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O Programa Nacional dos Direitos Humanos

Doutor JOSÉ GREGORI
Chefe de Gabinete do Ministro da Justiça

"Em primeiro lugar, quero agradecer essa oportunidade de estar aqui para essa conversa, absolutamente singela, um convite que, para mim, foi considerado imediatamente irrecusável, de uma pessoa a quem eu dedico um afeto muito grande e uma admiração ainda maior, que é a Drª Lucia Figueiredo.

Sou testemunha do seu talento, da sua dedicação, do seu esforço, e de marcar, com algumas companheiras, pioneiramente, a presença da mulher em campos e estradas onde não era habitual essa presença. De maneira que, mesmo à distância, tenho-lhe acompanhado os passos. Como Advogado no tempo dos anos de chumbo, tive um caso profissional, em que era preciso que a letra fria da lei fosse superada por uma hermenêutica de adaptação da lei às circunstâncias da vida, principalmente da vida política, e Lucia Figueiredo deu uma solução com perfeito embasamento jurídico, que, na realidade, foi muito importante na luta da reabertura democrática no Brasil.

Em segundo lugar, agradecer esse retrato tão inexato, mas tão cheio de carinho, que o Professor Célio Benevides traçou a meu respeito. De maneira que não posso esconder a minha emoção e verificar que algumas coisas da minha vida de militante ficaram gravadas em pessoa de tanto senso e exigência crítica.

E, em terceiro lugar, dizer que na vida agitada de quase-trincheira que se leva em Brasília, de vez em quando é preciso uma pausa reabastecedora. Quer dizer, nós somos abelhinhas que, de vez em quando, precisam retornar à colméia para readquirir seiva. Para mim, é muito importante essa convivência, aqui, nesta Casa, para algumas reflexões de um esforço que o Governo Federal está fazendo, de uma maneira geral, onde me coube algunm papel de coordenação e de dinamização de uma proposta que pôde ser levantada pelo atual Governo, com inteira legitimidade, porque o seu núcleo mais íntimo é constituído de pessoas que, na vida prática, tiveram ocasião de vivenciar a importância dos direitos humanos.

Boa parte desse núcleo provém da resistência democrática que houve, no Brasil, em razão do regime de arbítrio que nós vivemos durante uma longa jornada de mais de vinte anos. E nada como sentir na prática a importância de uma idéia. Não se tinha, naquela época, a possibilidade do socorro de remédios corriqueiros na tradição ocidental, o habeas corpus, a liberdade de imprensa, que pode ser uma aliada nos momentos em que se deve criar também um movimento de opinião pública para que o Judiciário ajuste a sua pontaria, no sentido de dar a melhor interpretação à norma legal. E, realmente, foi o instante em que se socorreu dos direitos humanos.

A partir do ato de decisão do Arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, que reuniu em torno de si um pequeno grupo de pessoas de boa vontade, instituiu-se uma espécie de socorro para as pessoas que não tinham nenhum tipo de resposta do Judiciário poderem levar as suas aflições, e esse pequeno grupo, através de um trabalho quase que de formiguinha, dar conhecimento às autoridades das arbitrariedades cometidas e, com isso, temos a convicção de termos diminuído muito a violência que, então, era praticamente irrestrita.

Acho que esse embasamento fático em como naquele instante os direitos humanos foram importantes, foi fundamental para que no ano passado, exatamente na data da Independência, o Presidente da República, também participante desse esforço de resistência ao regime militar, mais no campo de resistência intelectual do que propriamente no campo de resistência política, anunciasse ao País o engajamento mais explícito do Governo aos direitos humanos, anunciando algumas medidas concretas.

Uma delas foi que encomendara ao Ministério da Justiça a feitura de um Plano Nacional de Direitos Humanos, atendendo a uma decisão que uma conferência mundial sobre direitos humanos, realizada em 1993, em Viena, fizera, através de uma proposta da Austrália: de que todos os países da ONU deveriam elaborar os seus Planos Nacionais de Direitos Humanos.

