Livros
Direitos Humanos
Direitos
Humanos
Direitos
Humanos em Moçambique
Josué
Bila
Parte
II
Capítulo
V
Entrevistas
José
Macuane: RENAMO contribuiu para o debate
sobre direitos humanos
O
cientista político José
Macuane4
é dos pouquíssimos moçambicanos
que podem discutir sobre os direitos humanos,
misturando o saber teórico e a
retórica cidadã. Ele aponta
caminhos para a compreensão multidisciplinar
dos direitos humanos. Hoje, em entrevista
no bantulândia, Macuane diz: “não
vejo nenhum elemento distintivo neste
Governo na concretização
dos direitos humanos. O que vejo é
uma tentativa de implementação
de políticas num contexto de um
Estado ainda fraco, combinado a um discurso
político às vezes abstracto
e autista (excessivamente voltado para
dentro de si mesmo) e um défice
de diálogo com a sociedade em alguns
assuntos”. Num outro subtema declara
que as discussões abertas no Parlamento,
a exposição de casos de
violação dos direitos humanos,
a fiscalização do Governo
(mesmo que precariamente), foram possíveis
apenas num contexto de multipartidarismo.
“Nesse ponto, posso dizer que a
existência da Renamo, como partido
de oposição e como um actor
legislativo, contribuiu para o debate
sobre os direitos humanos”, sublinha.
Governação
de Guebuza
Bantulândia - Como
é que a governação
de Armando Guebuza conduziu a materialização
dos direitos humanos?
José Macuane (JM)
- É muito difícil situar
a materialização dos direitos
humanos em Moçambique em torno
de um só Governo, sob risco de
acabarmos recorrendo a episódios
aqui e acolá. Para ser sincero,
não vejo elementos distintivos
do Governo de Guebuza, que se distingam
do Governo anterior, que sejam marcantes
no que concerne aos direitos humanos.
Talvez referir que há uma tentativa
discursiva de enfatizar alguns elementos
que podem nos remeter aos direitos humanos,
tais como o discurso emblemático
de combate à pobreza e a ideia
de resgate da auto-estima dos moçambicanos.
O discurso de combate à pobreza
encontra a sua âncora na tentativa
de colocar o distrito na base de desenvolvimento
deste país, com a alocação
dos 7 milhões. Há também
algumas iniciativas de melhoria do acesso
à justiça. A expansão
da cobertura do Instituto de Patrocínio
e Assistência Jurídica (IPAJ);
a criação dos palácios
de justiça em alguns distritos;
a nova lei da organização
judiciária (Lei 24/2007, de 20
de Agosto), para citar alguns exemplos.
Sobre a auto-estima dos moçambicanos,
penso que é um dos discursos mais
abstractos que tivemos nos últimos
tempos.
Bantulândia
- Qual é, então, a ligação
que pode estabelecer entre o discurso
de auto-estima e os direitos humanos?
JM – Coloco o discurso
de auto-estima no conjunto de iniciativas
que promovem os direitos humanos, porque
interpreto a auto-estima como corolário
da dignificação da vida
humana. Isso só é possível
com políticas de acesso aos direitos
mais básicos, tais como a saúde,
educação, garantia da defesa,
segurança e dignidade dos moçambicanos
dentro e fora das fronteiras, direito
de associação, de expressão,
etc. No entanto, acho que há uma
tentativa excessiva de simplificar a auto-estima
em momentos e episódios, do que
vê-la como um processo e consequência
da confluência de vários
elementos. Por exemplo, é inegável
que a reversão de Cabora Bassa
orgulha-nos como moçambicanos.
Mas a sua reversão só nos
trará auto-estima se expandirmos
o acesso à energia eléctrica
a maior número possível
de moçambicanos e a melhoria dos
serviços nessa área. A expansão
da electrificação rural
é um facto, mas não é
menos verdade que a arrogância na
prestação de serviços
e um completo desrespeito ao consumidor
ainda estão lá, neste e
em outras áreas dos serviços
públicos. Assinamos acordos de
livre circulação na Comunidade
de Desenvolvimento da África Austral
(SADC), mas os moçambicanos ainda
são vandalizados em alguns países
da região e nem sempre com apoio
e protecção adequadas do
Governo.
Bantulândia
- Antes de entrar noutra pergunta, em
linhas gerais, que pode acrescentar?
