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Desaparecidos políticos

O fenômeno da detenção arbitrária ou seqüestro, seguido do desaparecimento da vitima, se propagou rapidamente na América Latina durante as últimas décadas, em que a maioria dos países foi governada sob a Doutrina de Segurança Nacional.

A condição de desaparecido corresponde ao estágio maior do grau de repressão política em um dado pais. Isso porque impede, desde logo, a aplicação dos dispositivos legais estabelecidos em defesa da liberdade pessoal, da integridade física, da dignidade e da própria vida humana, o que constitui um confortável recurso, cada vez mais utilizado pela repressão.

O perseguido político, muitas vezes, para manter-se incólume, opta por viver na clandestinidade, longe do grupo comunitário a que pertence, sem contato com a família, e apenas com a esporá­dica ligação com sua agremiação política, também perseguida e obrigada a se manter clandestina.

Quando os órgãos de segurança conseguem deter uma pessoa nessas circunstâncias, desse fato não tomam conhecimento a socie­dade, os tribunais, a família, os amigos e os advogados do preso.

Isso representa vantagem para os órgãos de repressão, que passam a exercer total poder sobre o preso, para torturá-lo e para exterminá-lo, quando lhes aprouver.

Quando se obtém a certeza da prisão, os organismos de segu­rança já eliminaram a vítima e já destruíram todos os vestígios que pudessem levar ao seu paradeiro.

A perpetuação do sofrimento, pela incerteza sobre o destino do ente querido, é uma prática de tortura muito mais cruel do que o mais criativo dos engenhos humanos de suplício.

No Brasil, alguns desaparecidos foram vistos em dependências oficiais ou clandestinas por outros presos que tiveram melhor sorte. Seus testemunhos constam nos processos analisados pelo Projeto BNM. E sobre os desaparecidos, propriamente ditos, o que emanou

de resultado prático na pesquisa realizada, é a certeza de que eram pessoas procuradas pelos órgãos de repressão. Dificilmente os pro­cessos contêm algum tipo de informação que possa levar à desco­berta de seus paradeiros. Isto porque esta forma de repressão pre­tende, de um lado, insinuar que as autoridades governamentais não seriam responsáveis por esses fatos criminosos, e, por outro, per­mitir aos serviços de inteligência maior mobilidade e desenvoltura, sem provocar nenhuma intervenção, quer do Judiciário, quer da imprensa, quer das famílias e dos advogados.

O único fato que se sabe sobre um desaparecido é que foi detido por organismos de segurança. O mais se baseia em hipóteses. A vitima quase certamente foi objeto de assassinato impune, sendo enterrada em cemitério clandestino, sob nome falso, geralmente à noite e na qualidade de indigente.

No Brasil, existem cerca de 125 cidadãos desaparecidos por mo­tivação política. Os movimentos de anistia e familiares lograram en­contrar alguns deles, sempre enterrados sob falsas identidades, pela policia. 

Dentre os casos mais significativos, o Projeto BNM destacou alguns exemplares, como o de Mariano Joaquim da Silva, secretário do Sindicato Rural de Timbaúba, Pernambuco, em 1964, e membro do Secretariado Nacional das Ligas Camponesas, lavrador e sapa­teiro, que foi preso no dia 1º de maio de 1971, em Recife, sob a acusação de ser dirigente da VAR-Palmares. O órgão que efetuou sua prisão foi o DOI-CODI-I Exército, tendo sido levado para o Rio de Janeiro.

Posteriormente, foi transferido para local clandestino de repres­são em Petrópolis (“Casa da Morte”), onde foi visto por Inês Etienne Romeu.

Em seu relatório, Inês afirma ter visto e falado várias vezes com Mariano, que se identificou, tendo-lhe relatado que ali chegara no dia 2 de maio, proveniente de Recife, onde tinha sido preso.

Inês foi inclusive “acareada” com Mariano Joaquim da Silva, perante os torturadores, que queriam, por toda a sorte, saber se ambos já se conheciam. Inês relata ter tido contato com Mariano até o dia 31 de maio, quando na madrugada ouviu uma movimen­tação estranha e percebeu que ele estava sendo removido. No dia seguinte, indagou a seus carcereiros sobre Mariano, os quais lhe disseram que ele havia sido transferido para o quartel do Exército no Rio de Janeiro. Desde então, nada mais se soube de Mariano.