A Austrália, tendo feito a proposta, deu o exemplo, tendo sido o primeiro país a providenciar e a elaborar o seu Plano Nacional de Direitos Humanos. E o Presidente dizia que determinara ao Ministério da Justiça que o Brasil fosse o segundo país a elaborar o seu Plano Nacional de Direitos Humanos. De certa maneira, essa raiz da decisão do Presidente da República coloca a oportunidade do tema dessa série de palestras, porque mostra que, hoje, os direitos humanos se estruturam numa rede que extrapola os limites geográficos e de soberania dos países. E essa conferência de Viena foi um desses momentos em que todos os países que integram o sistema da ONU se reuniram para meditar sobre a questão dos direitos humanos e encaminhar propostas práticas.

O Brasil atendeu a esse chamado de Viena por meio desse plano, e a primeira coisa a dizer é que não é um plano que tenha resultado da vontade exclusiva do Governo, porque nós não tínhamos nenhum tipo de precedente, nunca se tinha feito no Brasil, e nem na América Latina, um plano global de direitos humanos. Nós nos associamos à Universidade de São Paulo, através de um departamento especializado nos estudos de violência - o Núcleo de Estudos da Violência, dirigido pelo Professor Paulo Sérgio Pinheiro -, para um primeiro borrador a respeito do que deveria ser um Plano Nacional de Direitos Humanos.

E, nesse ajuste, fizemos questão de colocar que não bastava o que os integrantes desse Núcleo pensassem a respeito. Era preciso ouvir, pelo menos, a comunidade que, felizmente, no Brasil, cada vez é maior: a comunidade que se dedica a esses temas de direitos humanos. Com isso, foram realizados vários encontros - hoje, não sei por que, pedantemente são chamados de workshops - em várias regiões do País, de tal maneira que esse plano é a suma teológica do pensamento da comunidade dos direitos humanos, nacionalmente considerada.

É claro que a feitura, que demorou cerca de cinco meses, representa um esforço grande. É preciso estabelecer áreas de consenso, é preciso estabelecer um certo sistema, é preciso convencer. Então, fazer esse Plano Nacional dos Direitos Humanos representa, sem dúvida nenhuma, um esforço; no caso, um esforço pioneiro, sem precedente. Mas isso é apenas a metade. Nós estamos exatamente agora às voltas com a outra metade, quer dizer, como traduzir em fatos, em condutas, em políticas, quer dizer, como fazer acontecer no plano vivencial, no plano concreto, aquilo que está nesse Plano.

As dificuldades são grandes. Em primeiro lugar, existe uma baixa taxa de consciência e de informação a respeito dos direitos humanos, essa coisa que, para nós, que lidamos mais de perto com isso, constitui, sem dúvida nenhuma, um dos faróis, uma das luzes mais fortes desse século: o desenvolvimento dessa questão dos direitos humanos, quer dizer, aquilo que foi apenas um tipo de carga intencional do Iluminismo francês e mesmo da Revolução da Independência dos Estados Unidos, nesse século passa a ser uma coisa que é fundamental para a organização das sociedades, sobretudo a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, feita pela ONU, que é, sem dúvida nenhuma, um dos marcos fundamentais da jornada do homem na vida histórica.

Mas isso que nos comove, que nos sensibiliza, que nos estimula, só pode ser compartido com pouca gente. A grande massa dos nossos irmãos brasileiros ainda está longe dessa informação. Infelizmente, além dessa ausência de informação, quando ela existe, especialmente nas camadas mais simples, vem acompanhada de um sentido distorsivo, que os nossos adversários têm propagado, anos a fio, pelos meios de mídia, que têm mais penetração nas camadas populares, no sentido de deturpar os direitos humanos, como se eles fossem apenas o escudo protetor dos que infringem a lei, dos que agridem a integridade física do seu semelhante. E nós nos encontramos, hoje, exatamente num desses surtos de violência, principalmente violência urbana, acompanhados dessa agressão aos direitos humanos, querendo responsabilizá-los como causadores dessa violência.

Então, a estrada que temos que fazer, no sentido de concretizar o que está enunciado nesse Plano, que nós resolvemos chamar de "Programa", porque a idéia de programa é mais dinâmica, mais concreta do que plano, é uma estrada de grandes dificuldades. Mas, apesar desse momento de desfortuna em que nos encontramos de, mais uma vez, termos que mostrar que, longe dos direitos humanos serem responsáveis pela violência, são, na realidade, a única forma de podermos combater com eficácia e globalidade o fenômeno da violência.