JM – Olha, o processo
de descentralização em curso
está a transferir o poder de decisão
para o nível local, com particular
incidência para o distrito. Porém,
não deixa de ser preocupante, como
o próprio Presidente da República
o reconheceu em recente visita à
província de Manica, que os cidadãos
tragam preocupações de casos
mal resolvidos pela máquina administrativa
aos comícios presidenciais. Aqui
parece haver um hiato entre o discurso
político e a prática. A
expansão da rede escolar é
uma realidade, mas a qualidade do ensino
está a baixar e o diálogo
com a sociedade civil nesta área
é quase nulo. A mesma situação
se estende à reforma em curso no
ensino superior, que até há
bem pouco tempo estava a ser feita com
um rolo compressor, sem levar em conta
as várias sensibilidades. Poderia
citar vários exemplos, os que aqui
escolhi são para dizer que, no
meu entender, há avanços,
recuos e contradições. Portanto,
não vejo nenhum elemento distintivo
neste Governo na concretização
dos direitos humanos. O que vejo é
uma tentativa de implementação
de políticas num contexto de um
Estado ainda fraco, combinado a um discurso
político às vezes abstracto
e autista (excessivamente voltado para
dentro de si mesmo) e um défice
de diálogo com a sociedade em alguns
assuntos.
Bantulândia - Por
que os PARPA’s não são
desenhados como políticas públicas?
JM - Confesso que não
entendo a essência da sua pergunta,
porque, no meu entender, o Plano de Acção
Contra a Pobreza Absoluta (PARPA) é
uma política pública ou
ao menos um quadro de políticas
públicas. Repare que, como princípio,
as diversas políticas sectoriais
derivam das prioridades definidas no PARPA
nos seus diferentes pilares. Por isso,
devo dizer que os PARPA´s são
transformados em políticas, sim.
Talvez o que se pode questionar é
se há consistência entre
os elementos programáticos definidos
no PARPA e as políticas específicas.
Mais ainda, pode-se perguntar se há
uma capacidade já instalada de
produção e gestão
de políticas públicas no
País. À primeira questão
eu diria que a resposta virá daqui
a alguns meses, quando a avaliação
do PARPA II, actualmente em curso, terminar.
Quanto à segunda questão,
devo dizer que análises feitas
sobre o assunto mostram que ainda há
fraca capacidade de definição
e gestão de políticas públicas
no País. Isso pode comprometer
as perspectivas de desenvolvimento do
País. É missão da
reforma do sector público, cuja
estratégia está a ser implementada
até 2011, resolver esse problema.
Bantulândia
- Por que o governo de Moçambique
operacionaliza mais actividades de cunho
assistencialista e filantrópica,
furtando-se de garantir direitos humanos
para a melhoria da qualidade de vida dos
cidadãos?
JM - Mais uma vez não
estou certo se entendi a questão.
Preferia que fosse mais concreto. Mas
presumo que quando fala de assistencialismo
se refere a iniciativas como os 7 milhões
(!?). Penso que as minhas respostas à
primeira e segunda questões vão
parcialmente de encontro ao que pergunta
aqui. Mas posso retomar o assunto: penso
que o problema central é a fraca
ligação entre as grandes
políticas (exemplo, PARPA); as
políticas sectoriais e as necessidades
ao nível de base. A isso associaria
o dilema do político: a garantia
da consistência técnica das
políticas versus dos resultados
eleitorais dos mesmos. Os políticos
que enfrentam eleições periodicamente
não se podem dar ao luxo de esperar
que grandes programas levem o seu tempo
para completar o ciclo em que produzirão
resultados, se este tempo não coincidir
com os ciclos eleitorais (o espaço
entre duas eleições). Aí
a tentação de optar por
políticas populistas ou imediatistas
é maior. E, justiça seja
feita, isso não é monopólio
dos políticos moçambicanos.
Aí você me perguntará
por que nos outros países é
diferente? Aí eu diria que o que
muda é o lado da demanda. Enquanto
no nosso país pensamos que o que
o Governo nos dá é uma dádiva,
nos outros os cidadãos olham para
isso como um dever e como retorno dos
impostos que pagam. E aí está
o ponto central: impostos; a contribuição
do cidadão para as políticas
públicas e o seu estímulo
para fiscalizar. Quantos é que
pagam imposto neste país? Daí
pode ver as consequências. Se o
cidadão não paga imposto,
tem duas opções: (1) se
for pobre (que é a maioria), espera
que o governo aja como um benfeitor –
daí vem a receptividade ao assistencialismo
e à filantropia; (2) se não
for necessitado, mas assim mesmo não
paga imposto ou não sabe que paga
ou não está organizado em
grupos de interesse, o seu estímulo
e capacidade para fiscalizar o governo
e pressionar por políticas são
mínimos. Então, deixa as
coisas como estão e abre o espaço
livre para o Governo optar por políticas
que mais se adequam às suas capacidades
e às preocupações
políticas dos políticos.
