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Violência
x Violência:

Violações aos Direitos Humanos e Criminalidade no Rio de Janeiro

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I. INTRODUÇÃO E RECOMENDAÇÕES

II. RIO DE JANEIRO:

O TRÁFICO DE DROGAS

E A VIOLÊNCIA OFICIAL

III. A OPERAÇÃO RIO

IV. CONCLUSÃO

V. AGRADECIMENTOS

 

"Só com sangue o problema do tráfico será resolvido. É a única linguagem que eles entendem"

-Mário Azevedo,

delegado da 21a. Delegacia Policial, Rio de Janeiro

"As instituições policiais estão numa situação de tragédia para a sociedade. As pessoas confiam mais no traficante que no policial"

-General Nilton Cerqueira,

Secretário de Segurança Pública

"Não somos um batalhão de assistentes sociais; é impossível evitar um excesso ou outro"

-General Roberto Jugurtha Câmara Senna,

comandante das forças da Operação Rio

 

 

I. INTRODUÇÃO E RECOMENDAÇÕES

Uma das cidades mais bonitas do hemisfério, o Rio de Janeiro é hoje freqüentemente descrita como uma cidade sitiada. Não há dúvidas de que o crime violento aumentou significativamente durante a última década. O índice de homicídios no Rio, por exemplo, triplicou nos últimos quinze anos, passando de 2.826 casos em 1980 para 8.408 mortes em 1994.A preocupação da população cresceu na mesma medida. A imprensa, a sociedade civil e políticos têm se preocupado especialmente com a violência relacionada com as quadrilhas organizadas e o tráfico de drogas.

Infelizmente, os esforços para a aplicação da lei e combate ao crime contaram com numerosas e flagrantes violações de direitos humanos. Apesar das boas intenções de algumas autoridades, a maior parte da polícia fluminense continua a ser violenta e corrupta, e a cometer excessos. Neste relatório, a Human Rights Watch/Americas documenta casos de brutalidade policial, incluindo dois massacres nos quais vinte e sete moradores de uma favela foram assassinados. Também documentamos as violações de direitos humanos ocorridas durante a maior campanha até agora posta em prática contra as quadrilhas de traficantes de drogas do Rio de Janeiro: a Operação Rio, realizada entre novembro de 1994 e meados de 1995.

Nos últimos anos, o Brasil se tornou uma rota cada vez mais importante para a cocaína produzida nos países andinos e destinada à Europa e aos Estados Unidos, assim como um importante mercado para o consumo. Grande parte do tráfico de drogas no Brasil concentra-se no Rio de Janeiro, onde os níveis mais baixos da hierarquia do tráfico são dominados por quadrilhas organizadas entrincheiradas nas favelas.

Conflitos pelo controle de territórios entre as quadrilhas são freqüentes e, graças a um próspero comércio ilegal de armas, violentos. Confrontos entre a polícia e os traficantes são muitas vezes marcados por tiroteios indiscriminados, que algumas vezes atingem transeuntes inocentes: principalmente favelados, mas também moradores de bairros de classe média e alta. A crescente indignação da população contra a violência causada pelas quadrilhas de traficantes e por policiais e as manobras de candidatos ao governo do estado, assim como a pressão constante da imprensa, levaram a um convênio entre o estado do Rio de Janeiro e o governo federal para trazer tropas militares federais para auxiliar a polícia, no final de 1994.

O convênio desencadeou um esforço conjunto, sem precedentes, entre os militares e a polícia, para erradicar as quadrilhas criminosas do Rio de Janeiro. A Operação Rio, como foi chamada, realizou dezenas de ocupações - muitas com a duração de vários dias - nas favelas do Rio e municípios vizinhos, incluindo a Baixada Fluminense e Niterói. Nos primeiros dois meses e meio, período mais intenso da Operação Rio, os militares e a polícia prenderam cerca de 200 pessoas, detiveram para averiguação quase 400 e apreenderam perto de 300 armas de fogo, 74 quilos de maconha e mais de sete quilos de cocaína. O tráfico de drogas nas favelas foi temporariamente interrompido. A maioria dos observadores acredita, contudo, que os traficantes retomaram seus negócios assim que as tropas se retiraram das favelas.

A Operação Rio foi marcada por torturas, prisões arbitrárias e buscas sem mandado judicial, além de pelo menos um caso de uso desnecessário de força letal. Alguns desses abusos, tais como submeter bairros inteiros a buscas casa por casa, foram expressamente autorizados e inclusive exigidos pelos objetivos estratégicos da operação. Outros abusos, como as torturas, não foram abertamente incluídos no projeto da Operação Rio. Não obstante, a incapacidade das autoridades civis e militares de responder rápida e decisivamente às denúncias de excessos no desenrolar da Operação Rio, as declarações públicas de autoridades no sentido de justificar os "excessos" cometidos durante a operação, e a ausência até esta data de condenações por excessos praticados contra muitos favelados sugerem uma indiferença aterradora das autoridades brasileiras para com a violação dos direitos humanos. Sugerem, também, aquiescência tácita com essas violações.

Durante a Operação Rio, o Exército foi mobilizado para ajudar na luta contra o tráfico de drogas precisamente por causa da violência e corrupção notórias da polícia fluminense. Infelizmente, a Operação Rio não incluiu medidas, nem por parte do estado, nem das autoridades federais, para combater as violações aos direitos humanos cometidas pelos policiais fluminenses. Como consta desse relatório, a polícia fluminense continua a violar direitos humanos fundamentais no desempenho de suas tarefas rotineiras de combate ao crime. Se o governo federal do Brasil quer contribuir significativamente para a luta contra o crime no Rio, sua atenção deve se dirigir também para a violência fardada que reproduz a violência particular. Deve também assegurar que os militares não se utilizem dos métodos abusivos proibidos pelos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil.

A convicção de que a violência está fora de controle no Rio e de que a cidade está infestada de criminosos alimentou uma política pública irresponsável, que tolera a conduta policial abusiva e estimula a violência oficial. Um ano depois do lançamento da Operação Rio, a Human Rights Watch/Americas busca chamar a atenção pública para a falta de cumprimento com as normas internacionais de direitos humanos por parte das autoridades federais e fluminenses, especialmente durante a maior campanha contra o tráfico já realizada no Brasil. O tráfico de drogas e a violência que o acompanha se tornaram, sem dúvida, uma ameaça crescente para os cidadãos do Rio e de outras áreas do Brasil, mas operações de combate às drogas que não respeitam os direitos humanos subvertem o Estado de Direito. A Human Rights Watch/Americas conclama os governos federal, estadual e municipal a aderir às normas internacionais de respeito aos direitos humanos no desempenho de suas políticas de combate ao crime. Recomendamos às autoridades que usem sua força institucional e sua influência política e moral para incentivar o respeito aos direitos humanos pela polícia e pelas forças armadas, para condenar publicamente e de forma inequívoca a violência ilegal praticada por agentes do poder público, e para assegurar que os agentes que violem a lei sejam processados.

Baseados em nosso estudo da Operação Rio e em nossos vários anos de pesquisas sobre a conduta da polícia fluminense, também apresentamos as seguintes recomendações:

 

Recomendações

1. As estratégias de aplicação da lei devem estar de acordo com as normas nacionais e internacionais que proíbem buscas e prisões arbitrárias, normas que devem proteger os moradores das favelas tanto quanto os de apartamentos de luxo. Buscas feitas casa por casa em vastas áreas geográficas violam o direito dos moradores à liberdade e à privacidade; nenhum lar deveria ser revistado sem a existência de evidências específicas que apontem a conexão de seus moradores com uma conduta criminosa. No mesmo sentido, as prisões devem ser realizadas de acordo com os requisitos constitucionais e internacionais que regulam os mandados de prisão e as prisões em flagrante. Prisões sem mandado não devem ser utilizadas como meio de facilitar interrogatórios para a coleta de provas ou de intimidar os moradores.

2. Os excessos cometidos por membros da polícia e membros das forças armadas que estejam desempenhando funções policiais devem ser rigorosa e prontamente investigados e punidos. Nem a importância dos objetivos de combate ao crime, nem considerações políticas, nem o envolvimento das forças armadas devem obstruir os esforços para assegurar que todos os agentes do Estado que violarem os direitos humanos sejam processados. Até a data da edição desse relatório, as investigações de numerosos casos de torturas e homicídios praticados por policiais e militares foram proteladas, arquivadas ou abandonadas. A Human Rights Watch/Americas conclama as autoridade políticas, judiciárias e militares a tomarem medidas para responsabilizar penalmente os que cometem excessos e assegurar que as investigações e processos prossigam com presteza e com todos os recursos necessários.

3. A justiça militar facilita a impunidade para os crimes cometidos por membros da polícia e das forças armadas contra civis. Os Conselhos de Sentença da justiça militar, tribunais de primeira instância, no Brasil, compostos de quatro oficiais militares e um juiz togado (um civil, bacharel em direito), raras vezes condenam militares responsáveis pelas violações aos direitos humanos dos civis. Deve ser atribuída a tribunais civis a competência para julgar todos os casos que envolvam assassinatos, torturas ou outras violações sérias de direitos humanos cometidas por membros da polícia ou das forças armadas.

4. O governo federal deve assumir responsabilidade direta pela instauração e devido prosseguimento de processos contra as violações de direitos humanos cometidas por membros da polícia e das forças armadas. Como este relatório documenta, a justiça estadual tem tradição em não julgar de forma satisfatória as autoridades que cometem crimes. A justiça federal tem se mostrado menos vulnerável às pressões políticas para ser mais rígida com a criminalidade.

5. É necessária uma nova legislação para tipificar o crime de tortura, de acordo com as obrigações atribuídas ao Brasil pela Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes. Atualmente, o único tipo penal aplicável à tortura é o de lesões corporais, o mesmo utilizado quando uma pessoa esmurra outra. Este crime acarreta penalidades mínimas e está sujeito a prescrição. Tipificar o crime de tortura seria uma demonstração inequívoca da firme determinação da nação em combater as violações de direitos humanos como uma prática policial.

6. A legislação brasileira deve eliminar o dispositivo legal que proíbe a "vadiagem" e modificar a lei que permite a prisão temporária, de forma a evitar prisões arbitrárias que violam as normas internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil.

A lei de contravenções penais prescreve até três meses de cadeia para a "vadiagem", definida como "entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita". Como ficou demonstrado durante a Operação Rio, essa legislação discriminatória presta-se a excessos em larga escala ao fornecer um pretexto para a detenção de favelados que não têm comprovante de emprego, mesmo quando não existem quaisquer indícios de conduta criminosa. Esta lei deve ser abolida.

