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Caderno 6:
Responsabilidades básicas na aplicação da Lei
Prevenção e Detecção do Crime

Índice do Capítulo:

Perguntas-chave para os Encarregados da Aplicação da Lei

Introdução

Um Arcabouço Jurídico para a Aplicação da Lei
* A Presunção da Inocência
* O Direito a um Julgamento Justo
* O Direito à Privacidade
* A Ética na Luta contra o Crime

Prevenção e Detecção do Crime
* Colhendo Provas
* Interrogatório
* Desaparecimentos e Mortes Extrajudiciais

A Administração da Justiça Juvenil
* Instrumentos Internacionais
* Objetivo e Âmbito das Medidas
* Implicações para a Prática da Aplicação da Lei

Vítimas da Criminalidade e do Abuso de Poder

Pontos de Destaque do Capítulo

Perguntas para Estudo
* Conhecimento
* Compreensão
* Aplicação

*****

Perguntas-chave para os Encarregados da Aplicação da Lei


* Qual é o papel da aplicação da lei na prevenção e detecção do crime?
* Quais são os limites legais das práticas de aplicação da lei no que concerne
às investigações?
* O que se entende por um julgamento justo?
* Qual é a situação dos infratores juvenis em investigações criminais?
* Que métodos e meios de investigação são permitidos?
* Quais são as regras de interrogatório de suspeitos e de testemunhas?
* Qual é a situação das vítimas da criminalidade?
* Quais são as garantias de privacidade das pessoas envolvidas nas investigações?

Introdução
A prevenção e detecção do crime estão dentre as áreas de interesse imediato das organizações de aplicação da lei em todo o mundo. O crime aparenta ser inerente à vida quotidiana e, embora toda e qualquer organização de aplicação da lei faça o máximo possível para erradicar sua ocorrência de nossas sociedades, elas provavelmente fracassarão em fazê-lo. É do conhecimento público que o número de crimes solucionados por meio da atividade de aplicação da lei posiciona-se em total contraste quanto ao número de crimes praticados. Além disso, os interesses das vítimas do crime - pelo menos de seu próprio ponto de vista - são muito melhor servidos quando sua vitimização pode ser efetivamente prevenida. A captura e punição de um infrator certamente não é uma reparação total ou adequada para a perda de propriedade pessoal, para a invasão de privacidade pessoal ou a violação da integridade física. Mesmo assim, o fato que as organizações de aplicação da lei freqüentemente não conseguem identificar e prender o(s) infrator(es) de um crime específico tende a agravar os sofrimento das vítimas de tais crimes.

A responsabilidade pela prevenção e detecção do crime é atribuída primariamente às organizações de aplicação da lei. O cumprimento por inteiro desta função, no entanto, requer mais do que a aplicação da lei por si só. A prevenção e detecção efetivas do crime dependem criticamente dos níveis existentes e da qualidade da cooperação entre a organização de aplicação da lei e a comunidade a que esta serve, e são tanto uma responsabilidade privada quanto pública. Políticos, membros do judiciário, grupos comunitários, corporações públicas e privadas, bem como indivíduos, necessitam unir forças para que os resultados da prevenção e detecção do crime sejam melhores que o resultado inevitavelmente insatisfatório da tentativa de meramente aplicar-se a legislação criminal.


Um Arcabouço Jurídico para a Aplicação da Lei
Não existe nenhum instrumento particular no direito internacional de direitos humanos que trate especificamente de questões relacionadas à prevenção e detecção do crime. Tampouco existe algum instrumento que defina os papéis e responsabilidades das organizações de aplicação da lei nesta área. Mas isto não significa que exista um vácuo. A prevenção e detecção do crime é uma questão que se reflete em todos os aspectos da aplicação da lei - e isto se reproduz nos capítulos sobre Captura, Detenção e Uso da Força e de Armas de Fogo.

A prevenção e detecção adequadas do crime devem ser baseadas em táticas e práticas de aplicação da lei que sejam legais e não-arbitrárias. Este capítulo estabelece os princípios do direito internacional de direitos humanos que delimitam as práticas de aplicação da lei com este intuito.

A Presunção da Inocência
Toda pessoa acusada de um delito terá o direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa (PIDCP, artigo 14.2).

Um dispositivo similar é encontrado na CADHP (artigo 7.1(b)), na CADH (artigo 8.2) e na CEDH (artigo 6.2). A presunção da inocência constitui um princípio essencial de um julgamento justo. O direito de ser presumido inocente aplica-se igualmente às pessoas acusadas de um delito bem como às pessoas indiciadas, antes que a denúncia da acusação seja feita. Este direito continua a existir até o momento em que a condenação seja definitiva, seguida da apelação final. O significado real da presunção da inocência é demonstrado no próprio julgamento criminal. Um juiz ou júri somente pode condenar uma pessoa por um delito quando não houver dúvida razoável de sua culpa. O juiz que conduz o julgamento deve fazê-lo sem ter previamente formado uma opinião a respeito da culpa ou inocência do acusado.

Uma das tarefas primárias na aplicação da lei é a de trazer os infratores à justiça. Apesar disso, não compete aos encarregados da aplicação da lei decidir sobre a culpa ou inocência de uma pessoa capturada por um delito. Sua responsabilidade é registrar, de forma correta e objetiva, todos os fatos relacionados a um crime cometido em particular. Os encarregados da aplicação da lei são responsáveis pela busca de fatos, ao passo que o judiciário é o responsável pela apuração da verdade (analisando estes fatos com o propósito de determinar a culpa ou inocência da(s) pessoa(s) acusada(s)). O Direito a um Julgamento Justo
...Na determinação de qualquer acusação criminal contra si, ou de seus direitos e obrigações em um processo legal, todas as pessoas terão o direito a um julgamento justo e público por um tribunal competente, independente, imparcial e estabelecido por lei. (PIDCP, artigo 14.1).

O artigo 14.3 do PIDCP estabelece algumas garantias mínimas que asseguram que todas as pessoas tenham o julgamento justo a que têm direito. A expressão mínimas implica que existem outras garantias adicionais implícitas na noção de um julgamento justo. Estas incluem o requisito de que uma audiência ou julgamento sejam feitos em público (PIDCP, artigo 14.1), salvo em circunstâncias excepcionais; ou que qualquer sentença seja pronunciada publicamente (PIDCP, artigo 14.1). Ambos os quesitos adicionais aumentam a transparência da administração da justiça, bem como do princípio da igualdade de todas as pessoas perante a lei (PIDCP, artigo 14.1; vide também PIDCP, artigo 2.1, não-discriminação). O direito a um julgamento justo também é protegido pela CADHP (artigo 7o), pela CADH (artigo 8 o) e pela CEDH (artigo 6 o).