Nos países onde os cidadãos
têm consciência da sua contribuição
para as políticas públicas
e dos deveres dos Governos a eventual
adopção de políticas
assistencialistas não exclui a
existência de outras políticas,
porque haverá grupos que também
reivindicarão a sua parte e farão
tudo para o governo responder à
essa demanda. Isso terá como consequência
a existência de um âmbito
mais amplo de políticas públicas
que respondam às demandas dos vários
grupos sociais. Há evidentemente
muito mais que se possa dizer sobre isto,
mas pela natureza deste espaço
ficaria por aqui.
Bantulândia
- Por que a Agenda 2025 não é
mencionada pelo actual Presidente da República,
Armando Emílio Guebuza, e pelo
seu governo, sabido que é um tratado
nacional de desenvolvimento até
2025?
JM - No meu entender,
o País ainda não tem condições
para adoptar uma visão supra-partidária
como projecto nacional. A nossa política
é essencialmente partidária
e aquilo que se chama jogo de soma zero:
quem ganha leva tudo. Enquanto for assim,
seja qual for o partido que estiver no
poder, programas supra-partidários
como a Agenda 2025 poderão até
ser feitos, mas o seu destino será
a gaveta. As preocupações
de incutir um cunho partidário
na governação, tendo em
conta os dividendos eleitorais e a ânsia
de “eliminar politicamente”
os adversários políticos,
tornam o processo governativo moçambicano
uma arena árida (mais que o deserto
do Sahara) para a implementação
de programas supra-partidários.
RENAMO
e direitos humanos
Bantulândia - A
entrada de Afonso Dhlakama e da Renamo
no cenário político, na
década de ‘90, criou grandes
expectativas democráticas e sociais,
a exemplo da defesa dos direitos humanos.
- Desde 1994, que nível de debate
sobre direitos humanos foi trazido pela
Renamo e seu líder, Afonso Dhlakama?
JM - Há duas dimensões
da Renamo e de Dhlakama que têm
implicações na sua contribuição
para os direitos humanos. A primeira tem
a ver com o seu estatuto de oposição,
num país que historicamente foi
governado por um só partido. Com
a introdução do multipartidarismo
surgiu finalmente um contraponto ao poder
centralizado, que passou a fiscalizar
o poder. É evidente que isto teve
um efeito positivo na preocupação
do regime pelos direitos humanos. As discussões
abertas no Parlamento, a exposição
de casos de violação dos
direitos humanos, a fiscalização
do Governo (mesmo que precariamente),
foram possíveis apenas num contexto
de multipartidarismo. Nesse ponto, posso
dizer que a existência da Renamo,
como partido de oposição
e como um actor legislativo, contribuiu
para o debate sobre os direitos humanos.
A segunda dimensão já é
mais contraditória. Em 15 anos
de democracia formalmente multipartidária
a Renamo não se democratizou internamente
e continua a girar em torno do seu líder,
Afonso Dhlakama. A forma como este tem
gerido o partido, organizado os processos
eleitorais internos e lidado com os seus
quadros, é uma contradição
à reivindicação que
a Renamo faz de ser defensora dos direitos
humanos e da democracia. Mas repare que
isso também contribui para o debate
sobre os direitos humanos e eu tiro já
uma ilação: a natureza bipartidária
e bipolarizada da nossa democracia nestes
quinze anos, caracterizada pelo domínio
e competição de dois partidos
cuja estratégia dominante parece
ser a eliminação mútua,
faz com que a discussão dos direitos
humanos seja secundarizada. Neste contexto,
acho que a Renamo e Dhlakama, pelas contradições
entre o seu discurso e a prática
dos direitos humanos, acabaram sendo reféns
da dinâmica acima descrita. Isso
consequentemente empobrece o debate mais
amplo dos direitos humanos no País,
pelo menos no que concerne à contribuição
dos partidos políticos.
Bantulândia
- Qual é a relação
entre a perda significativa de assentos
no Parlamento por parte da Renamo e o
fraco debate sobre direitos políticos
em Moçambique?
JM - Não entendi
se se refere às eleições
de 2004 ou está a prever os resultados
das eleições de 2009.
Bantulândia
- Refiro-me a 2004...
JM - Ironicamente acho
que o debate sobre os direitos políticos
neste último mandato foi mais intenso.
Da parte da Renamo diria que o recrutamento
de uma massa crítica (os jovens
intelectuais como Ismail Mussá,
João Colaço, Manuel Araújo,
Eduardo Namburete), que está agora
a sair, contribuiu para a melhoria do
debate político. Mas não
creio que os ventos soprem apenas da Renamo.
A sociedade no geral está mais
madura, mais crítica e informada.
