Projeto DHnet
Ponto de Cultura
Podcasts
 
 Direitos Humanos
 Desejos Humanos
 Educação EDH
 Cibercidadania
 Memória Histórica
 Arte e Cultura
 Central de Denúncias
 Banco de Dados
 MNDH Brasil
 ONGs Direitos Humanos
 ABC Militantes DH
 Rede Mercosul
 Rede Brasil DH
 Redes Estaduais
 Rede Estadual RN
 Mundo Comissões
 Brasil Nunca Mais
 Brasil Comissões
 Estados Comissões
 Comitês Verdade BR
 Comitê Verdade RN
 Rede Lusófona
 Rede Cabo Verde
 Rede Guiné-Bissau
 Rede Moçambique

 

EDUCAÇÃO POPULAR NO BRASIL: ENTRE A EXCLUSÃO E A INCLUSÃO 

Afonso Celso Scocuglia [1]

INTRODUÇÃO

No momento em que os efeitos devastadores de uma globalização tecno-informática são acrescidos às justificativas econômicas da “necessidade imperiosa” de um ajuste nas contas públicas para a consecução de um Estado mínimo - crescentemente descompromissado com o provimento da educação (da saúde, da moradia, da segurança....) - constatamos, uma vez mais, a perpetuação “natural” da exclusão social no Brasil. Avolumam-se os amplos contingentes dos “sem”: “sem-teto”, “sem-escolarização”, “sem-emprego”, “sem-terra”, “sem-informação” ..... . O mesmo governo que comemora a abertura da escola fundamental a todos - de 3 a 4 % das crianças em idade escolar, segundo estatísticas oficiais do MEC, ainda não foram à escola -, sabe que estamos longe de possuir uma escolarização que garanta a permanência das crianças através de um ensino de qualidade. Em outras palavras, a escola está aberta a quase todos mas não garante a sua continuidade e a sua qualidade. Certamente, essa é uma escola que tende a produzir/reproduzir o fracasso de grande parte dos alunos provenientes das camadas populares da sociedade. Tal fracasso conduz à formação continuada de grandes contingentes de jovens e adultos desescolarizados e virtualmente alijados da batalha pelo emprego e pela conquista da cidadania. Como sabemos, esse é um dos elos mais fortes da cadeia da exclusão social brasileira.

Foi, precisamente, contra as várias fases (e faces) desse estado letárgico da sociedade e da educação no Brasil que batalharam (e batalham) vários movimentos de educação popular na última metade do “breve século XX” (Hobsbawm, 1998).

É esse elo excludente que enfocamos neste trabalho e o fazemos tendo como contraponto as histórias da educação popular no Brasil-500.  

           

 

HISTÓRIAS DA  EXCLUSÃO CONTINUADA E AÇÕES NO CAMPO DA EDUCAÇÃO POPULAR

 

Desde a vinda da Companhia de Jesus para prover e dirigir a religião e a educação no Brasil, em 1549, construiu-se uma das marcas registradas da nossa escolarização: a exclusão[2]. A catequese foi, aos poucos, cedendo espaço para a educação “de classe”, a educação da aristocracia rural. Durante mais de dois séculos, a continuidade dos estudos para além da escola “de primeiras letras” só foi possibilitada para os filhos (não para as filhas) dos senhores “de terra e de gente” que continuavam sua escolarização para o sacerdócio ou destinavam-se à Europa em busca da educação superior. Sabemos que o ensino jesuítico moldou-se perfeitamente a uma sociedade escravocrata e aos desejos de sua elite. Importante notar que, mesmo depois da expulsão da Companhia de Jesus (1759), essa tendência foi mantida.

No século XIX, já com a presença da Família Real portuguesa, a ênfase elitista continuou a ser concretizada na implementação dos primeiros cursos superiores e no ensino médio preparatório para o ingresso nesses cursos.  Escolarizar-se era sinônimo de “distintivo de classe”.

Na Primeira República (chamada “dos fazendeiros”) essa marca excludente permaneceu. Não obstante, somente nas primeiras décadas do atual século com o insipiente desenvolvimento industrial e formação dos primeiros contingentes de operários (e, com estes as primeiras reivindicações pela escolarização de seus filhos) é que as elites brasileiras “descobriram” que havia um “povo” e que este precisava ser escolarizado - pelo menos nas primeiras séries da chamada educação fundamental. Afinal, como desenvolver industrialmente um país de analfabetos?