Eu queria, também, passar a minha grande confiança, porque tenho visto que, apesar de tudo, já é possível se colocar a questão dos direitos humanos como um tema de Governo, quer dizer, como uma das bandeiras importantes de um Governo. Na realidade, antigamente os temas importantes de um Governo eram saúde, educação, saneamento, câmbio, comércio exterior e, agora, pouco a pouco conseguimos alinhar a questão dos direitos humanos como um dos temas de Governo.

Isso é, sem dúvida nenhuma, um grande avanço. Do ponto de vista de vontade política, nós podemos dizer que hoje, a nível federal e, posso dizer, também a nível estadual, existe uma irrestrita vontade política, no sentido de fazer avançar as políticas de direitos humanos. Portanto, apesar das grandes dificuldades dessa conjuntura em que nós nos encontramos, desse surto de violência urbana, principalmente aqui em São Paulo, ter, mais uma vez, sido acompanhada da sem-cerimônia dos nossos detratores, o meu testemunho é muito positivo, no sentido da penetração gradativa dessa idéia, e do avanço, no sentido de ser encarada como uma forma de se combater a violência e, portanto, estabelecer um tipo de convivência social na linha do entendimento e da fraternidade, que, em última análise, é aquilo que nos inspira nas nossas atividades.

Acho que para isso também tem contribuído uma pressão que vem de fora. Quer dizer, na realidade, essa questão de direitos humanos se tornou uma questão universal. A tecnologia moderna tem propiciado um tipo de explicitação dessa preocupação dos Direitos Humanos, e um tipo de organização conhecida como Organização Não-Governamental, quer dizer, a possibilidade de se juntar esforços, independentemente da vontade do Estado, por mera deliberação de pessoas da sociedade, tem contribuído para essa pressão que vem de fora. Não há dia em que o "fax" não me despeje uma série de apelos e, mesmo, de críticas vindas dos pontos mais variados do mundo, pedindo providências, seja por questão da agressão à ecologia, seja por tratamento que as autoridades estejam dando às crianças de rua, seja em razão da política que o Governo vem seguindo, na questão dos índios; enfim, há toda uma malha internacional, hoje, que vivencia diariamente essa questão e que constitui um tipo de pressão muito grande, e que está, de certa maneira, institucionalizada num sem-número de tratados internacionais, dos quais o Brasil, na redemocratização, vem participando cada vez mais.

Ainda há menos de um mês, eu estive em Genebra integrando a delegação brasileira, que se reuniu naquela cidade com dezoito peritos provenientes dos mais diferentes países, para analisar um relatório que o Brasil fizera, em 1994, sobre a questão do respeito aos direitos humanos, no marco do Pacto Internacional de Direitos Políticos e Sociais, que é um pacto de iniciativa da ONU e que cria, para os seus aderentes - cerca de cem países -, a obrigação de, a cada dois anos, apresentar um relatório sobre a situação dos direitos humanos, que, por sua vez, é distribuído para esse comitê de peritos, e que, depois de estudos, se reúne com uma delegação do país, para uma espécie de sabatina, ponto por ponto, do que o relatório apresentou.

E lá fui eu, junto com companheiros do Itamaraty, para esse encontro, com esse comitê. E devo dizer que, para uma pessoa da minha geração, que teve no nacionalismo uma das bandeiras, a questão nacional, a questão contra o imperialismo, foi, sem dúvida nenhuma, uma das notas da minha geração. E não é fácil aceitar esse tipo de engajamento institucional a um documento jurídico, que dá a um francês, a um liberiano, a um americano, a um sueco, a possibilidade de questionar coisas acontecidas no País.

Mas a verdade é que isso mostra o avanço da idéia dos direitos humanos pelo mundo. Em primeiro lugar, porque esses peritos estão absurdamente bem informados a respeito do que acontece aqui, que é exatamente essa coisa nova ,chamada "Organização Não-Governamental", - ONG, que municia esses peritos com informação. Então, a primeira coisa que o País tem que ser é veraz, quer dizer, não adianta querer esconder as coisas, porque eles estão realmente muito bem informados.