Há maior exercício da liberdade
de expressão. Os media são
claro reflexo disso: o seu activismo atingiu
um nível muito bom durante este
último mandato parlamentar. Por
isso, acho que a perda dos assentos não
afectou o debate político. Até
porque a Renamo sempre foi minoria parlamentar,
sem poder decisório nenhum, a não
ser em matérias constitucionais
que requerem o consenso de 2/3.
Bantulândia
- Independentemente dos vaticínios
de que a Renamo poderá “desaparecer”,
que legado de sociali zação
político-democrática e educação
cívica às populações
o partido oposicionista deixa para Moçambique?
JM - Acho a sua pergunta
muito interessante. A Renamo tem um passado
político muito negativo e muitas
vezes as pessoas tendem a olhar para isso
quando analisam a sua contribuição
para a democracia moçambicana.
Mas é preciso lembrar que tem,
ou pelo menos já teve, uma base
social relevante. A prova disso é
a votação recorde que teve
nas eleições de 1999, e
as vitórias nos maiores círculos
eleitorais, como a Zambézia e Nampula
(este perdido para a Frelimo em 2004).
Isso é indício de que é
(ou foi) vista por parte significativa
dos moçambicanos como alternativa
à governação do país.
Por isso, eu duvido que a Renamo desapareça
por completo, a não ser que outro
partido incorpore os anseios dos que votaram
historicamente nela. Diria que o seu legado
é esse: a ideia de que se pode
pensar uma alternativa ao poder constituído.
Esse eleitorado pode funcionar como fiel
da balança no sistema político
e estimular a busca por uma maior qualidade
dos nossos políticos. Da parte
do Governo, há um óbvio
interesse de atrair esses eleitores para
o seu partido. Isso pode estimular a adopção
de políticas cada vez mais inclusivas.
Por parte de outros partidos da oposição,
certamente haverá um incentivo
para conquistar esta base social, sem
os erros que a Renamo cometeu. Isso pode
melhorar a estratégia e organização
dos partidos que pretendem ter um futuro
promissor na política moçambicana.
O MDM tem todos os sinais de querer seguir
essa via. Em suma, eu diria que o legado
da Renamo é a expressão
de um posicionamento alternativo ao “establishment”,
que é uma manifestação
do pluralismo político característico
da democracia; e o legado de uma base
social que estimulará uma maior
competitividade entre as forças
políticas existentes no País
para conquistá-lo. Estes elementos
poderão contribuir para uma maior
pujança da nossa democracia.
Abstenção
e direitos políticos
Bantulândia –
Que relação pode estabelecer
entre abstenção, por frustração
popular, e violação dos
direitos políticos?
JM - A abstenção
por frustração popular seria
a percepção de que nem o
partido no Governo, nem as forças
que se apresentam como suas alternativas
representam efectivamente os interesses
dos cidadãos. Nesse contexto, melhor
mesmo é ficar em casa; porque a
política perde a sua essência
transformacional. A abstenção
por violação dos direitos
políticos se manifestaria pela
ineficácia dos órgãos
de administração eleitoral
de registar os eleitores, a desorganização
dos processos eleitorais, a violência
política, as intimidações
(como os incêndios a sedes de partidos),
a cooptação e outros episódios
que aqui e acolá vão sendo
reportados. Não havendo liberdade
suficiente para expressão da escolha
pelo voto, as pessoas preferem não
ir votar, anular o voto ou simplesmente
deixá-lo em branco. Tendo em conta
a sua questão, diria que no nosso
contexto essas são as causas que
podem estar por detrás da alta
abstenção que tivemos nas
eleições mais recentes,
de 2004
São
Araçatuba, 1 de Agosto de 2009
^
Subir
Nota:
4 - Doutorado em Ciência Política
no Instituto Universitário de Pesquisas
do Rio de Janeiro (IUPERJ), que durou
de 1997 a 2000. Em 2001, voltou a Moçambique
e ingressou na Universidade Eduardo Mondlane
como docente e Chefe do Departamento de
Ciência Política e Administração
Pública. Exerceu essa função
até 2003. Em 2002, também
foi convidado para se juntar à
Unidade Técnica da Reforma do Sector
Público (UTRESP), onde foi consultor
até 2003 e posteriormente coordenador
de programas, até 2006, quando
deixou a UTRESP.
Actualmente, é docente da Universidade
Eduardo Mondlane afecto ao Departamento
de Ciência Política e Administração
Pública, onde também exerce
as funções de Director do
Curso de Governação e Administração
Pública. Também é
sócio-gerente da empresa de consultores
e advogados, ACS, Lda, criada em 2004.
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