Militar
fluminense estima em 11.340 o número de pessoas envolvidas com o tráfico no
Rio de Janeiro em 1994, incluindo 4.800 chefes, 4.400 "soldados",
1.400 "olheiros" e 740 vendedores. De acordo com a polícia, os
traficantes mantêm aproximadamente 344 pontos de venda no estado do Rio; os
quinze pontos principais estão localizados na zona norte da cidade.
Quadrilhas organizadas de diferentes tamanhos e
estruturas controlam os escalões mais baixos da hierarquia de distribuição de
cocaína. Há muito tempo baseadas nas favelas, as quadrilhas são conectadas
entre si de forma tênue por alianças com um dos dois maiores e mais antigos
grupos, o Comando Vermelho e o Terceiro Comando. O tráfico de cocaína
substituiu os assaltos a bancos e seqüestros como prática tradicional das
quadrilhas, e também as incentivou a se armarem com arsenais sofisticados. De
acordo com estimativas da Polícia Militar do Rio de Janeiro, as 5.000 armas
possuídas pelas quadrilhas incluem rifles AR-15, M-16, FAL (usado pelos
militares) e HK-223, espingardas calibre 12, metralhadoras, pistolas, granadas
de mão, lançadores de granada e até mesmo mísseis antiaéreos que podem
abater helicópteros a uma distância de até 300 metros.
A competição entre as quadrilhas pelo controle
dos pontos de distribuição de droga mais lucrativos é constante e violenta.
Acredita-se que muitos dos homicídios que acontecem no Rio de Janeiro têm sua
origem nas disputas entre as quadrilhas. O resultado dessas disputas inclui
transeuntes inocentes mortos por balas perdidas; transeuntes também são mortos
ou feridos durante confrontos entre as quadrilhas e a polícia. Embora a maioria
das mortes de transeuntes ocorram nas favelas, em alguns casos, que obtiveram
repercussão pública, as balas perdidas atingiram moradores de partes mais
abastadas da cidade, provocando indignação entre os setores mais influentes.
O surgimento da cocaína como uma fonte de renda
para as quadrilhas "deu ao tráfico de drogas uma importância sem
precedentes na vida econômica e política" das comunidades faveladas.Em
muitas favelas, as quadrilhas oferecem importantes oportunidades de emprego.
A personalidade e as práticas comerciais de
alguns dos chefes do tráfico fazem com que sejam vistos como heróis locais,
preocupados com a comunidade e merecedores de seu respeito. As quadrilhas,
tradicionalmente, fornecem à comunidade benefícios que incluem serviços de
caridade e assistência financeira. Por exemplo: quando um favelado extremamente
pobre morre, o chefe do tráfico local pode pagar seu funeral. Os chefes do
tráfico muitas vezes pagam remédios e tratamentos médicos que os favelados
não têm condições de obter, e providenciam transporte para o hospital em
seus próprios carros ou naqueles sob seu controle. A ausência de serviços
públicos na maioria das favelas inclui a ausência de policiamento. Na
ausência da polícia, os traficantes exercem as funções de segurança interna
e combate ao crime: julgam e punem ladrões e outros delinqüentes,
estabelecendo castigos que podem incluir espancamentos, tiros não-fatais em
extremidades do corpo, e até mesmo execuções sumárias. Os traficantes
também controlam o acesso a muitas favelas, permitindo a entrada apenas dos
moradores da favela ou de quem tiver - de acordo com seus critérios - razões
para estar ali.
Em certa medida, a penetração das quadrilhas
nas favelas se tornou possível por causa da ameaça de violência que exercem.
Os traficantes forçam as comunidades a repudiar a cooperação com a polícia.
Os suspeitos de serem informantes da polícia são tratados duramente. Mas mesmo
sem essa pressão os favelados têm pouco estímulo para cooperar com a
polícia, que tradicionalmente os têm tratado com violência.
A presença da polícia nas favelas acontece no
contexto de incursões fortemente armadas em busca de drogas ou em combate às
quadrilhas. Poucas testemunhas dos assassinatos cometidos pela polícia
fluminense estão dispostas a vir a público e contradizer as versões oficiais
de que as mortes foram causadas pelo uso legítimo de força letal. Não
obstante, investigações realizadas pela imprensa, por organizações de
direitos humanos e, ocasionalmente, por órgãos do poder público, determinaram
a culpa da polícia em alguns casos. Por exemplo: em pelo menos dois casos
recentes, que envolveram a morte de vinte e sete pessoas, a polícia claramente
excedeu os limites legais para o uso da força letal e assassinou
arbitrariamente moradores de uma favela. A investigação realizada pela Human
Rights Watch/Americas sobre esses casos revela ainda que as autoridades têm
demonstrado pouco interesse em determinar a responsabilidade e punir os agentes
responsáveis por esses crimes.
Nova Brasília I
Em 18 de outubro de 1994, cerca de 120 policiais
fortemente armados, provenientes em sua maioria da Divisão de Repressão a
Entorpecentes (DRE), invadiram a favela de Nova Brasília. Os policiais
dividiram-se em seis grupos, e em poucas horas mataram treze moradores, dentre
os quais quatro menores. Segundo a versão da Polícia, as treze vítimas
morreram em um tiroteio intenso, por elas iniciado.
A invasão policial de 18 de outubro foi
aparentemente a resposta oficial para um ataque à 21a. Delegacia Policial em
Bonsucesso, realizado por traficantes três dias antes, em que três policiais
foram feridos por disparos de metralhadora. Após o ataque, Mário Azevedo,
delegado titular do distrito, anunciou: "Isto foi apenas o começo. Eles
querem guerra e terão guerra. Só com sangue o problema do tráfico será
resolvido. É a única linguagem que eles entendem."
Embora a imprensa tenha descrito o ataque à
favela como um tiroteio entre a polícia e traficantes, investigações
subseqüentes revelaram que o que ocorreu foi na verdade um massacre,
caracterizado por "crueldade e sadismo". Evandro de Oliveira, de
dezesseis anos de idade, foi baleado nos olhos. Embora nenhuma testemunha ocular
tenha vindo a público, moradores da favela afirmam ter ouvido de testemunhas
que um agente policial fez comentários sarcásticos a Evandro, dizendo-lhe que
ele "tinha os olhos azuis, da mesma cor do assassino, e não seria mais o
garanhão da favela" antes de o executar à queima-roupa com um tiro em
cada olho. Outra vítima, identificada apenas como "Paizinho", era o
namorado de Juliana Ferreira de Carvalho, de dezesseis anos de idade. Juliana
testemunhou que, por volta de cinco horas da manhã, a polícia invadiu sua
casa, bateu em Paizinho, e o levou algemado. O corpo de Paizinho apareceu mais
tarde no Instituto Médico Legal (IML). Duas jovens viram a polícia levar
André Luís Neri Silva algemado da casa em que dormia. Seu corpo foi um dos
onze arrastados pela Polícia até a praça principal da favela e seu nome está
entre os que constam no relatório policial sobre o incidente.Outra vítima,
Ranílson de Souza, apareceu algemado sob custódia policial em uma reportagem
televisiva naquele dia. Seu corpo mais tarde apareceu no IML.
Os laudos dos médicos legistas apontam a
existência de execuções sumárias: Evandro foi baleado nos olhos; outra
vítima recebeu sete tiros na nuca; outra recebeu dois tiros na cabeça. A
maioria das outras vítimas também foi baleada na parte superior do corpo e na
cabeça.
De acordo com moradores e sobreviventes, a
Polícia cometeu graves excessos durante sua incursão na favela, incluindo o
abuso sexual de três jovens. Uma das três, de dezesseis anos de idade, disse
às autoridades que, no dia da invasão, ela e duas amigas passavam a noite em
sua casa quando dez policiais entraram na casa e forçaram as três a deitar na
cama de barriga para baixo. Um policial espancou-as nas nádegas. Em seguida,
outro policial levando-a ao banheiro:
"(...) encostou uma pistola na cabeça
da declarante dizendo que a mataria caso a mesma se recusasse a tirar a
roupa; que a declarante foi obrigada a despir-se e o policial praticou sexo
na sua bunda; que a declarante dizia que nunca havia feito sexo daquela
forma ao que o policial respondia ameaçando cada vez mais (...)
Outra das vítimas foi atacada por um policial
que tentou forçá-la a fazer sexo oral com ele. Quando ela resistiu, ele se
masturbou e ejaculou no seu rosto.