E, nessa estada em Genebra, apareceu uma questão que eu gostaria de trazer para meditação, que é a situação extremamente peculiar em que fica o Governo Federal, porque o sujeito de direitos de todos esses pactos é a União, quer dizer, é o Governo Federal, que tem que responder por acontecimentos praticados geralmente pelos Governos Estaduais. E pelos Governos Estaduais de antes da gestão do Governo que lá comparece, para ter que dar explicação. E a coisa mais difícil é explicar, principalmente para aqueles que têm a tradição do Estado unitário, o regime federativo, porque sempre fica parecendo uma tentativa de desconversa, quer dizer, uma tentativa do Governo Federal de fugir das suas responsabilidades.

Então, isso que aconteceu em Genebra foi a repetição do que já houvera ocorrido em outros encontros e fez com que, no nosso Plano - uma idéia que o Ministro Jobim tinha e que eu adotei nessa redação do Plano -, ganhasse a consideração de figurar como uma das idéias do Programa, ou do Plano Nacional, que é criar a figura do crime contra os direitos humanos e dar-lhe um tratamento federalizado, porque, na maioria do nosso estoque de assuntos que merecem a crítica internacional, estão fatos ocorridos nos Estados e para os quais o Estado deu um tratamento absolutamente negligente. Quer dizer, a questão internacional não se coloca para a maioria desses Estados. Isso é um problema para a União, o Itamaraty, resolver.

Então, um sem-número de processos que chegaram ao conhecimento desses organismos, e que não têm solução até hoje, são apresentados como passivo nosso, passivo do Governo Federal, que não tem instrumento, diante do nosso regime federativo, para, com energia e eficácia, cobrar providências. Então, surgiu essa idéia de criação de um crime contra os direitos humanos.

Seria impossível descrever ou tipificar esse crime contra os direitos humanos e, de certa maneira, todo e qualquer crime, em última análise, é um crime contra os direitos humanos, e foi pensado que assim seria considerado aquele ilícito penal que a juízo do Procurador-Geral da República ou de um organismo federal que tenha sido criado para defender os direitos humanos, seja considerado crime contra os direitos humanos. E, imediatamente, a conseqüência dessa classificação, seja pelo Procurador-Geral da República, seja pelo Conselho de Defesa da Pessoa Humana, seria trasladar da competência estadual para a competência federal.

Nós já começamos a ouvir críticas a essa engenharia jurídica, mas, realmente, nenhuma delas convincente, porque, estatisticamente, a Justiça Federal tem se mostrado muito mais independente dos interesses regionais, das pressões políticas, do que a Justiça Comum. Não estou dizendo isso como uma espécie de retribuição à gentileza de me terem convidado, mas, realmente, a experiência brasileira dos últimos anos tem mostrado que o nível de possibilidade de casos assim, realmente momentosos, de agressões aos direitos humanos, fluírem com mais rapidez e independência na Justiça Federal do que na Justiça Comum. Daí termos pensado que devíamos apresentar uma Emenda Constitucional - e ela foi apresentada - para viabilizar esse tipo de instrumento, para que a União não fique totalmente engessada, de braços cruzados, agora que ela também é questionada nos foros internacionais. De maneira que estamos apostando nessa medida.

O máximo de crítica surgida é que a Justiça Federal é muito assoberbada de trabalho e que, portanto, a possibilidade de resolver esses conflitos com celeridade seria pequena. Mas isso esconde realmente um tipo de corporativismo, porque geralmente quem tem feito essas críticas são os Tribunais de Alçada, pelo menos o Tribunal de Alçada de São Paulo.

De qualquer maneira, é uma realidade que nós temos vivido, quer dizer, essa nova pressão internacional, que não é uma via de mão única. Também o Brasil integra comitês em que se apresenta como questionador do tipo de política de direitos humanos que outros países adotam. Quer dizer, não é só o Brasil que sofre esse tipo de questionamento de fora para dentro. O Brasil também exerce esse tipo de política.

Nós pretendemos acertar cada vez mais o nosso passo em relação a esse tipo de responsabilidades e deveres que os tratados internacionais impõem. Não queremos fugir a isto, porque reconhecemos que isso é um novo rosto da vida internacional e que, sem dúvida nenhuma, constitui, apesar das dificuldades trazidas, um avanço no sentido do grande governo universal, que é uma das utopias realizáveis que todos nós temos.

Nesse sentido, gostaria de deixar aqui o meu apelo para que, lendo com vagar o Programa e conhecendo o teor da Emenda Constitucional que já está tramitando, sobre o estabelecimento do crime de direitos humanos e a sua federalização, fizessem críticas, sugestões e análises, nessa fase em que nos encontramos, e isso é muito importante.