O artigo 14.3 do PIDCP também declara que: Toda pessoa acusada de um delito terá direito às seguintes garantias mínimas, em plena igualdade:

(a) Ser informada sem demora, em uma língua que compreenda e de forma minuciosa, da natureza e dos motivos da acusação contra ela formulada.


    Esta é uma responsabilidade que tem impacto direto sobre as práticas de aplicação da lei. É responsabilidade do encarregado da aplicação da lei, no momento da captura de uma pessoa suspeita de um delito, de informá-la das razões para a captura ou sobre qualquer acusação criminal formulada contra ela (PIDCP, artigo 9.2; vide também o capítulo sobre Captura). Este dispositivo do artigo 14.3 (a) tem importância direta para a dispositivo seguinte (b), enunciado abaixo:

(b) Dispor do tempo e meios necessários à preparação de sua defesa, e a comunicar-se com o defensor de sua escolha

    O segundo dispositivo também determina que as práticas de aplicação da lei correspondam a certas expectativas. O Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão (Conjunto de Princípios), descrito nos capítulos sobre Captura e Detenção, estabelece mais detalhadamente os quesitos pertinentes à ação dos encarregados da aplicação da lei com relação às pessoas capturadas e/ou detidas: o dever de informar prontamente às pessoas capturadas ou detidas sobre seus direitos e como exercê-los (Princípio 13); o direito à assistência jurídica ou que esta seja providenciada (Princípio 17); e garantias de comunicação e consulta sem censura com seu advogado (Princípio 18). Estes quesitos deixam claro que, nos estágios iniciais do processo criminal, a proteção do direito a um julgamento justo das pessoas acusadas depende em grande parte de práticas de aplicação da lei que sejam legais e não-arbitrárias.

(c) Ser julgada sem demora indevida.

    O início da contagem do tempo para a implementação deste dispositivo começa quando o suspeito (acusado, réu) é informado de que as autoridades estão tomando providências específicas para processá-lo. Este prazo termina na data da decisão definitiva, isto é, o julgamento final e conclusivo ou o arquivamento do processo. As circunstâncias particulares e a complexidade de um caso pendente deverão ser consideradas quando se decide o que vem a ser um tempo razoável, e o que constitui demora indevida.

    Fica claro que a parte investigativa do processo (que está nas mãos das organizações de aplicação da lei) deve ser incluída nessa equação, visto que qualquer demora indevida causada pela prática inadequada da aplicação da lei pode ter um efeito negativo na duração da detenção preventiva de uma pessoa acusada.


(d) Ter o direito à defesa.

    O direito à defesa pode ser subdividido em uma lista de direitos individuais:

    * de defender-se pessoalmente;
    * de escolher seu próprio defensor;
    * de ser informada do direito a um defensor; e
    * de receber assistência jurídica gratuita.
    Toda pessoa acusada de um delito tem o direito primário e irrestrito de estar presente em seu julgamento e de defender-se, ou então, de escolher seu advogado de defesa. É obrigação do tribunal informar este direito à pessoa acusada. A escolha do advogado pode ser feita pela pessoa acusada, se esta possuir meios suficientes para arcar com a assistência jurídica. Caso contrário, a pessoa tem o direito a que seja providenciado um advogado, desde que isto atenda aos interesses da administração da justiça, sem ônus pessoal.


(e) Intimar e interrogar testemunhas.
    O direito do acusado de intimar, obter o comparecimento, e de interrogar (ou fazer interrogar) as testemunhas sob as mesmas condições do que aquelas das testemunhas trazidas contra si é um elemento essencial da igualdade de condições e portanto do princípio do julgamento justo.

    A investigação prévia ao julgamento normalmente serve para identificar as testemunhas de um delito em particular. A integridade da prática de aplicação da lei é, mais uma vez, diretamente relacionada à necessidade de objetividade do processo investigatório e ao respeito pela presunção da inocência da(s) pessoa(s) acusada(s).


(f) Ter a assistência gratuita de um intérprete.
    Se a pessoa acusada não fala ou entende a língua em que os procedimentos do tribunal são conduzidos, tem o direito à assistência gratuita de um intérprete. Este direito é diretamente relacionado a outro dispositivo do artigo 14.3 do PIDCP, que estabelece que a informação sobre a natureza e causa da acusação deve ser fornecida em uma língua que o acusado entenda.

    Pode-se concluir, a partir deste último dispositivo, que na prática da aplicação da lei as pessoas capturadas e acusadas devem beneficiar-se dos serviços de um intérprete para informá-las das razões de suas capturas ou das acusações oferecidas contra elas. O interrogatório de tais pessoas evidentemente deverá também ser conduzido na presença de um intérprete.


(g) Não ser obrigada a testemunhar contra si mesma nem a confessar-se culpada.
    Este dispositivo também se aplica à fase investigatória. Os encarregados da aplicação da lei devem abster-se de qualquer ação que possa ser interpretada como tendo o objetivo de obter o depoimento de uma pessoa detida ou acusada sem sua livre e espontânea vontade. Em relação a este dispositivo é importante notar-se, mais uma vez, a absoluta proibição da tortura (PIDCP, artigo 7o), e os dispositivos do Conjunto de Princípios relativos ao interrogatório de pessoas detidas ou presas (Princípios 21 e 23).

    É direito da pessoa acusada recusar-se a testemunhar. Porém, este direito não se estende a testemunhas de crime, que não podem recusar-se a testemunhar. Outro componente do direito a um "julgamento justo" está incluído no dispositivo do artigo 14.5 do PIDCP, que confere a toda a pessoa declarada culpada por um delito o direito de recorrer da sentença ou pena a uma instância superior, em conformidade com a lei.

    As vítimas de erros judiciais têm um direito exeqüível à indenização por seu sofrimento, a menos que possa ser claramente estabelecido que o erro judicial, com base em um fato desconhecido, possa ser total ou parcialmente atribuído à vítima pela não revelação daquele fato (PIDCP, artigo 14.6).

    O último parágrafo do artigo 14, parágrafo 7, reitera o princípio de ne bis in idem. Ele proíbe uma pessoa de ser processada ou punida novamente por um delito pelo qual já foi condenada ou absolvida.

