Livros
Direitos Humanos
Direitos
Humanos
Direitos
Humanos em Moçambique
Josué
Bila
Parte
II
Capítulo
V
Entrevistas
Arão
Valoi: “Jornalismo moçambicano
não está orientado para
direitos humanos
Mais
um intelectual moçambicano é
entrevistado no bantulândia. Trata-se
do jovem jornalista Arão Valoi.13
Em apenas oito anos de carreira, ganhou
três prémios jornalísticos.
Um dos mais recentes é o Prémio
de Melhor Reportagem sobre Direitos Humanos
promovido pelo Instituto Marques do Valle
Flor, em parceria com a União Europeia
e o Sindicato Nacional de Jornalistas.
Actualmente, presta o seu saber na Organização
Internacional de Migração.
Nesta entrevista, Valoi fala sobre o (não)
contributo dos média moçambicanos
na defesa dos direitos humanos. Num dos
pontos, ele lembra que há jornalistas
que não sabem da existência
de instrumentos internacionais de direitos
humanos.
Bantulândia
- Qual tem sido o papel dos jornalistas
moçambicanos na defesa de direitos
humanos?
Valoi
- Olha, em geral, os jornalistas moçambicanos
têm contribuido muito pouco para
a defesa dos direitos humanos, embora
haja algum esforço individual em
fazer denúncias sobre a sua violação.
Essa fraca contribuição
acontece devido a vários factores
conjugados, sendo de destacar a falta
de uma cobertura mais qualificada sobre
temas de direitos humanos. A cobertura
mediática qualificada encerra em
si muitos aspectos. Refere-se, por exemplo,
à formação ou capacitação
em direitos humanos e depois a especialização
sobre esse tema, o que ainda não
acontece em Moçambique. Na verdade,
a falta dessa qualificação
acaba reduzindo de forma substancial o
papel que os jornalistas, como agentes
de mudança, deveriam ter na promoção
e defesa dos direitos humanos, na sua
visão universal e multidisciplinar.
Também podemos ver essa questão
na perspectiva da “importância”
que os média, em Moçambique,
dão a assuntos ligados a direitos
humanos.
Bantulândia
– Que assuntos interessam aos média,
então?
Valoi
- Normalmente, o que interessa aos media
é o que, segundo eles, vende e
rende e o que dá mais audiência.
Nesse fenómeno, que uns o apelidam
de sensacionalismo e o jornalista brasileiro
José Arbex Jr.(2001) chama de showrnalismo,
os factos são transformados em
mercadoria, custe o que custar. Isto pode
se aliar ao facto de a sociedade moçambicana,
em geral, pouco escolarizada, alimentar
este tipo de notícias, de tal forma
que é o que mais se consome. Note
que, em Moçambique, uma falsa notícia,
na capa de um jornal, sobre a recaptura
de Anibalzinho (um dos criminosos mais
mediáticos) pode vender mais do
que uma verdade. Em oposição,
também na capa, uma notícia
sobre a falta de água, em Massangena
(província de Gaza), não
vende. É um pouco disto que, quanto
a mim, faz desvirtuar o sentido de jornalismo
ético.
Bantulândia
- Por que é comum que os jornais
cubram o baleamento mortal de um cidadão
pela Polícia numa perspectiva de
direitos humanos e dificilmente reportam
uma simples falta de pão e manteiga
num foco (de violação) de
direitos humanos.
Valoi
- Essa limitação da visão
global dos direitos humanos resulta dessa
falta de formação e especialização.
Não gosto muito deste termo “especialização”
para a realidade jornalística moçambicana,
e já mostrei as razões pelas
quais não me simpatizo, em debate
público, mas a verdade é
que a sua falta acaba tendo implicações
em certas áreas do saber, nomeadamente
em direitos humanos, em economia e negócios
e outros domínios. Note que o tratamento
que se dá à violência,
por exemplo, reduz-se pura e simplesmente
a crimes, atentados e relatórios
de homicídios, normalmente facultados
pela PRM. Não existe uma abordagem
estrutural e globalizante da relação
existente entre violência e direitos
humanos; e é natural que a falta
de acesso à água potável,
de pão ou de sal seja visto nessa
perspectiva. Note que não faltam
notícias sobre fome nos media,
mas a abordagem feita não está
nunca orientada para a questão
de direitos, mas simplesmente de factos
e nunca se fala da responsabilização
a quem de direito pela violação
desses direitos. O jornalismo moçambicano
não está orientado para
direitos humanos.
Bantulândia
– Direitos humanos e políticas
públicas...
Valoi
- O que falta no jornalismo moçambicano,
na verdade, é discutir políticas
públicas e tentar influenciar que
a questão de direitos humanos seja
sempre incorporada na agenda governamental.