A Human Rights Watch/Americas está preocupada com uma lei de 1990 que permite a detenção durante trinta dias de suspeitos de envolvimento no tráfico, além de outros crimes violentos, facilitando abusos como a prisão arbitrária. A lei permite detenção por trinta dias sem direito à liberdade provisória, mesmo sem acusações formais. Tal detenção pode ser determinada por um juiz com o mínimo de provas. A Human Rights Watch/Americas recomenda que o governo brasileiro avalie cuidadosamente a compatibilidade desta legislação com os padrões internacionais dos direitos humanos.

7. Embora a Human Rights Watch/Americas reconheça a importância de proteger os soldados e policiais envolvidos nas operações contra as drogas, as medidas de segurança não devem impedir que aqueles que pratiquem excessos sejam responsabilizados penalmente. Todo policial ou militar uniformizado deve usar etiquetas de identificação. Todo policial ou militar deve se identificar sempre que solicitado pelas pessoas que estão sendo detidas, ou por familiares ou advogados que estejam buscando informações sobre essas pessoas.

8. Ao longo dos anos, a Human Rights Watch/Americas e outras organizações têm recomendado uma série de medidas para promover a adesão da conduta policial aos tratados internacionais de direitos humanos e para assegurar que os policiais que cometam excessos sejam responsabilizados penalmente. Um número crescente de analistas e observadores da Polícia Civil do Rio de Janeiro acredita que a corrupção e o uso da violência tornou-se tão enraizada que é necessária uma reforma radical da instituição. A Human Rights Watch/Americas acredita que as autoridades estaduais devem considerar seriamente esta proposta. Na ausência de uma restruturação global da polícia, continuamos a recomendar a adoção das seguintes medidas:

Controle da força letal. As autoridades devem tomar medidas decisivas para assegurar que os agentes policiais usem de força letal apenas como último recurso para proteger a vida: não deve ser usada para eliminar pessoas simplesmente porque são vistas como indesejáveis ou criminosas em potencial, nem deve ser usada quando, desnecessariamente, põe em perigo a vida de terceiros.

Investigações Policiais. Mesmo nos casos mais sérios de excessos policiais contra civis, como os que envolvem assassinatos, por exemplo, as investigações são superficiais, incompletas e freqüentemente realizadas de má-fé. O procedimento investigativo deve ser alterado para assegurar que os membros de uma divisão ou distrito policial não sejam designados para investigar abusos praticados por membros da mesma divisão. Além disso, conselhos de direitos humanos compostos de representantes da sociedade civil, organizações não-governamentais e outros grupos independentes, devem ser criados para supervisionar a atuação da polícia e receber denúncias de violações praticadas por policiais. As vítimas e seus representantes devem ter acesso aos registros das investigações, e devem ser mantidas a par da situação em que se encontram os processos contra policiais acusados de abusos dos direitos humanos, de forma compatível com a eficácia da investigação e os direitos dos policiais acusados.

Proteção às testemunhas. Muitas testemunhas dos abusos policiais têm medo de testemunhar temendo retaliações. Um programa nacional abrangente para proteger as testemunhas, alterando suas identidades e permitindo sua mudança para outras áreas do país, é essencial. Procedimentos especiais, como o uso de testemunhos filmados ou gravados, devem ser admitidos para acelerar as investigações e proteger as testemunhas do confronto direto com seus agressores.

Coleta e publicação de dados. Conforme as recomendações feitas anteriormente pela Human Rights Watch/Americas, os órgãos do poder público começaram a compilar e tornar disponíveis dados sobre os homicídios cometidos pela polícia fluminense. A supervisão da atuação da polícia seria facilitada, contudo, se os dados fossem reunidos e organizados de forma a facilitar a inspeção da conduta policial dentro de cada distrito. As autoridades devem também informar periodicamente o público sobre o número de investigações criminais e administrativas em curso contra policiais, bem como a situação em que se encontram essas investigações.

Disciplina administrativa. Além do processo criminal formal, as autoridades policiais devem realizar inspeções internas rigorosas para identificar e disciplinar policiais que cometam violações ou que deixem de tomar as medidas apropriadas para prevenir ou tornar pública a conduta criminosa de outros policiais. Os policiais acusados de homicídio devem ser no mínimo remanejados para postos onde não manipulem armas de fogo, até que a investigação termine.

 

II. RIO DE JANEIRO: O TRÁFICO DE DROGAS E A

VIOLÊNCIA OFICIAL

A polícia fluminense tem tradição em violação de direitos humanos. Embora o uso de tortura possa ter declinado nos últimos anos, o uso ilegal de força letal continua demasiado freqüente. Conforme mencionado em relatórios anteriores da Human Rights Watch/Americas, as tentativas realizadas pelas autoridades para combater os abusos da polícia não conseguiram reprimir os homicídios de pessoas suspeitas, crianças de rua e outros "socialmente indesejáveis" realizados por policiais em serviço e por grupos de extermínio muitas vezes formados por ex-policiais ou por policiais de folga. Segundo cifras fornecidas à Human Rights Watch/Americas pelo Secretário Estadual de Segurança Pública do Rio de Janeiro, nos primeiros sete meses de 1995 a polícia do Rio matou 191 civis, classificados de "meliantes". Comparados com outras cidades com níveis semelhantes de criminalidade, o número de civis mortos pela polícia fluminense é alarmante. Em Nova Iorque, por exemplo, a polícia matou vinte e quatro civis em 1992 e vinte e cinco em 1993.

Os excessos cometidos pela polícia estão cada vez mais ligados ao tráfico de drogas no Brasil. As quadrilhas de traficantes fizeram das favelas fluminenses seu domínio. Os esforços da polícia para eliminar essas quadrilhas fortemente armadas têm se caracterizado por execuções sumárias e pelo uso desnecessário e negligente da força letal.

Antes da década de 80, a droga ilegal de mercado no Brasil era principalmente a maconha, uma droga de importância econômica limitada cuja venda - principalmente através de pontos de distribuição em favelas - e uso eram em grande medida ignorados pela polícia. Com o surgimento de um mercado internacional para a cocaína, a natureza e o impacto do tráfico de drogas transformou-se significativamente. O Brasil funciona hoje principalmente como rota de passagem: a cocaína produzida na Colômbia, Bolívia e Peru entra no país por terra, pelo ar e pelos rios; é então enviada através de grandes centros de distribuição como o Rio de Janeiro e São Paulo para os mercados consumidores da Europa e Estados Unidos. Existe ainda um importante mercado interno para a cocaína, composto em grande parte pelas classes médias e altas urbanas, e por turistas.

Embora não existam cifras confiáveis, é ponto pacífico que o tráfico de drogas no Brasil é um negócio que envolve muitos milhões de dólares e continua a crescer. Em 1994, a Divisão de Repressão a Entorpecentes da Polícia Federal apreendeu 11,8 toneladas de cocaína, superando as apreensões de sete toneladas em 1993 e 1,7 toneladas em 1989. Os lucros derivados do tráfico de cocaína foram estimados em US$ 4.000 por dia em uma favela comercialmente ativa, e em US$ 1 milhão por dia arrecadado em todo o estado do Rio de Janeiro por um chefão do tráfico. Um estudo estima em 9.000 os empregos gerados pelo tráfico carioca. A Segunda Seção da Polícia Militar fluminense estima em 11.340 o número de pessoas envolvidas com o tráfico no Rio de Janeiro em 1994, incluindo 4.800 chefes, 4.400 "soldados", 1.400 "olheiros" e 740 vendedores. De acordo com a polícia, os traficantes mantêm aproximadamente 344 pontos de venda no estado do Rio; os quinze pontos principais estão localizados na zona norte da cidade.

Quadrilhas organizadas de diferentes tamanhos e estruturas controlam os escalões mais baixos da hierarquia de distribuição de cocaína. Há muito tempo baseadas nas favelas, as quadrilhas são conectadas entre si de forma tênue por alianças com um dos dois maiores e mais antigos grupos, o Comando Vermelho e o Terceiro Comando. O tráfico de cocaína substituiu os assaltos a bancos e seqüestros como prática tradicional das quadrilhas, e também as incentivou a se armarem com arsenais sofisticados. De acordo com estimativas da Polícia Militar do Rio de Janeiro, as 5.000 armas possuídas pelas quadrilhas incluem rifles AR-15, M-16, FAL (usado pelos militares) e HK-223, espingardas calibre 12, metralhadoras, pistolas, granadas de mão, lançadores de granada e até mesmo mísseis antiaéreos que podem abater helicópteros a uma distância de até 300 metros.

A competição entre as quadrilhas pelo controle dos pontos de distribuição de droga mais lucrativos é constante e violenta. Acredita-se que muitos dos homicídios que acontecem no Rio de Janeiro têm sua origem nas disputas entre as quadrilhas. O resultado dessas disputas inclui transeuntes inocentes mortos por balas perdidas; transeuntes também são mortos ou feridos durante confrontos entre as quadrilhas e a polícia. Embora a maioria das mortes de transeuntes ocorram nas favelas, em alguns casos, que obtiveram repercussão pública, as balas perdidas atingiram moradores de partes mais abastadas da cidade, provocando indignação entre os setores mais influentes.

O surgimento da cocaína como uma fonte de renda para as quadrilhas "deu ao tráfico de drogas uma importância sem precedentes na vida econômica e política" das comunidades faveladas.Em muitas favelas, as quadrilhas oferecem importantes oportunidades de emprego.

A personalidade e as práticas comerciais de alguns dos chefes do tráfico fazem com que sejam vistos como heróis locais, preocupados com a comunidade e merecedores de seu respeito. As quadrilhas, tradicionalmente, fornecem à comunidade benefícios que incluem serviços de caridade e assistência financeira. Por exemplo: quando um favelado extremamente pobre morre, o chefe do tráfico local pode pagar seu funeral. Os chefes do tráfico muitas vezes pagam remédios e tratamentos médicos que os favelados não têm condições de obter, e providenciam transporte para o hospital em seus próprios carros ou naqueles sob seu controle. A ausência de serviços públicos na maioria das favelas inclui a ausência de policiamento. Na ausência da polícia, os traficantes exercem as funções de segurança interna e combate ao crime: julgam e punem ladrões e outros delinqüentes, estabelecendo castigos que podem incluir espancamentos, tiros não-fatais em extremidades do corpo, e até mesmo execuções sumárias. Os traficantes também controlam o acesso a muitas favelas, permitindo a entrada apenas dos moradores da favela ou de quem tiver - de acordo com seus critérios - razões para estar ali.