Durante o Estado Novo (1930-1945), apesar de todo apelo do populismo que se construía, pouco mudou. Reformas foram promovidas, o escolanovismo[3] projetou-se como solução, mas a parte da população que conseguiu escolarizar-se por completo continuou ínfima. Fácil perceber que, por não possuir escolas suficientes ou pela via da evasão/expulsão escolar, o nosso sistema educacional tornou-se um impulsionador de quantidades crescentes de analfabetos jovens e adultos.

No chamado período de “redemocratização” (1946-1964) várias campanhas de combate ao analfabetismo foram encetadas e a escola pública brasileira cresceu qualitativamente. Certamente, esse período constituiu o que de melhor fizemos em termos educacionais e um sopro de esperança tomou conta de muitos no sentido das mudanças  sociais, econômicas, culturais, políticas que, em concomitância, construiriam um novo patamar educacional nos anos 40 e 50. As campanhas de erradicação do analfabetismo falharam e o equilíbrio entre o acesso crescente à escolarização pública e sua qualificação não alcançou os frutos desejados. 

Assim, chegamos ao final dos anos cinqüenta, início dos sessenta e, nesse momento, a educação é definitivamente atrelada às condições sociais e políticas que definiam o nacionalismo e o desenvolvimentismo brasileiros. O que, até então, foi tratado com uma ênfase técnica e neutra  cede espaço para o entendimento da educação como algo eivado/carregado de um conteúdo político inseparável. Tal visão ficou patente, por exemplo, nos encontros nacionais de educação de adultos, especialmente no de 1958, onde se sobressaíram os documentos preparados por educadores pernambucanos e, entre eles, seu relator, Paulo Freire. A partir daí, a conotação política da prática educativa foi ganhando adeptos e numerosos grupos começaram a trabalhar no sentido da promoção de uma educação voltada aos interesses e necessidades das camadas populares. Não se pode esquecer que, ambiguamente, como parte do populismo em vigor, esses grupos eram conduzidos por estudantes e professores dos extratos médios da nossa sociedade e tinha, como pano de fundo, os interesses do Estado (populista) que pretendia perpetuar-se. Com efeito, no final de 1963, setenta quatro desses grupos se reuniram em Recife, no I Encontro Nacional de Cultura e Educação Popular, sendo que dois terços deles trabalhava com educação de adultos. Nesse tempo, ganha vigor o que ficou conhecido como “Método Paulo Freire” e sua disseminação é assumida pelo Governo Goulart através do Plano Nacional de Alfabetização (PNA) que pretendia alfabetizar seis milhões de pessoas no ano de 1964. Importante notar: o PNA tinha forte conotação político-eleitoral, pois “fabricar” seis milhões de alfabetizado seria aumentar em 50% o contingente de eleitores que havia votado na eleição presidencial de 1960 (11,7 milhões, numa população de 70 milhões).  Supostamente, a maioria desses novos eleitores (alfabetizados e “conscientizados” pelo “Método Paulo Freire”) votariam em candidatos e partidos  “progressistas” e, assim, as reformas “de base” poderiam ser aprovadas no Congresso e implementadas na direção da construção de um país menos injusto e mais igualitário ou, como pretendiam alguns grupos, na direção do socialismo e do comunismo. Aqui está surgindo uma concepção de educação das camadas populares - educação popular -, diretamente ligada à tentativa de emancipação social e política dos extratos que tradicionalmente foram alijados dos processos decisórios no Brasil, somando esforços de setores médios (estudantis, intelectuais, artísticos etc) às necessidades básicas da imensa maioria dos brasileiros. Nesse instante, fazer “educação popular” significava investir nas demandas de milhões de indivíduos que não tinham tido acesso à escola ou a tinham abandonado, ou seja, na educação dos adultos que, ao se alfabetizarem/conscientizarem, poderiam - através de seus votos e de sua participação em inúmeras organizações da sociedade civil - alterar a estrutura social de um país marcado pela norma da exclusão continuada.