    O Direito à Privacidade
    Praticamente quase todas as investigações conduzidas pelos encarregados da aplicação da lei na prevenção ou detecção do crime levarão a situações em que as ações tomadas resultarão na invasão da esfera privada de indivíduos. É claro que em todos os países um código do processo penal definirá os poderes de investigação e as competências dos encarregados da aplicação da lei, porém fica também claro que a existência de leis adequadas por si só não é suficiente para assegurar o respeito adequado pela privacidade do indivíduo.

    Ninguém poderá ser sujeito à interferência ilegal ou arbitrária em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem a ofensas ilegais a sua honra e reputação. (PIDCP, artigo 17.1).

    Toda pessoa terá o direito à proteção da lei contra tais interferências ou ofensas. (PIDCP, artigo 17.2).

    Este segundo parágrafo cria a obrigação, aos Estados Partes, de tomar medidas ativas no sentido de assegurar esta proteção a todas as pessoas. Com relação a investigações criminais, isto significa que as medidas tomadas por parte dos encarregados da aplicação da lei que possam resultar na invasão da privacidade de uma pessoa devem ser permitidas pelo direito interno, e que o recurso a tais medidas deve ser proporcional ao objetivo legítimo a ser alcançado. O adentramento na residência de alguém em busca de provas e a interceptação e controle da correspondência e conversas telefônicas são intrusões sérias na vida privada dos indivíduos em questão. Estas ações, portanto, têm de ser justificadas pela existência de uma necessidade urgente relativa aos objetivos legítimos da aplicação da lei.

    Prática Gerencial 1
    Em muitos países a permissão para interceptar e controlar conversas telefônicas somente pode ser obtida por meio de um juiz, que concederá a permissão só em casos onde for evidente que o(s) suspeito(s) participará(ão) das conversas grampeadas, e que as provas contra este(s) não podem ser obtidas de outra forma razoável.

    As práticas de aplicação da lei nesta área em particular requerem supervisão estrita, tanto internamente (por aqueles agentes encarregados do comando e/ou com responsabilidade gerencial) quanto externamente (por agentes do judiciário e outros). Conseqüentemente, as ações executadas por indivíduos encarregados da aplicação da lei devem ser registradas. Tais registros permitirão que um juízo justo e imparcial seja feito a respeito de sua legitimidade e não-arbitrariedade, quando um caso em particular vier a julgamento.

    Referência a este respeito também é feita no artigo 4o do Código de Conduta para os Encarregados da Aplicação da Lei (CCEAL) que estabelece o seguinte:

    Os assuntos de natureza confidencial do conhecimento dos encarregados da aplicação da lei deverão permanecer confidenciais, a menos que o exercício do dever ou a necessidade da justiça estritamente exijam o contrário.

    A clara inferência deste artigo é a de que, em situações onde a interferência lícita e não-arbitrária com a privacidade, família, residência ou correspondência ocorra, os encarregados da aplicação da lei têm a responsabilidade de respeitar e proteger a privacidade da informação obtida desta forma. A revelação aleatória da informação obtida mediante ação que por si própria seja legítima ainda poderá significar uma interferência ilegal com a privacidade de alguém.

    A Ética na Luta contra o Crime
    A partir dos exemplos expostos, já ficou claro que a prevenção e detecção do crime são áreas da aplicação da lei que exigem padrões altos de moralidade e ética dos encarregados da aplicação da lei. Sempre existirão muitas oportunidades, na condução de investigações, para a violação dos direitos e liberdades individuais das pessoas capturadas e/ou detidas - freqüentemente sem que tais violações sejam jamais notadas. O preconceito por parte dos encarregados das investigações, o uso de provas obtidas por meio de práticas ilícitas, a pressão sutil sobre a pessoa acusada para obter testemunho - são todos exemplos de práticas que são difíceis de detectar em retrospectiva. Isto significa, efetivamente, que muito do que constitui um julgamento justo vai depender da atividade de aplicação da lei que, facilmente, passa despercebida do exame atento do judiciário. Como mecanismos de salvaguarda restam apenas a atitude pessoal dos encarregados da aplicação da lei e seus padrões individuais de comportamento e, por outro lado, os mecanismos de supervisão interna.

    Muito freqüentemente, o encarregado da aplicação da lei com tarefas na área de prevenção e detecção do crime orientará seu trabalho como uma forma de rotina, na qual a maioria das funções atingirá um nível de desempenho automático. Mais um arrombamento, ou mais um processo de roubo à mão armada, quando seis outros casos similares já estão esperando diligência na gaveta, podem facilmente levar à indiferença da parte do(s) agente(s) encarregado(s) da investigação. Tal indiferença, no entanto, não será entendida - nem aceita - por parte das vítimas de tais crimes. A falta de entusiasmo e compromisso por parte do encarregado da investigação, em termos da captura dos responsáveis, nada fará em prol dos direitos das vítimas e pode até mesmo auxiliar o infrator a evadir-se da justiça.

    Embora estas noções sejam difíceis de traduzir em regras ou diretrizes, devem, no entanto, devem ser passadas aos encarregados da aplicação da lei de modo a fazê-los entender o significado da contribuição individual para os resultados coletivos e a imagem da corporação como um todo.


    Prevenção e Detecção do Crime
    As informações fornecidas abaixo não devem ser interpretadas como sendo uma orientação prática de como conduzir uma investigação ou como colher provas. São meramente uma tentativa de posicionar a prática de aplicação da lei no correto arcabouço jurídico de padrões internacionais.

    Obtenção de Provas
    A efetiva detecção do crime depende completamente da obtenção bem sucedida de provas em relação a um crime específico. A esse respeito, dois tipos de provas são importantes:
    * provas materiais (testemunhas silenciosas);
    * depoimentos de testemunhas.

    Evidências materiais podem, em princípio, ser encontradas no local onde o crime foi cometido, ou onde indícios deste foram deixados. Portanto, é importante que a cena do crime seja localizada, bem como todos os locais onde indícios relacionados ao crime tenham sido subseqüentemente deixados. No caso de um assassinato, isto significa encontrar o local exato do crime (se este, por exemplo, não ocorreu onde o corpo da vítima foi achado), descobrir a rota usada pelo assassino para chegar e sair do local (ou locais), e tentar identificar os locais que o assassino possa ter usado para livrar-se de provas incriminadoras.

    Antes de continuar com o assunto, deve ser lembrado que ninguém será sujeito à interferência arbitrária em sua vida privada, família, residência ou correspondência (PIDCP, artigo 17). Esta proibição não constitui um problema para a prática da aplicação da lei se houver indícios de um crime em um local público. Todavia, se tais indícios foram deixados em uma residência particular, ou então, se o crime ocorreu dentro desta, o mero fato da ocorrência do crime não é usualmente considerado como base suficiente para que os encarregados da aplicação da lei possam adentrá-la. Em uma situação como essa, os encarregados geralmente necessitam de um mandato judicial permitindo o acesso à residência, se necessário contra a vontade dos moradores, com o propósito de colher provas. Esse procedimento é adotado na maioria dos países, e visa proteger os indivíduos contra invasões ilegais e/ou arbitrárias em sua vida privada.