Além do inquérito policial realizado pela
Divisão de Repressão a Entorpecentes (DRE), sob o número 187/94, uma
investigação paralela foi iniciada na Delegacia Especial de Tortura e Abuso de
Autoridade (DETAA). Como parte da investigação da DETAA, o governador do
estado do Rio de Janeiro nomeou uma Comissão Especial, composta pelo então
Secretário de Segurança Pública Arthur Lavigne, pela chefe da Corregedoria
Geral da Polícia Civil, Martha Rocha, pelo diretor geral do Departamento Geral
da Polícia Especializada, Luiz Mariano dos Santos, por um representante da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Antônio Passos, e pelo pastor Caio
Fábio de Araújo. O relatório da Comissão, datado de 1o. de dezembro de 1994,
concluiu que pelo menos algumas das mortes foram sem dúvida execuções
sumárias. Não obstante, mais de um ano após o incidente, o inquérito
policial ainda não foi concluído. Nenhum dos oito policiais cuja
participação no massacre foi comprovada foi chamado para depor, tanto no
inquérito da DRE como no da DETAA. Nenhuma das testemunhas oculares foi chamada
para depor no inquérito da DRE. Até agora, ninguém foi preso ou processado
com base nas mortes de 18 de outubro.
A Human Rights Watch/Americas encontrou-se com
Hamilton Carvalhido, Procurador-Geral de Justiça do Estado do Rio, e com Maria
Inês Pimentel, promotora encarregada do caso. Nenhum dos dois se comprometeu a
processar criminalmente os policiais responsáveis pelos excessos. Em várias
reuniões, a Dra. Maria Inês mostrou ceticismo em relação às alegações das
testemunhas e sobreviventes e uma inclinação tendenciosa em favor da versão
policial dos fatos.
Nova Brasília II
Sete meses depois dos acontecimentos de outubro,
a favela de Nova Brasília foi novamente o cenário de diversos assassinatos
cometidos pela polícia. Na madrugada de 8 de maio de 1995, policiais civis da
Divisão de Repressão a Roubos e Furtos contra Estabelecimentos Financeiros
(DRRFCEF) invadiram a favela para tentar capturar um traficante que esperava
grande carregamento de drogas e armas. O delegado titular da divisão policial
era Mário Azevedo, que havia sido delegado titular da 21a. Delegacia Policial
na época do primeiro massacre em Nova Brasília.
As forças policiais que invadiram a favela eram
compostas de quinze policiais sob o comando do delegado Marcos Reimão,
auxiliados por dois helicópteros com policiais armados com rifles e
metralhadoras. Durante a operação, a polícia matou quatorze jovens; nenhum
policial foi ferido ou morto por tiros. A polícia colocou os corpos - que,
segundo a versão policial, ainda tinham vida - em uma kombi da Comlurb e os
levou em seguida até o Hospital Getúlio Vargas, onde os jovens foram
declarados mortos ao chegarem.
Segundo Marcos Reimão, a polícia foi recebida a
tiros, sendo forçada a responder. Reimão também insinua em seu relatório
sobre o incidente que algumas das vítimas se mataram umas às outras em fogo
cruzado. Testemunhas do incidente, contudo, apresentaram uma versão diferente:
afirmaram que a polícia matou um homem com um tiro disparado dos helicópteros,
que mais dois homens foram mortos por policiais em um tiroteio em um beco, e
que, pouco depois, a polícia cercou uma casa em que oito homens procurados
estavam escondidos. Os homens gritaram que estavam desarmados e pediram à
polícia que poupasse suas vidas. A polícia entrou na casa atirando e matou os
oito no primeiro andar da casa. A polícia, então, arrastou os corpos até o
kombi da Comlurb, que os levou ao hospital. Algumas horas depois, a polícia
matou mais três homens em um local conhecido como "Inferno Verde".
Embora a investigação policial tenha sido
iniciada pela 27a. Delegacia Policial, foi posteriormente encaminhada à
Divisão de Roubos e Furtos, a mesma divisão responsável pela operação. A
investigação sobre as mortes foi superficial e claramente destinada a
corroborar a versão dos policiais participantes da operação. O relatório da
polícia baseia-se, em grande parte, em depoimentos praticamente idênticos aos
dos policiais envolvidos, justificando o ocorrido; não inclui depoimentos de
testemunhas oculares que afirmam que a polícia executou oito homens que já
haviam se rendido; e não recorre às provas técnicas. Embora evite depoimentos
de testemunhas oculares, o relatório policial inclui, todavia, um depoimento de
um morador da favela afirmando que as treze vítimas eram traficantes, e que os
traficantes costumam pagar três mil reais para cada policial morto em um
tiroteio.
Em uma entrevista com a Human Rights
Watch/Americas, a Promotora Maria Inês Pimentel demonstrou maior interesse na
vida pregressa das vítimas do que na conduta da polícia. Além disso, declarou
que estava certa de que as treze vítimas eram traficantes porque as
investigações haviam demonstrado que doze delas não moravam na favela. Embora
as vítimas não tivessem ficha criminal, Dra. Maria Inês atribuiu esse detalhe
ao fato de serem jovens, descartando a possibilidade de que não tivessem
envolvimento com o crime. Dra. Maria Inês não fez com que a polícia tomasse
depoimentos de um número razoável de testemunhas. Também não determinou a
realização de testes de balística ou outros exames do local do crime. Até a
edição desse relatório, mais de seis meses depois do incidente, nenhum
policial foi indiciado ou mesmo preso por seu envolvimento no massacre.
A ausência de baixas policiais e de civis
feridos por tiros também colocam em dúvida a versão oficial. Geralmente, em
uma troca de tiros, o número de feridos (civis ou policiais) é sempre maior do
que o de mortos. Além disso, não importa quão experiente seja a polícia,
sempre que há um grande número de civis mortos em um confronto armado, a
polícia quase sempre também sofre baixas. Todavia, em 8 de maio, as únicas
vítimas, e todas fatais, foram civis. Nenhum civil foi ferido; nenhum policial
foi morto ou ferido a bala.
Talvez o que mais questione a versão policial
dos fatos sejam os laudos do médico legista. Esses laudos mostram que as treze
vítimas receberam, no total, quarenta e sete ferimentos à bala, trinta dos
quais na cabeça e no peito. Quatorze tiros penetraram nas vítimas por trás.
Os ângulos de entrada e saída das balas também sugerem que diversas vítimas
estavam deitadas no chão quando foram baleadas. Os padrões de ferimento à
bala são mais compatíveis com uma execução sumária do que com um tiroteio.
Em vez de deixar o local do crime intacto para
facilitar as investigações, a polícia removeu as vítimas em uma kombi da
Comlurb. Os policiais afirmaram em seus depoimentos que não conseguiram
distinguir quem estava ferido e quem estava morto, e acharam melhor levar todos
ao hospital (ver foto de capa). A explicação é suspeita: diversas vítimas
foram baleadas tantas vezes que devem ter morrido poucos minutos após receberem
os tiros; uma das vítimas tinha a maior parte de seu crânio despedaçada. A
prática de remover corpos do local do crime já foi relatada em relatórios
anteriores da Human Rights Watch/Americas. Em um relatório de maio de 1993,
citamos pesquisa realizada pelo jornalista Caco Barcellos:
Quando uma pessoa leva um tiro simplesmente
porque fugiu da polícia ou quando a pessoa é morta mais deliberadamente
(...) provavelmente receberá diversos tiros até morrer. Mesmo morta, ela
será, em seguida, levada para o hospital, sugerindo, assim, que os
policiais estão se esforçando para manter a vítima viva, porém, por
outro lado, estão dificultando a investigação do tiroteio.
Shopping Rio Sul
A violência policial não está restrita às
favelas e a polícia nem sempre se preocupa em escondê-la do público. A
execução sumária de Cristiano Moura Mesquita de Melo sugere o que poderia ser
chamado de uma indiferença arrogante da parte de alguns policiais em respeitar
a lei e a vida humana.
Em 4 de março de 1995, Cristiano e mais dois
homens assaltavam uma farmácia, localizada no shopping center Rio Sul, no
bairro de Botafogo. A polícia chegou e um dos três homens conseguiu fugir
correndo. Outro foi morto a tiros pela polícia enquanto tentava escapar em uma
kombi. O terceiro, Cristiano, foi ferido, detido e revistado por policiais. Na
frente de dezenas de pessoas, o cabo Flávio Ferreira Carneiro arrastou
Cristiano para trás da kombi e o matou com três tiros. O que torna esse caso
excepcional é o fato de que foi filmado por uma equipe da Rede Globo. As
imagens do assassinato foram mostradas na televisão brasileira e estrangeira,
incluindo a CNN e a BBC.
