Por
que Direitos Humanos
Nilmário
Miranda
DESARMANDO
AS ARMADILHAS
Fui
prisioneiro político durante os anos
de chumbo, entre 1972 e 1973, quando a tortura,
os assassinatos de opositores políticos
e os desaparecimentos forçados de pessoas
tornaram-se política de Estado. Passei
por diversos Centros de Detenção
ilegal e de tortura e por vários presídios.
Foi então que aprendi, sofrendo na pele
junto com milhares de pessoas, a importância
dos Direitos Humanos.
Converti-me à luta de mães, esposas,
filhos e filhas, irmãos e irmãs;
da igreja de São Paulo e do Brasil; dos
dignos e honrados advogados de presos políticos;
dos jornalistas que não se calaram; dos
deputados autênticos que não temeram
o látego do AI 5 e denunciaram a brutalidade
da ditadura.
Ao sair da prisão, deixei para trás
todo sentimento de revanche e olhei para frente,
feliz por sair de quase uma década de
clandestinidade e prisões e poder mergulhar
na vida do nosso povo cheio de esperanças
e planos curtidos no cárcere.
Sempre concebi os Direitos Humanos como direito
de todos, não só dos perseguidos
políticos. Daí o projeto do Jornal
dos Bairros que se propôs a dar a versão
dos fatos pela ótica dos oprimidos. Por
sete anos, atuando nas periferias esquecidas
da Região Metropolitana de Belo Horizonte,
somamo-nos aos que corajosamente organizaram
as oposições sindicais, os movimentos
comunitários por direitos mínimos
de cidadania, como água, esgoto, transporte
digno, creches e ruas pavimentadas. Trabalhamos
na defesa dos campos de futebol várzea,
que eram tragados pela especulação
imobiliária sem freios; contra a poluição
descontrolada da Cidade Industrial; pela valorização
da cultura do povo.
Ao mesmo tempo, juntamo-nos aos movimentos de
redemocratização do País,
pela Anistia ampla, geral e irrestrita e de
apoio aos presos políticos.
Nessas três décadas, meu compromisso
com os Direitos Humanos foi uma constante. Como
deputado estadual (1987/1990), tive o meu mandato
voltado para o apoio aos atingidos por barragens
do Vale do Jequitinhonha; aos sem-teto da Região
Metropolitana; à luta do povo das favelas
por dignidade e respeito; à denúncia
do extermínio de crianças por
esquadrões da morte; aos pobres do campo.
Como deputado federal, por 12 anos (1991/2002),
dediquei-me por inteiro à luta contra
o vilipêndio dos Direitos Humanos civis,
políticos, econômicos, sociais
e culturais do povo brasileiro.
Já eleito presidente, Lula convidou-me
para ser o primeiro ministro de Direitos Humanos,
mandato que cumpri por dois anos e meio e que
só deixei para assumir a Presidência
do PT mineiro, em outubro de 2005, em um momento
em que o partido que ajudei a fundar estava
sendo massacrado.
Escrevi
este livro para provocar a reflexão,
a indignidade e o engajamento de mulheres e
homens de bem. A sociedade brasileira está
passando por um processo civilizatório
sem precedentes nessas décadas em que
deixados o autoritarismo político para
trás. No entanto, deparamo-nos no cotidiano
com as marcas da herança pesada dos quatro
séculos de escravismo, colonização
e cultura senhorial de uma sociedade verticalizada,
em que as relações sociais e intersubjetivas
revelam que o autoritarismo está presente
nessa mesma sociedade, nas empresas e nas famílias.
As enormes desigualdades que afetam as crianças,
as mulheres, os negros, os migrantes, os idosos,
os trabalhadores são postas como inferioridade
natural. Os de cima, que entre si estabelecem
relações de iguais, de compadrio
e de proteção mutua, continuam
a manter com a maioria – os de baixo –
relações de clientela, favor,
cooptação e tutela, que facilmente
descambam para a violência e a opressão.
Para os de cima, a lei é para ser transgredida
sem perigo; imposto é para ser sonegado.
Já para os de baixo, a lei é sinônimo
de repressão e não-direitos. Por
mais que tenhamos avançado, é
grande ainda o recurso à ostentação
para demarcar a distância entre os de
cima e os de baixo; o recurso à criadagem
doméstica como símbolo de prestígio
e poder. A filósofa Marilena Chauí
repugna o desprezo das elites pelo trabalho
manual, pelo salário mínimo, a
naturalização do trabalho degradante
e as trapaças com os direitos trabalhistas.
O balanço dos 500 anos mostra-nos como
o patrimonialismo dos “donos do poder”,
desde a Colônia, o Império e a
Republica Velha, foi alargando o espaço
privado e encolhendo o espaço público
e os direitos das pessoas. Mostra-nos como os
conflitos de classe, dos movimentos sociais
urbanos e rurais são freqüentemente
associados à desordem, às crises
e outros perigos, como se uma sociedade auto-organizada
pudesse representar não a esperança
de uma democracia para todos, mas, sim, um perigo
para o Estado e o mercado.
Daí a obsessão de controlar a
mídia, de bloquear a sociedade civil,
os movimentos sociais e populares, a esfera
pública das ações sociais
e de opinião como depressão dos
interesses e direitos das maiorias, das classes
populares.
Muita coisa tem sido mudada desde o fim do regime
autoritário. Mas, para avançar
mais, temos de desarmar as armadilhas dos perversos,
do legado maldito. Desarmar as armadilhas da
cultura que considera natural a existência
de milhões de crianças sem infância
e reforça o mito de tendência natural
dos pobres à vadiagem, à preguiça,
à delinqüência.
Desarmar as armadilhas que justificam a persistência
do analfabetismo, dos milhões de sem-terra,
sem-teto e de desempregados como fruto da incompetência,
da ignorância e da indolência das
próprias vítimas.
Desarmar as armadilhas dos perversos é
mudar radicalmente de atitude na esfera pública
e privada para com os idosos e as pessoas que
carregam deficiências. É não
admitir brasileiros sem registros e sem os documentos
civis básicos. É abrir as portas
do coração e da cidadania para
os indígenas e os quilombos. É
buscar não o combate, mas a erradicação
do trabalho infantil, do trabalho infantil doméstico,
do trabalho escravo, do trabalho de degradante.
É combater a discriminação
no trabalho e respeitar os que lutam para torná-lo
digno.
Desarmar as armadilhas dos perversos é
acabar com a violência doméstica,
com o abuso sexual e a exploração
sexual comercial de crianças e adolescentes.
É acabar com o flagelo das torturas,
do extermínio de pessoas, melhorar o
acesso dos pobres ap Judiciário e denunciar
sem medo a injustiça de raça e
de classe, inacessível, secreta.
Este livro pretende dar uma contribuição
ao principal, que, a meu juízo, é
a massificação da educação
em Direitos Humanos.