Em certa medida, a penetração das quadrilhas nas favelas se tornou possível por causa da ameaça de violência que exercem. Os traficantes forçam as comunidades a repudiar a cooperação com a polícia. Os suspeitos de serem informantes da polícia são tratados duramente. Mas mesmo sem essa pressão os favelados têm pouco estímulo para cooperar com a polícia, que tradicionalmente os têm tratado com violência.

A presença da polícia nas favelas acontece no contexto de incursões fortemente armadas em busca de drogas ou em combate às quadrilhas. Poucas testemunhas dos assassinatos cometidos pela polícia fluminense estão dispostas a vir a público e contradizer as versões oficiais de que as mortes foram causadas pelo uso legítimo de força letal. Não obstante, investigações realizadas pela imprensa, por organizações de direitos humanos e, ocasionalmente, por órgãos do poder público, determinaram a culpa da polícia em alguns casos. Por exemplo: em pelo menos dois casos recentes, que envolveram a morte de vinte e sete pessoas, a polícia claramente excedeu os limites legais para o uso da força letal e assassinou arbitrariamente moradores de uma favela. A investigação realizada pela Human Rights Watch/Americas sobre esses casos revela ainda que as autoridades têm demonstrado pouco interesse em determinar a responsabilidade e punir os agentes responsáveis por esses crimes.

 

Nova Brasília I

Em 18 de outubro de 1994, cerca de 120 policiais fortemente armados, provenientes em sua maioria da Divisão de Repressão a Entorpecentes (DRE), invadiram a favela de Nova Brasília. Os policiais dividiram-se em seis grupos, e em poucas horas mataram treze moradores, dentre os quais quatro menores. Segundo a versão da Polícia, as treze vítimas morreram em um tiroteio intenso, por elas iniciado.

A invasão policial de 18 de outubro foi aparentemente a resposta oficial para um ataque à 21a. Delegacia Policial em Bonsucesso, realizado por traficantes três dias antes, em que três policiais foram feridos por disparos de metralhadora. Após o ataque, Mário Azevedo, delegado titular do distrito, anunciou: "Isto foi apenas o começo. Eles querem guerra e terão guerra. Só com sangue o problema do tráfico será resolvido. É a única linguagem que eles entendem."

Embora a imprensa tenha descrito o ataque à favela como um tiroteio entre a polícia e traficantes, investigações subseqüentes revelaram que o que ocorreu foi na verdade um massacre, caracterizado por "crueldade e sadismo". Evandro de Oliveira, de dezesseis anos de idade, foi baleado nos olhos. Embora nenhuma testemunha ocular tenha vindo a público, moradores da favela afirmam ter ouvido de testemunhas que um agente policial fez comentários sarcásticos a Evandro, dizendo-lhe que ele "tinha os olhos azuis, da mesma cor do assassino, e não seria mais o garanhão da favela" antes de o executar à queima-roupa com um tiro em cada olho. Outra vítima, identificada apenas como "Paizinho", era o namorado de Juliana Ferreira de Carvalho, de dezesseis anos de idade. Juliana testemunhou que, por volta de cinco horas da manhã, a polícia invadiu sua casa, bateu em Paizinho, e o levou algemado. O corpo de Paizinho apareceu mais tarde no Instituto Médico Legal (IML). Duas jovens viram a polícia levar André Luís Neri Silva algemado da casa em que dormia. Seu corpo foi um dos onze arrastados pela Polícia até a praça principal da favela e seu nome está entre os que constam no relatório policial sobre o incidente.Outra vítima, Ranílson de Souza, apareceu algemado sob custódia policial em uma reportagem televisiva naquele dia. Seu corpo mais tarde apareceu no IML.

Os laudos dos médicos legistas apontam a existência de execuções sumárias: Evandro foi baleado nos olhos; outra vítima recebeu sete tiros na nuca; outra recebeu dois tiros na cabeça. A maioria das outras vítimas também foi baleada na parte superior do corpo e na cabeça.

De acordo com moradores e sobreviventes, a Polícia cometeu graves excessos durante sua incursão na favela, incluindo o abuso sexual de três jovens. Uma das três, de dezesseis anos de idade, disse às autoridades que, no dia da invasão, ela e duas amigas passavam a noite em sua casa quando dez policiais entraram na casa e forçaram as três a deitar na cama de barriga para baixo. Um policial espancou-as nas nádegas. Em seguida, outro policial levando-a ao banheiro:

"(...) encostou uma pistola na cabeça da declarante dizendo que a mataria caso a mesma se recusasse a tirar a roupa; que a declarante foi obrigada a despir-se e o policial praticou sexo na sua bunda; que a declarante dizia que nunca havia feito sexo daquela forma ao que o policial respondia ameaçando cada vez mais (...)

Outra das vítimas foi atacada por um policial que tentou forçá-la a fazer sexo oral com ele. Quando ela resistiu, ele se masturbou e ejaculou no seu rosto.

Além do inquérito policial realizado pela Divisão de Repressão a Entorpecentes (DRE), sob o número 187/94, uma investigação paralela foi iniciada na Delegacia Especial de Tortura e Abuso de Autoridade (DETAA). Como parte da investigação da DETAA, o governador do estado do Rio de Janeiro nomeou uma Comissão Especial, composta pelo então Secretário de Segurança Pública Arthur Lavigne, pela chefe da Corregedoria Geral da Polícia Civil, Martha Rocha, pelo diretor geral do Departamento Geral da Polícia Especializada, Luiz Mariano dos Santos, por um representante da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Antônio Passos, e pelo pastor Caio Fábio de Araújo. O relatório da Comissão, datado de 1o. de dezembro de 1994, concluiu que pelo menos algumas das mortes foram sem dúvida execuções sumárias. Não obstante, mais de um ano após o incidente, o inquérito policial ainda não foi concluído. Nenhum dos oito policiais cuja participação no massacre foi comprovada foi chamado para depor, tanto no inquérito da DRE como no da DETAA. Nenhuma das testemunhas oculares foi chamada para depor no inquérito da DRE. Até agora, ninguém foi preso ou processado com base nas mortes de 18 de outubro.

A Human Rights Watch/Americas encontrou-se com Hamilton Carvalhido, Procurador-Geral de Justiça do Estado do Rio, e com Maria Inês Pimentel, promotora encarregada do caso. Nenhum dos dois se comprometeu a processar criminalmente os policiais responsáveis pelos excessos. Em várias reuniões, a Dra. Maria Inês mostrou ceticismo em relação às alegações das testemunhas e sobreviventes e uma inclinação tendenciosa em favor da versão policial dos fatos.

Nova Brasília II

Sete meses depois dos acontecimentos de outubro, a favela de Nova Brasília foi novamente o cenário de diversos assassinatos cometidos pela polícia. Na madrugada de 8 de maio de 1995, policiais civis da Divisão de Repressão a Roubos e Furtos contra Estabelecimentos Financeiros (DRRFCEF) invadiram a favela para tentar capturar um traficante que esperava grande carregamento de drogas e armas. O delegado titular da divisão policial era Mário Azevedo, que havia sido delegado titular da 21a. Delegacia Policial na época do primeiro massacre em Nova Brasília.

As forças policiais que invadiram a favela eram compostas de quinze policiais sob o comando do delegado Marcos Reimão, auxiliados por dois helicópteros com policiais armados com rifles e metralhadoras. Durante a operação, a polícia matou quatorze jovens; nenhum policial foi ferido ou morto por tiros. A polícia colocou os corpos - que, segundo a versão policial, ainda tinham vida - em uma kombi da Comlurb e os levou em seguida até o Hospital Getúlio Vargas, onde os jovens foram declarados mortos ao chegarem.

Segundo Marcos Reimão, a polícia foi recebida a tiros, sendo forçada a responder. Reimão também insinua em seu relatório sobre o incidente que algumas das vítimas se mataram umas às outras em fogo cruzado. Testemunhas do incidente, contudo, apresentaram uma versão diferente: afirmaram que a polícia matou um homem com um tiro disparado dos helicópteros, que mais dois homens foram mortos por policiais em um tiroteio em um beco, e que, pouco depois, a polícia cercou uma casa em que oito homens procurados estavam escondidos. Os homens gritaram que estavam desarmados e pediram à polícia que poupasse suas vidas. A polícia entrou na casa atirando e matou os oito no primeiro andar da casa. A polícia, então, arrastou os corpos até o kombi da Comlurb, que os levou ao hospital. Algumas horas depois, a polícia matou mais três homens em um local conhecido como "Inferno Verde".

Embora a investigação policial tenha sido iniciada pela 27a. Delegacia Policial, foi posteriormente encaminhada à Divisão de Roubos e Furtos, a mesma divisão responsável pela operação. A investigação sobre as mortes foi superficial e claramente destinada a corroborar a versão dos policiais participantes da operação. O relatório da polícia baseia-se, em grande parte, em depoimentos praticamente idênticos aos dos policiais envolvidos, justificando o ocorrido; não inclui depoimentos de testemunhas oculares que afirmam que a polícia executou oito homens que já haviam se rendido; e não recorre às provas técnicas. Embora evite depoimentos de testemunhas oculares, o relatório policial inclui, todavia, um depoimento de um morador da favela afirmando que as treze vítimas eram traficantes, e que os traficantes costumam pagar três mil reais para cada policial morto em um tiroteio.

Em uma entrevista com a Human Rights Watch/Americas, a Promotora Maria Inês Pimentel demonstrou maior interesse na vida pregressa das vítimas do que na conduta da polícia. Além disso, declarou que estava certa de que as treze vítimas eram traficantes porque as investigações haviam demonstrado que doze delas não moravam na favela. Embora as vítimas não tivessem ficha criminal, Dra. Maria Inês atribuiu esse detalhe ao fato de serem jovens, descartando a possibilidade de que não tivessem envolvimento com o crime. Dra. Maria Inês não fez com que a polícia tomasse depoimentos de um número razoável de testemunhas. Também não determinou a realização de testes de balística ou outros exames do local do crime. Até a edição desse relatório, mais de seis meses depois do incidente, nenhum policial foi indiciado ou mesmo preso por seu envolvimento no massacre.

A ausência de baixas policiais e de civis feridos por tiros também colocam em dúvida a versão oficial. Geralmente, em uma troca de tiros, o número de feridos (civis ou policiais) é sempre maior do que o de mortos. Além disso, não importa quão experiente seja a polícia, sempre que há um grande número de civis mortos em um confronto armado, a polícia quase sempre também sofre baixas. Todavia, em 8 de maio, as únicas vítimas, e todas fatais, foram civis. Nenhum civil foi ferido; nenhum policial foi morto ou ferido a bala.