Em 15 de setembro, um tribunal militar declarou o
cabo Flávio culpado pelo assassinato de Cristiano, condenando-o a vinte anos de
prisão. O tribunal também condenou o policial que segurou Cristiano e absolveu
outros três policiais. O advogado do cabo Flávio alegou perante o tribunal que
Cristiano havia assaltado uma farmácia em um shopping center lotado, com o
intuito de espalhar terror e pânico, sendo, portanto, um terrorista; sua
eliminação teria, então, um "relevante valor social", o que
garantiria ao cabo uma redução da pena. Um dos juizes aceitou a tese da defesa
do "valor social" da execução. Felizmente, a maioria dos juizes não
aceitou esta teoria e insistiu em aplicar uma pena de vinte anos de reclusão.
A Resposta Popular à Polícia
Os índices de criminalidade cada vez mais altos,
as mortes de transeuntes causadas por balas perdidas e confrontos intensos entre
traficantes e a polícia levaram a tentativas de justificar a violência
policial como inevitável, e mesmo necessária, em uma cidade em "estado de
guerra". Pesquisas de opinião pública indicaram considerável apoio
popular ao duro tratamento de suspeitos. Em vez de condenar o uso excessivo ou
ilegal de força, autoridades governamentais procuraram justificá-la e mesmo
encorajá-la. Por exemplo, o governador Marcello Alencar explicou à imprensa
que o incidente em frente ao shopping Rio Sul tinha que ser entendido dentro da
"situação limite que define o combate duro e direto entre policiais e
criminosos quando em circunstâncias de tensão extrema."Alencar também
declarou que o assassinato foi um "episódio isolado" - uma
declaração espantosa quando se pensa nos cerca de 200 homicídios cometidos
pela polícia na primeira metade de 1995. No mesmo sentido, no dia seguinte ao
incidente na favela de Nova Brasília, em 8 de maio, o governador declarou que
não queria que os policiais envolvidos fossem alvo de críticas ou punições.
O Secretário de Segurança Pública, general Nilton Cerqueira, também deu
declarações que parecem encorajar a polícia sob seu comando a ignorar as
normas básicas que deveriam regular a conduta policial. Em 19 de maio de 1995,
Cerqueira disse à imprensa que "o primeiro tiro é mortal. Nossa
recomendação é para o policial atirar primeiro" e "o policial, pai
de família e soldado da lei, não pode ser morto por bandidos".
Por outro lado, a incapacidade da polícia de
controlar as quadrilhas, assim como sua própria reputação de corrupção e
violência, levou à crescente falta de confiança da população nos policiais.
De acordo com Cerqueira, "as instituições policiais estão numa
situação de tragédia para a sociedade. As pessoas confiam mais no traficante
que no policial." A polícia fluminense sempre foi corrupta. Mas nos
últimos anos, segundo o ex-Procurador Geral de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro, Antônio Carlos Biscaia, a corrupção se tornou endêmica entre estas
forças mal remuneradas. O chefe da polícia civil do Rio de Janeiro, Hélio
Luz, declarou publicamente que "não se trafica nada nesta cidade sem a
conivência da polícia."O ex-Secretário de Segurança Pública, Arthur
Lavigne, estima que nove entre dez policiais cariocas são corruptos. O atual
Secretário, general Nilton Cerqueira, concorda: "A polícia Civil parece
estar corroída por dentro, com bandidos ocupando cargos de
responsabilidade." Em entrevista com a Human Rights Watch/Americas,
Cerqueira notou que 304 dos 362 policiais assassinados desde 1994 no estado do
Rio estavam de folga quando foram mortos. Cerqueira acredita que o alto número
de mortes de policiais de folga reflete a corrupção da polícia e sua
participação no violento submundo do crime.
III. A OPERAÇÃO RIO
Ao longo de 1994, cresceu a inquietação
pública com as mortes causadas por balas perdidas, quadrilhas de traficantes e
pela polícia violenta e corrupta, e a intervenção militar foi sendo cada vez
mais apontada como a única solução. O clamor público afirmando que o Rio
havia se tornado uma cidade dominada pelo caos alcançou seu ponto culminante
nos meses anteriores às eleições de novembro. A política partidária
desempenhou papel importante nesse processo. Durante a campanha eleitoral para
governador, disputada principalmente entre Anthony Garotinho, do Partido
Democrático Trabalhista (PDT), e Marcello Alencar, do Partido da
Social-Democracia Brasileira (PSDB), os críticos do PDT e de suas políticas
liberais estimularam uma intensa campanha nos meios de comunicação para
mostrar o Rio como uma cidade violenta, insegura e sem policiamento, buscando
culpar o então Governador Nilo Batista e seu predecessor, Leonel Brizola (ambos
do PDT), pela situação. No mês de outubro, a polícia fluminense se envolveu
no massacre na favela de Nova Brasília. O massacre provocou uma enxurrada de
notícias nos meios de comunicação criticando a polícia e clamando por uma
intervenção militar. Antes do fim da campanha, ambos os candidatos já haviam
anunciado seu apoio à intervenção.
Embora o governador Nilo Batista, preocupado com
as possíveis violações de direitos humanos, tenha inicialmente se oposto à
intervenção, a conjuntura política em favor de uma solução
"militar" para o crime no Rio de Janeiro mostrou-se esmagadora. Em 31
de outubro, o governador, representando o estado do Rio de Janeiro, e o
presidente Itamar Franco, representando a União, assinaram um convênio para
permitir operações conjuntas do exército com a polícia para eliminar o
tráfico de drogas e armas no Rio. Quase imediatamente, a imprensa chamou o
convênio e as ações efetuadas sob sua égide de "Operação Rio".
O convênio de 31 de outubro teve como alvo o
tráfico de drogas e armas realizado pelas quadrilhas. O texto do convênio diz,
em parte:
Considerando que o tráfico ilícito de
entorpecentes e o contrabando de armas é hoje fundamentalmente uma questão
internacional sendo, portanto, sua repressão da responsabilidade direta da
União; [e]
Considerando que a situação da
criminalidade no estado do Rio de Janeiro, com a atuação de grupos de
delinqüentes, estruturados em torno do tráfico local de drogas e
fortemente armados, gerando a intranqüilidade e a insegurança no seio da
população e violando os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos;
Cláusula primeira - O presente Convênio tem
por objetivo fixar, nos termos constitucionais, diretrizes e mecanismos de
colaboração entre a União e o Estado do Rio de Janeiro no que diz
respeito à preservação da lei, da ordem pública e da segurança do
cidadão, especialmente no que concerne à prevenção e repressão do
contrabando de armas e do tráfico de drogas.
O convênio era bastante breve, contendo apenas
seis cláusulas além dos parágrafos introdutórios. Ele autorizava a criação
de uma entidade pelo Estado do Rio de Janeiro, a ser dirigida pelo chefe do
Comando Militar do Leste, que iria "planejar, coordenar e unificar a
atuação das Secretarias de Estado de Justiça, da Polícia Militar, Polícia
Civil, e da Defesa Civil, no combate à criminalidade." O Governo Federal
concordou em intensificar o patrulhamento das vias aéreas, marítimas e
terrestres de acesso ao Rio para combater o tráfico de armas e drogas ilegais e
em intensificar as ações da polícia federal e da polícia rodoviária federal
para este fim. O convênio não especificava a natureza das ações a serem
tomadas no Rio para combater o tráfico de drogas e o crime, e também não
fazia nenhuma referência ao problema da violência policial.
No dia 18 de novembro, tropas invadiram cinco
favelas, três das quais localizadas na zona sul da cidade, e duas na zona
norte. Essas ações iniciais estabeleceram o padrão que iria ser repetido nos
meses seguintes em dezenas de favelas em todo o município do Rio. No começo da
manhã, centenas de soldados usando capuzes ou pintura facial de camuflagem
entravam na favela e estabeleciam postos de controle nas entradas das favelas.
Os soldados e oficiais envolvidos nas ações recusavam-se a se identificar; as
etiquetas de identificação eram cobertas ou arrancadas. O propósito declarado
desse sigilo era proteger os envolvidos nas ações contra possíveis
represálias dos traficantes.
Os soldados controlavam as entradas das favelas
durante toda a ocupação, exigindo que todos os que entrassem ou saíssem
apresentassem documentos de identidade. Muitos moradores que não podiam
apresentar documentos de identidade eram presos. As tropas ocupavam o prédio ou
prédios com melhor infra-estrutura no local (na maioria dos casos, escolas ou
igrejas), usando-os como centros de operação provisórios. Uma vez obtido o
controle da favela, os soldados e policiais empreendiam vastas buscas casa por
casa, prendendo moradores que considerassem suspeitos. Os presos eram levados ao
centro de operações; alguns eram imediatamente liberados após
interrogatório, outros eram mantidos presos. A maioria das ocupações durava
um ou dois dias.
