Livros
Direitos Humanos
Direitos
Humanos
Direitos
Humanos em Moçambique
Josué
Bila
Parte
I – Artigos
Capítulo
I
Moçambique contemporâneo
e Direitos Humanos
Reclusos
e não-reclusos: mesmos direitos?
Fazendo
fé às estatísticas
oficiais, Moçambique tem mais de
metade de sua população
mergulhada em privações
sociais abaixo da linha da pobreza.3
Nestas condições, é
difícil, mas não impossível,
falar em defesa de direitos dos reclusos.
Prováveis perguntas e razões
dessa dificuldade são costumeiramente
apontadas, quando se discute sobre direitos
dos reclusos, nos sectores do Estado,
autoridades prisionais, média e
cidadãos, individual ou colectivamente.
Permitam-me
que, antes de entrar no cerne da questão
em epígrafe, coloque quatro dessas
prováveis perguntas e razões:
1) Como o Estado moçambicano pode
garantir direitos dos reclusos, ao mesmo
tempo que os seus recursos humanos, materiais
e financeiros são (tidos como)
limitados para efectivar direitos humanos
da população, em geral?
2) Por que e como o Estado pode manter
um médico ou segurança nutricional
numa unidade carcerária com 800
reclusos, se numa localidade de, pelo
menos, 150 mil habitantes é incapaz
de manter pessoal médico e/ou segurança
alimentar?
3) Minimização e ignorância
pública sobre a dignidade humana
dos reclusos.
4) O Estado não segue um Plano
Nacional de Direitos Humanos interssectorial.4
Ao
explorar estas questões, mesmo
ciente de que não as responderei
cabalmente, não quero sugerir que
o Estado deva ser menos atencioso aos
reclusos, até porque pode estar
a incorrer a esse crime, favorecendo somente
a população que goza de
(suposta) liberdade. Pelo contrário,
quero sugerir que o Estado deve obter
maior capacidade de recursos para disponibilizá-los
em estabelecimentos prisionais, materializando,
por essa via, os direitos dos reclusos.
Porém, a implementação
dos direitos dos reclusos não deve
ser superior nem inferior ao garantido
aos cidadãos fora das cadeias,
excepto em casos particulares, decorrentes
do cumprimento da pena prisional dos primeiros.
Continuando,
observo também que é difícil
discorrer sobre as causas da falta dum
Plano Nacional de Direitos Humanos, apenas
para enfatizar que existem, por um lado,
certas associações entre
a então apelidada orientação
marxista-leninista, com as consequentes
leis pró-tortuta, legisladas pelo
Estado Popular (1977-1990); guerra fratricida
dos 16 anos; Orçamento Geral do
Estado com forte dependência externa;
compromisso político-governamental
de direitos humanos deficiente; falta
de Planos Estratégicos coerentes
e validados por todos actores (Agenda
2025 foi uma excepção) e
pobreza material e cívica em Moçambique.
Por outro, há uma grande nudez
na ética popular em olhar e reconhecer
a humanidade e dignidade nos reclusos.5
Aliás, os relatórios produzidos
pelo Ministério da Justiça
(2007-2008), financiados pela União
Européia e Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento, revelam
que a percepção de direitos
humanos, no seio dos cidadãos moçambicanos,
é de muito baixa intensidade.
Ora,
em Moçambique, a violação
de direitos dos reclusos tem constituído
uma infeliz e insuportável realidade,
mesmo para quem é insensível
e moralmente depravado. Ela tem sido reportada
pelos orgãos mediáticos,
organizações não
governamentais, intelectuais e corpo diplomático,
através da embaixada dos Estados
Unidos da América. Os relatórios
desses institutos, com destaque para a
Liga Moçambicana dos Direitos Humanos,
arrolam a tortura e outros tratamentos
cruéis e degradantes, superlotação
das cadeias (ex. A Cadeia Central de Maputo
fora concebida para encarcerar 800. Mas,
actualmente, enclausura 2.300 prisioneiros),
uma refeição, por dia (fome
ou alimentação sem calorias
suficientes), centenas de reclusos acima
do período de detenção
preventiva, prevista para 90 dias, condições
de dormida desumanas, fragilidade de assistência
médica e medicamentosa e deficientes
acções de (res)socialização.
Além disso, a violação
dos direitos dos reclusos aponta ainda
o desprezo ao direito de ser ouvido e
a quase falta de advogados, contrariando
a ordem civilizacional contemporânea
de direitos humanos. Há que relembrar
que o desprezo a ser ouvido e a quase
falta de advogados não é
algo que exclusivamente acontece com os
reclusos, mas também com quase
todos segmentos populacionais que vivem
no território moçambicano.