Para mim, há, nos media moçambicanos,
uma ausência de reflexão
mais consistente sobre o processo de formulação
e implementação das políticas
e a consciência de que os jornalistas
podem fazer algo para alterar certo establishment
e, os direitos humanos, estando hoje em
primeiro plano na agenda internacional,
deviam ser objecto de análise,
reflexão e acompanhamento sistemático
por parte da imprensa.
Bantulândia
- Por que é difícil encontrar,
nos textos jornalísticos, referência
dos instrumentos (inter)nacionais de direitos
humanos?
Valoi
- É uma situação
caricata, mas acho que alguns, repito,
alguns dos jornalistas nem sequer têm
o conhecimento da existência desses
instrumentos ou se, pelo menos, sabem
da sua existência, poucas vezes
os revisitaram. Mas também há
jornalistas, em Moçambique, que
se esforçam em fazer algo diferente,
de tal forma que não é correcto
estar sempre a desdenhar deles quando
tentam fazer coisas boas. Até porque
há, em Moçambique, cada
vez maior número de jornalistas
que se estão a formar nas diferentes
universidades do País, o que já
é um sinal positivo. A leitura
de livros e a consulta de certos instrumentos
legais nacionais e internacionais é
muito bom do ponto de vista de diversificação
das fontes de informação
e do enriquecimento do próprio
trabalho jornalístico. Mas infelizmente,
não existe, em geral, esse hábito
por parte dos jornalistas moçambicanos
e limitam-se ao “diz-se diz-se”,
característico da formulação
sensacionalista do jornalismo. A referência
a instrumentos (inter) nacionais de direitos
humanos requer também uma nova
postura epistemológica por parte
dos jornalistas moçambicanos; requer
uma reconfiguração da linguagem
que, de forma específica, organiza
as questões internacionais de acordo
com os processos de globalização.
Bantulandia
– Será que a forma de fazer
jornalismo ajuda a isso?
Valoi – Infelizmente,
não. Eu tenho dito que a própria
forma de fazer jornalismo, em Moçambique,
continua conservadora, agarrada ao que
as tradicionais teorias de jornalismo
ensinam, limitando-se, por assim dizer,
ao que a fonte disse e nada mais. É
uma formulação de “responsabilização”
que tenta retirar o papel do jornalista
como actor importante na produção
da informação ou como um
sujeito pensante e activo. Se a fonte
não citou nenhum dispositivo legal,
ao jornalista não resta mais nada
do que reproduzir o que a fonte disse,
sem nenhuma investigação
posterior, visando o enriquecimento das
informações colhidas. Também
ao organizar as perguntas para uma entrevista
programada, o jornalista não “vasculha”
nenhum livro ou lei, não lê
e vai ter com o entrevistado para “perguntar”
e assim poder aprender e não para
“entrevistar” e confrontar
com ele certos conhecimentos. Tenho dito
que, em Moçambique, são
poucos os jornalistas que fazem entrevistas,
muitos fazem perguntas. A entrevista é,
normalmente, uma confrontação
entre o entrevistador e o entrevistado
e isso implica que, no caso vertente de
direitos humanos, o jornalista tenha um
mínimo conhecimento da matéria
que vai abordar. Se for para perguntar,
terá de se contentar com o consumo
da ordem estabelecida e transformar-se-à
em caixa de ressonância.
Bantulândia
- As questões ambientais, a exemplo
do desmantamento de florestas e a poluição
de rios ou atmosférica, não
figuram, de um modo geral, como direitos
humanos. Que tem a dizer sobre isso?
Valoi
- Ao notar esta falta de abordagens sobre
questões ambientais no jornalismo,
o Instituto de Comunicação
Social para a África Austral (MISA
Moçambique), juntamente com os
seus parceiros, tem promovido prémios
anuais de jornalismo, e uma das categorias
é o meio ambiente. Nos últimos
dias, e motivados por esse prémio
ou incentivo, alguns jornalistas têm
escrito algo sobre questões ambientais,
mas mais uma vez, não numa perspectiva
de direitos humanos. Também sobre
desmatamento e poluição
tem havido artigos jornalísticos
interessantes; mas, em geral, carecem
dessa orientação. Eles são
feitos numa perspectiva de denúncia,
mas não em termos do impacto que
isso tem para as comunidades ou populações
locais como sujeitos com certos direitos,
como o direito à vida, por exemplo,
fixado no artigo 3 da Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948
e nas constituições nacionais.
Ora, uma interpretação imediata
a esse postulado dá a entender
que quando se diz “vida” incluí-se
o meio ambiente equilibrado, pois, esta
é uma das condições
essenciais à existência da
vida em toda a sua plenitude e formas.
Bantulândia
- Por que há dificuldades de encontrarmos
jornalistas decididos e empenhados com
os direitos humanos?
Valoi
- Esta é uma pergunta muito difícil
de responder, porque encerra motivações
de ordem pessoal, mais também institucionais.