Nos primeiros dois meses da Operação Rio
(novembro e dezembro de 1994), as tropas realizaram ações em dezenas de
favelas, incluindo as favelas dos morros do Dendê, da Mangueira, do Urubu, de
São Carlos, da Mineira e do Querosene, além de favelas na Ilha do Governador e
em Niterói, de onze favelas no complexo do Alemão e 18 favelas do bairro de
Água Santa. Durante esse período, forças da Operação Rio entraram em zonas
mais abastadas da cidade uma única vez, quando realizaram buscas com cães
treinados em 370 apartamentos à Rua Sá Ferreira, em Copacabana.
No começo da Operação Rio, as autoridades
negaram o acesso da imprensa às favelas ocupadas. Todos que não fossem
moradores da favela ocupada, incluindo representantes da Human Rights
Watch/Americas e de outros grupos de direitos humanos, eram impedidos de entrar
para vistoriar a ação da polícia e dos militares. Posteriormente, alguns
poucos membros da imprensa tiveram permissão para entrar nas favelas durante as
ocupações. Mas, em geral, os repórteres tiveram acesso a uma visão bastante
limitada das operações. Depois que a imprensa começou a veicular matérias
sobre torturas nas favelas do Borel e da Chácara do Céu (ver adiante), o
Comando Militar do Leste expulsou os repórteres da sala de imprensa que até
então ocupavam no quartel-general do Comando, e os obrigou a manter uma
distância mínima de 200 metros das dependências do quartel.
A hostilidade dirigida aos profissionais dos
meios de comunicação se tornou mais evidente durante a ocupação, no dia 12
de janeiro, de onze favelas do complexo do Alemão. Durante essa operação, o
repórter Nelson Carlos e o fotógrafo Alaor Filho, do Jornal do Brasil,
foram espancados. Alguns soldados também esmurraram José Luís Vilhena,
repórter de O Globo, no rosto e na barriga. Segundo os repórteres, as
tropas ignoraram suas reclamações, dizendo: "pode falar com o governador
e com quem você quiser. Quem está mandando mesmo aqui somos nós".
Prorrogações da Operação Rio
O convênio criando a Operação Rio expirou em
31 de dezembro de 1994. No dia 10 de janeiro, as autoridades federais e
estaduais recém-eleitas assinaram um acordo prorrogando os termos do convênio
por mais um mês. Muitas das favelas ocupadas em novembro e dezembro foram
reocupadas. No fim do mês (em 23 de janeiro), o General Roberto Jugurtha Senna
renunciou ao comando da Operação Rio e voltou a Brasília. O então
Secretário estadual de Segurança Pública, general Euclimar da Silva, ficou
responsável pela Operação Rio. Por meio de uma segunda prorrogação, as
autoridades federais e estaduais estenderam a Operação Rio até o dia 3 de
março.
No dia 4 de abril, as autoridades federais e
estaduais deram início à "Operação Rio II". O general Abdias da
Costa Ramos, chefe do Comando Militar do Leste; o general Euclimar da Silva,
Secretário Estadual de Segurança Pública; o delegado Eleutério Parracho,
Superintendente da Polícia Federal; e João Bernardo de Souza, Superintendente
da Polícia Rodoviária Federal, assumiram em conjunto a responsabilidade pela
direção da Operação Rio II. O Secretário de Segurança Pública declarou
que não havia planos para a ocupação de favelas durante a Operação Rio II.
Soldados e policiais foram espalhados pela cidade, em vez de se concentrarem em
massa em determinados locais. Segundo o governador Marcello Alencar, a
Operação Rio II foi "para valer (...) bandido que puxar a arma vai
morrer." Apesar dessa retórica beligerante, a Operação Rio II foi
realizada com relativa pouca reação popular e cobertura da imprensa.
Nessa segunda fase da Operação Rio, o papel das
forças militares federais foi significativamente reduzido, limitando-se a
atividades como a instalação e operação de barreiras nas estradas, que se
supõe ser a principal via de transporte de drogas e armas usada por quadrilhas.
A polícia civil e a polícia militar ficaram responsáveis pela segurança
pública e pelo combate ao crime nas favelas. No mês de maio, três
acontecimentos marcaram o ressurgimento do papel desempenhado pela polícia. No
dia 8, quinze policiais civis, auxiliados por dois helicópteros, atacaram a
favela de Nova Brasília, matando pelo menos treze pessoas (ver subtítulo
"Nova Brasília II"). No dia 24, cerca de 150 policiais militares e
civis invadiram quatro morros: do Alemão, da Coroa, da Mineira e do Andaraí -
matando cinco pessoas e prendendo um homem suspeito de ser traficante. Em 28 de
maio, cerca de 300 policiais militares invadiram o morro do Alemão, matando
quatro supostos membros da quadrilha do traficante "Marcinho da Vila
Norma", e prendendo mais oito suspeitos.
Em maio, o governador Marcello Alencar substituiu
o Secretário de Segurança Pública, general Euclimar da Silva, pelo general
Nilton Cerqueira, militar reformado e deputado federal.
Nos meses seguintes à indicação de Cerqueira
como Secretário de Segurança, a presença dos militares foi gradualmente
reduzida. No final de junho, Cerqueira começou a desmontar o aparato criado
pela Operação Rio. Cerqueira também instituiu uma política de presença
permanente da polícia em favelas especialmente problemáticas. Um exemplo desse
tipo de operação permanente foi a instalação de um quartel-general da
Polícia Militar no complexo do Alemão, na zona norte da cidade.
No final de outubro, contudo, a criminalidade
continuava tão intensa quanto antes, e as autoridades consideraram mais uma vez
a possibilidade de uma nova intervenção militar federal no Rio para combater o
crime. Em 3 de novembro, o presidente Fernando Henrique Cardoso e o governador
Marcello Alencar acertaram um convênio para combater a violência no Rio, que
incluía o envolvimento direto das forças armadas para combater o tráfico de
drogas e armas. Até meados de janeiro, época da redação final desse
relatório, nenhuma atividade militar havia sido anunciada publicamente.
Violações aos Direitos Humanos
Estimulados pelo clamor da opinião pública em
favor de uma solução militarizada para a questão da violência e apoiados
pelas autoridades civis, os comandantes da Operação Rio se mostraram dispostos
a tolerar uma vasta gama de violações aos direitos humanos praticadas por seus
subordinados. A cada favela ocupada, as forças da Operação Rio promoviam uma
série de irregularidades, tais como buscas domiciliares ilegais, detenções
arbitrárias e por tempo demasiadamente longo, e tratamento cruel aos eventuais
prisioneiros. A regularidade dos abusos praticados pelas tropas foi reconhecida
pelo chefe da Operação Rio, general Roberto Jugurtha Câmara Senna. Num
encontro com vereadores do município do Rio de Janeiro logo após o início da
operação, Câmara Senna afirmou: "Não somos um batalhão de assistentes
sociais; é impossível evitar um excesso ou outro". Os excessos incluíam
a tortura de presos. Após investigar algumas denúncias de tortura, o Promotor
de Justiça da 20a.Vara Criminal, Dr. Nilo Cairo Lamarão, concluiu que "as
Forças Armadas e o Batalhão de Operações Especiais da PM transformaram os
morros cariocas em campos de concentração". A Human Rights Watch/Americas
não encontrou, até o presente momento, um único caso em que os responsáveis
pelos abusos cometidos tenham sido julgados e punidos.
Buscas Ilegais e Prisões Arbitrárias
Uma tática central usada durante a Operação
Rio consistia em isolar as favelas ocupadas e conduzir uma rigorosa busca, casa
por casa, até que fossem encontradas armas, drogas ou outras provas de
envolvimento com a criminalidade. O Direito brasileiro exige que as buscas sejam
previamente autorizadas por uma ordem judicial que especifique, o mais
precisamente possível, a casa a ser revistada.Subvertendo o espírito da lei,
que visa proteger os direitos à inviolabilidade do domicílio e à liberdade
individual, os comandantes da Operação Rio obtiveram mandados judiciais
autorizando a busca domiciliar em áreas vastas e mal definidas. Os favelados
tiveram seus lares revistados, não porque houvesse uma razoável suspeita de
que pertenciam ao comércio de drogas ou de que haviam cometido um crime
qualquer mas, tão somente, porque viviam numa determinada favela. Muitas destas
buscas eram conduzidas de forma agressiva, com emprego de meios violentos. Em
vários casos, os moradores das favelas tiveram seus pertences revirados e seus
móveis danificados. Na entrada de algumas favelas, policiais e soldados
realizavam revistas generalizadas, sem ordem judicial, nos moradores e
visitantes que por ali passavam, inclusive crianças.
Em gritante desrespeito às normas legais sobre
as detenções, as tropas da Operação Rio detiveram, sem mandado, centenas de
pessoas que não se encontravam em situação de flagrante delito. Moradores das
favelas sitiadas eram detidos apenas porque não portavam carteiras de
identidade, ou porque as tropas resolviam conduzir interrogatórios. Pelo mais
fútil dos motivos, ou simplesmente sem motivo algum, moradores foram detidos e
submetidos a interrogatórios.