Este esforço foi barrado pelos golpistas civis e militares - nacionais e internacionais - que em 1964 depuseram o governo constitucional e implementaram o Estado da força bruta, da repressão e da tortura institucionalizadas. As numerosas organizações “progressistas”, entre elas os grupos que trabalhavam com a educação das camadas populares, foram extintas/proibidas. Durante vários anos, os grupos que conseguiram sobreviver contaram com a explícita proteção dos setores progressistas da Igreja Católica  ou foram gestados em seu próprio interior (a exemplo dos grupos da “Igreja Viva” embriões das Comunidades Eclesiais de Base). Simultaneamente, tudo o que era ligado à educação formal, à escola, era tido como “reprodutivista” (Althusser, Bordieu etc)[4] em função do super controle que o Estado exercia sobre a educação e todos os seus agentes (estrutura, professores, alunos, currículos etc). Com a lenta “abertura política” do Estado Militar[5], após a Anistia (1979), fazer “educação popular” passou a significar o trabalho político-educativo junto aos movimentos sociais organizados, aos sindicatos “progressistas”, aos municípios conquistados pelos partidos políticos “de esquerda”. E, continuou a significar o trabalho com jovens e adultos, em suas várias modalidades. 

Os anos oitenta trouxeram como “novidade” mais significativa no campo da “educação popular” a crescente compreensão de que a escola pública, nos seus diversos graus, constituía espaço fundamental para o desenvolvimento de tal concepção político-educativa. Ao mesmo tempo, trouxeram à tona a necessidade de uma revisão crítica sobre suas teorias e suas práticas, como assinalam as preocupações  indicadas a seguir:

“(...) Como tendencia general, la educación popular fue construyendo un discurso ligado a una lectura de las dimensiones estruturales de la dominación y el funcionamiento de la sociedad que dejó poco espacio para analizar, teóricamente, problemas de la vida cotidiana y de los procesos de constitución de la subjetividad de los sujetos. En efecto, los objetivos de cambio social llevaron rápidamente a adherir a una serie de premisas originadas en el marxismo para dar cuenta de las estructuras de poder económicas y políticas. Se descuidó, en cambio, la comprensión de la naturaleza simbólica de las práticas educativas, su especificidad pedagógica y las características de los escenarios y procesos cotidianos en los cuales éstas transcurrían. Por outra parte, y en relación a la acción práctica de los procesos educativos, el seminário subrayó la necesidad de revisar su especificidad y rigorosidad interna. Por un lado, se constató la diversidad de prácticas que se identifican como educación popular, lo que indica la variedad rica de experiencias que se desarrollan y también la poca especificidad que assume el concepto. Por outro, y en cuanto a su rigurosidad interna, se subrayó el desconocimiento existente sobre la calidad de los procesos de aprendizaje que transcurren en estas experiencias; y la falta de sistematización y de investigación sobre las estrategias educativas implementadas y sobre sus resultados y impacto en los grupos populares com los cuales se trabaja.”[6]  

 

Com efeito, no presente, mesmo eivada das preocupações acima assinaladas, a educação popular abrange um grande espectro de práticas, cada uma a seu modo, voltada para os interesses, as necessidades, os valores, a cultura e os desejos da grande maioria da nossa população: seja trabalhadora ou não, homens e mulheres, crianças, jovens e adultos, sindicalizados ou não, do campo e da cidade - todos com suas múltiplas diferenças a serem respeitadas nas numerosas possibilidades de trabalhos pontuais, ou em conjunto, que podem ser realizados.  

Concretizando esse enfoque ampliado da educação popular, destacam-se várias experiências que estão sendo realizadas em todo país. Alguns exemplos podem ser elencados: em prefeituras de orientação do Partido dos Trabalhadores e em várias outras que não seguem tal orientação; no trabalho com mulheres na construção de sua cidadania; em escolas públicas que estão conseguindo minimizar ou eliminar a repetência e a expulsão escolar;  na alfabetização de jovens e adultos; no ensino noturno público; em universidades que tem cursos e programas voltadas à promoção e consolidação da cultura popular; nas múltiplas experiências com saúde pública; nos diversos movimentos sociais como o dos “sem-terra”; na continuidade do trabalho dos grupos da igreja católica progressista, além de tantos outros. Não mais importa se são formais ou não-formais, institucionais ou não, não importa suas modalidades. O que está no centro das atenções é a permanência de um trabalho educativo anti-elitista e anti-excludente. Um trabalho que ajude a construir cidadãos que busquem seus direitos básicos à sobrevivência digna, ao trabalho garantido, à uma escola de qualidade com acesso e permanência de todos, à uma moradia razoável, à alimentação e à saúde plenas. Penso que todas formas de educação que busquem esses parâmetros - básicos para qualquer país que pretende reduzir ao máximo suas disparidades -, devam ser incluídas no rol da educação popular.