Talvez o que mais questione a versão policial dos fatos sejam os laudos do médico legista. Esses laudos mostram que as treze vítimas receberam, no total, quarenta e sete ferimentos à bala, trinta dos quais na cabeça e no peito. Quatorze tiros penetraram nas vítimas por trás. Os ângulos de entrada e saída das balas também sugerem que diversas vítimas estavam deitadas no chão quando foram baleadas. Os padrões de ferimento à bala são mais compatíveis com uma execução sumária do que com um tiroteio.

Em vez de deixar o local do crime intacto para facilitar as investigações, a polícia removeu as vítimas em uma kombi da Comlurb. Os policiais afirmaram em seus depoimentos que não conseguiram distinguir quem estava ferido e quem estava morto, e acharam melhor levar todos ao hospital (ver foto de capa). A explicação é suspeita: diversas vítimas foram baleadas tantas vezes que devem ter morrido poucos minutos após receberem os tiros; uma das vítimas tinha a maior parte de seu crânio despedaçada. A prática de remover corpos do local do crime já foi relatada em relatórios anteriores da Human Rights Watch/Americas. Em um relatório de maio de 1993, citamos pesquisa realizada pelo jornalista Caco Barcellos:

Quando uma pessoa leva um tiro simplesmente porque fugiu da polícia ou quando a pessoa é morta mais deliberadamente (...) provavelmente receberá diversos tiros até morrer. Mesmo morta, ela será, em seguida, levada para o hospital, sugerindo, assim, que os policiais estão se esforçando para manter a vítima viva, porém, por outro lado, estão dificultando a investigação do tiroteio.

 

Shopping Rio Sul

A violência policial não está restrita às favelas e a polícia nem sempre se preocupa em escondê-la do público. A execução sumária de Cristiano Moura Mesquita de Melo sugere o que poderia ser chamado de uma indiferença arrogante da parte de alguns policiais em respeitar a lei e a vida humana.

Em 4 de março de 1995, Cristiano e mais dois homens assaltavam uma farmácia, localizada no shopping center Rio Sul, no bairro de Botafogo. A polícia chegou e um dos três homens conseguiu fugir correndo. Outro foi morto a tiros pela polícia enquanto tentava escapar em uma kombi. O terceiro, Cristiano, foi ferido, detido e revistado por policiais. Na frente de dezenas de pessoas, o cabo Flávio Ferreira Carneiro arrastou Cristiano para trás da kombi e o matou com três tiros. O que torna esse caso excepcional é o fato de que foi filmado por uma equipe da Rede Globo. As imagens do assassinato foram mostradas na televisão brasileira e estrangeira, incluindo a CNN e a BBC.

Em 15 de setembro, um tribunal militar declarou o cabo Flávio culpado pelo assassinato de Cristiano, condenando-o a vinte anos de prisão. O tribunal também condenou o policial que segurou Cristiano e absolveu outros três policiais. O advogado do cabo Flávio alegou perante o tribunal que Cristiano havia assaltado uma farmácia em um shopping center lotado, com o intuito de espalhar terror e pânico, sendo, portanto, um terrorista; sua eliminação teria, então, um "relevante valor social", o que garantiria ao cabo uma redução da pena. Um dos juizes aceitou a tese da defesa do "valor social" da execução. Felizmente, a maioria dos juizes não aceitou esta teoria e insistiu em aplicar uma pena de vinte anos de reclusão.

 

A Resposta Popular à Polícia

Os índices de criminalidade cada vez mais altos, as mortes de transeuntes causadas por balas perdidas e confrontos intensos entre traficantes e a polícia levaram a tentativas de justificar a violência policial como inevitável, e mesmo necessária, em uma cidade em "estado de guerra". Pesquisas de opinião pública indicaram considerável apoio popular ao duro tratamento de suspeitos. Em vez de condenar o uso excessivo ou ilegal de força, autoridades governamentais procuraram justificá-la e mesmo encorajá-la. Por exemplo, o governador Marcello Alencar explicou à imprensa que o incidente em frente ao shopping Rio Sul tinha que ser entendido dentro da "situação limite que define o combate duro e direto entre policiais e criminosos quando em circunstâncias de tensão extrema."Alencar também declarou que o assassinato foi um "episódio isolado" - uma declaração espantosa quando se pensa nos cerca de 200 homicídios cometidos pela polícia na primeira metade de 1995. No mesmo sentido, no dia seguinte ao incidente na favela de Nova Brasília, em 8 de maio, o governador declarou que não queria que os policiais envolvidos fossem alvo de críticas ou punições. O Secretário de Segurança Pública, general Nilton Cerqueira, também deu declarações que parecem encorajar a polícia sob seu comando a ignorar as normas básicas que deveriam regular a conduta policial. Em 19 de maio de 1995, Cerqueira disse à imprensa que "o primeiro tiro é mortal. Nossa recomendação é para o policial atirar primeiro" e "o policial, pai de família e soldado da lei, não pode ser morto por bandidos".

Por outro lado, a incapacidade da polícia de controlar as quadrilhas, assim como sua própria reputação de corrupção e violência, levou à crescente falta de confiança da população nos policiais. De acordo com Cerqueira, "as instituições policiais estão numa situação de tragédia para a sociedade. As pessoas confiam mais no traficante que no policial." A polícia fluminense sempre foi corrupta. Mas nos últimos anos, segundo o ex-Procurador Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Antônio Carlos Biscaia, a corrupção se tornou endêmica entre estas forças mal remuneradas. O chefe da polícia civil do Rio de Janeiro, Hélio Luz, declarou publicamente que "não se trafica nada nesta cidade sem a conivência da polícia."O ex-Secretário de Segurança Pública, Arthur Lavigne, estima que nove entre dez policiais cariocas são corruptos. O atual Secretário, general Nilton Cerqueira, concorda: "A polícia Civil parece estar corroída por dentro, com bandidos ocupando cargos de responsabilidade." Em entrevista com a Human Rights Watch/Americas, Cerqueira notou que 304 dos 362 policiais assassinados desde 1994 no estado do Rio estavam de folga quando foram mortos. Cerqueira acredita que o alto número de mortes de policiais de folga reflete a corrupção da polícia e sua participação no violento submundo do crime.

 

 

III. A OPERAÇÃO RIO

Ao longo de 1994, cresceu a inquietação pública com as mortes causadas por balas perdidas, quadrilhas de traficantes e pela polícia violenta e corrupta, e a intervenção militar foi sendo cada vez mais apontada como a única solução. O clamor público afirmando que o Rio havia se tornado uma cidade dominada pelo caos alcançou seu ponto culminante nos meses anteriores às eleições de novembro. A política partidária desempenhou papel importante nesse processo. Durante a campanha eleitoral para governador, disputada principalmente entre Anthony Garotinho, do Partido Democrático Trabalhista (PDT), e Marcello Alencar, do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), os críticos do PDT e de suas políticas liberais estimularam uma intensa campanha nos meios de comunicação para mostrar o Rio como uma cidade violenta, insegura e sem policiamento, buscando culpar o então Governador Nilo Batista e seu predecessor, Leonel Brizola (ambos do PDT), pela situação. No mês de outubro, a polícia fluminense se envolveu no massacre na favela de Nova Brasília. O massacre provocou uma enxurrada de notícias nos meios de comunicação criticando a polícia e clamando por uma intervenção militar. Antes do fim da campanha, ambos os candidatos já haviam anunciado seu apoio à intervenção.

Embora o governador Nilo Batista, preocupado com as possíveis violações de direitos humanos, tenha inicialmente se oposto à intervenção, a conjuntura política em favor de uma solução "militar" para o crime no Rio de Janeiro mostrou-se esmagadora. Em 31 de outubro, o governador, representando o estado do Rio de Janeiro, e o presidente Itamar Franco, representando a União, assinaram um convênio para permitir operações conjuntas do exército com a polícia para eliminar o tráfico de drogas e armas no Rio. Quase imediatamente, a imprensa chamou o convênio e as ações efetuadas sob sua égide de "Operação Rio".

O convênio de 31 de outubro teve como alvo o tráfico de drogas e armas realizado pelas quadrilhas. O texto do convênio diz, em parte:

Considerando que o tráfico ilícito de entorpecentes e o contrabando de armas é hoje fundamentalmente uma questão internacional sendo, portanto, sua repressão da responsabilidade direta da União; [e]

Considerando que a situação da criminalidade no estado do Rio de Janeiro, com a atuação de grupos de delinqüentes, estruturados em torno do tráfico local de drogas e fortemente armados, gerando a intranqüilidade e a insegurança no seio da população e violando os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos;

Cláusula primeira - O presente Convênio tem por objetivo fixar, nos termos constitucionais, diretrizes e mecanismos de colaboração entre a União e o Estado do Rio de Janeiro no que diz respeito à preservação da lei, da ordem pública e da segurança do cidadão, especialmente no que concerne à prevenção e repressão do contrabando de armas e do tráfico de drogas.

O convênio era bastante breve, contendo apenas seis cláusulas além dos parágrafos introdutórios. Ele autorizava a criação de uma entidade pelo Estado do Rio de Janeiro, a ser dirigida pelo chefe do Comando Militar do Leste, que iria "planejar, coordenar e unificar a atuação das Secretarias de Estado de Justiça, da Polícia Militar, Polícia Civil, e da Defesa Civil, no combate à criminalidade." O Governo Federal concordou em intensificar o patrulhamento das vias aéreas, marítimas e terrestres de acesso ao Rio para combater o tráfico de armas e drogas ilegais e em intensificar as ações da polícia federal e da polícia rodoviária federal para este fim. O convênio não especificava a natureza das ações a serem tomadas no Rio para combater o tráfico de drogas e o crime, e também não fazia nenhuma referência ao problema da violência policial.

No dia 18 de novembro, tropas invadiram cinco favelas, três das quais localizadas na zona sul da cidade, e duas na zona norte. Essas ações iniciais estabeleceram o padrão que iria ser repetido nos meses seguintes em dezenas de favelas em todo o município do Rio. No começo da manhã, centenas de soldados usando capuzes ou pintura facial de camuflagem entravam na favela e estabeleciam postos de controle nas entradas das favelas. Os soldados e oficiais envolvidos nas ações recusavam-se a se identificar; as etiquetas de identificação eram cobertas ou arrancadas. O propósito declarado desse sigilo era proteger os envolvidos nas ações contra possíveis represálias dos traficantes.

Os soldados controlavam as entradas das favelas durante toda a ocupação, exigindo que todos os que entrassem ou saíssem apresentassem documentos de identidade. Muitos moradores que não podiam apresentar documentos de identidade eram presos. As tropas ocupavam o prédio ou prédios com melhor infra-estrutura no local (na maioria dos casos, escolas ou igrejas), usando-os como centros de operação provisórios. Uma vez obtido o controle da favela, os soldados e policiais empreendiam vastas buscas casa por casa, prendendo moradores que considerassem suspeitos. Os presos eram levados ao centro de operações; alguns eram imediatamente liberados após interrogatório, outros eram mantidos presos. A maioria das ocupações durava um ou dois dias.