    O tarefa de proteger, coletar e processar as provas materiais é trabalho para peritos policiais. A análise subsequente, em certos casos, é deixada para laboratórios forenses. As exigências para que provas materiais sejam aceitas como prova irrefutável em um tribunal são muitas e extremamente rígidas. Estes padrões representam um reconhecimento da importância de um julgamento justo, ao qual têm direito todas as pessoas acusadas.

    O segundo tipo de prova provém de informações obtidas de depoimentos de testemunhas. As testemunhas são importantes para o processo de investigação, pois elas podem ser compelidas a depor e, ao fazê-lo, são obrigadas a dizer a verdade. A situação das testemunhas é contrastada diretamente com a das pessoas suspeitas e acusadas, que não podem ser obrigadas a testemunhar contra si mesmas ou a confessar-se culpadas (PIDCP, artigo 14.3(g)).

    No entanto, para obter um depoimento útil de uma testemunha, o(s) encarregado(s) conduzindo a inquirição deve(m) focalizar nas razões do conhecimento de cada testemunha. Ou seja, se a testemunha viu, ouviu ou sentiu o cheiro do acontecido: o que é observação direta e o que é boato? Os depoimentos de testemunhas ajudarão a estabelecer provas reais contra os criminosos, conhecidos ou desconhecidos. Embora as regras de interrogatório de pessoas suspeitas ou acusadas não se apliquem a testemunhas, alguns países apesar disso, recomendam a seus encarregados da aplicação da lei que observem as mesmas regras com relação ao registro do tempo, duração, intervalos, etc.. Isto é feito para se evitarem críticas subsequentes, no tribunal, por exemplo em relação a não confiabilidade do depoimento de testemunhas devido à fadiga extrema induzida pela freqüência e duração dos interrogatórios.

    Sob este mesmo título, alguns comentários devem ser feitos em relação à prática comum na aplicação da lei de se usar informantes confidenciais para a prevenção e detecção do crime, e a prática da infiltração com os mesmos propósitos. Em ambas as práticas, a premissa básica é a de que só devem ser usadas quando for lícito e necessário para os propósitos legais de aplicação da lei.

    Visto que o uso de informantes confidenciais geralmente envolve o pagamento de dinheiro pela informação dada, chama-se a atenção dos encarregados da aplicação da lei para os riscos potenciais que esta prática acarreta, incluindo o risco de que:

    * o informante, atraído pela perspectiva de pagamento, possa incitar
    outros a cometer crimes, os quais ele subseqüentemente informa a seu contato policial;
    * o informante pode explorar a relação com seu contato policial com o
    intuito de cometer crimes e evitar a detecção;
    * o informante pode ser induzido, por seu contato policial, a instigar
    crimes cometidos por outros que, subseqüentemente, permitam à organização da aplicação da lei fazer uma captura;
    * o dinheiro nas transações com informantes têm uma influência suscetível
    de corromper os encarregados da aplicação da lei envolvidos com tais transações.

    A palavra infiltração refere-se à prática pela qual um encarregado da aplicação da lei ou um informante confidencial é inserido em uma organização criminal com o objetivo de obter informações que não poderiam ser obtidas de outra forma. Essa prática deve ser lícita e absolutamente necessária para os propósitos legais de aplicação da lei. Mesmo quando essas condições forem satisfeitas, alguns riscos ainda perdurarão: em primeiro lugar, a infiltração pode ser altamente perigosa para a pessoa que a executará. Em segundo lugar, visto que existe o objetivo da proteção da identidade dessa pessoa em todos os estágios do processo criminal, há o risco de conflito com o princípio do julgamento justo e, em particular, o dispositivo estabelecendo que o suspeito ou acusado tem o direito de interrogar as testemunhas trazidas contra si (PIDCP, artigo 14.3(e)). Este direito pode estar seriamente ameaçado nas situações onde, por razões de segurança, a identidade do(s) infiltrado(s) não é revelada.

    É evidente que ambas as práticas devem ser supervisionadas de perto por um membro competente do judiciário e que, para salvaguardar o direito a um julgamento justo, sejam dependentes da obtenção da permissão antes de sua implementação. Interrogatório
    Os depoimentos de suspeitos ou pessoas acusadas em relação a um crime cometido são a terceira fonte importante de provas. Deve-se enfatizar, porém, que no processo investigatório os encarregados da aplicação da lei não devem confiar excessivamente em tais depoimentos como base para um caso ser apresentado no tribunal. As razões para isso são simples. Um suspeito tem o direito de permanecer calado, e não pode ser obrigado a testemunhar contra si mesmo ou a confessar-se culpado. Além disso, o suspeito tem direito a retirar ou alterar os depoimentos feitos durante qualquer estágio do processo. É evidente que, em muitas situações, provas materiais e depoimentos de testemunhas terão mais valor do que informações obtidas pelo interrogatório de um suspeito.

    Em relação ao interrogatório de suspeitos e pessoas acusadas, a proibição absoluta da tortura deve ser mais uma vez reiterada. Não só a tortura é proibida por lei, mas os resultados (confissões ou informações) obtidas mediante da tortura nunca serão confiáveis, pois em nenhum momento poder-se-á determinar, sem sombra de dúvida, se a pessoa torturada está falando a verdade ou meramente confessando culpa para que a tortura pare. A tortura é degradante tanto para a vítima quanto para o algoz. Ela solapa os princípios básicos da liberdade, segurança e democracia sobre os quais nossas sociedades deveriam ser construídas. A tortura jamais será justificada em nenhuma circunstância.

    Os suspeitos e pessoas acusadas têm o direito a serem presumidos inocentes até que se prove sua culpa em um tribunal. Portanto, os encarregados da aplicação da lei não estabelecem culpa ou inocência mediante de seu interrogatório - sua tarefa é a de estabelecer fatos. Sua missão de busca de fatos começa com uma investigação da cena do crime, bem como dos locais onde aquele crime deixou vestígios, com o intuito de colher provas materiais relacionadas ao crime cometido. A atenção dos encarregados da aplicação da lei volta-se, posteriormente, àquelas pessoas que possam ter presenciado o crime quando este foi cometido, ou que tenham outras informações relevantes. Somente essa dupla abordagem investigativa e uma análise das informações obtidas poderá permitir aos encarregados, por meio do agrupamento de fatos suficientes, estabelecer uma suspeita razoável contra um indivíduo de haver cometido o crime (se o(s) suspeito(s) não foi(ram) capturados em flagrante).