A educação popular, que já foi “de adultos”, “de igreja”, “de sindicato” e de tantos outros “de” e que, finalmente, sem perder seus horizontes anteriores, encampou a escola como importante espaço contraditório de combates por uma sociedade melhor e mais justa - impossível sem a educação para todos e de qualidade -, deve se abrir cada vez mais, como instrumento da anti-exclusão social (econômica, política, cultural...) e do anti-elitismo. No momento em que as seculares amarras da sociedade brasileiras forem quebradas, aí sim, poderemos notar a educação popular realizando-se em sua inteireza. Enquanto isso não acontece, a educação popular continua a ser um múltiplo espaço político-pedagógico, em (re)construção permanente, no qual deve grassar um trabalho de resistência, de “paciência impaciente” (Freire,1987) e de esperança construtora.  

Certamente, nessa (re)construção merece destaque a obra prático-teórica de Paulo Freire e, nesse sentido, concordamos com Puiggrós (1994) quando coloca:  

“Uno dos grandes aciertos de Paulo Freire fué destacar la presencia del elemento político en los procesos educacionales de nuestras sociedades no como simple reflejo de la lucha de clases, sino avanzando hacia el analisis de la forma específica que adquire la opresión social en el interior del proceso educativo, en el lugar de transmisión-creación del saber. A partir de postular la posibilidad del vínculo dialógico, dando por tierra con las teorías reproductivistas, Freire proporcionó elementos que nos permiten estudiar en el sujeto pedagógico las expresiones simbólicas de las diferentes posiciones relativas de educador y educando, y sus consecuencias para la produción, reprodución y/o transformación de la cultura. Ese ha sido probablemente el descubrimiento más importante del pensamiento educativo popular latinoamericano en la segunda mitad del siglo.” (p.17)

 

Destarte, a educação popular - enquanto teoria e prática -, nutriu-se do “descubrimiento” de uma politicidade que, ao invés de insistir no vetor da elitização/exclusão, concentrou-se na valorização dos elementos político-culturais que lograssem construir, cotidianamente, a difícil emancipação das camadas amplamente majoritárias da nossa sociedade. Podemos afirmar que a educação popular - embora marcada pela heterogeneidade e pela multiplicidade de suas formas, práticas e teorias -,  identifica-se através de um núcleo comum (bipolar, mas inseparável) constituído pelo binômio educação-política.

Ora, durante séculos, a educação e a política se entrecruzaram a favor dos interesses dos mandatários das terras, da produção, do comércio e de toda a gente. A partir dos 1950 e 1960, a essa concepção e a essa prática se opuseram grupos de estudantes, professores, católicos, comunistas, socialistas, sindicalistas... utilizando-a em favor do que acreditavam ser os interesses e as necessidades das camadas populares.

Após três/quatro décadas, segundo Freire (1993, pp.101/102), a educação popular como “um nadar contra a corrente”, é a que: a) “substantivamente democrática, não separa do ensino dos conteúdos o desvelamento da realidade”; b) “estimula a presença organizada das classes populares... no sentido da superação das injustiças sociais”; c) “respeita os educandos... e por isso mesmo leva em consideração seu saber de experiência feito, a partir do qual trabalha o conhecimento com o rigor de aproximação dos objetos”; d) “trabalha, incansavelmente, a boa qualidade do ensino”; e) “capacita suas professoras cientificamente à luz dos recentes achados em torno da aquisição da linguagem, do ensino da escrita e da leitura”; f) “em lugar de negar a importância da presença dos pais, da comunidade, dos movimentos populares na escola, se aproxima dessas forças com as quais aprende para a elas poder ensinar também”; “supera preconceitos de raça, de classe, de sexo e se radicaliza na defesa da substantividade democrática”; “ao realizar-se assim, como prática eminentemente política, tão política quanto a que oculta, nem por isso transforma a escola onde se processa em sindicato ou partido” .