Nos primeiros dois meses da Operação Rio (novembro e dezembro de 1994), as tropas realizaram ações em dezenas de favelas, incluindo as favelas dos morros do Dendê, da Mangueira, do Urubu, de São Carlos, da Mineira e do Querosene, além de favelas na Ilha do Governador e em Niterói, de onze favelas no complexo do Alemão e 18 favelas do bairro de Água Santa. Durante esse período, forças da Operação Rio entraram em zonas mais abastadas da cidade uma única vez, quando realizaram buscas com cães treinados em 370 apartamentos à Rua Sá Ferreira, em Copacabana.

No começo da Operação Rio, as autoridades negaram o acesso da imprensa às favelas ocupadas. Todos que não fossem moradores da favela ocupada, incluindo representantes da Human Rights Watch/Americas e de outros grupos de direitos humanos, eram impedidos de entrar para vistoriar a ação da polícia e dos militares. Posteriormente, alguns poucos membros da imprensa tiveram permissão para entrar nas favelas durante as ocupações. Mas, em geral, os repórteres tiveram acesso a uma visão bastante limitada das operações. Depois que a imprensa começou a veicular matérias sobre torturas nas favelas do Borel e da Chácara do Céu (ver adiante), o Comando Militar do Leste expulsou os repórteres da sala de imprensa que até então ocupavam no quartel-general do Comando, e os obrigou a manter uma distância mínima de 200 metros das dependências do quartel.

A hostilidade dirigida aos profissionais dos meios de comunicação se tornou mais evidente durante a ocupação, no dia 12 de janeiro, de onze favelas do complexo do Alemão. Durante essa operação, o repórter Nelson Carlos e o fotógrafo Alaor Filho, do Jornal do Brasil, foram espancados. Alguns soldados também esmurraram José Luís Vilhena, repórter de O Globo, no rosto e na barriga. Segundo os repórteres, as tropas ignoraram suas reclamações, dizendo: "pode falar com o governador e com quem você quiser. Quem está mandando mesmo aqui somos nós".

Prorrogações da Operação Rio

O convênio criando a Operação Rio expirou em 31 de dezembro de 1994. No dia 10 de janeiro, as autoridades federais e estaduais recém-eleitas assinaram um acordo prorrogando os termos do convênio por mais um mês. Muitas das favelas ocupadas em novembro e dezembro foram reocupadas. No fim do mês (em 23 de janeiro), o General Roberto Jugurtha Senna renunciou ao comando da Operação Rio e voltou a Brasília. O então Secretário estadual de Segurança Pública, general Euclimar da Silva, ficou responsável pela Operação Rio. Por meio de uma segunda prorrogação, as autoridades federais e estaduais estenderam a Operação Rio até o dia 3 de março.

No dia 4 de abril, as autoridades federais e estaduais deram início à "Operação Rio II". O general Abdias da Costa Ramos, chefe do Comando Militar do Leste; o general Euclimar da Silva, Secretário Estadual de Segurança Pública; o delegado Eleutério Parracho, Superintendente da Polícia Federal; e João Bernardo de Souza, Superintendente da Polícia Rodoviária Federal, assumiram em conjunto a responsabilidade pela direção da Operação Rio II. O Secretário de Segurança Pública declarou que não havia planos para a ocupação de favelas durante a Operação Rio II. Soldados e policiais foram espalhados pela cidade, em vez de se concentrarem em massa em determinados locais. Segundo o governador Marcello Alencar, a Operação Rio II foi "para valer (...) bandido que puxar a arma vai morrer." Apesar dessa retórica beligerante, a Operação Rio II foi realizada com relativa pouca reação popular e cobertura da imprensa.

Nessa segunda fase da Operação Rio, o papel das forças militares federais foi significativamente reduzido, limitando-se a atividades como a instalação e operação de barreiras nas estradas, que se supõe ser a principal via de transporte de drogas e armas usada por quadrilhas. A polícia civil e a polícia militar ficaram responsáveis pela segurança pública e pelo combate ao crime nas favelas. No mês de maio, três acontecimentos marcaram o ressurgimento do papel desempenhado pela polícia. No dia 8, quinze policiais civis, auxiliados por dois helicópteros, atacaram a favela de Nova Brasília, matando pelo menos treze pessoas (ver subtítulo "Nova Brasília II"). No dia 24, cerca de 150 policiais militares e civis invadiram quatro morros: do Alemão, da Coroa, da Mineira e do Andaraí - matando cinco pessoas e prendendo um homem suspeito de ser traficante. Em 28 de maio, cerca de 300 policiais militares invadiram o morro do Alemão, matando quatro supostos membros da quadrilha do traficante "Marcinho da Vila Norma", e prendendo mais oito suspeitos.

Em maio, o governador Marcello Alencar substituiu o Secretário de Segurança Pública, general Euclimar da Silva, pelo general Nilton Cerqueira, militar reformado e deputado federal.

Nos meses seguintes à indicação de Cerqueira como Secretário de Segurança, a presença dos militares foi gradualmente reduzida. No final de junho, Cerqueira começou a desmontar o aparato criado pela Operação Rio. Cerqueira também instituiu uma política de presença permanente da polícia em favelas especialmente problemáticas. Um exemplo desse tipo de operação permanente foi a instalação de um quartel-general da Polícia Militar no complexo do Alemão, na zona norte da cidade.

No final de outubro, contudo, a criminalidade continuava tão intensa quanto antes, e as autoridades consideraram mais uma vez a possibilidade de uma nova intervenção militar federal no Rio para combater o crime. Em 3 de novembro, o presidente Fernando Henrique Cardoso e o governador Marcello Alencar acertaram um convênio para combater a violência no Rio, que incluía o envolvimento direto das forças armadas para combater o tráfico de drogas e armas. Até meados de janeiro, época da redação final desse relatório, nenhuma atividade militar havia sido anunciada publicamente.

Violações aos Direitos Humanos

Estimulados pelo clamor da opinião pública em favor de uma solução militarizada para a questão da violência e apoiados pelas autoridades civis, os comandantes da Operação Rio se mostraram dispostos a tolerar uma vasta gama de violações aos direitos humanos praticadas por seus subordinados. A cada favela ocupada, as forças da Operação Rio promoviam uma série de irregularidades, tais como buscas domiciliares ilegais, detenções arbitrárias e por tempo demasiadamente longo, e tratamento cruel aos eventuais prisioneiros. A regularidade dos abusos praticados pelas tropas foi reconhecida pelo chefe da Operação Rio, general Roberto Jugurtha Câmara Senna. Num encontro com vereadores do município do Rio de Janeiro logo após o início da operação, Câmara Senna afirmou: "Não somos um batalhão de assistentes sociais; é impossível evitar um excesso ou outro". Os excessos incluíam a tortura de presos. Após investigar algumas denúncias de tortura, o Promotor de Justiça da 20a.Vara Criminal, Dr. Nilo Cairo Lamarão, concluiu que "as Forças Armadas e o Batalhão de Operações Especiais da PM transformaram os morros cariocas em campos de concentração". A Human Rights Watch/Americas não encontrou, até o presente momento, um único caso em que os responsáveis pelos abusos cometidos tenham sido julgados e punidos.

 

Buscas Ilegais e Prisões Arbitrárias

Uma tática central usada durante a Operação Rio consistia em isolar as favelas ocupadas e conduzir uma rigorosa busca, casa por casa, até que fossem encontradas armas, drogas ou outras provas de envolvimento com a criminalidade. O Direito brasileiro exige que as buscas sejam previamente autorizadas por uma ordem judicial que especifique, o mais precisamente possível, a casa a ser revistada.Subvertendo o espírito da lei, que visa proteger os direitos à inviolabilidade do domicílio e à liberdade individual, os comandantes da Operação Rio obtiveram mandados judiciais autorizando a busca domiciliar em áreas vastas e mal definidas. Os favelados tiveram seus lares revistados, não porque houvesse uma razoável suspeita de que pertenciam ao comércio de drogas ou de que haviam cometido um crime qualquer mas, tão somente, porque viviam numa determinada favela. Muitas destas buscas eram conduzidas de forma agressiva, com emprego de meios violentos. Em vários casos, os moradores das favelas tiveram seus pertences revirados e seus móveis danificados. Na entrada de algumas favelas, policiais e soldados realizavam revistas generalizadas, sem ordem judicial, nos moradores e visitantes que por ali passavam, inclusive crianças.

Em gritante desrespeito às normas legais sobre as detenções, as tropas da Operação Rio detiveram, sem mandado, centenas de pessoas que não se encontravam em situação de flagrante delito. Moradores das favelas sitiadas eram detidos apenas porque não portavam carteiras de identidade, ou porque as tropas resolviam conduzir interrogatórios. Pelo mais fútil dos motivos, ou simplesmente sem motivo algum, moradores foram detidos e submetidos a interrogatórios.

Um dos casos que obteve maior publicidade foi a prisão de Edson José de Jesus, um morador do morro do Dendê levado por fuzileiros navais no dia 20 de novembro por ter o mesmo apelido - "Tatu" - que um traficante suspeito de ter matado um policial. O "Tatu" procurado pelo crime, contudo, já havia morrido três anos antes. Mesmo havendo mostrado como documento de identidade uma carteira de trabalho assinada por seu empregador, Edson foi levado para uma unidade militar, onde ficou mantido incomunicável.

Um morador contou à Human Rights Watch/Americas que ficou detido por oito horas apenas porque soldados encontraram em sua casa uma cápsula de bala já disparada, que havia sido guardada como recordação.

Outro caso que ganhou notoriedade foi a prisão de Ubiraci de Oliveira, o mestre Bira, presidente de uma associação de moradores na Mangueira e conhecido ritmista daquela escola de samba. Mestre Bira foi preso juntamente com Antônio Rodrigues da Costa, vice-presidente da associação, apenas por haverem descoberto num barraco que pertencia à associação uma quantia alta de dinheiro. Depois de detidos e levados a Polinter, os militares exibiram um mandado de prisão temporária expedido depois de efetuada a prisão. Ambos permaneceram presos por trinta dias sem que nenhuma acusação fosse formalizada contra eles.

 

Detenções por Períodos Injustificáveis

Muitos dos cidadãos detidos durante a Operação Rio foram soltos logo após breves interrogatórios. Em alguns casos, como o do mestre Bira, os prisioneiros ficaram detidos por trinta dias, nos termos das ordens judiciais de prisão temporária.