Na minha modesta opinião, é
preciso que haja vontade por parte do
jornalista em dedicar, não diria
exclusivamente porque em Moçambique
isso é impossível no cenário
actual, parte considerável do seu
tempo a pesquisas sobre direitos humanos.
Isso já seria um princípio
para a especialização de
que tanto se fala. Mas é preciso
que os media tenham coragem de assumir
esta pessoa que nem sempre irá
produzir notícias. Uma das questões
que tenho defendido é que a falta
de especialização e, consequentemente,
de um jornalismo investigativo em Moçambique,
seja sobre direitos humanos ou outras
áreas, deriva também da
falta de disponibilidade de tempo para
os jornalistas fazerem a investigação.
Os chefes de redacção ainda
não estão habituados em
ver um repórter ficar duas semanas
sem publicar um artigo, por mais que esteja
envolvido numa investigação.
Acusam-no de improdutividade e, cedo,
ele terá de abortar a investigação
e serví-la crua aos leitores por
pressões institucionais e por medo
de perder o seu emprego. Isso é
comum nos média em Moçambique.
Por isso, a mudança não
deverá ser só por parte
dos jornalistas, em termos individuais
(formação, leitura e mais
pesquisa), mas também deverá
operar-se mudanças substanciais
na filosofia do trabalho a nível
institucional.
Bantulândia
- Que propostas os jornalistas poderiam
contribuir para que os moçambicanos
possam conhecer os seus direitos?
Valoi
- Apesar de o cenário ser algo
negativo, acho que tem havido algum despontar
por parte de alguns media em elevar cada
vez mais a consciência dos moçambicanos
no tocante aos seus direitos. Tenho tido
o prazer de ver várias notícias
nos nossos órgãos de comunicação
social que reportam situações
que contribuem para a elevação
da consciência dos moçambicanos.
Isso é muito importante porque,
em Moçambique, as pessoas acreditam
muito nos média. Estes são
instrumentos importantes para a mudança
de comportamento e acho que tem conseguido.
A sugestão que daria era que cada
um dos órgãos tivesse um
espaço um tempo de antena dedicado
exclusivamente a direitos humanos e que
certos jornalistas escolhidos internamente
fossem orientados para esta área.
Era bom se isto acontecesse. Mas também
pode partir da iniciativa do próprio
jornalista, apresentando uma proposta
ao seu superior hierárquico, com
argumentos sólidos e convicentes.
Bantulândia
- Quem tem tomado a inicitiva de divulgar
e discutir temas sobre direitos humanos
reportados pelos jornais (sociedade civil,
governo ou jornalistas)?
Valoi
- Penso que os jornalistas e a sociedade
civil tomam iniciativa, enquanto organizações
não governamentais e representações
religiosas. O Governo tem intervido muito
pouco, excepto em casos em que por iniciativa
dos jornalistas, aparece a dar esclarecimento
de certas situações. Pessoalmente,
tenho visto que a dimensão do debate
sobre direitos humanos em Moçambique
é, por si, um incómodo ao
Governo, uma vez ser ele próprio
possuidor de uma máquina de repressão
e violação sistemática
de direitos humanos, ao mesmo tempo que
seus executivos pouco conseguem dar seguimento
à satisfação plena
dos direitos económicos, sociais,
ambientais e políticos aos cidadãos,
em geral. As políticas governamentais
falham em muitos aspectos, deixando as
populações sem nenhum garante
ou preservação dos seus
direitos.
Araçatuba,
16 de Julho de 2009
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Nota:
13 - Arão Valoi é jornalista
moçambicano desde 2001. Formou-se
na Escola de Jornalismo, em Maputo, de
1999 a 2002, tendo logo de seguida ingressado
no Instituto Superior de Relações
Internacionais (ISRI) onde fez o curso
de licenciatura em Administração
Pública, tendo concluído
em 2006. Já trabalhou para vários
órgãos de comunicação
social, desde os media audio-visuais até
à imprensa escrita. Em 2007, quando
coordenava o suplemento económico
do semanário Meianoite, sagrou-se
vencedor do Prémio de Melhor Jornalista
Africano da CNN/Multichoice, categoria
da lingua portuguesa. Nos finais de 2008
ganhou novamente mais dois prémios,
nomeadamente o Prémio Ian Christie
para Melhor Reportagem Económica,
promovido pela Vodacom em parceria com
o SNJ e o Prémio de Melhor Reportagem
sobre Direitos Humanos promovido pelo
Instituto Marques do Valle Flor em parceria
com a União Europeia e o SNJ. Actualmente
é jornalista freelancer, estando
também a trabalhar para a Organização
Internacional para as Migrações
(OIM), em Maputo. É um dos membros-fundadores
da Associação Moçambicana
de Jornalistas Pró-direitos Humanos
e Cidadania.
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