Na residência que serviu como centro clandestino de torturas, em Petrópolis, referida no capitulo 19, Inês Etienne Romeu viu pessoas que são consideradas “desaparecidas” e ouviu referências sobre outras:

1. Quando fui levada para a casa de Petrópolis, lá já se en­contrava um camponês nordestino, Mariano Joaquim da Silva, cognominado Loyola. Conversamos três vezes, duas na pre­sença de nossos carcereiros e uma a sós. Mariano foi preso no dia primeiro ou dois de maio, em Pernambuco. Após sua prisão, permaneceu vinte e quatro horas no Recife, onde foi barbaramente torturado. Seu corpo estava em chagas. Em se­guida, foi levado para aquele local, onde foi interrogado du­rante quatro dias ininterruptamente, sem dormir, sem comer e sem beber. Permaneceu na casa até o dia 31 de maio, fa­zendo todo o serviço doméstico, inclusive cortando lenha para a lareira. Dr. Teixeira disse-me, em princípio de julho, que Mariano fora executado porque pertencia ao Comando da VAR-Palmares, sendo considerado irrecuperável pelos agentes do Governo. Quando conversei a sós com Mariano, ele rnen­cionou a prisão de Carlos Alberto Soares de Freitas.

2. Dr. Pepe confirmou-me que seu grupo “executara” Carlos Alberto Soares de Freitas, por cuja prisão, ocorrida em fevereiro deste ano, fora responsável. Disse-me que seu grupo não se interessa em ter lideres presos e que todos os “cabeças” seriam sumariamente mortos, após interrogatórios. Contou ainda que Marilena Vilas Boas Pinto estivera também naquela casa e que fora, como Carlos Alberto Soares de Freitas, con­denada à morte e executada.

3. Segundo ainda o Dr. Pepe, o ex-deputado Rubens B. Paiva teve o mesmo fim, embora não fosse intenção do grupo ma­tá-lo. Só queriam que ele confessasse mas, no decorrer das torturas, Rubens Paiva morreu. A morte do ex-deputado foi considerada pelo Dr. Pepe como “uma mancada”.

4. Aluísio Palhano, ex-líder dos bancários do Rio de Janeiro, preso no dia seis de maio de 1971, foi conduzido para aquela casa no dia 13 do mesmo mês, onde ficou até o dia seguinte. Não o vi pessoalmente, mas Mariano Joaquim da Silva con­tou-me que presenciou sua chegada, dizendo-me que seu estado físico era deplorável. Ouvi, contudo, sua voz várias vezes, quando interrogado. Perguntei ao Dr. Pepe sobre ele, que me respondeu: “ele sumiu”.

5. Dr. Guilherme disse-me, antes do dia 15 de maio, que iriam prender o Ivan Mota Dias nesta data. Posteriormente, contou-me que Ivan havia sido executado por eles; já o Dr. Roberto disse-me que ele se encontrava no exterior. Entretanto, ou­tros elementos subalternos confirmaram-me a morte de Ivan Mota Dias.

6. No mês de julho, estiveram na casa dois militantes da VPR e um da ALN. O primeiro penso ser Walter Ribeiro Novais, ex-salva-vidas de Copacabana. Márcio me afirmou que o            mataram. Inclusive na época (oito a quatorze de julho de 1971), houve urna ruidosa comemoração, em virtude de sua morte. O segundo, é urna moça que acredito ser Heleni Gua­riba. Foi barbaramente torturada durante 3 dias, inclusive com choques elétricos na vagina, O terceiro é Paulo de Tarso Ce­lestino da Silva, que foi torturado durante quarenta e oito horas por Dr. Roberto, Laecato, Dr. Guilherme, Dr. Teixeira, Zé Gomes e Camarão. Colocaram-no no pau-de-arara, deram-lhe choques elétricos, obrigaram-no a ingerir uma grande quan­tidade de sal. Durante muitas horas o ouvi suplicando por um pouco d’água.

7. No dia quatro de agosto, Laurindo chegou à casa e comu­nicou ao Dr. Bruno e Dr. César que José Raimundo da Costa havia sido preso numa barreira. Segundo me disse posteriormente Dr. Pepe, José Raimundo da Costa não foi torturado, pois no interrogatório disse que não sabia onde estava Lamarca e, se o soubesse, não o diria. Assim, José Raimundo da Costa foi morto vinte e quatro horas depois de sua prisão, num “tiroteio” na Av. Suburbana, no Rio de Janeiro.