De acordo com as leis nos. 7.960/89 e 8.072/90, um juiz pode ordenar a prisão de um cidadão por até trinta dias se existirem fundadas razões que indiquem envolvimento com os chamados crimes hediondos, entre os quais figura o tráfico de drogas. Nos termos da citada lei, a prisão temporária se justifica como medida de auxílio nas investigações policiais em curso. Inexistindo uma investigação policial prévia, um mandado judicial de prisão temporária não deveria ser expedido.

Na prática, entretanto, diversas pessoas foram detidas durante a Operação Rio e permaneceram presas por trinta dias sem que fossem indiciadas num inquérito. Por exemplo, a Human Rights Watch/Americas investigou sete casos de pessoas detidas durante a operação no morro do Alemão entre os dias 13 e 14 de janeiro de 1995. Embora todos tivessem sido presos em regime de prisão temporária por trinta dias, em nenhum dos sete casos foram encontrados registros de inquéritos instaurados antes ou durante o período em que ficaram presos. Em alguns casos, os mandados de prisão temporária foram expedidos depois da prisão. (V., por exemplo, os casos de mestre Bira e André Melo do Nascimento, abaixo).

A detenção de um suspeito por trinta dias sem que lhe sejam apresentadas acusações formais pode ser incompatível aos preceitos do direito internacional. Tanto o Pacto Internacional sobre Direitos Políticos e Civisquanto a Convenção Americana sobre Direitos Humanos protegem o direito à liberdade individual exigindo que os suspeitos sejam formalmente acusados e prontamente levados diante de um juiz.

Os favelados detidos e feitos prisioneiros pela Operação Rio permaneceram sob custódia durante horas nas centrais de operações improvisadas entre os barracos da favela. Os detidos ficaram longos períodos sem receber água ou alimento e impedidos de receber visitas de familiares e advogados. Aqueles que não eram logo soltos, eram encaminhados às celas dos presídios comuns que, por sua vez, encontram-se aquém dos patamares estabelecidos pelas normas internacionais. Cerca de trinta a cinqüenta presos eram mantidos em celas desenhadas para acomodar meia dúzia de pessoas. Equipamentos sanitários nas celas se limitam a um buraco no chão com uma torneira, servindo ao mesmo tempo de banheiro, pia e latrina. As celas estavam tão cheias que os presos se revezavam em turnos para dormirem, pois não havia espaço físico para que todos se deitassem ao mesmo tempo.

Tortura e Violência Física

Ao longo da Operação Rio, moradores de favelas denunciaram condutas abusivas e violentas praticadas por policiais e soldados. Algumas das práticas violentas ocorriam no momento em que eram detidos. Os abusos mais graves, tais como a tortura, se deram nos interrogatórios. A seguir, detalhamos alguns casos de tortura a partir de depoimentos prestados pelas vítimas e testemunhas perante diversas autoridades públicas.

 

Tortura no Morro do Borel

Na madrugada do dia 25 de novembro de 1994, as Forças Armadas ocuparam o morro do Borel, onde ficam as favelas do Borel e da Chácara do Céu, na zona norte do Rio de Janeiro. As tropas ocuparam a Igreja São Sebastião e uma creche ao lado, as melhores instalações existentes no morro, e as transformaram em centrais de operações militares. Uma sala de aula localizada no segundo andar do prédio da igreja foi utilizada como sala de interrogatório. Ao longo daquele dia, as tropas federais detiveram dezenas de moradores e os levaram até a igreja. Os policias forçaram pelo menos um morador a vestir um capuz e caminhar pelas ruelas e becos identificando os traficantes da favela.

Embora as informações sejam divergentes em alguns detalhes, parece que pelo menos 15 pessoas foram torturadas na igreja, então transformada em sala de interrogatório. Diversas testemunhas juram ter ouvido gritos de dor saídos de lá. Algumas viram um banco manchado de sangue dentro da sala.

Ao perceberem que as tropas estavam torturando os presos, um grupo de moradores procurou o padre Olinto Pegaroro, pároco da igreja. Padre Olinto, que estava lecionando filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), retornou imediatamente à favela e ordenou que os soldados saíssem da igreja. Contudo, os soldados ali permaneceram até as 21 horas do dia seguinte. Padre Olinto denunciou a prática de tortura dentro da igreja para a imprensa em 28 de novembro de 1994. Em carta dirigida ao general Câmara Senna, então comandante da operação, Padre Olinto afirmou que:

"O dia 25 de novembro foi uma data sinistra para o Morro do Borel e especialmente para a Chácara do Céu. Os dois centros comunitários da pastoral foram tomados, inclusive a igreja, convertida em sala de triagem de presos, submetidos a constrangimentos morais e físicos. Houve também alguns torturados até a perda de sangue como constatamos na hora vistoria das dependências. Gritos e gemidos se ouviram por tarde a parte, especialmente no tanque."

Cláudio Rodrigues Pereira e Carlos Eduardo Rodrigues da Silva

Na manhã de 25 de novembro, por volta das seis e meia, o soldado Cláudio Rodrigues Pereira saiu de casa para se apresentar no quartel onde servia quando foi abordado por soldados que controlavam uma barreira montada na favela, em frente à saída do bananal. Apesar de ter se identificado como militar, o soldado Cláudio recebeu ordens de voltar para casa e lá permanecer até o final da operação. Depois de esperar por mais de duas horas, Cláudio decidiu sair de novo, desta vez acompanhado de seu primo Carlos Eduardo, de 18 anos. Foi então que três soldados os levaram até a igreja São Sebastião depois de terem revistado sua casa sem nada encontrar. Aparentemente, o motivo da suspeita estava na carteira de identidade militar de Cláudio, que os soldados imaginaram ser falsa.

A caminho da igreja, Cláudio foi espancado por um soldado, mais tarde identificado como Bolívar, que tomou para si seus documentos. Já na igreja, Cláudio e seu primo foram submetidos a um "corredor polonês". Durante o interrogatório, Cláudio foi forçado a permanecer ajoelhado o tempo todo, enquanto levava tapas e pontapés. Mesmo sem qualquer prova que o vinculasse ao tráfico de drogas, Cláudio foi despido e forçado a abrir as nádegas para que os soldados vissem se portava drogas. Seu primo Carlos Eduardo também relatou o espancamento que sofreu por parte de soldados, o que foi confirmado mais tarde no exame de corpo de delito.

Francisco José Reis de Oliveira

O florista Francisco José Reis de Oliveira, 25 anos, morador do morro do Borel, voltava para casa por volta das nove da noite quando foi abordado por soldados. Francisco, que trabalhava numa banca de flores na Tijuca durante anos, portava consigo o montante de R$ 300,00 referente às vendas daquele dia, fato que os soldados acharam suspeito. O florista foi, então, levado à creche da Chácara do Céu. Lá, Francisco foi torturado para confessar que o dinheiro advinha do tráfico de drogas. Para a jornalista Juliana Resende, Francisco descreveu a sessão de tortura da seguinte forma:

"(...) Alegavam para eu falar, caso contrário iriam me maltratar; (...) deram socos e rasteiras e num destes tombos eu abri o queixo sujando minha camisa de malha de sangue (...) na escola fui mergulhado de cabeça para baixo num tanque de lavar roupa; (...) como não tinha nada a declarar fui colocado no chão, pois estava fraco, e a partir daí me deram choque elétrico na orelha; que era um fio ligado à tomada e encostavam uma garra na orelha; que me ameaçaram com armas, travando-as e destravando-as; (...) como não tinha informações, fui mergulhado novamente no tanque e desmaiei...".

O exame de corpo de delito feito em Francisco confirma a existência de marcas compatíveis com a alegação de tortura. Quando a Human Rights Watch/Americas entrevistou Francisco no dia 13 de dezembro de 1994, seus pulsos traziam marcas por terem sido amarrados.

Léo e Carecaço

A irmã Maria do Rosário Porto dos Santos, da Igreja São Sebastião, depôs na Secretaria de Justiça no dia 28 de novembro de 1994, detalhando os abusos sofridos por dois favelados que ela conhecia apenas pelos nomes, Léo e Carecaço.

De acordo com seu depoimento, às 9 horas da manhã do dia 25 de novembro, a irmã Maria do Rosário teria visto um grupo formado por soldados e policiais militares e civis, trazendo um homem encapuzado que apontava os moradores supostamente envolvidos com o tráfico de drogas. Dentre os que foram delatados pelo homem encapuzado, havia um jovem que ela conhecia como Léo. A irmã pôde ver Léo sendo levado à igreja. Horas mais tarde, Léo foi levado da igreja para a casa de uma mulher conhecida como Geralda. Ao final daquela tarde, Maria do Rosário viu Léo com a roupa manchada de sangue, ferido, enlameado e sendo chutado por um policial civil que perguntava se ele havia pensado bem no que ele lhe dissera. A irmã chegou a ouvir gritos na igreja para onde Léo havia sido levado mais uma vez.

A Irmã Maria do Rosário foi avisada por um vizinho que um outro morador - conhecido apenas como "Carecaço" - estava sendo afogado num tanque de lavar roupa próximo à casa de Geralda. Ao entrar na casa, a irmã viu quatro policiais civis mergulhando a cabeça de Carecaço no tanque. Em seguida, a irmã escutou um policial dizendo a outro que seria preciso usar choque elétrico em Carecaço. A irmã pôde ver algo sendo aplicado às costas de Carecaço, fazendo com que uma das duas pernas se movesse. Foi quando um dos policiais, notando a presença da irmã, perguntou o que ela estava fazendo lá.

Marco Aurélio da Silva

Acusado por porte e comercialização de drogas, Marco Aurélio da Silva prestou depoimento em juízo no dia 19 de dezembro de 1994. Em seu depoimento, Marco Aurélio disse ao Promotor de Justiça Nilo Cairo Lamarão ter sido acordado em casa por tropas militares do exército, na manhã de 25 de novembro, e levado para a igreja a fim de ser interrogado. A versão oficial é bem diferente: Marco Aurélio, caminhando na favela, teria jogado no chão um pacote contendo cocaína ao ser surpreendido pela blitz do exército, tentando fugir, sem êxito.

Os soldados levaram Marco Aurélio a uma sala de interrogatório no segundo andar da igreja São Sebastião, onde lhe deram socos e chutes. Por ter sido obrigado a olhar para o chão o tempo todo, a vítima não pôde identificar seus agressores. Contudo, Marco Aurélio pôde notar a presença de vários soldados na sala, bem como perceber que outros detidos eram torturados.