Um dos casos que obteve maior publicidade foi a
prisão de Edson José de Jesus, um morador do morro do Dendê levado por
fuzileiros navais no dia 20 de novembro por ter o mesmo apelido -
"Tatu" - que um traficante suspeito de ter matado um policial. O
"Tatu" procurado pelo crime, contudo, já havia morrido três anos
antes. Mesmo havendo mostrado como documento de identidade uma carteira de
trabalho assinada por seu empregador, Edson foi levado para uma unidade militar,
onde ficou mantido incomunicável.
Um morador contou à Human Rights Watch/Americas
que ficou detido por oito horas apenas porque soldados encontraram em sua casa
uma cápsula de bala já disparada, que havia sido guardada como recordação.
Outro caso que ganhou notoriedade foi a prisão
de Ubiraci de Oliveira, o mestre Bira, presidente de uma associação de
moradores na Mangueira e conhecido ritmista daquela escola de samba. Mestre Bira
foi preso juntamente com Antônio Rodrigues da Costa, vice-presidente da
associação, apenas por haverem descoberto num barraco que pertencia à
associação uma quantia alta de dinheiro. Depois de detidos e levados a
Polinter, os militares exibiram um mandado de prisão temporária expedido depois
de efetuada a prisão. Ambos permaneceram presos por trinta dias sem que
nenhuma acusação fosse formalizada contra eles.
Detenções por Períodos Injustificáveis
Muitos dos cidadãos detidos durante a Operação
Rio foram soltos logo após breves interrogatórios. Em alguns casos, como o do
mestre Bira, os prisioneiros ficaram detidos por trinta dias, nos termos das
ordens judiciais de prisão temporária.
De acordo com as leis nos. 7.960/89 e 8.072/90,
um juiz pode ordenar a prisão de um cidadão por até trinta dias se existirem
fundadas razões que indiquem envolvimento com os chamados crimes hediondos,
entre os quais figura o tráfico de drogas. Nos termos da citada lei, a prisão
temporária se justifica como medida de auxílio nas investigações policiais
em curso. Inexistindo uma investigação policial prévia, um mandado judicial
de prisão temporária não deveria ser expedido.
Na prática, entretanto, diversas pessoas foram
detidas durante a Operação Rio e permaneceram presas por trinta dias sem que
fossem indiciadas num inquérito. Por exemplo, a Human Rights Watch/Americas
investigou sete casos de pessoas detidas durante a operação no morro do
Alemão entre os dias 13 e 14 de janeiro de 1995. Embora todos tivessem sido
presos em regime de prisão temporária por trinta dias, em nenhum dos sete
casos foram encontrados registros de inquéritos instaurados antes ou durante o
período em que ficaram presos. Em alguns casos, os mandados de prisão
temporária foram expedidos depois da prisão. (V., por exemplo, os casos de
mestre Bira e André Melo do Nascimento, abaixo).
A detenção de um suspeito por trinta dias sem
que lhe sejam apresentadas acusações formais pode ser incompatível aos
preceitos do direito internacional. Tanto o Pacto Internacional sobre Direitos
Políticos e Civisquanto a Convenção Americana sobre Direitos Humanos protegem
o direito à liberdade individual exigindo que os suspeitos sejam formalmente
acusados e prontamente levados diante de um juiz.
Os favelados detidos e feitos prisioneiros pela
Operação Rio permaneceram sob custódia durante horas nas centrais de
operações improvisadas entre os barracos da favela. Os detidos ficaram longos
períodos sem receber água ou alimento e impedidos de receber visitas de
familiares e advogados. Aqueles que não eram logo soltos, eram encaminhados às
celas dos presídios comuns que, por sua vez, encontram-se aquém dos patamares
estabelecidos pelas normas internacionais. Cerca de trinta a cinqüenta presos
eram mantidos em celas desenhadas para acomodar meia dúzia de pessoas.
Equipamentos sanitários nas celas se limitam a um buraco no chão com uma
torneira, servindo ao mesmo tempo de banheiro, pia e latrina. As celas estavam
tão cheias que os presos se revezavam em turnos para dormirem, pois não havia
espaço físico para que todos se deitassem ao mesmo tempo.
Tortura e Violência Física
Ao longo da Operação Rio, moradores de favelas
denunciaram condutas abusivas e violentas praticadas por policiais e soldados.
Algumas das práticas violentas ocorriam no momento em que eram detidos. Os
abusos mais graves, tais como a tortura, se deram nos interrogatórios. A
seguir, detalhamos alguns casos de tortura a partir de depoimentos prestados
pelas vítimas e testemunhas perante diversas autoridades públicas.
Tortura no Morro do Borel
Na madrugada do dia 25 de novembro de 1994, as
Forças Armadas ocuparam o morro do Borel, onde ficam as favelas do Borel e da
Chácara do Céu, na zona norte do Rio de Janeiro. As tropas ocuparam a Igreja
São Sebastião e uma creche ao lado, as melhores instalações existentes no
morro, e as transformaram em centrais de operações militares. Uma sala de aula
localizada no segundo andar do prédio da igreja foi utilizada como sala de
interrogatório. Ao longo daquele dia, as tropas federais detiveram dezenas de
moradores e os levaram até a igreja. Os policias forçaram pelo menos um
morador a vestir um capuz e caminhar pelas ruelas e becos identificando os
traficantes da favela.
Embora as informações sejam divergentes em
alguns detalhes, parece que pelo menos 15 pessoas foram torturadas na igreja,
então transformada em sala de interrogatório. Diversas testemunhas juram ter
ouvido gritos de dor saídos de lá. Algumas viram um banco manchado de sangue
dentro da sala.
Ao perceberem que as tropas estavam torturando os
presos, um grupo de moradores procurou o padre Olinto Pegaroro, pároco da
igreja. Padre Olinto, que estava lecionando filosofia na Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), retornou imediatamente à favela e ordenou que os
soldados saíssem da igreja. Contudo, os soldados ali permaneceram até as 21
horas do dia seguinte. Padre Olinto denunciou a prática de tortura dentro da
igreja para a imprensa em 28 de novembro de 1994. Em carta dirigida ao general
Câmara Senna, então comandante da operação, Padre Olinto afirmou que:
"O dia 25 de novembro foi uma data
sinistra para o Morro do Borel e especialmente para a Chácara do Céu. Os
dois centros comunitários da pastoral foram tomados, inclusive a igreja,
convertida em sala de triagem de presos, submetidos a constrangimentos
morais e físicos. Houve também alguns torturados até a perda de sangue
como constatamos na hora vistoria das dependências. Gritos e gemidos se
ouviram por tarde a parte, especialmente no tanque."
Cláudio Rodrigues Pereira e Carlos Eduardo
Rodrigues da Silva
Na manhã de 25 de novembro, por volta das seis e
meia, o soldado Cláudio Rodrigues Pereira saiu de casa para se apresentar no
quartel onde servia quando foi abordado por soldados que controlavam uma
barreira montada na favela, em frente à saída do bananal. Apesar de ter se
identificado como militar, o soldado Cláudio recebeu ordens de voltar para casa
e lá permanecer até o final da operação. Depois de esperar por mais de duas
horas, Cláudio decidiu sair de novo, desta vez acompanhado de seu primo Carlos
Eduardo, de 18 anos. Foi então que três soldados os levaram até a igreja São
Sebastião depois de terem revistado sua casa sem nada encontrar. Aparentemente,
o motivo da suspeita estava na carteira de identidade militar de Cláudio, que
os soldados imaginaram ser falsa.
A caminho da igreja, Cláudio foi espancado por
um soldado, mais tarde identificado como Bolívar, que tomou para si seus
documentos. Já na igreja, Cláudio e seu primo foram submetidos a um
"corredor polonês". Durante o interrogatório, Cláudio foi forçado
a permanecer ajoelhado o tempo todo, enquanto levava tapas e pontapés. Mesmo
sem qualquer prova que o vinculasse ao tráfico de drogas, Cláudio foi despido
e forçado a abrir as nádegas para que os soldados vissem se portava drogas.
Seu primo Carlos Eduardo também relatou o espancamento que sofreu por parte de
soldados, o que foi confirmado mais tarde no exame de corpo de delito.