    A captura de um suspeito é também cercada de procedimentos de salvaguarda (vide o capítulo sobre Captura), bem como sua posterior detenção e interrogatório (vide os capítulos sobre Captura e Detenção).

    O interrogatório dos suspeitos requer preparação de parte dos encarregados da aplicação da lei envolvidos. Estes agentes devem ter uma imagem clara dos fatos que foram estabelecidos até então, o que ajudará a determinar a ordem em que os eventos aconteceram. O objetivo do interrogatório é o de esclarecer os fatos já estabelecidos, bem como o de estabelecer fatos novos relativos ao crime. Todo interrogatório deve ser claramente registrado. Os depoimentos de um suspeito que contenham uma confissão de culpa devem ser anotados tanto quanto possível em suas próprias palavras. A duração do interrogatório e as pessoas presentes neste, além do período de tempo entre dois interrogatórios, também devem ser claramente registrados.

    Já foi dito que a tortura ou pressão sobre o suspeito de modo a compeli-lo a depor pode resultar em uma confissão falsa, dada pelo suspeito para evitar mais tortura ou pressão. Todavia, deve ser observado que o fenômeno das confissões falsas não se limita a situações nas quais pessoas tenham sido sujeitas à tortura ou maus-tratos. As organizações de aplicação da lei em todo mundo estão familiarizadas com situações onde indivíduos confessam crimes que não cometeram, freqüentemente por razões pessoais e psicológicas complexas. A maioria dessas organizações escolheu a tática de não revelar certos fatos pertinentes a um determinado crime (os quais somente o verdadeiro criminoso conhece), de modo a descartar rapidamente tais confissões falsas.

    Desaparecimentos e Mortes Extrajudiciais
    Existem dois tipos de violações que merecem menção particular neste capítulo sobre prevenção e detecção do crime, em vista de sua gravidade e sua rejeição pelos princípios fundamentais da democracia e do estado de direito. A seriedade dessas violações dos direitos humanos é mais contundente pelo fato de que são cometidas por agentes do Estado.

      O que é um "desaparecimento"?
      Os "desaparecidos" são pessoas que foram detidas sob custódia de agentes do Estado, mas cujo paradeiro e destino são ocultados, e cuja custódia é negada.
      - Programa de 14 Pontos da Anistia Internacional para a Prevenção de "Desaparecimentos"
      O que é uma execução extrajudicial?
      Execuções extrajudiciais são mortes ilegítimas e deliberadas, cumpridas por ordem de um governo ou com sua cumplicidade ou aquiescência
      - Programa de 14 Pontos da Anistia Internacional para a Prevenção de Execuções Extrajudiciais
    Na primeira definição, as aspas foram usadas para que ficasse patente que as pessoas em questão na verdade não desapareceram. O paradeiro e destino das vítimas, ocultado do mundo exterior, é do conhecimento somente daqueles responsáveis pelo desaparecimento.

    Tirar deliberadamente a vida de uma pessoa e a privação ilegal e arbitrária da liberdade são os crimes mais sérios que podem vir a ser cometidos por aqueles que são chamados a proteger e promover os direitos humanos de todas as pessoas. O próprio alicerce de uma sociedade democrática é destruído sempre que, e seja onde for, o Estado for responsável pela negação de tais direitos fundamentais a seus cidadãos.

    Portanto, todos os esforços devem ser envidados no sentido da prevenção efetiva de tais violações graves dos direitos humanos. O recrutamento, treinamento e supervisão dos encarregados da aplicação da lei devem oferecer garantias operacionais para o desempenho lícito e não-arbitrário das tarefas. Somente a transparência completa das organizações de aplicação da lei e sua posterior evolução para organizações do tipo sistema aberto ajudarão a estabelecer os níveis de responsabilidade verdadeiros e necessários para a prevenção efetiva de tais atos. Por outro lado, a seriedade de tais crimes deve ser entendida pelas organizações, bem como pelos governos dos Estados, resultando na investigação imediata, minuciosa e imparcial de qualquer alegação de que tal crime tenha sido ou esteja sendo cometido. Em qualquer destas investigações, deve ser assegurada a devida atenção a qualquer vítima, bem como os resultados da investigação devem ser levados ao conhecimento público. Além disso, os agentes responsáveis devem ser trazidos à justiça.


    A Administração da Justiça Juvenil
    A comunidade internacional tem reconhecido, por intermédio do desenvolvimento de alguns instrumentos internacionais, a situação especial das crianças e adolescentes - particularmente a dos delinqüentes juvenis. Por causa de sua idade, as crianças e adolescentes são vulneráveis a abusos, negligência e exploração e, portanto, necessitam ser protegidos destes perigos. Além disso, mantendo o objetivo de retirar as crianças e adolescentes do sistema de justiça penal e redirecioná-los à comunidade, medidas especiais de prevenção da delinqüência juvenil devem ser desenvolvidas no nível nacional. Um sistema separado de justiça juvenil não representa, necessariamente, um conjunto diferente de direitos pertencentes aos jovens: propicia, na verdade, um conjunto de dispositivos que têm o objetivo de oferecer proteção adicional àquela dos adultos, que se aplica igualmente às crianças e adolescentes.

    Uma pessoa retém o direito, até certa idade, de ser tratada como criança e, portanto, tem direito a esta proteção adicional. A Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) declara, em seu artigo 1o, que uma criança significa todo ser humano de idade inferior a dezoito anos, a menos que a maioridade tenha sido atingida antes, de acordo com a legislação aplicável à criança. Visto que a Convenção é um tratado que cria obrigações legais aos Estados Partes, o estabelecimento deste limite de idade é importante. A CDC fixa a idade de responsabilidade criminal adulta em dezoito anos, somente permitindo que os Estados desviem-se desta idade no caso de sua legislação nacional estipular uma idade diferente para que se atinja a maioridade. Deve ser lembrado aqui que os Estados Partes estão obrigados não somente a observar os dispositivos da CDC, como também incorporá-los à suas legislações nacionais.