Posto
isto, tem se compreendido que a falta
ou fragilidade de materializar direitos
dos reclusos é um indicativo de
deficiência estrutural e institucional
do Estado em todos os seus sectores. Todos
os sectores sofrem de suas mazelas, corroendo-se,
para a nossa desgraça, a dignidade
humana. E porque todos os sectores subsistem
dentro de uma rede inter-relacional, contaminam-se
uns os outros. Por exemplo, em Moçambique,
a fraquíssima obtenção
de alimentação adequada
não é algo que acontece
somente dentro das cadeias, mas, extensivamente,
a doentes nos hospitais ou fora deles
- crianças, mulheres, pessoas portadoras
de deficiência, singulares, famílias,
trabalhadores, escolas e mais sectores,
exactamente porque a produção
e distribuição de alimentos,
em quantidade e qualidade, para todos,
numa visão de direitos humanos
(Plano Nacional de Direitos Humanos) não
existe ou se existe é tímido.
Deste
modo, a defesa de direitos dos reclusos
pode mostrar-se frustrada, se a defesa
dos direitos humanos, em sua base inter-relacional,
não estiver fundada num Plano Nacional
de Direitos Humanos, discutido e desenhado
pelo Estado, Governo e Sociedade Civil,
Universidades e outros centros de pesquisa;
implementado pelo Estado e monitorado
pela Assembléia da República
e sociedade civil. Quando, repetidamente,
falo do Plano Nacional de Direitos Humanos,
estou a sugerir um documento-acção-guia
que coloca o ser humano no centro das
atenções do Estado, independentemente
de ser recluso ou não: ele (o ser
humano) tem direito humano à alimentação,
à educação, à
saúde, ao lazer, ao desporto, ao
trabalho, ao meio ambiente são
e demais direitos, liberdades e garantias
individuais e ao respeito dos agentes
e autoridades do Estado. Ao invocar a
Sociedade Civil, não estou apenas
a propor e a dar confiança àquela
publicamente conhecida e já existente,
mas também ao surgimento contextual
de associações de reclusos
(eles podem co-monitorar os centros prisionais
onde se encontram a cumprir a pena, dentro
das normas internacionais e domésticas
de tratamento dos reclusos – isso
pode fazer parte da ressocialização
cívica deles) ou de associações
de familiares de reclusos.
As
mazelas nos centros prisionais e, por
consequência, dos direitos dos reclusos
é o corolário da deficiência
de uma intervenção multissectorial
do Estado, fundada numa perspectiva de
direitos humanos, e por que não
pontuar uma quase falta de comprometimento
político-governamental. Por assim
dizer, a existência de um número
considerável de reclusos com crimes
de pequena monta pode estar a denotar
ou a explicar essa deficiência de
intervenção multissectorial
do Estado na educação, emprego
e demais direitos intelectuais, culturais,
estéticos, ambientais, sociais
e económicos. Documentos e debates
vários do Governo, centros de pesquisa
e organizações sociais e
religiosas apontam que a criança-adolescente-jovem
que não tem acesso à cultura
eclesiástico-espiritual, educação
escolar, espaços de lazer e desporto,
círculos de leitura e cultura artístico-cívico-intelectual,
habitação condigna e emprego
está muito próximo de entrar
no coito de crimes provinciano-estomacais
(roubo/furto de patos, celulares, bicicleta...),
que, ao poente, o levarão aos calaboiços.
Contudo e em abono à verdade, esta
colocação não despreza
que, bastas vezes, a criança-adolescente-jovem
possa cair nas malhas dos desvios sociais,
mesmo que viva em alto padrão de
satisfação de direitos humano.
Para
contrariar essa deficiente intervenção
multissectorial, o Estado moçambicano
deve flexibilizar a planificação,
execução e ampliação
de políticas públicas, cujo
objectivo seja para a satisfação
integral das necessidades das pessoas,
independentemente de onde se encontram,
em resposta ao artigo 11 da Constituição
da República de Moçambique,
alínea c), que diz: a edificação
de uma sociedade de justiça social
e a criação do bem-estar
material, espiritual e de qualidade de
vida dos cidadãos; e) a defesa
e a promoção dos direitos
humanos.