Francisco José Reis de Oliveira
O florista Francisco José Reis de Oliveira, 25
anos, morador do morro do Borel, voltava para casa por volta das nove da noite
quando foi abordado por soldados. Francisco, que trabalhava numa banca de flores
na Tijuca durante anos, portava consigo o montante de R$ 300,00 referente às
vendas daquele dia, fato que os soldados acharam suspeito. O florista foi,
então, levado à creche da Chácara do Céu. Lá, Francisco foi torturado para
confessar que o dinheiro advinha do tráfico de drogas. Para a jornalista
Juliana Resende, Francisco descreveu a sessão de tortura da seguinte forma:
"(...) Alegavam para eu falar, caso
contrário iriam me maltratar; (...) deram socos e rasteiras e num destes
tombos eu abri o queixo sujando minha camisa de malha de sangue (...) na
escola fui mergulhado de cabeça para baixo num tanque de lavar roupa; (...)
como não tinha nada a declarar fui colocado no chão, pois estava fraco, e
a partir daí me deram choque elétrico na orelha; que era um fio ligado à
tomada e encostavam uma garra na orelha; que me ameaçaram com armas,
travando-as e destravando-as; (...) como não tinha informações, fui
mergulhado novamente no tanque e desmaiei...".
O exame de corpo de delito feito em Francisco
confirma a existência de marcas compatíveis com a alegação de tortura.
Quando a Human Rights Watch/Americas entrevistou Francisco no dia 13 de dezembro
de 1994, seus pulsos traziam marcas por terem sido amarrados.
Léo e Carecaço
A irmã Maria do Rosário Porto dos Santos, da
Igreja São Sebastião, depôs na Secretaria de Justiça no dia 28 de novembro
de 1994, detalhando os abusos sofridos por dois favelados que ela conhecia
apenas pelos nomes, Léo e Carecaço.
De acordo com seu depoimento, às 9 horas da
manhã do dia 25 de novembro, a irmã Maria do Rosário teria visto um grupo
formado por soldados e policiais militares e civis, trazendo um homem encapuzado
que apontava os moradores supostamente envolvidos com o tráfico de drogas.
Dentre os que foram delatados pelo homem encapuzado, havia um jovem que ela
conhecia como Léo. A irmã pôde ver Léo sendo levado à igreja. Horas mais
tarde, Léo foi levado da igreja para a casa de uma mulher conhecida como
Geralda. Ao final daquela tarde, Maria do Rosário viu Léo com a roupa manchada
de sangue, ferido, enlameado e sendo chutado por um policial civil que
perguntava se ele havia pensado bem no que ele lhe dissera. A irmã chegou a
ouvir gritos na igreja para onde Léo havia sido levado mais uma vez.
A Irmã Maria do Rosário foi avisada por um
vizinho que um outro morador - conhecido apenas como "Carecaço" -
estava sendo afogado num tanque de lavar roupa próximo à casa de Geralda. Ao
entrar na casa, a irmã viu quatro policiais civis mergulhando a cabeça de
Carecaço no tanque. Em seguida, a irmã escutou um policial dizendo a outro que
seria preciso usar choque elétrico em Carecaço. A irmã pôde ver algo sendo
aplicado às costas de Carecaço, fazendo com que uma das duas pernas se
movesse. Foi quando um dos policiais, notando a presença da irmã, perguntou o
que ela estava fazendo lá.
Marco Aurélio da Silva
Acusado por porte e comercialização de drogas,
Marco Aurélio da Silva prestou depoimento em juízo no dia 19 de dezembro de
1994. Em seu depoimento, Marco Aurélio disse ao Promotor de Justiça Nilo Cairo
Lamarão ter sido acordado em casa por tropas militares do exército, na manhã
de 25 de novembro, e levado para a igreja a fim de ser interrogado. A versão
oficial é bem diferente: Marco Aurélio, caminhando na favela, teria jogado no
chão um pacote contendo cocaína ao ser surpreendido pela blitz do exército,
tentando fugir, sem êxito.
Os soldados levaram Marco Aurélio a uma sala de
interrogatório no segundo andar da igreja São Sebastião, onde lhe deram socos
e chutes. Por ter sido obrigado a olhar para o chão o tempo todo, a vítima
não pôde identificar seus agressores. Contudo, Marco Aurélio pôde notar a
presença de vários soldados na sala, bem como perceber que outros detidos eram
torturados.
Observando que o exame de corpo de delito, feito
no mesmo dia que a prisão, apontara cortes nos lábios de Marco Aurélio,
compatíveis com uma ação contundente na boca, o Promotor Lamarão decidiu
arrolar outras pessoas como testemunhas oculares da prática de tortura.
Wanderley Batista Bispo, por exemplo, testemunhou a Lamarão que, ao sair da
favela no dia 25 de novembro, foi interpelado por um soldado e este pediu-lhe
que se identificasse. Mesmo tendo apresentado seu documento de identidade,
Wanderley foi levado pelos soldados até a igreja. No caminho, reconheceu seu
vizinho Marco Aurélio, que também estava sendo levado para a igreja. Wanderley
declarou que, dentro da igreja, os militares haviam instalado um quarto em que
os detidos eram obrigados a se despir e em seguida torturados; o próprio
Wanderley alega que foi espancado, chutado, levou rasteiras e ouviu os gritos de
Marco Aurélio sendo torturado.
Durante o processo, o Promotor intimou duas vezes
os quatro soldados cujos nomes apareciam no auto de prisão de Marco Aurélio (o
sargento Fernando César da Silva e os soldados Paulino Lopes, Marcelo Moreira e
Ademar Queiroz Baltar). Os militares não compareceram. Em 19 de janeiro de
1995, o juiz encarregado do caso, Dr. Luis Carlos Peçanha, oficiou ao Ministro
do Exército solicitando a presença dos militares intimados e que o Comando
Militar do Leste explicasse o motivo do não comparecimento em juízo.
Finalmente, em 31 de janeiro, os quatro militares deram seus depoimentos,
negando as alegações de espancamento.
Em suas alegações finais, o Promotor pediu a
absolvição do acusado uma vez que a confissão havia sido obtida mediante
tortura, não tendo portanto valor como prova. A sentença prolatada pela juíza
Marcia Maria Calainho, de 27 de março de 1995, afirma que:
"a instrução criminal revelou a
existência de prática que imaginávamos enterrada desde o advento do
regime democrático após quase trinta anos de ditadura sangrenta e
arbitrária, cuja memória nos envergonha e humilha (...) Lamentando que
projetos em que a população deposite crédito e confiança sejam na
prática deturpados, impedindo que o Poder Judiciário exerça seu mister
(...) absolvo o acusado".
Lamarão enviou um expediente contendo cópias de
peças processuais (o laudo de corpo de delito, o depoimento de Marco Aurélio,
o auto de prisão em flagrante e a denúncia contra ele) para a Justiça Militar
Federal, onde o expediente foi distribuído para a 1a. Auditoria Militar. Ao
invés de determinar a instauração de Inquérito Policial Militar (IPM) para
apurar a veracidade das denúncias, o Promotor Militar Walter Montenegro opinou
pelo arquivamento do expediente, sem oferecimento de denúncia. O juiz da 1a.
Auditoria Militar acatou o pedido de arquivamento, sem apresentar
fundamentação.
Tortura no Morro do Alemão
André Melo do Nascimento
André Melo do Nascimento, de dezenove anos, foi
preso por soldados na casa de sua namorada durante a ocupação do morro do
Alemão no dia 12 de janeiro de 1995. Segundo André, os soldados o levaram
preso porque encontraram em seu poder quatro pares de tênis sem as respectivas
notas fiscais. Levado para uma igreja usada como central de operações, André
não foi reconhecido por informantes que ali estavam para identificar os
traficantes do morro. Os soldados, então, levaram o jovem de volta para a casa
de sua namorada, onde o chutaram e o socaram, exigindo que mostrasse logo aonde
havia guardado o "negócio". Em seguida, André foi levado para o
primeiro andar da igreja, onde foi torturado. Em seu depoimento perante o juiz,
André contou detalhes de sua detenção:
"na igreja (...) os Soldados (sic)
batiam no declarante com a mão e davam chutes; que, neste local quem bateu
no declarante foram soldados do exército, os quais lhe deram chutes e
socos; que, o declarante foi levado para o andar de baixo onde se
encontravam policiais militares vestindo roupas preta (sic); que, mandaram
que o declarante tirasse a roupa; que, amarraram o declarante e o colocaram
de cabeça para baixo num barril cheio de água; que, enquanto isto batiam
com um pedaço de pau nas costas do declarante; que, enfiavam um saco
plástico na cabeça do declarante e apertavam para que ele ficasse sem ar;
que, eles ligaram dois fios elétricos e encostavam no declarante quando ele
estava molhado..."
Durante a sessão de tortura, André foi
interrogado sobre armas escondidas e, em seguida, levado para fora para procurar
as armas. Não achando arma alguma, os militares levaram André a uma casa vazia
e o submeteram a choques elétricos aplicados em suas algemas, além de o
espancarem. Em seguida, arrastaram-no de volta para a igreja. Apesar de mostrar
dificuldade para andar, o rapaz foi forçado a subir uma escada por um policial,
que apontava uma faca nas suas costas. Pelo menos uma vez, André foi esfaqueado
na nádega esquerda.