Em segundo lugar, eu queria colocar, também, ao lado dessa realidade nova que os tratados têm trazido para o Brasil, e devo dizer, ainda, nesse assunto, que a colaboração do Itamaraty é extremamente valiosa, quer dizer, realmente o Itamaraty é um setor do Estado brasileiro que menos sofreu da crise geral, da deterioração do Estado brasileiro dos últimos anos. Ainda é uma burocracia de grande competência; a influência política pode existir, mas no sentido de não afetar o ingresso e a qualidade exigida das pessoas que vão fazer a carreira. De maneira que é um forte aliado preparado para uma ajuda aos Ministérios, especialmente o Ministério da Justiça, que agora, em razão dessa política de direitos humanos, passou a ser um parceiro obrigatório nesse relacionamento com os organismos internacionais.

O Itamaraty não tinha, até cerca de cinco anos atrás, uma preocupação pelos direitos humanos. Passou a ter, criou um departamento especializado, de maneira que, hoje, está plenamente habilitado a fornecer o suporte técnico para a nossa convivência com os organismos internacionais.

Em segundo lugar, o que eu gostaria de deixar como um ponto de meditação e de pedido de colaboração, é um ponto muito importante no nosso Programa Nacional: a questão da impunidade, quer dizer, efetivamente, que boa parte da descrença sobre os direitos humanos no País repousa na idéia de que as agressões à lei, os desrespeitos à lei não trazem conseqüência, do ponto de vista da aplicação da lei e das penalidades que eventualmente ela imponha a quem a transgrida.

Essa questão da impunidade, realmente, é muito forte. Em todos os lugares que eu tenho ido falar sobre o assunto, as objeções são muito fortes nesse sentido, quer dizer, as pessoas sempre têm um caso ou outro, pessoal, e quase sempre vários casos conhecidos nacionalmente, em que a Justiça foi morosa e não deu tratamento adequado às agressões. Isso é realmente um problema, porque nós temos ainda que caminhar muito, no sentido do convencimento, no sentido de quase-apostolar, de mostrar a importância dos direitos humanos, porque eles precisam ser em grande medida institucionalizados, ter normas adequadas, sejam nacionais e transnacionais, mas é preciso, também, que ele se instale como um sentimento íntimo em cada pessoa. A dificuldade dos direitos humanos é exatamente essa, quer dizer, não é uma coisa que se possa comprar e colocar na sala, é alguma coisa que tem que ser conseguida através de uma vivência que passa pela ética e que se instale como um compromisso de cada um, no sentido de não agredir o direito ou o espaço do seu semelhante.

Nesse sentido, o nosso proselitismo, a nossa pregação a favor dos direitos humanos, que tem que ser inevitavelmente feita, quer dizer, nós não podemos impô-los por decreto, tem uma parte que tem que ser adquirida como um projeto existencial, encontra um grande obstáculo nessa objeção de que, no Brasil, dependendo dos meridianos geográficos, ou, então, dependendo da posição social ou política da pessoa, as agressões à lei não trazem conseqüência. Toda a questão do Judiciário e seu funcionamento vem à tona nessa constatação.

Eu, realmente, ainda não tenho resposta para isso. Nós estamos colocando o problema com a maior transparência, com a maior honestidade, nos setores que estão mais diretamente ligados a esse problema e sem nenhuma preocupação de colocar ninguém no pelourinho. Acho que essa questão dos direitos humanos deve ser tratada sempre com muita humildade. É difícil alguém atirar a primeira pedra. Até na minha última intervenção, em Genebra, notei que o perito alemão estava, de certa maneira, desenvolvendo a sua argumentação crítica ao Brasil com algum vigor, e tive que mostrar que eu conheço bem a história do século XX e que é sempre bom as pessoas lembrarem que na história do século XX, infelizmente, tem Auschwitz e tem mesmo a questão que eles agora vivem lá, de, no fim de semana, de vez em quando, para desfastio de alguns setores da mocidade alemã, eles "torrarem" alguns "turcos". De maneira que é difícil, nessa questão dos direitos humanos, a gente deixar de ser humilde, porque quase todos têm um débito em relação a esses direitos humanos.