A situação do ex-fuzileiro naval Edgar de Aquino Duarte, que participou ativamente nas mobilizações da Associação dos Marinhei­ros e Fuzileiros Navais antes de 1964, no Rio de Janeiro, é eluci­dativa do destino real dos desaparecidos políticos brasileiros. Depois de residir em Cuba após o advento do Regime Militar, Edgar voltou ao Brasil, em 1968, desembarcando em Porto Alegre e utilizando documentos em nome de Ivan Leite. Entrou em contato com seus pais em Recife, permaneceu dois meses em Bom Jardim (PE) e depois foi a São Paulo, onde montou uma imobiliária com um sócio de nome José Leme Ferreira. Sempre trabalhando, não tinha mais contato com antigos companheiros. Por coincidência, certo dia, Edgar encontrou-se com o “Cabo Anselmo”, que lhe disse ter che­gado de Cuba, estando sem trabalho e sem moradia. Edgard o levou para morar em seu apartamento. No Natal de 1970, Edgar, Anselmo e a noiva deste foram ao Rio de Janeiro. Em março de 1971, em pleno centro bancário paulista, na Rua Boa Vista, Edgar foi seqüestrado e levado ao DOI-CODI do II Exército, lá ficando preso e inco­municável. A família recebeu, inclusive, uma carta sua da prisão. De posse dela, seu pai e outros familiares foram a São Paulo, ao DOI-CODI e ao DOPS, e lá obtiveram a informação de que seu nome não constava na lista dos detidos. Entretanto, vários presos políticos testemunham que estiveram com Edgar no DOI-CODI e no DOPS, em 1973. José Genoíno Neto e Ivan Akselrud Seixas subscre­veram documentos enviados à Auditoria Militar, nos quais afirmam ter estado com Edgar nas celas por que passaram. Tais depoimentos foram solenemente desprezados pela Justiça Militar.

Edgar foi visto também pelo ajustador mecânico Luiz Vergatti, de 41 anos, que depôs em São Paulo, em 1973:

(...) que Edgard de Aquino Duarte está preso lá no DOPS, porque “a gente viu ele lá durante o banho de sol”; que Edgard de Aquino Duarte é pessoa desconhecida e estranha para o interrogando e não lhe mostrou nenhum documento de identidade (mas) que, entretanto, acredita que seja a pessoa; (...)

Ao depor em São Paulo, em 1973, o vendedor Roberto Ribeiro Martins, de 28 anos, também se referiu ao prisioneiro em questão:

(...) quero ainda acrescentar, por um dever de justiça e para comprovar que são muitas as arbitrariedades neste Brasil de hoje, que tomei conhecimento no DOPS da exis­tência de um rapaz, de nome Edgard de Aquino, preso há dois anos sem culpa formada e incomunicável; ... .) ~

A morte de Bergson Gurjão Farias foi denunciada em juízo, em 1972 e 1973, pelos réus José Genoíno Neto e Dower Moraes Cavalcante:

(...) que num dos dias em que estava sendo interrogado lhe mostraram o corpo de Bergson Gurjão de Farias, um jovem de 25 anos que foi morto à baioneta, que estava com malária, segundo informações dos policiais, não podendo, ao ser per­seguido, correr ou se movimentar; ... .) ‘

(...) que, no momento de sua prisão, foi espancado e sub­metido a choques elétricos e ameaça de morte; juntamente com o interrogado, sofreram o mesmo processo: José Ge­noíno Neto, Luiz Reis Medeiros, Dagoberto Alves da Costa, e Bergson Gurjão de Farias, que foi morto porque resistiu à prisão, ocorrendo um choque; (...)

Dado como desaparecido, Armando Teixeira Frutuoso esta pessoa teria sido visto num cárcere do Rio pelo radiotécnico Gildásio Westin Cosenza, de 28 anos, conforme seu depoimento em 1976:

(...) que foi então levado a um cubículo onde os torturadores, ficando às costas do interrogando, levantaram-lhe o capuz; que, então, se viu bem à frente de um senhor que estava sentado, encostado à parede e que, ao tentar levan­tar-se, não conseguiu; que este senhor devia ter de 55 a 60 anos, já bastante calvo, cabelos grisalhos, pele bastante clara, nariz grande e (adunco) que nunca fora visto pelo interrogan­do anteriormente, mas ficou sabendo, posteriormente, através dos próprios interrogadores, de que se tratava de Armando Frutuoso, ex-líder sindical que teria sido preso usando do­cumentos com o nome de Armando David de Oliveira; (...)