O exame de corpo de delito, realizado duas
semanas depois de sua prisão, revelou diversas escoriações em seu peito,
braços, ombros e nádegas, além de lesões nos pulsos, compatíveis com o uso
de algemas, e uma inflamação na cintura. Quando André foi prestar depoimento
em juízo, em 10 de fevereiro, compareceu numa cadeira de rodas.
Sérgio Silva do Nascimento
Desertor do exército desde novembro de 1994, o
ex-cabo Sérgio Silva do Nascimento dormia na casa de sua noiva no dia 12 de
janeiro de 1995 quando fuzileiros navais começaram a revistar a casa. Ao
encontrarem uma pistola, os soldados informaram que Sérgio estava preso por
porte de arma e tráfico de drogas. Sérgio foi, então, levado para uma quadra
de futebol, transformada temporariamente num centro de detenção, onde foi
obrigado a se ajoelhar sobre pedras colocadas no chão pelos soldados. Em
seguida, foi levado para o CIEP do Complexo do Alemão, transformado pela
polícia e pelas forças armadas em centro de operações.
No CIEP, os fuzileiros levaram Sérgio até o
centro de triagem. Por ter sido encontrado com uma arma e como o boletim de
ocorrência ainda não tinha sido preenchido, os fuzileiros o transferiram para
o centro de triagem do exército, no terceiro andar do CIEP. Ali, soldados do
exército espancaram-no, esmurrando-o na nuca e nas costas, e colocaram uma
sacola de plástico ou um plástico em sua cabeça a ponto de quase sufocá-lo.
Em seguida, vários soldados levaram-no a um
quarto no segundo andar da escola e forçaram-no a assinar uma confissão
perante a polícia civil. A polícia civil preencheu um auto de prisão em
flagrante no qual figuram os nomes de cinco militares presentes durante o
interrogatório de Sérgio.
O auto de exame de corpo de delito indicou um
grande hematoma na nuca e nas costas, dezenas de ferimentos nos joelhos e no pé
direito.Em seu depoimento, Sérgio não conseguiu identificar os responsáveis
pela tortura, já que estes se colocavam às suas costas.
Um dos dois fuzileiros que prenderam Sérgio
confirmaram muitos dos detalhes narrados em seu depoimento. Embora negasse que
os fuzileiros cometiam abusos, o cabo Ubirajara da Silva Narciso declarou às
autoridades que investigavam as acusações que soldados deram tapas em Sérgio
e colocaram um saco plástico em sua cabeça:
" mas por muito pouco tempo, apenas com
o objetivo de intimidá-lo (...) que o saco era colocado na cabeça do
detido e tinha sua parte inferior torcida junto ao pescoço do mesmo (...) a
ação se repetiu por duas ou três vezes".
Baseada nesta prova, a Promotora Maria Terezinha
Cauduro da Silva, da 4a. Auditoria Militar Federal, ofereceu denúncia por
lesões corporais contra dois capitães (Eduardo Rebouças dos Anjos e Alvaro
Cruz Lima) que comandaram o interrogatório de Sérgio na sala do CIEP. No dia
05 de outubro, os dois capitães depuseram em juízo, negando que tivessem
praticado atos de violência contra Sérgio, mas reconhecendo tê-lo
interrogado. Em 26 de outubro, três outros militares prestaram depoimentos na
qualidade de testemunhas de acusação. Dois negaram o uso de violência. A
terceira testemunha, todavia, admitiu o emprego de uma violenta técnica militar
contra o cabo. Segundo o depoimento do sargento Alexandre Costa Viana, o
interrogatório incluiu:
"[a] técnica de quebramento de ânimo
do inquirido (...) que as inquirições tinham mais ou menos umas certas
regras, mas para o Cb. NASCIMENTO houve alguma coisa específica para lhe
quebrar o ânimo (...) que [Sérgio] sabia se portar dentro das situações,
tinha conhecimentos e, inclusive, tinha feito um curso para sargento
temporário (...) lhe davam tapas no pescoço e nas costas (...); que acha
que não era um saco plástico, mas um plástico que era colocado no rosto
do mesmo em cima do nariz e da boca e puxava pra trás. "
Em 18 de dezembro de 1995, com base no depoimento
do sargento Alexandre e no resultado do exame de corpo de delito, a promotora
Maria Ester Henriques Tavares pediu ao juiz, em alegações finais, que os dois
capitães presentes no interrogatório fossem condenados por terem ordenado ou
permitido que fosse praticada técnica de tortura contra o cabo Sérgio do
Nascimento, assim produzindo os ferimentos que apresentava. O processo
encontrava-se em fase de sentenciamento no momento de edição deste texto.
Excessos no Hospital Naval
Alguns favelados foram levados para o Hospital
Naval Marcílio Dias, em 7 de dezembro de 1994, como parte das ações efetuadas
no morro do Lins Vasconcelos, zona norte, para responder a interrogatórios, que
incluíram tortura e violência física. Estes indivíduos foram transferidos,
mais tarde, para a carceragem da Polinter.
Rogério Alves da Luz, vinte e dois
anos. Os fuzileiros navais e a polícia militar detiveram Rogério na favela
da Cachoeirinha, no morro de Lins Vasconcelos. Quatro soldados o
interrogaram sobre armas, atingindo-o com golpes nos rins e tapas no rosto.
Cristiano da Silva Cipriani, vinte e
oito anos. Soldados o espancaram, depois de o terem algemado. Mais tarde,
deram-lhe tapas e chutes durante o interrogatório.
Jorge Sebastião Barbosa Caetano,
trinta e quatro anos. Mais de vinte soldados realizaram busca na casa onde
se encontrava. Apesar de nada ter sido encontrado, ele foi levado algemado
ao Hospital Naval Marcílio Dias. Durante o interrogatório, que durou mais
de uma hora, Jorge foi mantido algemado, juntamente com cerca de outros cem
detidos. Segundo seu depoimento, foi chutado, esmurrado e esbofeteado pelos
soldados navais.
Marcos André Barbosa Caetano, dezoito
anos. Marcos foi detido por dez fuzileiros navais durante busca realizada na
casa de sua irmã, onde estava hospedado. Em seguida, foi levado ao Hospital
Naval Marcílio Dias, onde tropas navais o interrogaram, agredindo-o com
chutes nas costas e murros no estômago.
Edson Lourenço da Silva, vinte e
três anos. Um grupo numeroso de soldados navais detiveram Edson, levando-o
para o Hospital Naval Marcílio Dias, onde foi interrogado. Os soldados
esbofetearam Edson e pisaram em suas mãos algemadas.
Violência Desnecessária
Houve ainda inúmeras reclamações quanto ao uso
de violência desnecessária pelos soldados no trato com os moradores da favela,
no momento de detê-los. O caso de Jorge Marques Varella Filho é ilustrativo do
excesso e da postura agressiva das tropas com relação àqueles que se
manifestaram contra os abusos.
Em 16 de dezembro de 1994, durante a ocupação
da favela Pavão-Pavãozinho, em Copacabana, um grupo de soldados detiveram
Jorge, supondo que ele havia danificado um telefone público na área. Diante de
mais de vinte pessoas, incluindo Joel Bueno e sua esposa, a advogada Sandra
Cunha de Albuquerque, os soldados espancaram Jorge severamente, batendo sua
cabeça contra a calçada.
Joel e Sandra protestaram contra o espancamento e
pediram aos soldados que se identificassem, uma vez que não portavam nenhum
tipo de identificação. O pedido foi recusado. Em seguida, os soldados
transportaram Jorge para o centro de operações localizado na Ladeira Saint
Roman, número 151. Joel, Sandra e outros moradores preocupados com a situação
acompanharam os soldados. No centro, Joel e Sandra solicitaram permissão para
falar com Jorge. Enquanto esperavam, soldados em guarda zombaram do casal e
manusearam suas armas de forma deliberadamente ameaçadora. Após uma hora, os
oficiais do centro recusaram o acesso ao preso. Em seguida, soldados removeram
Joel e Sandra à força do centro de operações.
Depois que o casal partiu, Jorge foi levado para
os barracões da Polícia do Exército na Rua Barão de Mesquita. Apesar da
promessa dos soldados de levarem Jorge para a sala de emergência, onde seus
ferimentos na cabeça seriam tratados, eles não o fizeram. Nos barracões do
exército, os soldados forçaram Jorge e seu irmão a assinarem confissões.