Observando que o exame de corpo de delito, feito no mesmo dia que a prisão, apontara cortes nos lábios de Marco Aurélio, compatíveis com uma ação contundente na boca, o Promotor Lamarão decidiu arrolar outras pessoas como testemunhas oculares da prática de tortura. Wanderley Batista Bispo, por exemplo, testemunhou a Lamarão que, ao sair da favela no dia 25 de novembro, foi interpelado por um soldado e este pediu-lhe que se identificasse. Mesmo tendo apresentado seu documento de identidade, Wanderley foi levado pelos soldados até a igreja. No caminho, reconheceu seu vizinho Marco Aurélio, que também estava sendo levado para a igreja. Wanderley declarou que, dentro da igreja, os militares haviam instalado um quarto em que os detidos eram obrigados a se despir e em seguida torturados; o próprio Wanderley alega que foi espancado, chutado, levou rasteiras e ouviu os gritos de Marco Aurélio sendo torturado.

Durante o processo, o Promotor intimou duas vezes os quatro soldados cujos nomes apareciam no auto de prisão de Marco Aurélio (o sargento Fernando César da Silva e os soldados Paulino Lopes, Marcelo Moreira e Ademar Queiroz Baltar). Os militares não compareceram. Em 19 de janeiro de 1995, o juiz encarregado do caso, Dr. Luis Carlos Peçanha, oficiou ao Ministro do Exército solicitando a presença dos militares intimados e que o Comando Militar do Leste explicasse o motivo do não comparecimento em juízo. Finalmente, em 31 de janeiro, os quatro militares deram seus depoimentos, negando as alegações de espancamento.

Em suas alegações finais, o Promotor pediu a absolvição do acusado uma vez que a confissão havia sido obtida mediante tortura, não tendo portanto valor como prova. A sentença prolatada pela juíza Marcia Maria Calainho, de 27 de março de 1995, afirma que:

"a instrução criminal revelou a existência de prática que imaginávamos enterrada desde o advento do regime democrático após quase trinta anos de ditadura sangrenta e arbitrária, cuja memória nos envergonha e humilha (...) Lamentando que projetos em que a população deposite crédito e confiança sejam na prática deturpados, impedindo que o Poder Judiciário exerça seu mister (...) absolvo o acusado".

Lamarão enviou um expediente contendo cópias de peças processuais (o laudo de corpo de delito, o depoimento de Marco Aurélio, o auto de prisão em flagrante e a denúncia contra ele) para a Justiça Militar Federal, onde o expediente foi distribuído para a 1a. Auditoria Militar. Ao invés de determinar a instauração de Inquérito Policial Militar (IPM) para apurar a veracidade das denúncias, o Promotor Militar Walter Montenegro opinou pelo arquivamento do expediente, sem oferecimento de denúncia. O juiz da 1a. Auditoria Militar acatou o pedido de arquivamento, sem apresentar fundamentação.

 

Tortura no Morro do Alemão

André Melo do Nascimento

André Melo do Nascimento, de dezenove anos, foi preso por soldados na casa de sua namorada durante a ocupação do morro do Alemão no dia 12 de janeiro de 1995. Segundo André, os soldados o levaram preso porque encontraram em seu poder quatro pares de tênis sem as respectivas notas fiscais. Levado para uma igreja usada como central de operações, André não foi reconhecido por informantes que ali estavam para identificar os traficantes do morro. Os soldados, então, levaram o jovem de volta para a casa de sua namorada, onde o chutaram e o socaram, exigindo que mostrasse logo aonde havia guardado o "negócio". Em seguida, André foi levado para o primeiro andar da igreja, onde foi torturado. Em seu depoimento perante o juiz, André contou detalhes de sua detenção:

"na igreja (...) os Soldados (sic) batiam no declarante com a mão e davam chutes; que, neste local quem bateu no declarante foram soldados do exército, os quais lhe deram chutes e socos; que, o declarante foi levado para o andar de baixo onde se encontravam policiais militares vestindo roupas preta (sic); que, mandaram que o declarante tirasse a roupa; que, amarraram o declarante e o colocaram de cabeça para baixo num barril cheio de água; que, enquanto isto batiam com um pedaço de pau nas costas do declarante; que, enfiavam um saco plástico na cabeça do declarante e apertavam para que ele ficasse sem ar; que, eles ligaram dois fios elétricos e encostavam no declarante quando ele estava molhado..."

Durante a sessão de tortura, André foi interrogado sobre armas escondidas e, em seguida, levado para fora para procurar as armas. Não achando arma alguma, os militares levaram André a uma casa vazia e o submeteram a choques elétricos aplicados em suas algemas, além de o espancarem. Em seguida, arrastaram-no de volta para a igreja. Apesar de mostrar dificuldade para andar, o rapaz foi forçado a subir uma escada por um policial, que apontava uma faca nas suas costas. Pelo menos uma vez, André foi esfaqueado na nádega esquerda.

O exame de corpo de delito, realizado duas semanas depois de sua prisão, revelou diversas escoriações em seu peito, braços, ombros e nádegas, além de lesões nos pulsos, compatíveis com o uso de algemas, e uma inflamação na cintura. Quando André foi prestar depoimento em juízo, em 10 de fevereiro, compareceu numa cadeira de rodas.

Sérgio Silva do Nascimento

Desertor do exército desde novembro de 1994, o ex-cabo Sérgio Silva do Nascimento dormia na casa de sua noiva no dia 12 de janeiro de 1995 quando fuzileiros navais começaram a revistar a casa. Ao encontrarem uma pistola, os soldados informaram que Sérgio estava preso por porte de arma e tráfico de drogas. Sérgio foi, então, levado para uma quadra de futebol, transformada temporariamente num centro de detenção, onde foi obrigado a se ajoelhar sobre pedras colocadas no chão pelos soldados. Em seguida, foi levado para o CIEP do Complexo do Alemão, transformado pela polícia e pelas forças armadas em centro de operações.

No CIEP, os fuzileiros levaram Sérgio até o centro de triagem. Por ter sido encontrado com uma arma e como o boletim de ocorrência ainda não tinha sido preenchido, os fuzileiros o transferiram para o centro de triagem do exército, no terceiro andar do CIEP. Ali, soldados do exército espancaram-no, esmurrando-o na nuca e nas costas, e colocaram uma sacola de plástico ou um plástico em sua cabeça a ponto de quase sufocá-lo.

Em seguida, vários soldados levaram-no a um quarto no segundo andar da escola e forçaram-no a assinar uma confissão perante a polícia civil. A polícia civil preencheu um auto de prisão em flagrante no qual figuram os nomes de cinco militares presentes durante o interrogatório de Sérgio.

O auto de exame de corpo de delito indicou um grande hematoma na nuca e nas costas, dezenas de ferimentos nos joelhos e no pé direito.Em seu depoimento, Sérgio não conseguiu identificar os responsáveis pela tortura, já que estes se colocavam às suas costas.

Um dos dois fuzileiros que prenderam Sérgio confirmaram muitos dos detalhes narrados em seu depoimento. Embora negasse que os fuzileiros cometiam abusos, o cabo Ubirajara da Silva Narciso declarou às autoridades que investigavam as acusações que soldados deram tapas em Sérgio e colocaram um saco plástico em sua cabeça:

" mas por muito pouco tempo, apenas com o objetivo de intimidá-lo (...) que o saco era colocado na cabeça do detido e tinha sua parte inferior torcida junto ao pescoço do mesmo (...) a ação se repetiu por duas ou três vezes".

Baseada nesta prova, a Promotora Maria Terezinha Cauduro da Silva, da 4a. Auditoria Militar Federal, ofereceu denúncia por lesões corporais contra dois capitães (Eduardo Rebouças dos Anjos e Alvaro Cruz Lima) que comandaram o interrogatório de Sérgio na sala do CIEP. No dia 05 de outubro, os dois capitães depuseram em juízo, negando que tivessem praticado atos de violência contra Sérgio, mas reconhecendo tê-lo interrogado. Em 26 de outubro, três outros militares prestaram depoimentos na qualidade de testemunhas de acusação. Dois negaram o uso de violência. A terceira testemunha, todavia, admitiu o emprego de uma violenta técnica militar contra o cabo. Segundo o depoimento do sargento Alexandre Costa Viana, o interrogatório incluiu:

"[a] técnica de quebramento de ânimo do inquirido (...) que as inquirições tinham mais ou menos umas certas regras, mas para o Cb. NASCIMENTO houve alguma coisa específica para lhe quebrar o ânimo (...) que [Sérgio] sabia se portar dentro das situações, tinha conhecimentos e, inclusive, tinha feito um curso para sargento temporário (...) lhe davam tapas no pescoço e nas costas (...); que acha que não era um saco plástico, mas um plástico que era colocado no rosto do mesmo em cima do nariz e da boca e puxava pra trás. "

Em 18 de dezembro de 1995, com base no depoimento do sargento Alexandre e no resultado do exame de corpo de delito, a promotora Maria Ester Henriques Tavares pediu ao juiz, em alegações finais, que os dois capitães presentes no interrogatório fossem condenados por terem ordenado ou permitido que fosse praticada técnica de tortura contra o cabo Sérgio do Nascimento, assim produzindo os ferimentos que apresentava. O processo encontrava-se em fase de sentenciamento no momento de edição deste texto.

Excessos no Hospital Naval

Alguns favelados foram levados para o Hospital Naval Marcílio Dias, em 7 de dezembro de 1994, como parte das ações efetuadas no morro do Lins Vasconcelos, zona norte, para responder a interrogatórios, que incluíram tortura e violência física. Estes indivíduos foram transferidos, mais tarde, para a carceragem da Polinter.

Rogério Alves da Luz, vinte e dois anos. Os fuzileiros navais e a polícia militar detiveram Rogério na favela da Cachoeirinha, no morro de Lins Vasconcelos. Quatro soldados o interrogaram sobre armas, atingindo-o com golpes nos rins e tapas no rosto.

Cristiano da Silva Cipriani, vinte e oito anos. Soldados o espancaram, depois de o terem algemado. Mais tarde, deram-lhe tapas e chutes durante o interrogatório.

Jorge Sebastião Barbosa Caetano, trinta e quatro anos. Mais de vinte soldados realizaram busca na casa onde se encontrava. Apesar de nada ter sido encontrado, ele foi levado algemado ao Hospital Naval Marcílio Dias. Durante o interrogatório, que durou mais de uma hora, Jorge foi mantido algemado, juntamente com cerca de outros cem detidos. Segundo seu depoimento, foi chutado, esmurrado e esbofeteado pelos soldados navais.

Marcos André Barbosa Caetano, dezoito anos. Marcos foi detido por dez fuzileiros navais durante busca realizada na casa de sua irmã, onde estava hospedado. Em seguida, foi levado ao Hospital Naval Marcílio Dias, onde tropas navais o interrogaram, agredindo-o com chutes nas costas e murros no estômago.