A prisão e o posterior “desaparecimento” de Antonio Joaquim Machado e Carlos Alberto Soares de Freitas foram matéria de in­terrogatórios da professora Maria Clara Arantes Pêgo, de 28 anos, na Justiça Militar do Rio, em 1972:

(...) que quer esclarecer que o Dr. Antônio Joaquim Ma­chado é advogado, preso em 15 de fevereiro de 1971, no Rio de Janeiro, em Ipanema, nas proximidades da rua Joana An­gélica, foi possivelmente assassinado sob tortura, na PE; que a declarante morou com esta pessoa cerca de oito meses; que a declarante conhecia, desde menina, a família, e sabe que o mesmo foi preso nessa data, porque juntamente com ele foram presos Carlos Alberto Soares de Freitas e Emanoel Paiva, e desde essa data, tanto o primeiro, como o segundo, Carlos Alberto de Freitas, continuam desaparecidos, esgotados todos os recursos legais para encontrá-los; que dos três ele­mentos presos, o único encontrado com vida foi o Emanoel, que se encontra preso respondendo processo; (...)

Outro desaparecimento, cuja vítima foi vista nas dependências de organismos de segurança, é o de Paulo Stuart Wright, um dos fundadores e dirigentes da “Ação Popular” (AP). Ex-deputado, cas­sado em 1964 pela Assembléia Legislativa de Santa Catarina por pressão do Comandante Naval daquele Estado, Paulo foi seqüestrado pelo II Exército, em setembro de 1973, e levado ao DOI-CODI, na Rua Tutóia, em São Paulo. Foi visto numa das dependências internas do DOI-CODI pela enfermeira Maria Diva de Faria, em cuja residência Paulo estivera hospedado no dia do seu desaparecimento.

Após sua soltura do DOI-CODI, Maria Diva concordou em pres­tar depoimento sigiloso perante a Comissão Justiça e Paz da Arqui­diocese de São Paulo. Este depoimento ensejou que os familiares de Paulo fizessem uma representação ao Superior Tribunal Militar (STM), onde, em sessão secreta sem precedentes, aquele tribunal ouviu o depoimento. Em seguida, solicitou informações ao II Exér­cito, o qual respondeu com evasivas e imprecisões.

O STM voltou a exigir informações uma segunda vez, tendo o II Exército respondido no mesmo estilo anterior, o que levou o tribunal a fazer uma queixa formal ao ministro do Exército, em cujo gabinete o embaraçoso assunto acabou engavetado.

Um caso de desaparecimento que envolveu “erro de identifica­ção legal”, é o de Eremias Delizoikov, estudante universitário pau­lista, que foi morto por órgãos de segurança no Rio de Janeiro, em 15 de outubro de 1969, no bairro de Vila Cosmos, numa ope­ração contra a VPR-Vanguarda Popular Revolucionária. Por ocasião de sua morte, o Comando do 1 Exército divulgou nota oficial com o seguinte teor:

“Em prosseguimento às ações de repressão à subversão e ao terrorismo, o 1 Exército levou a efeito hoje, pela manhã, na região de Vila Cosmos, uma diligência da qual resultou a apreensão de grande quantidade de armamento, munição, bombas caseiras, documentos falsos, dinheiro, etc. Durante o desenvolvimento da operação, foram seus encarregados rece­bidos a bala pelos terroristas, resistindo pela força às auto­ridades. Em conseqüência, saíram feridos levemente três mi­litares e morto um dos subversivos

Ocorre que a pessoa morta nesta operação, Eremias Delizoikov, foi sepultada como sendo, erroneamente, o sargento do Exército José de Araújo Nóbrega, militante da VPR procurado pelos órgãos de segurança. Somente algum tempo depois, é que se veio a saber a real identidade do morto. Entretanto, na certidão de óbito, Eremias Delizoikov, consta como José de Araújo Nóbrega, que, no entanto, está vivo. A família de Eremias, embora tenha a certeza de sua morte, o considera, do ponto de vista legal, desaparecido. Esta inu­sitada e dolorosa situação fez com que, durante anos, a família de Eremias se recusasse a crer que ele havia sido morto, negando a possibilidade de equívoco naquele reconhecimento. Isso somente foi desfeito quando, em 1979, com a Lei de Anistia, José de Araújo Nóbrega retornou ao país, e foi apresentado à família de Eremias.