    Instrumentos Internacionais
    Os seguintes instrumentos internacionais regem as matérias relativas à administração da justiça juvenil:

      * Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC);
      * Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça Juvenil (Regras de Beijing);
      * Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil (Diretrizes de Riad);
      * Regras das Nações Unidas para a Proteção de Crianças e Adolescentes Privados de sua Liberdade (RNUPCA);
      * Regras Mínimas das Nações Unidas para Medidas não Privativas de Liberdade (Regras de Tóquio);
    Dos instrumentos mencionados acima, somente a CDC é um tratado. Os outros instrumentos podem ser considerados como normas orientadoras mediante estabelecimento de princípios amplamente aceitos; no entanto, seus dispositivos não impõem obrigações legais aos Estados.

    Objetivo e Âmbito das Medidas
    O objetivo da administração da justiça juvenil é o de melhorar o bem-estar da criança e adolescente e assegurar que qualquer reação aos delinqüentes juvenis seja proporcional às circunstâncias do jovem e o delito que este tenha cometido. Os delinqüentes juvenis devem ser retirados do sistema de justiça criminal e redirecionados aos serviços de apoio comunitário, sempre que possível. Os instrumentos mencionados acima destinam-se, especificamente, a:

    * proteger os direitos humanos das crianças e adolescentes;
    * proteger o bem-estar das crianças e adolescentes que venham a ter contato com a justiça;
    * proteger as crianças e adolescentes contra abusos, negligência e exploração; e
    * introduzir medidas especiais para a prevenção da delinqüência juvenil.

    A Convenção sobre os Direitos da Criança é o instrumento central no sistema de justiça juvenil. Ela oferece uma variedade grande de medidas destinadas a salvaguardar os interesses diretos da criança, incluindo medidas para a proteção das crianças que venham a entrar em conflito com a lei.

    A CDC estabelece algumas regras que regem a captura e a detenção de crianças, estipulando claramente que a detenção deve ser uma medida de última instância e ser usada somente pelo mínimo período de tempo necessário (artigo 37(b)). Estas regras são apresentadas em maior riqueza de detalhe nos capítulos sobre Captura e Detenção.

    A CDC requer que os Estados Partes (artigos 33 a 36) tomem medidas para combater o abuso, negligência e exploração das crianças, a saber:

      * adoção de regras para combater o uso de drogas por crianças e o uso de crianças no tráfico de drogas (artigo 33);

      * proteção contra todas as formas de abuso e exploração sexual, atividades sexuais ilegais, exploração de crianças para a prostituição ou práticas sexuais ilegais, e o uso exploratório de crianças em materiais ou exibições pornográficas (artigo 34);
      * o desenvolvimento de medidas nacionais, bilaterais e multilaterais para prevenir o seqüestro, venda, ou tráfico de crianças de qualquer forma e com qualquer intuito (artigo 35);
      * proteção contra todas as outras formas de exploração que sejam prejudiciais ao bem-estar da criança (artigo 36).


    As Regras de Beijing proporcionam um refinamento àqueles artigos da CDC que tratam de tópicos como captura, detenção, investigação e processo, adjudicação e disposição, e o tratamento institucional e não-institucional de delinqüentes juvenis.

    As Diretrizes de Riad focalizam-se na prevenção da delinqüência juvenil mediante o envolvimento de todos os segmentos da sociedade e por meio da adoção de uma abordagem voltada à criança; as diretrizes consideram que a prevenção da delinqüência juvenil é uma parte essencial da prevenção do crime na sociedade. Este instrumento elabora os papéis da família, da educação, da comunidade e dos meios de comunicação de massa com esta finalidade, além de estabelecer os papéis e responsabilidades com respeito à política social, legislação e administração da justiça juvenil, pesquisa, desenvolvimento de políticas e coordenação.

    Uma premissa subjacente das diretrizes é a de que o comportamento ou conduta dos jovens que não sejam conforme as normas e valores sociais gerais é parte do processo de amadurecimento e tende a desaparecer espontaneamente com a transição para a idade adulta (artigo 5(e)).

    As diretrizes estimulam o desenvolvimento e aplicação de estratégias globais para a prevenção da delinqüência juvenil, em todos os níveis de governo. Para que as ações de prevenção da delinqüência juvenil sejam efetivas, deve haver estreita cooperação entre os vários níveis de governo, com o envolvimento do setor privado, de cidadãos representantes da comunidade em causa, dos conselhos de direitos da criança e do adolescente, organizações de aplicação da lei e de instâncias judiciais. Deve haver pessoal especializado em todos os níveis.

    As Regras das Nações Unidas para a Proteção de Crianças e Adolescentes Privados de sua Liberdade (RNUPCA) é um instrumento destinado a assegurar que os jovens privados de sua liberdade sejam mantidos em instituições somente quando houver uma necessidade absoluta de fazê-lo. Os detidos juvenis devem ser tratados humanamente, com consideração por sua condição e com respeito total a seus direitos humanos. As crianças e adolescentes privados de sua liberdade são altamente vulneráveis a abusos, vitimização e violações de seus direitos. As Regras 17 e 18 deste instrumento específico são de importância particular aos encarregados da aplicação da lei, pois dizem respeito aos jovens detidos ou que aguardam julgamento.

    As ditas regras enfatizam, novamente, que a detenção preventiva de menores deve ser evitada ao máximo, e limitada a circunstâncias excepcionais. Onde a detenção preventiva for inevitável, sua duração deve ser limitada absolutamente ao mínimo possível, através da atribuição de prioridade máxima ao processamento destes casos (Regra 17).

    Os direitos estipulados no artigo 7o das Regras de Beijing são reiterados na Regra 18 da RNUPCA. Além disso, a Regra 18 estipula o direito da criança e adolescente à oportunidade de executar trabalho remunerado, a ter oportunidades de educação e treinamento, e receber materiais educacionais e de recreação.

    As Regras Mínimas das Nações Unidas para Medidas Não-Privativas da Liberdade (Regras de Tóquio) são um instrumento que trata de infratores em geral, em todos os estágios dos processo - independentemente do fato de serem suspeitos, acusados ou sentenciados. Formula princípios básicos para promover o uso de medidas não-custodiais, bem como de salvaguardas mínimas às pessoas sujeitas a alternativas ao encarceramento.

    O sistema de justiça criminal deve disponibilizar uma ampla variedade de medidas não-custodiais, desde disposições pré-processuais até disposições pós-sentenciais, de maneira a propiciar uma maior flexibilidade que seja coerente com a natureza e gravidade do delito, com a personalidade e antecedentes do infrator, com a proteção da sociedade, e para evitar o uso desnecessário do encarceramento. As medidas não-privativas de liberdade vão ao encontro do objetivo principal do sistema de justiça juvenil: retirar os menores que venham a entrar em contato com o sistema de justiça criminal e redirecioná-los à comunidade. As medidas não-custodiais devem, é claro, ser previstas na legislação nacional para que sua aplicação seja legal.