Edson Lourenço da Silva, vinte e três anos. Um grupo numeroso de soldados navais detiveram Edson, levando-o para o Hospital Naval Marcílio Dias, onde foi interrogado. Os soldados esbofetearam Edson e pisaram em suas mãos algemadas.

Violência Desnecessária

Houve ainda inúmeras reclamações quanto ao uso de violência desnecessária pelos soldados no trato com os moradores da favela, no momento de detê-los. O caso de Jorge Marques Varella Filho é ilustrativo do excesso e da postura agressiva das tropas com relação àqueles que se manifestaram contra os abusos.

Em 16 de dezembro de 1994, durante a ocupação da favela Pavão-Pavãozinho, em Copacabana, um grupo de soldados detiveram Jorge, supondo que ele havia danificado um telefone público na área. Diante de mais de vinte pessoas, incluindo Joel Bueno e sua esposa, a advogada Sandra Cunha de Albuquerque, os soldados espancaram Jorge severamente, batendo sua cabeça contra a calçada.

Joel e Sandra protestaram contra o espancamento e pediram aos soldados que se identificassem, uma vez que não portavam nenhum tipo de identificação. O pedido foi recusado. Em seguida, os soldados transportaram Jorge para o centro de operações localizado na Ladeira Saint Roman, número 151. Joel, Sandra e outros moradores preocupados com a situação acompanharam os soldados. No centro, Joel e Sandra solicitaram permissão para falar com Jorge. Enquanto esperavam, soldados em guarda zombaram do casal e manusearam suas armas de forma deliberadamente ameaçadora. Após uma hora, os oficiais do centro recusaram o acesso ao preso. Em seguida, soldados removeram Joel e Sandra à força do centro de operações.

Depois que o casal partiu, Jorge foi levado para os barracões da Polícia do Exército na Rua Barão de Mesquita. Apesar da promessa dos soldados de levarem Jorge para a sala de emergência, onde seus ferimentos na cabeça seriam tratados, eles não o fizeram. Nos barracões do exército, os soldados forçaram Jorge e seu irmão a assinarem confissões. Jorge assinou um documento no qual atestava haver danificado um telefone público, resistido à prisão e agredido os soldados. A confissão assinada pelo seu irmão atestava haver sido ele o responsável pelos ferimentos na cabeça de Jorge.

 

Uso desnecessário de violência letal

Durante os meses da Operação Rio, a imprensa do Rio de Janeiro divulgou a morte de pelo menos três dezenas de moradores da cidade pelas mãos das polícias civil e militar. A Human Rights Watch/Americas não foi capaz de confirmar se estas mortes resultaram da ação empreendida pela Operação Rio. Algumas delas, como os treze assassinatos resultantes da investida policial na favela de Nova Brasília, em 8 de maio de 1995, ocorreram durante operações policiais independentes. No entanto, a Human Rights Watch/Americas investigou um caso no qual tropas militares da Operação Rio empregaram violência letal, o que resultou na morte de um civil, sem justificativa adequada.

Em 6 de dezembro de 1994, Alex Alexandre Teles Pacheco deixou seu trabalho ao meio-dia e almoçou com seu pai, o advogado Orli Pacheco. Depois do almoço, Alex encontrou seu amigo de infância Eduardo Maia. Eduardo havia furtado um carro e convidou Alex para acompanhá-lo na compra de carvão para um churrasco. Alex aceitou o convite e pediu para dirigir o carro. Enquanto circulavam pela vizinhança, os dois jovens depararam-se com uma barricada armada pelas tropas do Exército na entrada do morro do Urubu.

Amedrontados pela possibilidade de serem detidos pelo furto do automóvel, crime cuja pena varia de dois a oito anos de prisão, os dois jovens decidiram tentar furar o bloqueio dos militares. Em seguida, os pneus do veículo que conduziam estouraram ao passar sobre os pregos colocados sobre o asfalto pelos soldados. Eles perderam o controle do carro e atingiram um taxi. Não obstante a presença de vários passantes na área, os oficiais militares atiraram em direção ao carro em fuga com armas automáticas. Alex foi atingido por cinco tiros e morreu, enquanto Eduardo sobreviveu a três ferimentos à bala.

No dia seguinte ao incidente, o Ministério Público Militar, autoridade encarregada de julgar crimes militares, indiciou Eduardo Maia por resistência à prisão e tentativa de assassinato. Os militares alegaram que Eduardo atirara contra os oficiais enquanto o carro que o transportava furava o bloqueio. No entanto, nenhum soldado foi ferido. No julgamento de Eduardo, nenhuma testemunha civil declarou ter visto um dos dois jovens atirar na direção dos soldados. A única evidência de que um dos ocupantes do veículo pudesse ter disparado tiros foi a declaração de uma das testemunhas, que disse ter ouvido barulhos que soavam diferente daqueles produzidos por rifles militares. Quando a Human Rights Watch/Americas perguntou a Eduardo se ele ou Alex haviam disparado contra a barricada, ele respondeu "Eu não seria louco o bastante para enfrentar o Exército munido de rifles".

Após um processo notavelmente rápido, em 7 de março o tribunal militar condenou Eduardo a três anos e meio de prisão por ambos os crimes. Por outro lado, nenhuma investigação foi instaurada para averiguar as condições da morte de Alex Alexandre Teles Pacheco e a legalidade do uso da violência letal em resposta à sua tentativa de fuga. De acordo com a lei brasileira, o uso de força superior àquela necessária para conter uma ameaça de agressão ou ainda seu uso imoderado, por parte dos agentes públicos, configura crime.

IV. CONCLUSÃO

A Human Rights Watch/Americas não se manifesta quanto às hipóteses de que a Operação Rio teria sido uma estratégia equilibrada no combate ao crime e ao tráfico de drogas e de que as incursões armadas temporárias nas favelas teriam sido medidas eficazes no combate ao crime. Nossa pesquisa indica, no entanto, que a Operação Rio refletiu o padrão abusivo de aplicação da lei que há muito vem caracterizando a postura do Rio no combate ao crime. De ampla magnitude e envolvendo os militares, a Operação Rio na certa amplificou o desprezo pelos direitos e liberdades fundamentais que caracteriza o trabalho de rotina da polícia.

As violações dos direitos humanos minam a legitimidade dos esforços de controle do crime, sabotando o respeito do público pelas agências responsáveis pela aplicação das leis e invalidando sua eficácia. Uma polícia violenta, corrupta e abusiva, que age em total e voluntário desrespeito quanto às estruturas legais nacionais e internacionais, enfraquece o estado de direito que alega sustentar. Se as autoridades do Rio pretendem ser bem sucedidas no combate ao crime, devem começar pelo combate ao crime cometido por aqueles encarregados de fazer valer a lei.

 

 

V. AGRADECIMENTOS

Este relatório sobre a Operação Rio foi baseado na pesquisa de James Louis Cavallaro, diretor do escritório da Human Rights Watch/Americas no Brasil, e Anna Claudia Monteiro, pesquisadora da Human Rights Watch/Americas no Brasil. A pesquisa incluiu visitas a inúmeras favelas, entrevistas com agentes dos governos estadual e federal, grupos de direitos humanos, representantes de associações de moradores, testemunhas, vítimas, presos e acadêmicos, além de uma vasta documentação processual e outros registros públicos. O relatório foi escrito por James e Anna Claudia e editado por Jamie Fellner, conselheira associada da Human Rights Watch. O advogado do escritório da Human Rights Watch/Americas no Brasil, Celso de Arruda França, contribuiu com significativo trabalho de pesquisa jurídica e análise. Gustavo Pacheco, colaborador do escritório da Human Rights Watch/Americas no Brasil, traduziu este relatório. A revisão do texto ficou a cargo da equipe do escritório brasileiro. Agradecimentos ainda a Ana Cecília Pacheco, Simone Valente Pinto, Luciana Telles Machado, Caio Salles e Rodrigo Calixto, colaboradores do escritório no Rio. Ajudaram também na edição deste relatório os arquivos gentilmente cedidos pelo Procurador da República no Estado do Rio de Janeiro, Dr. Gustavo Tepedino, e pelo Promotor de Justiça, Dr. Nilo Cairo Lamarão. Nossos agradecimentos também para o Grupo Tortura Nunca Mais, Centro Brasileiro de Defesa da Criança e do Adolescente, Padre Olinto Pegoraro e irmãs da igreja São Sebastião, a jornalista Juliana Resende, os moradores de várias favelas cariocas e todos os demais que colaboraram com as nossas pesquisas. Agradecimento, ainda, para a ClipArt Editoração Eletrônica.

A publicação deste relatório é parte do processo de monitoramento dos direitos humanos no Brasil realizado pela Human Rights Watch/Americas. Ela é também parte de um projeto especial que examina o impacto dos programas e políticas de combate à droga sobre os direitos humanos, dirigido por Jamie Fellner. Agradecemos ao Open Society Institute pelo apoio a este projeto.

 

Human Rights Watch/Americas

A Human Rights Watch é uma organização não-governamental fundada em 1978 para fiscalizar e promover o cumprimento das normas internacionais de direitos humanos na África, Américas, Ásia, no Oriente Médio e nos países signatários dos acordos de Helsinki. A Human Rights Watch é mantida por contribuições de indivíduos e fundações em todo o mundo e não aceita financiamentos de quaisquer governos, direta ou indiretamente. O staff é formado por Kenneth Roth, diretor executivo; Cynthia Brown, diretora de programas; Holly J. Burkhalter, diretora de relações públicas; Robert Kimzey, diretor de publicações; Jeri Laber, consultora especial; Gara LaMarche, diretora adjunta; Lotte Leicht, diretora do escritório de Bruxelas; Juan Méndez, conselheiro geral; Susan Osnos, diretora de comunicações; Jemera Rone, conselheira; e Joanna Weschler, representante nas Nações Unidas. Robert L. Bernstein é presidente do conselho e Adrian W. DeWind é o vice-presidente. A divisão das Américas foi fundada em 1981 para monitorar os direitos humanos na América Latina e no Caribe. José Miguel Vivanco é o diretor executivo; Anne Manuel é a diretora adjunta; James Louis Cavallaro é o diretor do escritório no Brasil; Joel Solomon é o diretor de pesquisas; Sebastian Brett, Sarah DeCosse, Robin Kirk e Gretta Tovar Siebentritt são pesquisadores; Michael Bocheneck é bolsista "Leonard T. Sandler"; Paul Paz y Miño e Steve Hernández são associados. Stephen L. Kass é o presidente do comitê consultivo e Marina Pinto Kauffman e David Nachman são vice-presidentes.

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