Durante a onda de repressão que atingiu o Partido Comunista Brasileiro-PCB em 1975, vários de seus dirigentes foram presos pelos órgãos de segurança, sendo que suas prisões não foram assu­midas pelo governo, nem seus paradeiros até hoje determinados. Dentre eles, encontra-se José Montenegro de Lima, pesquisador de mercado, que foi preso no dia 29 de setembro daquele ano, em sua residência no bairro da Bela Vista, em São Paulo. Tal detenção foi realizada por quatro agentes policiais e testemunhada por seus vizi­nhos e conhecidos. Seus familiares comunicaram a detenção à 2~’ Au­ditoria de São Paulo, que oficiou ao DOI-CODI-Il Exército e ao DOPS. Os órgãos mencionados, em resposta àqueles ofícios, negaram a detenção de José Montenegro de Lima, informando o DOPS, ainda, estar o seu nome na relação de pessoas procuradas e foragidas. Posteriormente, em interrogatório judicial, Genivaldo Matias da Silva, réu em processo do PCB, assegurou ter visto José Montenegro de Lima detido nas dependências do DOI-CODI-Il Exército. Com base neste depoimento, a família de Montenegro tentou reabrir o caso, sem sucesso.

No dia 28 de agosto de 1979, no momento em que o Congresso Nacional aprovava a Lei de Anistia, era encontrado em São Paulo, enterrado como indigente no cemitério Dom Bosco, em Perus, sob o nome falso de Nelson Bueno, o corpo do desaparecido Luís Eurico Tejera Lisboa. Como já foi visto no capitulo 10, esse jovem fora condenado pela Justiça Militar, em 1969, por atividades na União Gaúcha dos Estudantes Secundaristas e estava vivendo na clandes­tinidade, como militante da ALN, quando, em circunstâncias desco­nhecidas, foi preso na primeira semana de setembro de 1972.

A família, através de cuidadosa análise dos registros referentes ao seu sepultamento naquele cemitério, conseguiu localizar um in­quérito policial já arquivado, que o dava como morto por suicídio. A versão do suicídio, entretanto, não se ajusta aos depoimentos das testemunhas que foram ouvidas, nem às circunstâncias descritas no inquérito, sobre o encontro do cadáver, e menos ainda aos laudos periciais. O quarto da pensão onde teria havido o suicídio apresen­tava várias perfurações de bala, mas segundo a polícia, Luís Eurico, antes de cometer suicídio, teria dado diversos tiros a esmo. A famí­lia reabriu judicialmente o caso. Foram realizadas exumações, sem nenhum resultado positivo. Entretanto, a versão oficial é inconsis­tente. Um dos indícios mais eloqüentes disso foi a pressão que as testemunhas receberam da polícia quando a família descobriu o corpo e a pensão em que os fatos teriam se passado. Luís Eurico Tejera Lisboa foi o primeiro dos desaparecidos cujos restos mortais se conseguiu localizar.

O drama que cerca a família do desaparecido pode ser avaliado ao se analisar o caso de Ana Rosa Kucinski Silva, professora no Instituto de Química da Universidade de São Paulo e militante da ALN, que desapareceu no dia 22 de abril de 1974, junto com o seu marido, Wilson Silva, em São Paulo.

As famílias de Ana Rosa e Wilson impetraram vários recursos judiciais na tentativa de localizá-los, obtendo a negativa de suas prisões.

Não bastasse o desespero da procura, a família de Ana Rosa ainda veio a ser vítima de um processo de extorsão e chantagem por parte de pessoas ligadas ao DOI-CODI-Il Exército. Alguns militares e informantes daquele órgão, montaram um plano para extor­quir dinheiro em troca de informações acerca de seu paradeiro. Sobre os fatos, houve, inclusive, uma ação penal que condenou os autores da trama. Esse episódio é exemplo do desespero de familiares de desaparecidos, bem como demonstração das ignomínias que os organismos de repressão política podem praticar.