    Implicações para a Prática da Aplicação da Lei
    Um delinqüente juvenil é um tipo diferente de infrator, que requer proteção e tratamento especiais. Isto é um fato reconhecido pela existência de instrumentos internacionais especializados, criados tendo mente a proteção dos interesses específicos dos menores.

    As Regras de Beijing são bastante explícitas a respeito da necessidade de especialização, por parte das organizações de aplicação da lei, em relação a crianças e adolescentes. A Regra 1.6 afirma que os serviços de justiça juvenil deverão ser sistematicamente desenvolvidos e coordenados, tendo em vista aperfeiçoar e apoiar a capacidade dos funcionários que trabalham nestes serviços, em especial seus métodos, modos de atuação e atitudes. A Regra 12 chama a atenção para a necessidade de uma formação especializada para todos os encarregados da aplicação da lei que participem na administração da justiça juvenil. Como os encarregados da aplicação da lei são sempre o primeiro ponto de contato com o sistema de justiça juvenil, é importante que estes atuem de maneira informada e adequada.

    A retirada dos menores do sistema de justiça criminal e seu redirecionamento à comunidade requer, por parte dos encarregados da aplicação da lei, um tipo de atitude e ação bastante diferentes daquelas atitudes e ações apropriadas para infratores adultos. A criação e manutenção de uma relação com grupos comunitários, com conselhos de direitos da criança e do adolescente e com funcionários do judiciário designados à justiça juvenil requerem habilidades e conhecimentos específicos dos encarregados da aplicação da lei. Para que se considere a delinqüência juvenil como um problema transitório, que necessita de aconselhamento, entendimento e medidas preventivas de apoio, é necessário ter uma abordagem mais profunda que aquela oferecida no treinamento básico de aplicação da lei.

    É essencial que se tenha um entendimento pormenorizado da criança e do adolescente para que as medidas não-custodiais sejam aplicadas com sucesso, bem como tenha a capacidade de aplicá-las em estreita cooperação e coordenação com outras organizações principais, de modo a atingir-se a reabilitação e reforma do delinqüente juvenil. O objetivo de tais medidas será o de prevenir a reincidência, ao invés de infligir punição por um delito cometido. Tais abordagens requerem dos encarregados da aplicação da lei uma visão ampla e um entendimento detalhado não só dos direitos e da situação especial dos jovens, mas também da situação especial e dos direitos das vítimas da criminalidade juvenil, bem como da necessidade de proteger e contentar a sociedade. É uma gama de interesses que requer igual proteção, ao mesmo tempo que os interesses específicos do delinqüente juvenil não podem ser subordinados a outros interesses, ou que não seja dada prioridade a esses sem justificativa plena.


    Vítimas da Criminalidade e do Abuso de Poder
    A proteção concedida às vítimas do crime é muito limitada, quando comparada ao número de instrumentos destinados à proteção dos direitos dos suspeitos e pessoas acusadas nas áreas de captura, detenção e prevenção, e detecção do crime.

    A Declaração das Nações Unidas sobre os Princípios Fundamentais de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e do Abuso do Poder (Declaração das Vítimas) é o único instrumento internacional que oferece orientação aos Estados Membros sobre a questão da proteção e reparação às vítimas do crime e do abuso de poder. A Declaração, embora ofereça orientação, não é um tratado e, conseqüentemente, não cria obrigações legais aos Estados.

    A Declaração das Vítimas define vítimas da criminalidade como sendo:


      as pessoas que, individual ou coletivamente, tenham sofrido danos, nomeadamente a sua integridade física ou mental, ou sofrimento de ordem

      emocional, ou perda material, ou grave atentado a seus direitos fundamentais, como conseqüência de atos ou omissões que violem as leis penais em vigor em um Estado Membro, incluindo as que proíbem o abuso do poder (artigo 1o).


    Uma definição de vítimas do abuso do poder é dada no artigo 18 da Declaração das Vítimas:

      as pessoas que, individual ou coletivamente, tenham sofrido danos, nomeadamente a sua integridade física ou mental, ou sofrimento de ordem emocional, ou perda material, ou grave atentado aos seus direitos fundamentais, como conseqüência de atos ou omissões que, não constituindo ainda uma violação da legislação penal nacional, representam violações das normas internacionalmente reconhecidas em matéria de direitos humanos.

    Somente alguns poucos dispositivos de tratados criam obrigações legais aos Estados Partes com respeito aos tratamento das vítimas do crime e do abuso do poder. Entre eles:

* o direito exeqüível das vítimas de prisão ou detenção ilegal à indenização (PIDCP, artigo 9.5);

* as vítimas de pena cumprida em virtude de erro judicial devem ser indenizadas em conformidade com a lei (PIDCP, artigo 14.6);

* as vítimas de tortura possuem o direito exeqüível à indenização justa e adequada (Convenção contra a Tortura, artigo 14.1)


    A Declaração das Vítimas afirma que uma pessoa pode ser considerada uma vítima quer o perpetrador seja ou não identificado, capturado, julgado ou declarado culpado, e quaisquer que sejam os laços de parentesco deste com a vítima (artigo 20). O termo vítima inclui também a família próxima ou dependentes da vítima, assim como as pessoas que tenham sofrido algum dano ao intervirem em nome da vítima.

    Também estabelece disposições relativas ao acesso à justiça e ao tratamento, restituição, indenização e assistência eqüitativos, afirmando os seguintes direitos para as vítimas da criminalidade e abuso de poder:


* de serem tratadas com compaixão e respeito por sua dignidade. Têm direito ao acesso às instâncias judiciárias e a uma rápida reparação (artigo 4o);

* de beneficiarem-se da criação de procedimentos de reparação, oficiais ou oficiosos, que sejam eqüitativos, de baixo custo e acessíveis (artigo 5o);

* de serem informadas da função das instâncias que conduzem os procedimentos, do âmbito, das datas e do progresso dos processos e da decisão de suas causas, especialmente quando se trate de crimes graves e quando tenham pedido essas informações (artigo 6º a);

* de apresentarem suas opiniões e que estas sejam examinadas nas fases adequadas do processo quando os seus interesses pessoais estejam em jogo (artigo 6º b);

* de receberem assistência adequada ao longo de todo o processo (artigo 6º c);

* à proteção de sua privacidade e a medidas que garantam sua segurança e a de sua família, preservando-as de intimidação e represálias (artigo 6º d);

* de que se evitem demoras desnecessárias na resolução das causas e na execução das decisões que lhes concedam indenizações (artigo 6º e);

* de beneficiarem-se de mecanismos extrajudiciais de resolução de disputas, incluindo a mediação, a arbitragem e as práticas de direito costumeiro ou as práticas autóctones de justiça, que devem ser utilizados, quando adequados, para facilitar a conciliação e obter a reparação em favor das vítimas.