Jorge assinou um documento no qual atestava haver danificado um telefone
público, resistido à prisão e agredido os soldados. A confissão assinada
pelo seu irmão atestava haver sido ele o responsável pelos ferimentos na
cabeça de Jorge.
Uso desnecessário de violência letal
Durante os meses da Operação Rio, a imprensa do
Rio de Janeiro divulgou a morte de pelo menos três dezenas de moradores da
cidade pelas mãos das polícias civil e militar. A Human Rights Watch/Americas
não foi capaz de confirmar se estas mortes resultaram da ação empreendida
pela Operação Rio. Algumas delas, como os treze assassinatos resultantes da
investida policial na favela de Nova Brasília, em 8 de maio de 1995, ocorreram
durante operações policiais independentes. No entanto, a Human Rights
Watch/Americas investigou um caso no qual tropas militares da Operação Rio
empregaram violência letal, o que resultou na morte de um civil, sem
justificativa adequada.
Em 6 de dezembro de 1994, Alex Alexandre Teles
Pacheco deixou seu trabalho ao meio-dia e almoçou com seu pai, o advogado Orli
Pacheco. Depois do almoço, Alex encontrou seu amigo de infância Eduardo Maia.
Eduardo havia furtado um carro e convidou Alex para acompanhá-lo na compra de
carvão para um churrasco. Alex aceitou o convite e pediu para dirigir o carro.
Enquanto circulavam pela vizinhança, os dois jovens depararam-se com uma
barricada armada pelas tropas do Exército na entrada do morro do Urubu.
Amedrontados pela possibilidade de serem detidos
pelo furto do automóvel, crime cuja pena varia de dois a oito anos de prisão,
os dois jovens decidiram tentar furar o bloqueio dos militares. Em seguida, os
pneus do veículo que conduziam estouraram ao passar sobre os pregos colocados
sobre o asfalto pelos soldados. Eles perderam o controle do carro e atingiram um
taxi. Não obstante a presença de vários passantes na área, os oficiais
militares atiraram em direção ao carro em fuga com armas automáticas. Alex
foi atingido por cinco tiros e morreu, enquanto Eduardo sobreviveu a três
ferimentos à bala.
No dia seguinte ao incidente, o Ministério
Público Militar, autoridade encarregada de julgar crimes militares, indiciou
Eduardo Maia por resistência à prisão e tentativa de assassinato. Os
militares alegaram que Eduardo atirara contra os oficiais enquanto o carro que o
transportava furava o bloqueio. No entanto, nenhum soldado foi ferido. No
julgamento de Eduardo, nenhuma testemunha civil declarou ter visto um dos dois
jovens atirar na direção dos soldados. A única evidência de que um dos
ocupantes do veículo pudesse ter disparado tiros foi a declaração de uma das
testemunhas, que disse ter ouvido barulhos que soavam diferente daqueles
produzidos por rifles militares. Quando a Human Rights Watch/Americas perguntou
a Eduardo se ele ou Alex haviam disparado contra a barricada, ele respondeu
"Eu não seria louco o bastante para enfrentar o Exército munido de
rifles".
Após um processo notavelmente
rápido, em 7 de março o tribunal militar condenou Eduardo a três anos e meio
de prisão por ambos os crimes. Por outro lado, nenhuma investigação foi
instaurada para averiguar as condições da morte de Alex Alexandre Teles
Pacheco e a legalidade do uso da violência letal em resposta à sua tentativa
de fuga. De acordo com a lei brasileira, o uso de força superior àquela
necessária para conter uma ameaça de agressão ou ainda seu uso imoderado, por
parte dos agentes públicos, configura crime.
IV. CONCLUSÃO
A Human Rights Watch/Americas não se manifesta
quanto às hipóteses de que a Operação Rio teria sido uma estratégia
equilibrada no combate ao crime e ao tráfico de drogas e de que as incursões
armadas temporárias nas favelas teriam sido medidas eficazes no combate ao
crime. Nossa pesquisa indica, no entanto, que a Operação Rio refletiu o
padrão abusivo de aplicação da lei que há muito vem caracterizando a postura
do Rio no combate ao crime. De ampla magnitude e envolvendo os militares, a
Operação Rio na certa amplificou o desprezo pelos direitos e liberdades
fundamentais que caracteriza o trabalho de rotina da polícia.
As violações dos direitos humanos minam a
legitimidade dos esforços de controle do crime, sabotando o respeito do
público pelas agências responsáveis pela aplicação das leis e invalidando
sua eficácia. Uma polícia violenta, corrupta e abusiva, que age em total e
voluntário desrespeito quanto às estruturas legais nacionais e internacionais,
enfraquece o estado de direito que alega sustentar. Se as autoridades do Rio
pretendem ser bem sucedidas no combate ao crime, devem começar pelo combate ao
crime cometido por aqueles encarregados de fazer valer a lei.
V. AGRADECIMENTOS
Este relatório sobre a Operação Rio foi
baseado na pesquisa de James Louis Cavallaro, diretor do escritório da Human
Rights Watch/Americas no Brasil, e Anna Claudia Monteiro, pesquisadora da Human
Rights Watch/Americas no Brasil. A pesquisa incluiu visitas a inúmeras favelas,
entrevistas com agentes dos governos estadual e federal, grupos de direitos
humanos, representantes de associações de moradores, testemunhas, vítimas,
presos e acadêmicos, além de uma vasta documentação processual e outros
registros públicos. O relatório foi escrito por James e Anna Claudia e editado
por Jamie Fellner, conselheira associada da Human Rights Watch. O advogado do
escritório da Human Rights Watch/Americas no Brasil, Celso de Arruda França,
contribuiu com significativo trabalho de pesquisa jurídica e análise. Gustavo
Pacheco, colaborador do escritório da Human Rights Watch/Americas no Brasil,
traduziu este relatório. A revisão do texto ficou a cargo da equipe do
escritório brasileiro. Agradecimentos ainda a Ana Cecília Pacheco, Simone
Valente Pinto, Luciana Telles Machado, Caio Salles e Rodrigo Calixto,
colaboradores do escritório no Rio. Ajudaram também na edição deste
relatório os arquivos gentilmente cedidos pelo Procurador da República no
Estado do Rio de Janeiro, Dr. Gustavo Tepedino, e pelo Promotor de Justiça, Dr.
Nilo Cairo Lamarão. Nossos agradecimentos também para o Grupo Tortura Nunca
Mais, Centro Brasileiro de Defesa da Criança e do Adolescente, Padre Olinto
Pegoraro e irmãs da igreja São Sebastião, a jornalista Juliana Resende, os
moradores de várias favelas cariocas e todos os demais que colaboraram com as
nossas pesquisas. Agradecimento, ainda, para a ClipArt Editoração Eletrônica.
A publicação deste relatório é parte do
processo de monitoramento dos direitos humanos no Brasil realizado pela Human
Rights Watch/Americas. Ela é também parte de um projeto especial que examina o
impacto dos programas e políticas de combate à droga sobre os direitos
humanos, dirigido por Jamie Fellner. Agradecemos ao Open Society Institute pelo
apoio a este projeto.
Human Rights Watch/Americas
A Human Rights Watch é uma organização
não-governamental fundada em 1978 para fiscalizar e promover o cumprimento das
normas internacionais de direitos humanos na África, Américas, Ásia, no
Oriente Médio e nos países signatários dos acordos de Helsinki. A Human
Rights Watch é mantida por contribuições de indivíduos e fundações em todo
o mundo e não aceita financiamentos de quaisquer governos, direta ou
indiretamente. O staff é formado por Kenneth Roth, diretor executivo;
Cynthia Brown, diretora de programas; Holly J. Burkhalter, diretora de
relações públicas; Robert Kimzey, diretor de publicações; Jeri Laber,
consultora especial; Gara LaMarche, diretora adjunta; Lotte Leicht, diretora do
escritório de Bruxelas; Juan Méndez, conselheiro geral; Susan Osnos, diretora
de comunicações; Jemera Rone, conselheira; e Joanna Weschler, representante
nas Nações Unidas. Robert L. Bernstein é presidente do conselho e Adrian W.
DeWind é o vice-presidente. A divisão das Américas foi fundada em 1981 para
monitorar os direitos humanos na América Latina e no Caribe. José Miguel
Vivanco é o diretor executivo; Anne Manuel é a diretora adjunta; James Louis
Cavallaro é o diretor do escritório no Brasil; Joel Solomon é o diretor de
pesquisas; Sebastian Brett, Sarah DeCosse, Robin Kirk e Gretta Tovar Siebentritt
são pesquisadores; Michael Bocheneck é bolsista "Leonard T.
Sandler"; Paul Paz y Miño e Steve Hernández são associados. Stephen L.
Kass é o presidente do comitê consultivo e Marina Pinto Kauffman e David
Nachman são vice-presidentes.
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