Fazendo nossas as palavras de Freire, apostamos na consolidação dessa concepção político-educativa no nascimento do próximo século. Deste modo, a educação poderá contribuir para a instituição de uma sociedade mais justa e menos desigual, na qual a conquista dos direitos básicos da cidadania concretizar-se-ia, em definitivo, para a imensa maioria dos que fazem o Brasil.                    

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS - SOBRE OS INTELECTUAIS/EDUCADORES E SUAS AÇÕES

 

Além de contar com a inspiração de reflexões, como as citadas - ou de outras, cuja brevidade deste texto não nos permitiu destacar -, penso que existem múltiplas tarefas e diversas “frentes” a construir para aqueles e aquelas que trilham os caminhos da educação popular. Entre elas, são prioritárias as que nos fazem avançar na busca da competência e da eficácia técnico-profissional (educativa-pedagógica, prática e teórica), sem abdicar dos nossos ideais e das nossas ações pró-mudanças em todos os níveis da extrema desigualdade social que preside nosso tempo histórico.

No espaço da Universidade, avançar nessa direção significa, por exemplo, melhorar nossa docência, encetar pesquisas socialmente relevantes, aproximarmo-nos de outros segmentos sociais com nossos cursos e trabalhos de extensão universitária, além de efetivarmos nosso compromisso com quem nos sustenta: a sociedade, que arrecada impostos - especialmente aqueles pagos por quem nunca teve acesso ao ensino superior, ou seja, a grande maioria.

Nesse sentido, isso também significa, a meu ver, repensarmos nossos papéis enquanto intelectuais/educadores. E, com tal intuito, vale destacar a idéia do “intelectual específico”, advogada por Foucault (1979), em contraponto ao “intelectual universal”. Conforme suas palavras:

“Durante muito tempo o intelectual dito ‘de esquerda’ tomou a palavra e viu reconhecido o seu direito de falar enquanto dono da verdade e da justiça. (...) Ser intelectual era um pouco ser a consciência de todos. Creio que aí se acha uma idéia transposta do marxismo e de um marxismo débil: assim como o proletariado, pela necessidade de sua posição histórica, é portador do universal (mas portador imediato, não refletido, pouco consciente de si), o intelectual, pela sua escolha moral, teórica e política, quer ser portador desta universalidade, mas em sua forma consciente e elaborada. O intelectual seria a figura clara e individual de uma universalidade da qual o proletariado seria a forma obscura e coletiva (...). Parece-me que o que deve ser levado em consideração no intelectual não é, portanto, ‘o portador de valores universais’; ele é alguém que ocupa uma posição específica, mas cuja especificidade está ligada às funções gerais do dispositivo de verdade em nossas sociedades.

Em outras palavras, o intelectual tem uma tripla especificidade: a especificidade de sua posição de classe (pequeno burguês a serviço do capitalismo, intelectual ‘orgânico’ do proletariado); a especificidade de suas condições de vida e de trabalho, ligadas à sua condição de intelectual (seu domínio de pesquisa, seu lugar no laboratório, as exigências políticas a que se submete, ou contra as quais se revolta, na universidade, no hospital, etc); (e)... a especificidade da política de verdade das sociedades contemporâneas.” ( pp. 8 e 13)

 

Torna-se pertinente a reflexão sobre essas idéias de Foucault, especialmente quanto às especificidades dos papéis desempenhados pelos intelectuais  e a virtual extinção do intelectual-condutor “que sabe e deve ser seguido” - tão próprio a alguns grupamentos “de esquerda” no Brasil, ainda acostumados a se apropriar e a conduzir movimentos populares “em nome” da Revolução, do Partido ou de Deus.

No caminho acima proposto, os intelectuais que contribuem para a construção de uma educação emancipatória das camadas populares no Brasil teriam que (ao mesmo tempo): a) tornar-se “orgânicos” às expectativas, às necessidades, aos desejos e às ações desses extratos da nossa população; b) fazer da especificidade do seu trabalho universitário um campo permanente de pesquisa e produção de conhecimento sobre a educação popular; c) estar permanentemente preocupados em buscar as verdades sociais, políticas, econômicas, pedagógicas etc, mesmo que essas contrariem seus posicionamentos ideológicos ou as determinações do seu Partido, da sua Igreja, do seu sindicato. 