Então, a nossa preocupação não é colocar o Judiciário no banco dos réus, mas é, de certa maneira, chamar a atenção e colocá-lo como um dos protagonistas dessa questão. Quer dizer, ninguém está imune a ter que fazer uma autocrítica e verificar em que pode melhorar a sua atuação para que a taxa de respeito aos direitos humanos no Brasil aumente, porque, realmente, ela ainda é, infelizmente, muito baixa. Ainda esse ano, nós fomos convocados para um seminário internacional que o BID fez em Washington, e fui correndo, porque realmente achei uma coisa extraordinária que, finalmente, os banqueiros se interessassem por direitos humanos.

O argumento deles é muito pragmático, quer dizer, analisando mapas de risco, eles viram que os seqüestros, os assassinatos, pelo menos nas grandes cidades onde os banqueiros vivem, estão matando tanto quanto as moléstias cardiovasculares. E isso fez com que, finalmente, um banco se interessasse em discutir em profundidade esse tema. Convocou um representante de cada país que integra o sistema do BID e, por sua vez, encomendou a um dos seus funcionários que fizesse um estudo de caso para servir de base às discussões lá ocorridas. Esse estudo fez um levantamento da violência, na maioria dos países do mundo, a partir do número de assassinatos por 100.000 pessoas/ano. E o país mais violento por essa medida, em cifras de 92, foi a Colômbia, com 70 assassinatos por 100.000 pessoas/ano. E o segundo país mais violento, com 22 assassinatos por 100.000 pessoas/ano, é o Brasil. De maneira que, realmente, o Brasil é um país necessitando desse tipo de engajamento de todos, e de todos os poderes, e de todas as instituições, nessa luta pelos direitos humanos, de vez que não me parece que exista nada mais adequado, nada mais eficaz, do que os Direitos Humanos para tratar desses temas.

Percorrendo esse Programa Nacional de Direitos Humanos, irão verificar que, de certa maneira, todos os aspectos da vida em sociedade estão colocados e devem ser enfrentados, para se aumentar a taxa de respeito aos direitos humanos e, conseqüentemente, diminuir a taxa de violência, de conflitos, na sociedade. Dificilmente terá escapado algum aspecto nesse levantamento que se fez no Programa Nacional de Direitos Humanos.

Então, o instrumento mais eficaz, porque multidisciplinar, porque globalizante, me parece que seja os direitos humanos. Independentemente das razões éticas, das razões humanistas que forram a necessidade de se respeitar os direitos humanos, também existe esse dado pragmático: de que não se produziu nenhum instrumento mais eficaz para estabelecer uma convivência menos conflitiva, na sociedade moderna, do que os direitos humanos. Por isso é que machuca, realmente, de tempos em tempos, sermos considerados réus sem crime; de, tendo esse tipo de concepção, esse tipo de instrumento dos Direitos Humanos, sermos atacados de negligentes em relação à defesa da vida, à defesa da integridade física, à não-violência. De maneira que eu queria ir finalizando, mas a minha preocupação, no momento, é exatamente receber dos meus amigos de São Paulo um aporte de críticas e de idéias a respeito desse problema da impunidade e, também, sobre o funcionamento concreto dessa idéia de federalizar o crime de direitos humanos.

Queria dizer, por último, que, a partir da divulgação do Programa, que se deu em 13 de maio último, embora esse surto de violência paulista a colocar como um dado no nosso passivo, nós temos algumas coisas a contabilizar no ativo: o estabelecimento dessa preocupação pelos direitos humanos. Como temos colocado, acho que já podemos assinalar alguns resultados concretos.

Não foi mera coincidência que se conseguiu recapturar um dos assassinos do Chico Mendes, que é uma questão dolorosíssima, em termos internacionais, para o Brasil. Realmente, a saga do Chico Mendes chegou como uma coisa heróica, na maioria dos países da Europa, principalmente junto aos jovens. E o fato, não só do assassinato, mas da fuga dos assassinos, trouxe os maiores problemas internacionais para o Brasil. Eu cansei de ter palestras como essa em vários países e, depois de todo o meu latim mostrando que realmente algumas coisas estão acontecendo em favor dos direitos humanos pela primeira vez, no Brasil, vinha a cobrança da fuga dos assassinos do Chico Mendes.