A família de Ana Rosa, após bater, inutilmente, às portas dos diversos órgãos de segurança, contratou advogado que havia sido anteriormente investigador do DOPS de São Paulo, acreditando que essa característica possibilitaria maiores facilidades nos contatos com os responsáveis pela detenção da professora. O advogado buscou informações sobre o paradeiro de Ana Rosa junto a um sargento do Exército, que trabalhava como ordenança do Comandante do II Exército em São Paulo, e junto a um civil informante do DOI­CODI, obtendo a resposta de que Ana Rosa estava presa e incomu­nicável naquela repartição militar.

A família foi informada e, evidentemente, pediu que fosse con­seguida autorização de visita e mais dados acerca de seu estado de saúde. Os “informantes” alegaram aos familiares de Ana Rosa que, para isso, necessitavam de dinheiro e pediram considerável quantia. Como as promessas não se cumpriam, a família pediu que ao menos pudessem receber correspondência de Ana Rosa, como comprovação das informações prestadas.

Os policiais farsantes concordaram e apresentaram ao jornalista Bernardo Kucinski, irmão de Ana Rosa, um bilhete manuscrito, alegando ter sido redigido por ela. Bernardo contestou a autentici­dade, tendo sido pressionado pelos referidos elementos a crer em sua veracidade. Pediu, então, que os policiais indagassem de sua irmã o apelido de infância que ela lhe dera. Os policiais concor­daram. Horas depois, retomaram com suposto apelido, que não correspondia ao verdadeiro. Desconfiado de que se tratava de uma farsa, Bernardo, ainda assim, aceitou a proposta que lhe fizeram os “informantes”, no sentido de apresentarem-lhe um coronel do Exército que trabalhava no DOI-CODI, o qual daria, pessoalmente, as informações sobre a situação de sua irmã. Esse suposto coronel lhe disse que sua irmã estava bem, que não havia sido ela que escre­vera o bilhete, mas fora ela quem o ditara. E prometeu conseguir uma visita da família com Ana Rosa, desde que fosse paga a outra metade da verba exigida. Bernardo pagou e os militares sumiram. E tanto Ana Rosa quanto Wilson Silva até hoje estão desaparecidos.

No dia 17 de maio de 1973, na fazenda Rio Doce, entre os mu­nicípios de Jatai e Rio Verde, no Estado de Goiás, aproximadamente às 3 horas da madrugada, Maria Augusta Thomáz e Márcio Beck Machado foram assassinados a tiros, enquanto dormiam. O dossiê sobre mortos e desaparecidos, do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA), diz que eles foram militantes do MOLIPO — “Movimento de Libertação Popular”. Haviam participado do movimento estudan­til de São Paulo, ele estudante da Faculdade de Economia da Universidade Mackenzie, e ela estudante de Psicologia na Faculdade Sedes Sapientiae. Em agosto de 1980, através de investigação ence­tada pelo jornalista Antonio Carlos Fon e com os dados fornecidos pelo CBA, foi possível descobrir as circunstâncias de suas mortes e o local em que os mesmos haviam sido enterrados.

Sabe-se que os homicídios foram praticados por diversos agen­tes que integravam uma operação conjunta do DOI-CODI do II Exército e do DOI-CODI do Distrito Federal, apoiados pela Polícia Militar de Goiás e pela Polícia Civil local. Os responsáveis pela operação determinaram aos moradores da fazenda a ocultação dos cadáveres e seus sepultamentos no próprio local em que ocorreram as mortes. Também a identidade dos mortos foi ocultada, e esses dois militantes foram condenados ã revelia pela 2~ Auditoria de São Paulo, mesmo sabendo os órgãos de segurança que eles tinham sido executados.

Quando, sete anos mais tarde, foi descoberto o local em que os dois jovens se encontravam enterrados e se preparava o traslado de seus corpos, as sepulturas foram violadas por indivíduos, que se identificaram como policiais, e levaram dali os restos mortais. Contudo, a clandestinidade dessa operação e a pressa utilizada na sua execução, tornaram-na imperfeita. Seus familiares requereram vistoria no local e o laudo constatou a presença de partes anatô­micas correspondentes a corpos humanos no lugar do sepultamento criminoso. Dentes, cabelos e ossos foram encontrados, evidenciando a realidade do sepultamento anterior.