    Os artigos de 8º a 13 estabelecem vários princípios relativos à restituição e reparação:

* os infratores devem fazer a restituição a suas vítimas;

* os Estados são incentivados para que mantenham sob escrutínio constante os mecanismos de restituição, e que considerem a sua inserção nas leis penais;

* nos casos em que o infrator for um funcionário ou agente do Estado, este deve ser responsável pela restituição;

* quando não seja possível obter do infrator ou de outras fontes a indenização, os Estados devem procurar assegurá-la. É incentivada a criação de fundos para esta finalidade em particular.


    Além disso, a Declaração das Vítimas contém alguns dispositivos relacionados às formas de assistência e aconselhamento para as vítimas e às exigências, no nível profissional, para as autoridades que entrem em contato com as vítimas:

* as vítimas devem receber a assistência material, médica, psicológica e social de que necessitem (artigo 14);

* as vítimas devem ser informadas da possível existência de serviços de assistência que lhes possam ser úteis (artigo 15);

* o pessoal dos serviços de polícia, de justiça e de saúde, tal como o dos serviços sociais e outros serviços interessados, deve receber uma formação que os sensibilize para as necessidades das vítimas, bem como instruções que garantam uma ajuda pronta e adequada às vítimas (artigo 16).


    Em muitos casos, os encarregados da aplicação da lei serão o primeiro contato que uma vítima de um crime terá, o que se poderia considerar, nesta situação, como a fase de primeiros-socorros. É extremamente importante que, nesta fase, se dispensem cuidados e assistência adequados às vítimas; no entanto, a preocupação dos encarregados é com o progresso e o resultado das investigações . Eles devem ser convencidos de que o bem-estar das vítimas deveria ser da mais alta prioridade. Não se pode desfazer o crime cometido, porém, o auxílio e a assistência adequados fazem com que as conseqüências negativas do crime para com as vítimas sejam definitivamente limitadas.

    Pontos de Destaque do Capítulo
    * Toda pessoa acusada de um delito será presumida inocente até que seja provado de que é culpada de acordo com a lei.
    * Na determinação de qualquer acusação criminal, ou de direitos e deveres em um processo judicial, toda pessoa terá o direito a um julgamento justo e público por um tribunal competente, independente, imparcial e estabelecido por lei.
    * As garantias mínimas para se assegurar o direito a um julgamento justo devem ser respeitadas. Estas garantias incluem o direito de:

    - ser prontamente informado das acusações;
    - ter meios adequados para a preparação de sua defesa;
    - ser julgado sem demora indevida;
    - defender-se pessoalmente ou receber assistência jurídica gratuita;
    - intimar e interrogar testemunhas;
    - ter a assistência gratuita de um intérprete;
    - não ser obrigado a testemunhar contra si mesmo ou confessar-se culpado.

    * Ninguém será sujeito à interferência ilegal ou arbitrária em sua vida privada, família, residência ou correspondência, nem a ofensas ilegais a sua honra e reputação. Todos têm o direito à proteção da lei contra tais interferências ou ofensas.
    * Os assuntos de natureza confidencial do conhecimento dos encarregados da aplicação da lei deverão permanecer confidenciais, a menos que o exercício do dever ou a necessidade da justiça estritamente exijam o contrário.
    * Os encarregados da aplicação da lei devem estar cientes e observar as implicações legais associadas à prevenção e detecção do crime.
    * As crianças e adolescentes são vulneráveis à negligência, abusos e exploração.
    * O objetivo do sistema de justiça juvenil é o de retirar os menores da justiça criminal e redirecioná-los à comunidade.
    * A prevenção da delinqüência juvenil é uma responsabilidade conjunta de instituições e pessoas públicas e privadas.
    * Sempre que possível, a aplicação de medidas não-custodiais é preferível na disposição de casos contra jovens.
    * O recolhimento de provas para a detecção do crime requer habilidade e conhecimento especiais.
    * O interrogatório de suspeitos é sujeito a regras específicas e requer preparação cuidadosa.
    * O uso de informantes confidenciais ou infiltração policial são medidas para serem usadas em circunstâncias excepcionais. Regras rígidas e supervisão são quesitos fundamentais para tais práticas.
    * Desaparecimentos e mortes extrajudiciais cometidos por agentes do Estado são crimes muito graves e também violações graves dos direitos humanos. Devem ser pronta, minuciosa e imparcialmente investigados.
    * As vítimas de crime e do abuso de poder têm direito à proteção e reparação.
    * Os encarregados da aplicação da lei que venham a entrar em contato com as vítimas devem receber treinamento adicional para prepará-los adequadamente para esta responsabilidade. As organizações de aplicação da lei devem criar regras e procedimentos para o trato com as vítimas.


    Perguntas para Estudo
    Conhecimento
    1. Quais são as garantias mínimas para um julgamento justo?
    2. Quais são os direitos das vítimas da criminalidade e do abuso de poder?
    3. Quais são os direitos de um suspeito sob interrogatório?
    4. Quais são as pessoas que têm direito à assistência jurídica gratuita?
    5. Quando se considera a interferência na privacidade como sendo arbitrária?
    6. Qual é o objetivo do sistema de justiça juvenil?
    7. Quais são os direitos dos suspeitos menores de idade sob interrogatório?

    Compreensão
    1. Qual é o significado do princípio da igualdade de condições em um julgamento?
    2. Qual é o significado da presunção da inocência para uma investigação?
    3. Que questões éticas podem ser levantadas com relação à investigação de um
    crime?
    4. Por que o trato com crianças e adolescentes deve ser objeto de especialização
    dentro da atividade de aplicação da lei?
    5. Que medidas podem ser tomadas para prevenir os desaparecimentos e mortes
    extrajudiciais?

    Aplicação
    1. Elabore um conjunto de ordens de rotina, para sua organização de aplicação da lei, a respeito do tratamento das vítimas do crime.
    2. Formule diretrizes para a investigação pronta, minuciosa e imparcial de
    desaparecimentos e mortes extrajudiciais.
    3. Formule um código de conduta para os encarregados da aplicação da lei com tarefas no campo da detecção do crime.
    4. Formule um conjunto de princípios para o interrogatório ético e lícito de suspeitos.


Referências Selecionadas: Apêndice III

Caderno 7: Manutenção da Ordem Pública


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