Em segundo lugar, aprovou-se, na Câmara, a tipificação do crime de tortura e, em terceiro lugar, se desencalhou, onde estava adernado há mais de ano, o Código Nacional de Trânsito, no Senado. Foi colocado como uma das medidas prioritárias do Programa Nacional dos Direitos Humanos, e o Presidente da República, em 13 de maio, mandou uma mensagem de urgência para o Código Nacional de Trânsito, que ainda tem defeitos, mas, sem dúvida nenhuma, constitui um grande avanço num setor onde se agride os direitos humanos com a maior facilidade e, praticamente, sem conseqüência nenhuma. Mas, de qualquer maneira, se criou um determinado tipo de que os crimes de trânsito são coisas realmente graves, e nós acabamos de viver um episódio que sacrificou um Ministro de Estado, por não ter passado, pelo menos para a opinião pública, um tipo de comportamento que devia ter tido em face de um acidente de trânsito.

Eu recordei que, logo no começo do Governo Castelo Branco, que foi o primeiro governo do regime militar, o Chefe da Casa Civil - naquele tempo era o biógrafo de Rui Barbosa, um intelectual baiano da Academia Brasileira de Letras - Luís Viana Filho, o seu carro atropelou e matou uma pessoa, e isso foi uma notícia de canto de página, quer dizer, ninguém indagou se a atitude do Chefe da Casa Civil, no carro que atropelara e matara uma pessoa, fora correta ou não. Agora, realmente, criou-se, de imediato, um tipo de cobrança que levou o Ministro dos Transportes a ter que se demitir.

Terceiro lugar, conseguimos encaminhar, quase que em vias de aprovação, uma reformulação da lei dos refugiados.

E, em quarto lugar, nós temos adiantado a questão de se criar, no Brasil, uma política nacional de segurança. Realmente, como quase todos nós, que hoje estamos em postos de algum tipo de influência nas decisões públicas, temos sido muitas vezes vítimas da doutrina de segurança nacional, se criou sempre um tipo de divórcio, de não querer enfrentar essa questão da segurança. Acho que um dos avanços dos direitos humanos no Brasil é ter admitido que esse problema da segurança também tem que ser tratado. E agora está-se fazendo um esforço, se encomendou a dois organismos da sociedade civil e um organismo universitário um primeiro borrador do que seria uma política de segurança democrática ou, como nós costumamos dizer, de segurança cidadã.

Portanto, já nesses poucos meses que nos distanciam da promulgação do Programa Nacional de Direitos Humanos, já temos algum tipo de avanço em questões mais profundas. Temos também a assinalar um tipo de preocupação que o Presidente da República mostrou em relação à comunidade negra. Criou-se em Brasília um grupo de trabalho da comunidade negra, e esse grupo recruta pessoas dessa comunidade e representantes dos Ministérios que possam ter mais diretamente uma contribuição nessa questão. E a comunidade negra deu um exemplo de grande maturidade, porque estava muito trabalhada por tendências que dificilmente se entendiam, havia muita luta interna, e ela foi capaz de, em menos de dois meses, ajustar alianças e espaços de consenso, e apresentou um número de integrantes realmente representativos do que a comunidade negra pensa, hoje, no Brasil.

E esse grupo está se desenvolvendo com muita eficácia. Realizou um seminário de multiculturalismo, já tem propostas que estão em plena execução na área da saúde, conseguiu-se que as certidões de nascimento e óbito acusem a questão da cor, porque a estatística brasileira, na ausência de dados, era muito deficiente. De maneira que é um núcleo muito ativo e que, sem dúvida nenhuma, no Brasil, sofre discriminações e que os direitos humanos não podiam fechar os olhos para esse problema.

Eu ainda poderia assinalar aqui a idéia da criação do Serviço Civil. Quer dizer, na linha de como conscientizar, como difundir a idéia dos direitos humanos, surgiu essa idéia de que no Brasil há um sem-número de jovens que deixam de prestar o Serviço Militar. Dos alistados, cerca de 10 ou 15% são engajados para ficarem um ano na tropa, mas a maioria volta para suas casas sem nenhum tipo de prestação de serviço.

Então, está se estudando exatamente como, para esse excedente, se poderia oferecer a possibilidade de um tipo de formação de agentes de cidadania. Quer dizer, receberem um tipo de curso básico sobre direitos humanos e depois aplicarem durante algum tempo nas suas comunidades essas noções de direitos humanos. Isso está sendo discutido.