Hoje se sabe quais autoridades policiais determinaram o sepul­tamento clandestino. Sobre os fatos rola inquérito policial instau­rado há mais de cinco anos, sem nenhuma conclusão, na Polícia Federal de Goiânia. Os mortos continuam sendo considerados, ofi­cialmente, desaparecidos. No estudo do processo BNM n0 68 verifi­cou-se que o promotor requereu fosse oficiado ao DOPS solicitando a certidão de óbito de Márcio Beck Machado, para que se pudesse declarar extinta a punibilidade contra ele. Nem isso foi atendido.

A família do desaparecido político não tem sequer o direito ao atestado de óbito de seu ente querido, arrebatado da vida pelas garras cruéis da repressão política do Regime Militar.

Caso impressionante de desaparecimento político, pelo cinismo dos órgãos de segurança, foi o de Rubens Beirodt Paiva.

Ativo deputado federal, defensor das bandeiras nacionalistas desde a luta pela criação da Petrobrás, Rubens Paiva foi cassado pelo AI-l, em decorrência de sua participação na famosa CPI do IBAD — Instituto Brasileiro de Ação Democrática, que apurou o recebimento, pelos generais comprometidos com o golpe militar, de polpudas verbas, em dólares, provenientes do governo dos Estados Unidos, em 1963.

“Rubens Paiva, no dia 20 de janeiro de 1971, foi preso em sua residência, na presença de sua esposa e filha.

Às 11 horas da manhã, numa chamada telefônica, uma pessoa havia lhe pedido o endereço, alegando desejar entregar-lhe uma cor­respondência que trazia do Chile.

Meia hora mais tarde, sua casa foi brutalmente invadida por seis pessoas em trajes civis, todas armadas, que não se identifi­caram e o levaram preso. Guiando seu próprio automóvel e acom­panhado por dois policiais, Rubens foi conduzido ao quartel da Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita, onde funcionava o DOI-CODI do 1 Exército.

Sua casa ficou ocupada por quatro policiais. Seus familiares nem podiam usar o telefone. As visitas eram detidas e conduzidas presas ao quartel. Vasculharam toda a casa, nada encontrando. Apreenderam as agendas telefônicas.

No dia seguinte, sua esposa Maria Eunice Paiva e sua filha Eliana, então com 15 anos de idade, foram presas, encapuzadas e conduzidas ao DOI-CODI-I Exército, onde foram fotografadas, iden­tificadas e separadas. A filha foi liberada 24 horas depois, tendo sido interrogada por três vezes nesse período. A esposa ficou detida 12 dias, sempre incomunicável, prestando depoimento diversas vezes, inclusive à noite.

A acusação que pesava contra Rubens Paiva era simplesmente a de manter correspondência com brasileiros exilados no Chile.

Quando Maria Eunice foi liberada, os responsáveis pelo DOICODI-I Exército devolveram à família de Rubens seu carro, que se encontrava no pátio daquela dependência militar, passando-lhe recibo de entrega.

O fato foi submetido à apreciação do Superior Tribunal Militar, que pediu informações ao comandante do 1 Exército. Apesar dos dados indiscutíveis que confirmavam a prisão em sua casa, guiando o seu próprio carro, tendo por companhia dois agentes de segu­rança, e a devolução do veículo mediante recibo, o 1 Exército res­pondeu que ele não se encontrava detido.

É fato público e notório, e dele já cuida a História, que, a partir de 1966, membros do PC do B se instalaram em região situa­da à margem esquerda do Rio Araguaia, conforme já visto em capítulo anterior.

De 12 de abril de 1972 a janeiro de 1975, em três campanhas distintas, as Forças Armadas cuidaram de sufocar a “Guerrilha do Araguaia”. A ação das Forças Armadas encontrou resistência e a luta que ocupou tão dilatado período, provocou mortes de ambos os lados. O movimento guerrilheiro foi vencido, tendo sido alguns de seus integrantes aprisionados, processados e condenados pela LSN. Cerca de 60 militantes foram mortos em combate. Até hoje é desconhecida a localização de seus restos mortais, apesar de se saber que os corpos foram identificados pelas Forças Oficiais.