E, finalmente, esses intelectuais precisariam se dispor a ouvir críticas, ao debate, enfim, ao exercício de uma democracia que, sem pressupor a sua liderança “enquanto donos da verdade e da justiça”, requer o seu trabalho específico como fundamental à construção de uma educação popular com a “cara” do nosso tempo histórico. Tempo marcado pela fragmentação social, pela heterogeneidade, pela multiplicidade de vivências interculturais e, principalmente, pela persistência do flagelo da exclusão - adotada como regra histórica da própria constituição da sociedade brasileira, desde a invasão portuguesa - há 500 anos.            

 

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ARROYO, Miguel. “Fracasso-sucesso: o peso da cultura escolar e do ordenamento da educação básica” in Para Além do Fracasso Escolar. Abramowicz, A . e Moll, J. Campinas, Papirus, 1996, p.13.

 

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979.

 

FREIRE, Paulo et al. Medo e ousadia - o cotidiano do professor. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

 

FREIRE, Paulo. Política e Educação. São Paulo, Cortez, 1993.

 

HOBSBAWN,  Eric. A era dos extremos - O breve século XX (1914-1991). São Paulo, Companhia das Letras, 1998.  

 

PUIGGRÓS,  Adriana. “Historia y prospectiva de la educación popular latinoamericana” in Educação popular - utopia latino-americana. Gadotti, M. e Torres C. São Paulo, Cortez/EDUSP, 1994, pp.13/22.

 

SCOCUGLIA, Afonso C. A história das idéias de Paulo Freire e a atual crise de paradigmas. João Pessoa, Editora Universitária - UFPB, 1997.

 

_____________________. A história da alfabetização política na Paraibrasil dos anos sessenta. Recife, UFPE (Tese de Doutorado, mimeo.), 1997.



[1] Professor Doutor em História e Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação  da UFPB.

[2] Segundo Arroyo (1996), no Brasil generalizou-se uma “cultura da exclusão”: “Cultura que não é desse ou daquele colégio, desse ou daquele professor, nem apenas do sistema escolar, mas das instituições sociais brasileiras, geradas e mantidas, ao longo deste século republicano, para reforçar uma sociedade desigual e excludente. Ela faz parte da lógica e da política de exclusão que permeia todas as instituições sociais e políticas, o Estado, os clubes, os hospitais, os partidos, as igrejas, as escolas... Política de exclusão que não é própria dos longos momentos de administração autoritária e de regimes totalitários. Ela perpassa todas as instituições, inclusive aquelas que trazem no seu sentido e função a democratização de direitos constitucionalmente garantidos como a saúde e a educação” (p.13).

[3] Para apreender a importância da Escola Nova no Brasil verificar, entre outros clássicos, de Lourenço Filho - Introdução ao estudo da Escola Nova (publicado em 1929, pela Edições Melhoramentos), além da  vasta obra de Anísio Teixeira (como, por exemplo, Educação não é privilégio).

[4] Teoria disseminada em larga escala nos anos setenta, especialmente através dos “aparelhos ideológicos do Estado” (Althusser) ou da “reprodução” das desigualdades sociais via escola (Bordieu e Passeron).

[5] Vf. Germano, José W. Estado Militar e Educação no Brasil (1964-1985). São Paulo, Cortez/Ed.UNICAMP, 1993.

[6] Conclusões do Seminario Taller sobre Educación Popular en America Latina y Caribe, realizado em La Paz (Bolívia) em 1990, registradas no livro Educação popular - utopia latino-americana (São Paulo, Cortez/EDUSP, 1994, p.320. 

 

 
Desde 1995 © www.dhnet.org.br Copyleft - Telefones: 055 84 3211.5428 e 9977.8702 WhatsApp
Skype:direitoshumanos Email: enviardados@gmail.com Facebook: DHnetDh
Busca DHnet Google
Notícias de Direitos Humanos
Loja DHnet
DHnet 18 anos - 1995-2013
Linha do Tempo
Sistemas Internacionais de Direitos Humanos
Sistema Nacional de Direitos Humanos
Sistemas Estaduais de Direitos Humanos
Sistemas Municipais de Direitos Humanos
História dos Direitos Humanos no Brasil - Projeto DHnet
MNDH
Militantes Brasileiros de Direitos Humanos
Projeto Brasil Nunca Mais
Direito a Memória e a Verdade
Banco de Dados  Base de Dados Direitos Humanos
Tecido Cultural Ponto de Cultura Rio Grande do Norte
1935 Multimídia Memória Histórica Potiguar