Nós queremos, também, engajar as mulheres. O Conselho da Condição Feminina, o Conselho da Mulher, do Ministério da Justiça, se reuniu, aprovou a idéia, acha que, entretanto, não deve ser obrigatória, que é alguma coisa que deve merecer um estudo, porque, no Brasil, o agente de saúde - que hoje, mais ou menos, recruta cerca de 30.000, pessoas que não são médicos, não são enfermeiros, mas têm as noções básicas de atendimento, assim, de emergência - é um serviço louvado por gregos e troianos. Quer dizer, é alguma coisa, é um tipo de serviço que o Estado presta e que não tem sido criticado; pelo contrário, tem sido muito elogiado.

A idéia seria exatamente criar um tipo de agente de cidadania, quer dizer, um tipo de serviço que poderia ser prestado a um país em que a grande maioria não conhece os seus direitos, não tem os seus documentos, não sabe a quem se encaminhar quando tem reivindicações justas a apresentar. Então, nós estamos, também com a colaboração das Forças Armadas, com um grupo de trabalho para delinear um programa básico de Serviço Civil, a começar no ano que vem, ainda como uma experiência piloto e que, sem dúvida nenhuma, se der certo, como a gente espera, vai aos poucos se multiplicando, até poder engajar a maioria desses jovens que ficam sem possibilidades de serem engajados no Serviço Militar, mas sem caráter militar. As Forças Armadas aceitaram essa idéia de fazê-los detentores de uma sistemática de ação no campo dos direitos humanos.

Finalmente, dizer que, apesar de todos os percalços, conseguimos - também depois do Plano, em 13 de maio - aprovar uma lei que transfere da Justiça Militar para a Justiça Comum os crimes comuns dos militares. Era uma velhíssima reivindicação dos grupos de direitos humanos - é de justiça destacar o trabalho pioneiro do Deputado Hélio Bicudo -, e onde nós éramos, periodicamente, fragorosamente derrotados. Quer dizer, chegava a ponto de aprovação, mas na hora da votação o lobby das Polícias Militares era fortíssimo e infringiu memoráveis derrotas aos direitos humanos.

E pela primeira vez, com esse projeto - ainda que ele não seja satisfatório - quebrou-se a invencibilidade desse lobby. Hoje, os crimes de assassinato doloso praticados pelos militares devem ser julgados pela Justiça Comum, e já há encaminhamentos nesse sentido de aplicação imediata dessa lei para os responsáveis pelas tragédias de Corumbiara, do Pará e do Carandiru também. De maneira que, apesar desse projeto não ser totalmente satisfatório, marca um tipo de modificação no tipo de resultado que essa idéia vinha merecendo, porque a maioria dos Senadores passaram pelo Governo do Estado e se aproximaram muito das Polícias Militares. E quase sempre o último ato da gestão era mandar o seu Chefe da Polícia Militar ou seu Chefe da Casa Militar para os Tribunais Militares. E isso, naturalmente, em função de vínculos que se estreitavam durante a gestão dos Governadores, de tal maneira que, na hora H de votação no Senado, o lobby das Polícias Militares mobilizavam as suas amizades com os Governadores para votar contra.

Isso conseguiu, de certa maneira, continuar na votação dessa lei, mas a pressão da opinião pública foi tão grande, inclusive da imprensa, de que alguma coisa tinha que se modificar e não poderia pura e simplesmente haver rejeição da idéia. E houve a consagração dessa primeira brecha, de que os assassinatos dolosos serão julgados pela Justiça Comum.

Acho que no elenco de medidas concretas, a partir de 13 de maio, essas são as principais para mostrar, como eu dizia, que, apesar das críticas que os direitos humanos vêm recebendo, principalmente nos últimos quinze dias, nós temos avançado. Temos coisas concretas que estão sendo creditadas a esse esforço que temos feito.

Eu queria que esse esforço se socializasse aqui em São Paulo, e, sem favor, acho que um dos pólos dessa socialização, dessa propagação da idéia e desse engajamento nela, sem dúvida nenhuma, é essa Casa de Justiça e essa Escola de Juízes.

Portanto, a minha palavra de convocação está feita e, sem dúvida nenhuma, eu sei que ela vai trabalhar em terreno fértil.

Muito obrigado."

Palestra proferida em 20 de agosto de 1996

 
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