Os nomes dos que morreram na “Guerrilha do Araguaia” en­contram-se no Anexo III, como parte da relação de desaparecidos políticos compilada durante o período compreendido pelo Projeto BNM.

Desde tempos imemoriais o respeito aos mortos é costume sa­grado dos povos. Nas leis bárbaras, a profanação ou a subtração do cadáver era punida com a privação da paz.

A ausência de sepultura, que impede sejam os mortos venerados pelos seus, erige-se em maldição bíblica das mais aterradoras. Por intermédio do profeta Ezequiel, durante o cativeiro dos hebreus no Egito, lançou o Senhor Deus ao Faraó a maldição de morte sem sepultura, mostrando-a temível e indigna aos homens:

“Tombarás na superfície do campo sem seres recolhido nem enterrado. Entregar-te-ei como pasto aos animais da terra e às aves do céu”. (Ezequiel 29,5).

A literatura clássica mostra que pagãos e cristãos se afinavam no proclamar o direito dos mortos à sepultura adequada e conhecida.

Na peça teatral “Antígone”, de Sófocles, o rei Creonte impediu que Polínice tivesse direito a sepultura, proibindo que colocassem seu corpo em um túmulo e sobre este derramassem suas lágrimas. Isto porque Polínice, que era de Tebas, lutara contra Creonte, que governava sua cidade, morrendo em combate.

Antígone desafia a proibição, dando túmulo ao irmão e enfren­tando a ira de Creonte. Justificando sua atitude, ela diz:

“Sim, porque não foi Júpiter que a promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal direito entre os humanos; nem eu creio que teu édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! Tais decretos, eu, que não temo o poder de homem algum, posso violar sem que por isso me venham a punir os deuses!...”

A norma de respeito aos mortos, mesmo quando inimigos em guerra, peregrinou pelos tempos e pelos povos e se hospeda hoje no Artigo 120 da Convenção de Genebra (III), assinada após o fim da II Guerra Mundial, em 12 de agosto de 1949, sendo que o diplo­mata João Pinto da Silva e o general Floriano de Lima Brayner assinaram em nome do Brasil:

“... As autoridades detentoras de prisioneiros de guerra de­verão assegurar que os que morreram em seu poder sejam enterrados com dignidade, se possível de acordo com os ritos da religião à qual pertenceram, e que seus túmulos sejam respeitados, mantidos e marcados adequadamente para que possam ser encontrados a qualquer tempo. (...) Para que os túmulos possam ser sempre encontrados, todas as informações relativas às inumações e aos túmulos deverão ser registradas”.

E ainda que lei nenhuma houvesse, seria confortador conhecer as circunstâncias em que as prisões e mortes se operaram, para que não seja fragmentada a história de suas vidas.

Mais torturante que uma certeza triste é a dúvida duradoura que, a cada dia, renova a dor e a agiganta. E essa dor ganha relevo e cor quando os que são por ela atormentados se sentem impo­tentes para desfiar o cipoal de incertezas que os aflige.

Justo é pedir a localização dos filhos, irmãos, pais e esposos que, notoriamente, foram presos pelos órgãos de segurança e encon­traram a morte pelo “desaparecimento” para dar-lhes sepultura digna.

Justo é pedir a localização dos corpos, para que sejam trasla­dados, se for o caso, e endereçados à sepultura próxima de parentes, em uma atitude de respeito aos vivos, a quem assiste o direito de velar seus mortos.

A reivindicação que os familiares de desaparecidos formulam tem precedentes no Evangelho. Após a crucificação do Cristo, José de Arimatéia rogou a Pilatos que o deixasse tirar o corpo de Jesus para sepultá-lo.

Até Pilatos, que recebeu milenar condenação por ter sido indi­ferente, deixando que a crucificação do filho de Deus ocorresse, teve então comportamento distinto do anterior. Sem hesitar, permitiu que José de Arimatéia e Nicodemos tirassem Jesus da cruz e lhe dessem sepultura. (João 19,38-42).

Justo é pedir a localização dos corpos para responder, enfim, à indagação de Alceu Amoroso Lima:

“Até quando haverá, no Brasil, mulheres que não sabem se são viúvas; filhos que não sabem se são órfãos; criaturas humanas que batem em vão em portas implacavelmente tran­cadas, de um Brasil que julgávamos ingenuamente isento de tais insanas crueldades?”.

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