Esse
artigo constitucional abre espaço
para que se interprete que, por exemplo,
a implementação de uma política
de produção agrícola,
agro-indústria e comercial, alicerçada
na ética de direitos humanos, pode
reduzir a fome tanto nas cadeias, bem
como nas famílias, escolas, sectores
laborais, bem como nas cadeias. O mesmo
pode-se dizer sobre a formação
de pessoal médico e serventuário,
construção de unidades sanitárias,
centros de laboratório, pesquisa
e fabrico de medicamentos, para a garantia
do direito à saude dos cidadãos
e dos demais encarcerados.
Ao
proceder desta forma, o Estado pode obedecer
ao preceituado nas leis (inter)nacionais
de direitos humanos sobre o tratamento
dos reclusos, enquanto titulares de direitos
humanos. Estas normas todas colocam o
ser humano como detentor e destinatário
de igualdade e fraternidade, independentemente
das circunstâncias reclusórias
nas quais se encontrar. Assim, pode-se
dizer que a humanidade dos reclusos não
está no facto de serem detidos
ou condenados, mas no facto de serem seres
humanos.
Portanto,
tratar dos direitos dos reclusos é
tratar da dignidade humana das pessoas.
Por isso, difícil é pensar
nos direitos dos reclusos, sem pensar
no tratamento digno devido às pessoas,
que também sofrem de mazelas de
violações de direitos humanos.
Difícil defender que o Estado deve
garantir direitos básicos dos reclusos,
se o grosso da população
não os goza e vice-versa. A lógica
de materializar direitos humanos não
dá espaço para satisfazer
somente a população, em
detrimento dos reclusos e nem tão
pouco o contrário. Ou seja, a lógica
de materializar direitos humanos abre
espaço para políticas públicas
equlibradas e satisfafórias das
necessidades da pessoa humana.
Então,
o maior desafio de Moçambique actual
é entender que o problema da violação
dos direitos humanos não é
especifico de um sector (reclusos ou centros
reclusórios), mas de todos os segmentos
da sociedade. Isso, entretanto, concorre
para que o país materialize a defesa
e a implementação de direitos
humanos, em uma base inter e multissectorial,
neutralizando e desbaratando a inescrupulosa
fragmentação de acções
de direitos humanos, tão espalhada
quanto improdutiva, em nosso meio.
À
medida que Moçambique ficar maduro
na defesa, protecção e implementação
de direitos humanos, creio que saberá
garanti-los em todos os sectores, de forma
equilibrada.
Com
efeito, o desafio dos implementadores
e defensores de direitos humanos –
autoridades e agentes estatais e não-estatais,
militantes profissionais, jornalistas,
advogados, médicos, professores
- é maior e urgente. Maior, porque
não bastará a retórica
e o conhecimento aprofundado dos direitos
humanos em si; precisarão da pedagogia
da fala, sabedoria política, sensibilidade
humana e capacidade de agir, aplicando
medicamentos verdadeiros em uma doença
comum: violação de direitos
humanos da maioria da população
moçambicana, seja reclusa ou não.
Urgente, porque a barbárie a que
os reclusos e outros segmentos sociais
se encontram sujeitos deve ser substituída,
já e já, pela elegância
de liberdade e igualdade - direitos humanos
para todos.
Termino
com a pergunta titular. Reclusos e não-reclusos:
mesmos direitos? Claro que sim, excepto
em circunstâncias de cumprimento
da pena dos primeiros. E o cumprimento
da pena não pode violar a dignidade
humana do recluso, em resposta ao direito
dos direitos humanos. Quer queiramos quer
não, o viver o direito dos direitos
humanos é a ética secular
do Homem de hoje – recluso ou não!
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Notas:
2
- Araçatuba, 3 de Março
de 2010
3
- Refere-se basicamente aos dados do Instituto
Nacional de Estatística (INE),
o qual tem feito estudos periódicos,
visando trazer à tona os dados
estatísticos sobre Moçambique.
Não raras vezes, por comparação
ou por ausência de dados do INE,
recorre-se às estatísticas
das Nações Unidas, centros
de pesquisa universitária e outras
instituições.
4
- Apesar da falta de um Plano/Programa
Nacional de Direitos Humanos, começa,
ainda que timidamente, a existir no Ministério
da Justiça e em outros órgãos
governamentais e parlamentares algum interesse
em debater e desenhar planos de direitos
humanos em Moçambique.
5
- Infelizmente, o fenómeno de que
“os direitos humanos são
direitos dos bandidos”, como o senso
comum brasileiro advoga, é frequente
em Moçambique. Os defensores de
direitos humanos, académicos, órgãos
mediáticos e governo devem ter
uma postura educadora e equilibrada, quando
falarem sobre direitos humanos.
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